A Mae - Maxim Gorki
A Mãe
ROMANCE DE
Maxim Gorki
[++++++++++++++++++++]
(zero papel)
EDIÇÕES DIGITAIS
2013 Ficha técnica
Título:
A Mãe.
Autor:
Maxim Gorki.
Tradução:
Sérge Persky e Augusto de Lacerda.
Capa:
© 2013, (zero papel).
Edição digital:
© (zero papel), janeiro de 2013, a partir da tradução de 1907.
Texto em conformidade com o acordo ortográfico da língua portuguesa de 16 de
dezembro de 1990. PREFÁCIO
A Mãe não é uma obra de pura imaginação. É, antes de tudo, uma pintura
exata — poderia até dizer-se uma vista cinematográfica — do movimento
revolucionário na Rússia. Este belo livro introduz na literatura russa tipos que
faltavam nela quase por completo: os revolucionários operários e camponeses,
cujo papel tem sido tão importante nas últimas tempestades políticas do país dos
czares.
Graças aos escritores que se têm sucedido de Turgueniev a Lev Tolstoi, o
revoltado saído da classe intelectualmente cultivada é mais ou menos conhecido.
Por que motivo não havia ainda um retrato completo do seu irmão oriundo
das obscuras camadas do povo? Principalmente porque os revolucionários desta
categoria são de recente data.
Prepararam-se durante muito tempo nas misteriosas profundezas das massas,
recrutando-se em silêncio, multiplicando-se pouco a pouco, até ao dia em que, na
sequência dos acontecimentos de que a Rússia acaba de ser o teatro, os viram
surgir de chofre por toda a parte, tanto nas aldeias as mais recônditas da
província, como nas grandes cidades.
O povo desperta do seu sono secular, como de sobressalto, e este despertar
abre uma era nova na história do movimento da libertação russa. Entre os
intelectuais e os iletrados, até hoje distanciados uns dos outros, forma-se um laço
sólido, e um mesmo ideal inflama o exército dos que marcham à conquista da
liberdade.
Descrever esta nova fase da revolução russa, evocar os heróis obscuros que
se votaram à grande tarefa da emancipação, analisar nas suas manifestações as
mais variadas, e até as mais inesperadas, esta ressurreição da consciência
popular, — eis o que Máximo Gorki se propôs nas páginas que ides ler. Tarefa
árdua como poucas, mas de molde a tentar a alma ardente do autor. Raras vezes
Gorki atingiu tal acuidade de observação, uma variedade mais completa no
descritivo, uma tão perfeita certeza de análise psicológica. Mais do que nunca, foi
o homem identificado com a sua obra. Filho do povo, ascendendo das mais
sórdidas camadas sociais, revolucionário unicamente dedicado ao seu puro ideal
de justiça (sempre protestou contra a violência, viesse ela de onde viesse) Gorki
tinha, mais do que outrem, os requisitos para escrever esta página trágica da
história contemporânea.
No personagem tão profundamente humano da mãe, Gorki mostra como uma
mulher cheia de doçura e de timidez, espancada pelo pai, pelo marido, esmagada
impiedosamente pela sorte, imersa na ignorância e no desbragamento, vai
adquirindo pouco a pouco a consciência da sua mísera situação, se alevanta sob a
influência do seu filho, até tornar-se como ele revolucionária entusiástica,
sacrificando por fim as suas mais queridas afeições, a própria vida mesmo, àcausa do povo.
Em torno da mãe e do filho — os dois heróis principais — agita-se um
amontoado de outros personagens. De uma parte, os amigos: um pequeno-
russo [1] — alma de abnegação e de comovente simplicidade, — raparigas
sacrificando felicidade e riqueza para sofrerem a prisão e as provações de toda a
espécie; operários robustos e safados reclamando, com o direito à vida, algumas
liberdades; camponeses que, depois de séculos de cega submissão, se recusam
finalmente a considerar os representantes das autoridades como enviados do céu.
De outra parte, os inimigos: oficiais de polícia, guardas e espiões, instrumentos
dóceis do poder. Toda esta gente, tão estranha e tão viva, estas lutas, estes
julgamentos, estes martírios, episódios duma guerra cruel e sem clemência
movida contra os apóstolos do ideal novo, tudo isto é a realidade, a realidade de
ontem, de hoje, de amanhã, tudo isto existe e existirá, enquanto na Rússia durar a
luta libertadora.
De muitas páginas deste livro emana uma emoção profunda.
No decurso de uma conversa com os seus companheiros, André, o pequeno-
russo, exclama:
— Que importam os meus sofrimentos, as minhas desgraças! Quando penso
em que um dia a pátria será livre, o meu coração dilata-se de júbilo... tenho
vontade de chorar, tão feliz me sinto!
E quando Pavel diz, falando de um seu amigo desgraçado mas sempre bem
disposto de espírito:
— Sabes? Aqueles que mais riem são aqueles cujo coração sofre
incessantemente.
Um companheiro responde:
— Qual história! Se assim fosse, toda a Rússia morreria de riso!
* * *
O príncipe Urussov, antigo ministro adjunto do interior, na Rússia, conta nas
suas Memórias que a rainha da Roménia, falando-lhe dos escritores russos
contemporâneos, colocava a muito alto a obra de Gorki, que ela conhecia
perfeitamente. «Sabe captar a atenção do leitor, declarava ela, e introduziu
processos absolutamente novos na literatura moderna.»
Carmen Sylva aludia provavelmente ao dom que Gorki possui de fascinar o
leitor com o poder das cenas que descreve. Tais são, neste romance, a morte do
revolucionário Iegor, a prisão do camponês Ribine, a audiência do tribunal a que
comparecem Pavel e os seus amigos, a cena final em que as mãos dos guardas
espancam a pobre mãe. Quantas passagens poderíamos citar ainda! Por
exemplo, aquela em que Sofia toca uma sinfonia de Grieg. O autor não diz o
nome daquele trecho, mas qualquer músico o reconhecerá imediatamente pelarápida e flagrante descrição que dele faz Gorki.
* * *
O governo russo entendeu dever apreender A Mãe em todo o império. Poucos
dias depois da aparição da obra, a polícia fazia buscas em todas as livrarias tanto
de S. Petersburgo como da província. Chegou muito tarde e só pôde apreender
poucos exemplares, por estar já vendida a parte máxima de uma larga edição.
Ao mesmo tempo, as autoridades entregavam aos tribunais Gorki e o seu
editor, sob a acusação de «excitação à revolta» e de «achincalhamento das
coisas santas», crimes que elas dizem existirem neste romance. Segundo a lei
russa, sob os culpados impende a pena de três a cinco anos de prisão ou de exílio
na Sibéria.
Há três anos somente, Gorki foi encarcerado na fortaleza de S. Pedro e S.
Paulo, por motivos análogos.
A opinião pública sentiu-se abalada em todo o mundo: de todos os países
civilizados afluíram petições colossais, reclamando a libertação do mestre. Gorki
foi posto em liberdade.
Sofrendo do peito, o autor da Mãe está desde há muitos meses em Capri.
Regressará em breve ao seu país. [2]
A prisão estará esperando novamente um dos melhores filhos da Rússia?
Paris, novembro, 1907.
S. PERSKY PRIMEIRA PARTE
I
Todos os dias, na atmosfera esfumaçada e grave do bairro operário, o apito
da fábrica lançava aos ares o seu grito estrídulo. Então, criaturas toscas, com os
músculos ainda fatigados, saíam rapidamente das pequenas casas pardacentas e
corriam como baratas assustadas. Na fria meia-luz, iam pela rua estreita em
direção aos altos muros da fábrica que os esperava implacável e cujos inúmeros
olhos quadrados, amarelos e viscosos iluminavam a calçada lamacenta. A lama
estalava sob os seus pés. Vozes estremunhadas ressoavam com roucas
exclamações; pragas cortavam o ar; e uma onda de ruídos vagos acolhia os
operários: a pesada traquinada das máquinas, o regougar do vapor. Sombrias e
mal encaradas como sentinelas, as altas chaminés negras perfilavam-se acima
do bairro, semelhantes a grossos bastões.
À tarde, quando o Sol ia no poente, os seus raios vermelhos iluminavam as
vidraças das casarias, a oficina vomitava das suas entranhas de pedra todas as
escórias humanas, e os operários enegrecidos pelo fumo, espalhavam-se
novamente pelas ruas, deixando atrás de si exalações lentas da gordura das
máquinas; os seus dentes esfaimados reluziam. Então havia na sua voz animação
e até alegria: os trabalhos forçados tinham concluído por algumas horas; em casa
aguardava-os a refeição e o descanso.
A fábrica absorvia o dia, as máquinas sugavam nos músculos dos homens
todas as forças de que elas precisavam. O dia fora riscado do cômputo da vida,
sem deixar vestígios; o homem tinha dado mais um passo para o túmulo, sem
disso se aperceber; mas podia entregar-se ao gozo do descanso, aos prazeres da
sórdida taverna, e estava satisfeito.
Nos dias santificados, dormia-se até quase às dez horas da manhã; depois a
gente séria e casada vestia o seu melhor fato e ia à missa, censurando aos novos
a sua indiferença em matéria religiosa. Ao regressarem da igreja, comiam tortas
de massa, e deitavam-se de novo até à tarde.
A fadiga acumulada durante longos anos tirava o apetite; para poderem
comer, era preciso beberem muito, excitarem o estômago preguiçoso com a
ardência do álcool.
Pela tarde, passeavam indolentemente pelas ruas; os que possuíam capas de
borracha punham-nas, ainda que o tempo estivesse seco; os que tinham um
guarda-chuva, com ele saíam, ainda que fizesse sol. Não é dado a toda a gente
possuir um impermeável ou um guarda-chuva, mas cada qual ambiciona
superiorizar-se ao seu vizinho, seja de que maneira for.
Quando se formavam grupos, conversava-se acerca da fábrica, das
máquinas, dizia-se mal dos contra-mestres. As palavras e os pensamentos não se
referiam a mais do que a coisas relacionadas ao trabalho. A inteligênciadesastrada e impotente lançava apenas umas centelhas isoladas, um ténue clarão
na monotonia dos dias. Ao voltarem para casa os maridos buscavam questões
para discutirem com as mulheres, batendo-lhes muitas vezes, sem pouparem as
suas forças. Os novos ficavam na taverna ou organizavam pequenas reuniões em
casa dum ou doutro, tocavam harmónio, cantavam canções estúpidas e ignóbeis,
dançavam, contavam histórias obscenas e bebiam em excesso. Extenuados pelo
trabalho, estes homens embriagavam-se facilmente, e em cada peito
desenvolvia-se uma excitação doentia, incompreensível que precisava de
encontrar saída. Então, pelo mais fútil pretexto, atiravam-se uns aos outros como
animais selvagens. Havia contendas sangrentas.
Nas relações dos operários entre si, dominava este mesmo sentimento de
animosidade encubada; inveterara-se neles, tanto como a fadiga dos músculos.
Estes seres nasciam com a doença da alma, herança de seus pais; e como uma
sombra negra acompanhava-os até ao túmulo, impelindo-os à realização de atos
repelentes pela sua inútil crueldade.
Nos dias santificados, os novos regressavam tarde a casa, com os fatos
esfarrapados, cobertos de lama e de poeira; com as caras esmurradas, gabavam-
se dos murros que tinham dado nos companheiros; as injúrias sofridas
encolerizavam-nos ou faziam-nos chorar; eram lastimáveis na sua embriaguez,
desgraçados e repugnantes. Por vezes, os pais levavam para casa os filhos que
haviam encontrado a cair de bêbedos na rua ou na taverna; as injúrias e os
murros choviam nos rapazes embrutecidos ou excitados pela aguardente; depois
metiam-nos na cama com tal ou qual precaução, e pela manhã acordavam-nos,
apenas o silvo do apito da fábrica cortava os ares.
Embora repreendessem os rapazes e lhes batessem, a sua embriaguez e as
suas contendas eram coisas naturais para a família; quando os pais eram ainda
novos tinham bebido também e entrado em desordens, sendo igualmente
castigados pelos pais e pelas mães. A vida decorria sempre assim; continuava a
decorrer, não se sabia até onde, regular e lenta como um rio lodoso.
Apareciam por vezes no bairro criaturas estranhas, que a princípio
despertavam a atenção, simplesmente porque eram desconhecidas; mas dentro
em pouco habituavam-se a elas, e acabavam por passar despercebidas. Das suas
conversas concluía-se que a vida do operário era em toda a parte a mesma coisa.
E desde que era assim, para quê falar sobre tal assunto?
Havia porém alguns que diziam coisas novas para o bairro. Não discutiam
com eles, não prestavam mais do que uma atenção incrédula às suas palavras
extravagantes, que excitavam nuns uma irritação cega, noutros uma espécie de
inquietação, ao passo que outros ainda sentiam-se perturbados por uma vaga
esperança, e desatavam a beber ainda mais que de costume para afastarem tal
impressão.Se o recém-chegado apresentava algum traço caraterístico extraordinário, os
moradores do bairro punham-no em rigorosa quarentena, tratavam-no com
instintiva repulsão, como se receassem vê-lo trazer para a existência de todos o
que quer que fosse perturbador do ramerrão penoso, mas tranquilo. Acostumados
a serem oprimidos pela vida, aquela gente considerava todas as transformações
possíveis como próprias somente a tornarem o seu jugo ainda mais pesado.
Resignados, faziam o vácuo em torno daqueles que pronunciavam palavras
estranhas. Então estes desapareciam não se sabe para onde; se ficavam na
fábrica, viviam à parte, não conseguindo confundir-se na multidão uniforme dos
operários.
Depois de ter vivido assim uns cinquenta anos, o homem morria. II
Desta maneira vivia o serralheiro Mikhail Vlassov, homem sombrio, de
pequeninos olhos desconfiados e maus, protegidos por espessas sobrancelhas. Era
o melhor serralheiro da fábrica e o hércules do bairro. Tinha porém modos
grosseiros para o chefe; por isto ganhava pouco; todos os domingos sovava
algum; todos o temiam e ninguém o estimava. Por várias vezes, haviam tentado
dar-lhe uma tareia, mas nunca conseguiram. Quando Vlassov previa uma
agressão, agarrava numa pedra, numa tábua, num bocado de ferro, e,
solidamente firme nas pernas abertas, esperava em silêncio o inimigo.
Com a cara coberta, desde as orelhas até ao pescoço duma barba negra, as
suas mãos peludas despertavam um terror geral. Principalmente tinham medo
dos seus olhos penetrantes que atravessavam o próximo como pontas de aço;
quando lhe encontravam o olhar, sentiam-se em presença duma força selvagem,
inacessível ao terror, prestes ao ataque impiedoso.
— Eh lá! Vá daqui, canalha! — dizia ele roucamente.
Na espessa tez do seu rosto, os dentes amarelos brilhavam ferozes. Os seus
adversários recuavam, invetivando-o.
— Canalha! — gritava ele ainda, e os seus olhos disparavam sarcasmos
acerados como sovelas.
Depois, erguendo a cabeça com ares provocadores, seguia os seus inimigos,
berrando de quando em quando:
— Então! Quem quer morrer?
Ninguém queria.
Falava pouco. A sua expressão favorita era: «canalha». Qualificava assim os
chefes da fábrica, e da polícia; empregava o mesmo epíteto quando se dirigia à
mulher.
— Ó canalha, não vês que as minhas calças estão rotas?
Quando o seu filho Pavel tinha catorze anos, Vlassov sentiu ainda uma vez o
desejo de levantá-lo ao ar pelos cabelos. Mas Pavel, deitando a mão a um
martelo, disse resumidamente:
— Não me toques!
— O quê? — perguntou o pai, encaminhando-se para o pequeno de formas
esbeltas e delicadas. Dir-se-ia uma sombra caindo sobre uma bétula.
— Basta! — exclamou Pavel. — Não te deixarei continuar...
E agitou o martelo, abrindo desmedidamente os grandes olhos negros.
O pai olhou para ele, pôs as mãos peludas atrás nas costas, e disse em ar de
troça:
— Está bem...Depois acrescentou com um profundo sorriso:
— Ah! Canalha!
Logo declarou à mulher:
— Nunca me peças mais dinheiro para os sustentar, a ti e ao Pavel.
— Vais gastar tudo na bebida? — ousou ela perguntar.
Deu um murro na mesa, exclamando:
— Que tens tu com isso, canalha? Vou arranjar uma amante!
Não a arranjou; mas a partir daquele dia até à morte, durante cerca de dois
anos, nunca mais olhou para o filho nem lhe dirigiu palavra.
Tinha um cão tão forte e peludo como ele. Todas as manhãs o animal o
acompanhava até à porta da fábrica, onde o esperava à tarde. Nos dias
santificados, Vlassov ia para a taverna. Andava sem dizer palavra, e como se
procurasse o que quer que fosse, lançando olhares furtivos aos que passavam.
Durante todo o dia, o cão seguia-o, com a espessa cauda descaída. Quando
Vlassov, bêbedo, entrava em casa, ceava e dava de comer ao cão no seu próprio
prato. Nunca batia no animal, assim como não lhe ralhava nem o acariciava.
Depois da refeição, se a mulher não conseguia levantar a mesa no momento
oportuno, atirava com a louça ao chão, punha na sua frente uma garrafa de
aguardente e, com as costas contra a parede, com a boca muito aberta e os olhos
fechados, cantava em voz roufenha uma canção melancólica. Os sons
discordantes baralhavam-se-lhe no bigode, do qual caíam migalhas de pão; os
seus dedos grossos alisavam os pelos da barba. As palavras da canção eram
incompreensíveis, arrastadas, a melodia recordava os urros dos lobos no inverno.
Cantava enquanto durava a aguardente; depois estirava-se no banco ou encostava
a cabeça à mesa e dormia assim até que o apito da fábrica o chamava. O cão
deitava-se ao seu lado.
Morreu duma hérnia, após longa agonia. Durante cinco dias, enegrecido pelo
sofrimento, agitou-se incessantemente no leito, com as pálpebras cerradas, com
a boca em contorções. De quando em quando, dizia para a mulher:
— Dá-me arsénico. Envenena-me!
Ela chamou o médico, que receitou cataplasmas, informando de que seria
indispensável uma operação, e de que era preciso levar o doente para o hospital
imediatamente.
— Vai para o diabo, canalha! Morro bem, sozinho! — respondeu ele.
Quando o médico saiu, a mulher lavada em lágrimas, quis resolvê-lo a
submeter-se à operação; Mikhail declarou-lhe ameaçando-a de punho cerrado:
— Não experimento. Se eu ficasse bom, haverias de pagá-lo caro!
Uma manhã, morreu, enquanto o apito da fábrica chamava os operários aotrabalho. Deitaram-no no caixão; tinha o sobrolho franzido e a boca aberta. Foi
levado à última morada pela mulher, pelo filho, pelo cão, e por Danilo
Vessovtchikov, velho ladrão e bêbedo expulso da fábrica, e por alguns miseráveis
do bairro. A mulher chorou um pouco. Pavel tinha os olhos secos. Os que
encontraram o préstito fúnebre pararam e persignaram-se, dizendo:
— Com certeza que Pelagueia está satisfeita com a morte do marido.
Alguém emendou:
— Não morreu: rebentou.
Depois do caixão descer à terra, os que o acompanharam voltaram para casa;
o cão ficou deitado na terra húmida, farejando por muito tempo. Decorridos
alguns dias, mataram-no; não se soube quem. III
Certo domingo, uns quinze dias depois da morte do pai, Pavel entrou em casa
embriagado. Parou cambaleando na primeira divisão, e gritou para a mãe, dando
um murro na mesa, como fazia Mikhail:
— A ceia!
Pelagueia aproximou-se, assentou-se ao seu lado; enlaçando-o com os braços,
puxou para o peito a cabeça do filho. Ele repeliu-a, pondo-lhe o braço no ombro,
e disse:
— Depressa, mamã!
— Patetinha! — respondeu ela com voz triste e carinhosa.
— Também quero fumar! Dá-me o cachimbo do pai... — rosnou, movendo a
custo a língua rebelde.
Era a primeira vez que se embriagava.
O álcool tinha enfraquecido o seu corpo, mas não lhe extinguira a
consciência; perguntava a si próprio:
— Estou bêbedo?... Estarei bêbedo?
As carícias da mãe vexavam-no; estava comovido pela tristeza do olhar dela.
Tinha vontade de chorar; e para vencer este desejo fingiu-se ainda mais
embriagado.
E a mãe acariciava-lhe os cabelos em desordem e cobertos de suor, dizendo
suavemente:
— Não devias ter feito isso...
Pavel começava a sentir náuseas.
A seguir aos vómitos, foi levado para a cama pela mãe, que lhe colocou uma
toalha húmida na fronte pálida. Repôs-se um pouco; mas tudo lhe andava à roda;
as pálpebras pesavam-lhe; tinha na boca um gosto repugnante e amargo; olhava
para o rosto da mãe e tinha pensamentos sem nexo.
— É ainda cedo para mim... Os outros bebem sem ficarem doentes; eu tenho
náuseas.
A doce voz da mãe chegava-lhe aos ouvidos como se viesse de muito longe:
— Como poderás sustentar-me, se te entregas à bebida?
Respondeu, fechando os olhos:
— Todos bebem...
Pelagueia suspirou profundamente. O filho tinha razão. Ela bem sabia que os
homens não encontrariam outro sítio senão a taverna para se divertirem, que não
tinham outro prazer senão o álcool. No entretanto, retorquiu:
— Tu não precisas de beber! O teu pai bebeu à farta por ti; e bastante meatormentou... Deves ter piedade da tua mãe.
Ouvindo estas palavras melancólicas e resignadas, Pavel pensou na existência
silenciosa e apagada daquela mulher, esperando sempre os espancamentos do
marido. Nos últimos tempos, Pavel pouco se demorava em casa, para não ver o
pai; desprezava um tanto a mãe; regressando ao seu estado normal, examinava-
a.
Era alta e levemente corcovada; o seu corpo pesado, abatido por incessante
trabalho e por maus tratos, movia-se sem ruído, obliquamente, como se ela
receasse topar nalguma cousa. O largo rosto oval, sulcado de rugas e
ligeiramente empapuçado, tinha a dar-lhe brilho uns olhos negros, de uma
expressão triste e inquieta como o de quase todas as mulheres do bairro. Na testa
uma cicatriz profunda fazia-lhe subir um pouco o sobrolho direito; parecia
também que a orelha direita estava mais acima do que a outra, o que dava ao
rosto um ar receoso. Tinha no cabelo espesso e negro madeixas grisalhas
semelhantes a nódoas resultantes de violentas pancadas. Toda ela transpirava
suavidade, uma resignação dolorosa.
E ao longo das faces corriam-lhe lentamente as lágrimas.
— Olha! Não chores! — suplicou Pavel em voz baixa. — Dá-me de beber!
— Vou buscar água gelada...
Quando voltou, ele dormia. Ficou imóvel por um instante, retendo a
respiração; a bilha tremia-lhe nas mãos, os pedaços de gelo tilintavam dentro.
Depois de colocá-la na mesa, Pelagueia ajoelhou diante das imagens santas e
orou silenciosamente. Os vidros das janelas tremiam sob as ondas sonoras da
vida obscura e alcoólica do exterior. Nas trevas e na humidade daquela noite de
outono, ouviam-se os rangidos de um harmónio; alguém cantava de goela aberta;
passavam nas ruas palavras abjetas e obscenas; vozes de mulheres vibravam,
assustadiças ou irritadas.
Na pequena habitação de Vlassov, a vida decorria uniforme, mas mais
tranquila e em paz do que outrora, distinguindo-se assim da existência geral do
bairro. A casa era situada na extremidade da rua direita, no cimo dum pequeno
alto, nos baixos do qual havia um pântano.
A cozinha ocupava o terço da habitação; um delgado tabique, que não
chegava ao teto, separava-a de um pequeno quarto onde dormia a mãe. O resto
formava uma casa quadrada, com duas janelas; a um canto, a cama de Pavel,
no outro, dois bancos e uma mesa. Algumas cadeiras, uma cómoda onde
guardavam a roupa, um pequenino espelho, uma mala para o fato, um relógio e
duas imagens de santos, era tudo.
Pavel tentava viver como os outros. Fazia quanto era próprio a um rapaz;comprou um harmónio, uma camisa de peitilho engomado, uma gravata vistosa,
galochas e capa de borracha, e uma bengala. Na aparência assemelhava-se a
todos os adolescentes da sua idade. Ia às reuniões, aprendia a dançar a quadrilha
e a polca; ao domingo entrava em casa embriagado. Nas manhãs seguintes, doía-
lhe a cabeça, a febre consumia-o, o seu rosto estava pálido e desfigurado.
Um dia, a mãe perguntou-lhe:
— E então, divertiste-te ontem à noite?
Respondeu com sombria irritação:
— Aborreci-me atrozmente! Os meus companheiros são umas máquinas!...
Prefiro ir à pesca ou comprar uma espingarda.
Trabalhava com zelo; nunca era multado, nem gazeteava. Andava taciturno.
Os seus olhos azuis, grandes como os da mãe, tinham uma expressão de
descontentamento. Não comprou a espingarda nem foi à pesca; mas abandonou
o caminho que seguiam os companheiros, frequentava cada vez menos as
reuniões, e, embora continuasse a sair ao domingo, voltava para casa em seu
juízo. Pelagueia observava-o sem dizer palavra e via o rosto moreno de Pavel
tornar-se dia a dia mais magro, o olhar sempre mais grave e os lábios cerrarem-
se com áspera severidade. Parecia sofrer de qualquer doença ou de qualquer
cólera misteriosa. Antigamente, os companheiros visitavam-no, mas como ele
deixara de permanecer em casa, não voltavam. A mãe via com prazer que o
filho não imitava os rapazes da fábrica; mas quando notou aquela obstinação em
afastar-se da torrente obscura da vida monótona, a sua alma foi invadida por
vaga inquietação.
Pavel trazia livros para casa; a princípio, tentava lê-los a ocultas. Por vezes,
copiava alguns trechos num pedaço de papel.
— Não andas bem, meu filho? — perguntou-lhe uma vez Pelagueia.
— Vou bem, vou! — respondeu.
— Estás tão magro! — suspirou ela.
Ficou silencioso.
Falavam pouco, e apenas se viam. Pela manhã, o rapaz tomava em silêncio o
chá e ia para o trabalho; ao meio-dia vinha jantar; à mesa não trocavam mais do
que palavras insignificantes; depois desaparecia até à tarde. Findo o dia, lavava-
se cuidadosamente, ceava e lia os seus livros. Ao domingo, saía de manhãzinha e
só voltava à noite. A mãe sabia que ele passeava na cidade, que ia ao teatro; mas
da cidade ninguém vinha vê-lo. Parecia-lhe que, quantos mais dias passavam,
menos o seu filho lhe dirigia a palavra; e ao mesmo tempo notava que dia a dia
maior era o número de termos novos, incompreensíveis para ela, e que Pavel
empregava em substituição das expressões grosseiras, outrora habituais no seu
falar.Passara a ligar mais cuidado ao asseio do seu corpo e do seu fato; movia-se
com mais ligeireza e facilidade; tornou-se mais simples na aparência, mais dócil;
preocupava-se de sua mãe. Tratava-a de uma maneira nova; às vezes, varria o
sobrado do quarto, fazia ele mesmo a sua cama, ao domingo; em geral, sem
frases, sem ostentação, diligenciava auxiliar a mãe no trabalho caseiro. Ninguém
fazia isto lá no bairro...
Um dia, trouxe consigo um quadro que pendurou na parede e que
representava três personagens tendo impressas nas feições a resolução, a
coragem.
— É o Cristo ressuscitado dirigindo-se a Emaús! — explicou.
O quadro agradou a Pelagueia; ela pensou porém:
— Respeitas o Cristo e não vais à igreja...
Depois vieram mais quadros adornar as paredes, o número de livros
aumentou na prateleira ali colocada por um marceneiro, companheiro de Pavel.
O quarto ia tomando um aspeto agradável.
O rapaz dizia amiúde «a sra.» quando se dirigia à mãe, a quem também
chamava «mamã». Era até mais pródigo em palavras, embora breves.
— Mãe, não fique em cuidado, peço-lhe; esta noite venho tarde.
E ao ouvi-lo assim, ela sentia que se passava o que quer que fosse forte e
sério, que lhe agradava.
Mas a sua ansiedade aumentava dia a dia, e como não entrava em
explicações com Pavel, adquiria o pressentimento de alguma coisa
extraordinária que lhe apertava o coração. Pensava até:
— Os outros vivem como criaturas humanas, mas ele é como um frade... Tão
grave!... Não é próprio da sua idade...
Perguntava a si mesma:
— Terá uma amiga?
Mas para ser amado pelas pequenas, é preciso dinheiro, e ele entregava-lhe
quase toda a féria.
Assim se passaram semanas, meses, quase dois anos, numa vida
extravagante, cheia de pesares, de vagos receios cada vez maiores. IV
Uma noite, à ceia, Pavel, tendo fechado as cortinas das janelas, assentou-se a
um canto e pôs-se a ler, depois de ter pendurado na parede, por cima da cabeça,
uma lâmpada de metal.
A mãe tinha acabado o serviço da cozinha; aproximou-se dele. Pavel ergueu
a fronte e fixou-a com olhar interrogador.
— Não é nada... mesmo nada! — disse ela rapidamente.
E afastou-se, pestanejando, a modos confusa. Mas depois de ter ficado imóvel
por um instante, no meio da cozinha, lavou as mãos e voltou, pensativa,
preocupada.
— Olha: queria perguntar-te o que andas sempre a ler... — declarou com
simpleza.
Ele pôs o livro nos joelhos.
— Assenta-te, mamã.
Pelagueia sentou-se pesadamente ao seu lado, apurou o ouvido, na expetativa
de alguma coisa grave.
Sem olhar para ela, a meia voz, muito rudemente, Pavel falou.
— Leio livros proibidos. Proíbem a sua leitura porque dizem a verdade da
nossa vida, da vida do povo. São impressos às escondidas, e se os encontrassem
em minha casa, eu seria preso... preso por ter querido saber a verdade.
Percebeste?
Ela sentiu de súbito a respiração opressa, e fixou o olhar esgazeado no filho,
que lhe pareceu outro, um estranho. Tinha outra voz, mais grossa, mais cava,
mais sonora. Com os dedos adelgaçados torcia as sedosas guias do bigode e para
ela descia o olhar enigmático. Pelagueia teve medo, por ele.
— Para que é isso, Pavel?
Ele ergueu a cabeça, observou-a e respondeu tranquilamente:
— Quero saber a verdade.
A sua voz era em tom baixo, mas firme; brilhava-lhe no olhar um desejo
obstinado. Pelagueia compreendeu que o filho se consagrara para sempre ao que
quer que fosse misterioso e terrível. Tudo lhe parecera sempre inevitável; estava
acostumada a submeter-se sem refletir; por isto começou de chorar baixinho,
sem encontrar palavras no seu coração confrangido pela angústia e pela dor.
— Não chores! — disse-lhe Pavel, carinhosamente; e à mãe parecia que ele
lhe dizia um adeus — reflete! Que vida a nossa! Tu tens quarenta anos, e,
francamente, podes dizer que tenhas vivido? O pai batia-te... compreendo agora
que era o seu pesar da vida o que ele desabafava assim nas pancadas que te
dava... o pesar da vida que o oprimia, e que ele nem mesmo sabia de onde lhevinha. Trabalhou durante trinta anos; começou quando o edifício da fábrica não
tinha mais do que dois prédios, e hoje tem sete! As fábricas desenvolvem-se e
nós morremos trabalhando para elas...
Pelagueia ouvia-o, com receio e ao mesmo tempo com avidez. Os belos olhos
azuis do rapaz luziam; com o peito apoiado à mesa, aproximou-se da mãe, e
tocando quase no seu rosto banhado de lágrimas, dizia-lhe o seu primeiro discurso
sobre a verdade, tal como ele a compreendia. Com a ingenuidade da juventude e
com o ardor dum colegial orgulhoso dos seus conhecimentos e sinceramente
convicto da importância deles, falava de tudo que lhe parecia tão evidente, falava
tanto para se avaliar a si mesmo como para convencer sua mãe. Detinha-se por
vezes quando lhe faltavam as palavras, e então via o rosto inquieto no qual
brilhavam aqueles bons olhos velados pelas lágrimas, cheios de terror, de
perplexidade. Apiedou-se de sua mãe e novamente falou dela.
— Que alegrias tens tu conhecido? — perguntou. — Que tiveste no passado
que fosse bom?
Ela meneou a cabeça tristemente; invadia-a um sentimento novo,
desconhecido ainda, doloroso e alegre ao mesmo tempo, que lhe acariciava
deliciosamente o coração dolorido. Pela primeira vez, falavam-lhe dela e da sua
própria existência; vagos pensares, adormecidos havia muito, despertavam no
seu ser, reanimavam os sentimentos extintos com um vago descontentamento, as
recordações, as saudades da sua mocidade longínqua.
Falou da sua vida, dos seus amigos, de todo o passado; mas, como os outros,
não sabia mais do que lamentar-se; ninguém explicava o motivo da sua vida tão
penosa e árdua. E agora, com o filho sentado a seu lado, tudo quanto os olhos de
Pavel, o seu rosto, as suas palavras lhe diziam, tudo lhe falava cativantemente ao
coração, enchendo-a de altivez: era o seu filho quem compreendera a vida da
mãe e quem lhe apresentava a verdade sobre os sofrimentos, quem a lamentava.
Em geral, não há quem lamente as mães.
Ela bem o sabia. Não compreendia que Pavel não falava dela só, mas tudo o
que ele dissera da vida feminina era a verdade, verdade nua e crua. Eis porque
lhe parecia que no seu peito se agitava um sem-número de sensações que a
aqueciam como desconhecida carícia.
— O que queres tu fazer? — perguntou-lhe, interrompendo-o.
— Aprender e depois ensinar aos outros. Devemos aprender, sim, devemos
saber, devemos compreender a razão porque a vida nos é tão penosa.
Era consolador para a mãe ver os olhos azuis do seu filho, sempre sério e
severo, brilharem ternamente, iluminando nele o que quer que fosse raro. Um
sorriso de satisfação pairou nos lábios de Pelagueia, embora houvesse ainda
lágrimas nas rugas das suas faces.Um duplo sentimento dividiu o seu ser: era uma irmã do filho que queria a
felicidade de todos os homens, que os lastimava a todos e que via a dor da vida; e
ao mesmo tempo não podia esquecer que ele era um rapaz, que não falava como
os seus companheiros, que resolvera entrar sozinho em luta contra a vida
rotineira que ela e os outros tinham.
Sentiu desejos de dizer-lhe:
— Meu querido! O que podes tu fazer? Esmagar-te-ão. E morrerás!
Mas temeu deixar de admirar o rapaz que de súbito se lhe revelara, tão
inteligente, tão transformado...
Pavel via o sorriso nos lábios da mãe, a atenção que ela lhe prestava, o amor
expandindo-se-lhe no olhar; julgou ter-lhe feito compreender a verdade que ele
tinha descoberto, e o juvenil orgulho da força da sua palavra exaltava a sua
mesma fé. Cheio de excitação, falava sempre, ora rindo, ora franzindo o
sobrolho; por momentos o ódio transparecia na sua voz, e quando Pelagueia lhe
ouvia estes tons rudes, meneava timidamente a cabeça, perguntando baixinho:
— E tens a certeza de que isso é assim?
— Tenho! — respondia ele com a voz forte e firme.
E falava-lhe dos que queriam o bem do povo, dos que semeavam a verdade e
que por isto eram perseguidos como feras, metidos em prisões, exilados para o
degredo pelos inimigos da vida.
— Tenho visto destas criaturas! — exclamava com ardor. — São as melhores
almas deste mundo!
Estes seres excitavam o terror da mãe, que tinha vontade de perguntar ainda:
— E tens a certeza de que isso é assim?
Mas não se atrevia, preferindo ouvir exaltar criaturas que ela não
compreendia e que tinham ensinado ao seu filho uma maneira de pensar e de
falar tão perigosa para ele.
— Pouco falta para nascer o dia. Se tu te deitasses, se dormisses... É preciso
ires para o trabalho amanhã.
— Vou deitar-me, vou — concordou.
E abeirando-se dela, perguntou-lhe:
— Compreendeste-me?
— Sim! — suspirou a mãe.
De novo lhe rebentaram as lágrimas, e acrescentou entre soluços:
— Morrerás!...
Ele ergueu-se e entrou de passear pelo quarto.
— Bem! Sabes agora o que faço, aonde vou! Disse-te tudo! Suplico-te, mãe,que se me amas, não me detenhas!
— Meu querido filho! — exclamou ela. — Teria sido melhor nada me
haveres dito!
Pavel pegou-lhe na mão, apertando-a fortemente entre as suas.
Ela ficara impressionada por aquela palavra «mãe» pronunciada com ardor
juvenil, e por aquele aperto de mão tão novo e raro.
— Nada farei para te contrariar — disse em tom sacudido. — Recomendo-te
apenas: toma cuidado! Toma cuidado!
E sem bem saber em que ele devia tomar cuidado, acrescentou tristemente:
— Estás cada vez mais magro.
E envolvendo num olhar caricioso o corpo robusto e harmónico do filho, disse
em voz baixa:
— Que Deus esteja contigo! Vive como quiseres, não te impedirei! Só te peço
uma coisa: não fales levianamente. É conveniente desconfiar dos mais, que
mutuamente se odeiam! Vivem de avidez, vivem de inveja! Todos se sentem
felizes quando fazem mal. Quando quiseres acusá-los, julgá-los, odiar-te-ão,
levar-te-ão à morte!
De pé, no limiar da porta, Pavel ouvia estas palavras dolorosas, às quais
respondeu sorrindo:
— O próximo é mau, sim. Mas quando aprendi que havia na terra uma
verdade, o próximo pareceu-me melhor.
Sorriu ainda e continuou:
— Eu mesmo nem sei como isto me veio. Na minha infância, tinha medo de
todos e de tudo... Quando cresci, comecei a odiar, a uns pela sua covardia; a
outros... nem sei porquê. Mas agora já não acontece o mesmo: creio que tenho
piedade deles. Não compreendo como, mas o meu coração tornou-se mais terno
quando soube que havia uma verdade para os homens e que eles não são todos
culpados da ignomínia da sua vida.
Calou-se por um instante, como para escutar o que quer que fosse dentro dele,
e depois concluiu pensativo:
— É assim que a verdade transpira!
Ela, tendo-lhe lançado um olhar rápido, murmurou:
— Transformaste-te duma maneira perigosa! Meu Deus!
Quando ele adormeceu, Pelagueia levantou-se cautelosamente e aproximou-
se-lhe do leito. O rosto moreno, de feições severas e obstinadas desenhava-se
distintamente sobre o travesseiro branco. Com as mãos juntas no peito, com os
pés descalços, em camisa, a mãe permanecia imóvel; os seus lábios moviam-se
em silêncio, e de seus olhos desciam lentamente fartas e torvas lágrimas. V
A vida recomeçou para eles; novamente se encontravam próximos e
afastados.
Uma vez, num dia santo, no meio da semana, Pavel disse à mãe, quando ia
sair:
— No sábado há de vir gente cá a casa.
— Que gente?
— Gente daqui... e gente da cidade.
— Da cidade?... — repetiu a mãe, meneando a cabeça. E desatou a chorar.
— Porque choras, mamã?! — exclamou Pavel contrariado. — Porquê?
Respondeu com frouxa voz, limpando as lágrimas:
— Não sei... Porque sim.
Ele deu alguns passos pelo quarto, e parando diante dela:
— Tens medo?
— Tenho! — confessou. — Essa gente da cidade... sabe-se lá quem é!
Inclinou-se para ela e disse com a voz irritada, como o pai:
— É por causa desse medo que todos nós morremos! E os que mandam em
nós aproveitam-se desse medo e ainda mais nos amedrontam. Compreenda de
uma vez para sempre: enquanto houver medo, apodreceremos como as bétulas
nos pântanos.
Afastou-se, exclamando:
— Deixá-lo! Nós nos reuniremos cá em casa...
A mãe atalhou, chorando:
— Não me queiras mal! Como não hei de eu ter medo? Passei entre sustos
toda a minha vida... tenho a alma cheia deles.
Pavel retorquiu a meia voz, mas brandamente:
— Desculpe. Não tenho outro meio ao meu alcance. — E saiu.
Durante três dias, Pelagueia tremia: o coração parecia-lhe parar quando
pensava em que gente estranha entraria em sua casa. Não podia fantasiá-los,
mas afiguravam-se-lhe terríveis. Eram eles quem apontavam ao seu filho o
caminho que ele seguia agora...
No sábado à tarde, Pavel voltou da fábrica, lavou-se, mudou de fato e saiu,
dizendo sem olhar para a mãe:
— Se alguém vier, diz que não me demoro, que me esperem. E não tenhas
medo, se fazes favor... São pessoas como as outras.
Ela deixou-se cair sobre o banco. O filho contemplou-a franzindo o sobrolho,e propôs:
— Talvez seja melhor saíres; hã?
Ela ofendeu-se. Disse que não com a cabeça, murmurando:
— Seria o mesmo. Para que sairia eu?
Estava-se no fim de novembro. Durante o dia tinha caído na terra gelada um
nevão fino e seco, que Pavel triturava sob seus passos. Às vidraças apegavam-se
espessas trevas. A mãe, desalentada, ia esperando, com os olhos fixos na porta.
Parecia-lhe que, na obscuridade, criaturas silenciosas, de trajos não vulgares,
se dirigiam para a casa, vindos de pontos vários, que se adiantavam ocultando-se,
corcovados, e olhando para um e outro lado. Junto da porta, encostado à parede,
havia já alguém.
Ouviu-se um assobio que vibrou no silêncio como um fio, melodioso e triste;
errava no deserto da noite, aproximava-se... De súbito, calou-se mesmo junto à
janela, como se tivesse penetrado através da parede.
Soou o ruído de passos; Pelagueia ergueu-se trémula, com os olhos dilatados.
Abriu-se a porta. Apareceu primeiro uma cabeçorra com um boné de peles,
depois um corpo acurvado que se esgueirou lentamente, que se endireitou, que
levantou o braço direito vagarosamente, arrancando do peito em suspiro ruidoso:
— Boa noite.
Pelagueia cumprimentou em silêncio.
— O Pavel ainda não veio?
O homem tirou com vagar um casaco de peles, levantou um pé, sacudiu com
o boné a neve que lhe cobria as botas, atirou depois com o boné para um canto e
entrou no quarto bamboleando-se nas suas altas pernas. Aproximou-se duma
cadeira, examinou-a, como para certificar-se de que era sólida, assentou-se por
fim e pôs-se a bocejar, tapando a boca com a mão. Tinha a cabeça redonda e o
cabelo cortado à escovinha, a barba feita, e grosso bigode de guias compridas e
pendentes. Depois de ter examinado o quarto com os grandes olhos bojudos e
acinzentados, cruzou as pernas e perguntou balouçando-se na cadeira:
— O casebre pertence-lhes ou é alugado?
Pelagueia, sentada em frente dele, respondeu:
— Alugámo-lo.
— Não é grande coisa! — observou o homem.
— O Pavel não se demora; queira esperar — disse frouxamente.
— É o que estou fazendo! — replicou tranquilamente.
A sua tranquilidade, a sua voz suave, a simpleza da sua fisionomia deram
coragem a Pelagueia. Ele contemplava-a com olhar franco, com um ar bondoso;no fundo dos seus olhos transparentes luzia um brilho alegre, e havia um tanto de
divertido e de simpático naquela criatura angulosa e acurvada como num poleiro
feito das próprias pernas. Trazia vestidas calças pretas, cujas extremidades
estavam metidas quase dentro das botas; em vez de casaco, blusa azul. Pelagueia
tinha vontade de perguntar-lhe quem ele era, de onde vinha, se conhecia o seu
filho de há muito tempo, quando, de chofre, ele moveu-se e perguntou:
— Ó tiazinha, quem foi que lhe abriu essa brecha na testa?
Falava meigamente e sorria com o olhar. Mas a pergunta irritou-a. Mordeu os
lábios, e após curto silêncio, perguntou com fria delicadeza:
— E o que tem o tiozinho com isso?
Ele voltou-se de todo.
— Ah! Não se zangue. Se lhe fiz esta pergunta, foi porque a minha mãe
adotiva tinha também uma brecha na testa, exatamente como a sra. Uma sova
que lhe deu o marido, com uma forma de botas. Era sapateiro. Ela era lavadeira.
Tinha-me adotado já, quando, por sua desgraça, encontrou aquele bêbedo não sei
onde. O patife batia-lhe; digo-lhe só isto! Eu tinha tanto medo dele, que a pele
estalava-me.
Pelagueia sentiu-se desarmada perante aquela franqueza, e pensou de si para
si que talvez Pavel não ficasse contente, se ela fosse menos delicada para com
aquele original. Por isso disse com um sorriso envergonhado:
— Eu não me zango... O sr. é que me deixou surpresa com a pergunta. Foi um
presente do meu marido, que Deus tenha! O sr. não é tártaro?
O homem mexeu as pernas, e teve um sorriso tão aberto, que até as orelhas
pareciam chegar-lhe à nuca. Depois disse gravemente:
— Ainda não... ainda não sou tártaro.
— É que não fala exatamente como um russo! — explicou ela sorrindo,
porque lhe compreendera o gracejo.
— A minha língua vale mais do que o russo! — exclamou com um meneio
importante. — Sou pequeno-russo, da cidade de Kaniev.
— E há muito tempo que está por cá?
— Vivi na cidade, perto de um ano, e há um mês que vim aqui para a fábrica.
Travei conhecimento com excelentes pessoas... o seu filho... e mais alguns... não
muitos. Quero fixar-me por cá — acrescentou, torcendo o bigode.
Estava agradando a Pelagueia que, para agradecer o elogio feito ao filho, lhe
perguntou:
— Quer chá?
— O quê? Sozinho? — observou, encolhendo os ombros. — Faça o
oferecimento quando estivermos todos juntos.Ouviram-se passos outra vez, a porta abriu-se de chofre; Pelagueia levantou-
se. Com grande espanto seu, quem entrou na cozinha foi uma rapariga, de vestido
leve e pobre, baixa, com cara de camponesa. A recém-chegada, cujos cabelos
eram loiros e espessos, perguntou:
— Ainda venho a tempo?
— Ah! Vem! — respondeu o pequeno-russo, que permanecia no quarto. —
Veio a pé?
— Pudera! A sra. é a mãe do Pavel Mikhailovitch? Boa noite! Eu chamo-me
Natacha.
— E o seu pai? — perguntou Pelagueia.
— Vassilievna. E a sra.?
— Pelagueia Milovna.
— Belo! Estamos apresentados!
— Sim, estamos... — concordou Pelagueia, com um ligeiro suspiro.
E sorrindo observou a rapariga.
O pequeno-russo perguntou:
— Faz frio?
— Se faz! E muito, lá pelos campos; uma ventania!...
Tinha a voz pastosa, clara; a boca era pequena e redonda; e toda ela era
gorducha e cheia de frescura. Depois de tirar a capa, esfregou energicamente as
faces coradas com as mãozinhas avermelhadas pelo frio; e, passeando pelo
quarto com passos rápidos, batia no sobrado com os tacões.
— Não tem galochas de borracha! — pensou Pelagueia.
— Que frio! — E arrastando muito as palavras: — Estou entorpecida!
Gelada!
— Vou já, já, preparar o samovar! — disse rapidamente a dona da casa.
E saiu para a cozinha.
Dir-se-ia que conhecia aquela rapariga de há muito tempo e que a estimava
como sua filha. Estava satisfeita por vê-la; vindo-lhe à ideia os olhos pardos e
piscos do pequeno-russo, sorriu satisfeita também; prestou atenção à conversa.
— Porque está triste, André? — perguntou a rapariga.
— Porque sim! A viúva tem um olhar bondoso e lembra-me que talvez seja
como o da minha mãe... Penso muito na minha mãe, sabe? Parece-me sempre
que ela vive.
— Ouvi-lhe dizer que ela tinha morrido...
— Não! Falava da minha mãe adotiva, e agora falo da minha verdadeira
mãe. Imagino que ela pede esmola, algures, em Kiev e que bebe aguardente...— Porquê?
— Sei lá! E que quando está embriagada, os polícias a esbofeteiam.
— Pobre homem! — pensou Pelagueia, suspirando.
Natacha passou a falar rapidamente, a meia-voz. Depois, tornou a ouvir-se a
voz sonora do pequeno-russo:
— É ainda nova! Não tem experiência! Todos têm mãe, e apesar disso
quantas criaturas más!... É difícil dar à luz, mas é muito mais difícil ensinar o
bem ao homem.
— Isso! Isso! — exclamou lá de dentro Pelagueia.
Desejava poder responder que ela, por exemplo, se consideraria feliz
ensinando o bem a seu filho, mas que não sabia dessas coisas; a porta porém
abriu-se vagarosamente dando entrada a Vessovtchikov, filho do velho ladrão
Danilo, o misantropo célebre em todo o bairro. Mantinha-se sempre afastado dos
outros, que por este facto chasqueavam dele. Pelagueia perguntou admirada:
— O que é que tu queres?
Fitou nela os olhos pardos, limpou com a palma da mão a cara bexigosa e de
maçãs salientes, e, sem responder ao cumprimento de Pelagueia, perguntou em
tom cavo.
— O Pavel está em casa?
— Não.
Relanceou a vista pelo quarto e entrou, dizendo:
— Boa noite, companheiros.
— Também este!... Será possível? — pensou ela hostilmente.
E mais se admirou vendo Natacha estender a mão ao recém-chegado com
modo alegre e amigável.
Vieram em seguida dois rapazes, duas crianças quase. A dona da casa
conhecia um deles: era o sobrinho de Fédor Sizov, velho operário da fábrica;
tinha feições de arguto, fronte elevada e cabelos encaracolados. O outro, de
cabelo corredio, era-lhe desconhecido, mas não a assustava, parecia modesto.
Afinal Pavel chegou, acompanhado de dois amigos, que ela reconheceu logo:
eram dois operários também da fábrica.
Amavelmente, o filho disse-lhe:
— Preparaste o chá? Obrigado!
— Queres que vá comprar aguardente? — perguntou, não sabendo como
exprimir-lhe o seu reconhecimento pelo que quer que fosse que ela ainda não
compreendia.
— Não. Não é preciso! — respondeu, tirando a capa, e sorrindobondosamente para a mãe.
De súbito, veio-lhe à ideia de que o filho tinha exagerado propositadamente o
perigo da reunião para brincar com ela.
— É então esta a tal gente perigosa?
— Esta mesma! — disse Pavel entrando no quarto.
— Ah! — e seguiu-o com o olhar caricioso.
Mas, no seu íntimo:
— E ele é a mesma criança!... VI
Quando a água do samovar entrou em ebulição levou-o para o quarto. As
visitas estavam sentadas em de redor da mesa; Natacha tinha nas mãos um livro
e ficara numa quina da mesa sob a luz da candeia.
— Para compreender porque as criaturas vivem tão mal... — dizia Natacha.
—... e porque são tão más... — interveio o pequeno-russo.
—... é preciso ver primeiro como começaram a viver...
— Então, meus filhos, então!... — murmurou Pelagueia, preparando o chá.
Calaram-se todos.
— O que diz, mamã? — perguntou Pavel franzindo o sobrolho.
— Eu?
Vendo todos os olhares cravados nela, explicou, embaraçada:
— Falava comigo mesmo... Dizia: então!...
Natacha desatou a rir assim como Pavel; o pequeno-russo exclamou:
— Obrigado, mãezinha, obrigado pelo chá!
— Ainda não o bebeu e já agradece?! — replicou ela.
E, olhando para o filho:
— Não os incomodo?
Foi Natacha quem respondeu:
— Como pode incomodar os seus hóspedes, se é a dona da casa?
E num tom infantil e lamentoso:
— Boa alma! Dê-me chá depressa! Estou a tremer com frio... tenho os pés
gelados...
— É para já! É para já!
Depois de ter bebido, Natacha suspirou à larga, atirou a trança para as costas
e abriu um livro volumoso, ilustrado e de capa amarela. Pelagueia enchia os
copos, diligenciando não os fazer retinir, e, com toda a atenção de que era capaz
o seu cérebro pouco acostumado a trabalhar, escutava a leitura que a rapariga
fazia com a sua voz harmoniosa, que se misturava ao murmúrio da água a ferver
no samovar, semelhante a longínqua canção.
No quarto desenrolava-se tremente, como uma fita de cores magníficas, a
história simples e clara dos selvagens que viviam nas cavernas e atacavam com
pedras os animais. Era uma como lenda; por várias vezes, Pelagueia olhava de
soslaio para o filho, desejava saber o que haveria naquela história de selvagens
que a tornasse leitura proibida. Mas a breve trecho deixou de escutar e, sem que
dessem por tal, começou a observar os seus hóspedes.
Pavel estava sentado junto de Natacha; era belo entre todos os outros. Arapariga, inclinada sobre o livro, levantava amiúde os cabelos finos e
encaracolados que lhe caíam para a testa. Por vezes, sacudia a cabeça, e, com
um olhar amigo, acrescentava algumas observações, abaixando a voz. O
pequeno-russo tinha encostado o peito ao canto da mesa, torcia o bigode, cujas
guias diligenciava ver, metendo um olho por outro. Vessovtchikov, estava sentado
numa cadeira, empertigado como um manequim, com as mãos nos joelhos; o
seu rosto bexigoso, sem sobrolhos e de bigode muito raro, era imóvel como uma
máscara.
Sem desviar o olhar, contemplava obstinadamente a sua fisionomia refletida
no cobre brilhante do samovar; dir-se-ia que nem respirava. O pequeno Fédia
escutava a leitura, movendo os beiços, repetindo para si as palavras do livro; o
seu companheiro, o dos cabelos encaracolados, curvava-se, com os cotovelos nos
joelhos, e sorria pensativamente, tendo a cara apoiada nas mãos. Um dos rapazes
vindos com Pavel era ruivo e delgado; os olhos verdes tinham expressão alegre;
parecia desejoso de dizer alguma coisa e fazia gestos de impaciência; o outro, de
cabelos loiros e curtos, passava a mão pela cabeça olhando para o sobrado, o que
não permitia ver-se-lhe o rosto.
O quarto estava quente, numa temperatura especialmente agradável naquela
noite. No meio do murmúrio da voz de Natacha, misturada à canção trémula do
samovar, Pelagueia recordava as noites tumultuosas da sua mocidade, as
palavras grosseiras dos rapazes que cheiravam mal a álcool, os seus gracejos
cínicos. Perante tais recordações, o seu coração humilhado confrangia-se
compadecido dela própria.
Reviveu em pensamento o dia em que o marido pedira a sua mão. Foi durante
uma reunião, à noite; ele detivera-a num corredor obscuro, obrigava-a à viva
força a encostar-se à parede, dizendo-lhe num tom cavo e irritado:
— Queres casar comigo?
Ela sentira-se ultrajada; molestavam-na aqueles dedos grosseiros apertando-
lhe os seios, aquela respiração ofegante que lhe enviava ao rosto um hálito quente
e húmido. Tentou libertar-se daquele abraço, fugir-lhe...
— Aonde vais? — urrou ele. — Responde primeiro!
Ficara silenciosa, cheia de vergonha e de cólera.
— Não te finjas embaraçada, pateta! Conheço-as, a todas! No teu íntimo,
estás satisfeitíssima.
Porque alguém tivesse aberto uma porta, ele largara a rapariga, sem grande
pressa, dizendo:
— No domingo mandarei pedir a tua mão.
Cumpriu.
Pelagueia fechou os olhos e suspirou longamente.— Não preciso saber como os homens viveram, mas sim como se deve
viver! — exclamou de súbito Vessovtchikov num tom de surdo aborrecimento.
— Tem razão! — concordou o rapaz de cabelo ruivo, erguendo-se.
— Não estou de acordo! — disse Fédia. — Se queremos caminhar para a
frente, devemos saber tudo!
— Exato! — opinou o outro, a meia voz.
Veio em seguida uma discussão animada. Pelagueia não compreendia porque
todos eles gritavam, com os rostos cheios de excitação. Mas ninguém estava
irritado; nem mesmo se ouviam as palavras concludentes e obscenas às quais ela
estava acostumada.
— Não se sentem à vontade na presença da pequena... pensou.
Sentia-se encantada pela fisionomia grave de Natacha, que parecia tomar
conta em todos, como se fossem crianças para ela.
— Basta, companheiros! Basta! — disse de súbito.
E todos se calaram, volvendo para ela o olhar.
— Os que afirmam que devemos saber tudo afirmam uma verdade.
Devemos iluminar-nos a nós mesmos com a chama da razão, para que as
criaturas obscuras nos vejam; devemos responder a tudo com honestidade, com
verdade. É preciso conhecer toda a verdade e toda a mentira.
O pequeno-russo meneava a cabeça ao ritmo das palavras de Natacha.
Vessovtchikov, o rapaz ruivo e o operário que viera com Pavel formavam um
grupo distinto; desagradavam a Pelagueia, sem que ela soubesse porquê.
Quando Natacha concluiu, Pavel ergueu-se e perguntou tranquilamente:
— O que queremos nós ser? Apenas criaturas que comem e bebem? Não!
Queremos ser homens. Devemos mostrar aos que nos exploram e nos fecham os
olhos, que vemos tudo, que não somos idiotas, nem brutos, que não queremos só
comer, mas também viver como é próprio dos homens. Devemos mostrar aos
inimigos que a vida de degredo que eles nos arranjaram não impede que
possamos medir-nos com eles pela inteligência e excedê-los pelo espírito...
Pelagueia ouvia, estremecendo de orgulho por ser o seu filho quem assim
falava.
— Há muita gente farta, mas ninguém entre ela que seja honesto! — disse o
pequeno-russo. — Construamos uma ponte que atravesse o pântano da nossa vida
infeta e que nos conduza ao reino futuro da bondade sincera, eis a nossa tarefa,
companheiros!
— Em tempo de guerra não se limpam armas! — replicou soturnamente
Vessovtchikov.
— Aliás fazem-nos os ossos num feixe, antes da batalha! — exclamoualegremente o pequeno-russo.
Tinha passado meia-noite quando o grupo dispersou.
O rapaz ruivo e Vessovtchikov foram os primeiros a sair, o que não agradou a
Pelagueia.
— Como vão apressados! — pensou, cumprimentando-os.
— Acompanha-me, André? — perguntou Natacha.
— Ora essa!
Enquanto Natacha se vestia na cozinha, Pelagueia disse-lhe:
— Tem umas meias tão finas, com um tempo destes!... Se me dá licença, hei
de fazer-lhe um par, de lã.
— Obrigado, mas as meias de lã arranham a pele! — respondeu, rindo.
Descanse, que, feitas por mim, não arranharão.
Natacha observou-a com os olhos semicerrados, e este olhar fixo embaraçou-
a.
— Desculpe se é tolice, mas creia ser de boa vontade!
— Sim. A sra. é boa! — exclamou Natacha a meia voz, apertando-lhe a mão.
— Boa noite, mãezinha! — disse o pequeno-russo encarando nela; saiu, depois
de beijá-la, acompanhando Natacha.
Pelagueia olhou para o filho que no limiar da porta do quarto, sorria.
— Porque sorris? — perguntou, como envergonhada.
— Ora! Porque estou contente.
— Sou velha e tola, bem sei, mas compreendo aquilo que fica bem.
— E tem razão. Vá deitar-se, vá, que são horas.
— E tu também deves ir. Eu é num instante.
À roda da mesa de onde retirava os copos, sentia-se feliz: tudo se tinha
passado sem novidade e terminado em paz.
— Tiveste uma boa ideia, meu filho: é uma bela gente. O pequeno-russo...
acho-o interessante. E a rapariga... Ah! Que inteligente que é! Quem é ela?
— Professora de primeiras letras — respondeu resumidamente, passeando ao
comprimento do quarto.
— Por isso é tão pobre! Que mal vestida!... Vai apanhar um frio!... Onde
vivem os pais?
— Em Moscovo.
E Pavel, parando junto da mãe, disse em voz baixa e gravemente:
— O pai é muito rico, negociante de ferro, e possui vários estabelecimentos.
Expulsou-a porque ela entrou neste caminho... Foi educada no luxo, toda afamília a amimava, dando-lhe quanto queria... E neste momento é obrigada a
andar a pé, sozinha, sete quilómetros.
Estes pormenores impressionaram Pelagueia. No meio do quarto, olhava para
o filho sem dizer palavra, os sobrolhos erguidos numa expressão de assombro.
Depois perguntou a meia voz:
— Vai para a cidade?
— Vai.
— Ah! E não tem medo?
— Não, não tem medo! — respondeu, sorrindo.
— Não tem?!... Poderia passar a noite cá em casa... Dormiria comigo.
— Impossível. Vê-la-iam sair amanhã pela manhã; e devemos evitar isso...
Ela primeiro ainda.
Pelagueia caiu em si, e tendo olhado para a janela, passeando, disse
meigamente:
— Não percebo o que possa haver perigoso, e que torne proibidas estas coisas.
Que mal pode haver?
Ela não sentia absoluta convicção e desejava obter do filho uma resposta
negativa. Ele fitou-a, sereno, e respondeu com firmeza:
— Não fazemos nem faremos mal algum. Todavia, sabe que é a prisão o que
nos espera.
As mãos de Pelagueia tremeram. Foi com a voz enfraquecida que perguntou:
— Talvez... Queira Deus que tal não suceda!
Pavel, carinhoso, mas resoluto:
— Não! Não quero enganar-te! O que te disse há de suceder.
Acrescentou, sorrindo:
— Olha: vai deitar-te! Estás fatigada! Boa noite!
Sozinha, a mãe aproximou-se da janela e olhou para a rua. O vento passava,
varrendo a neve dos telhados das casinhas adormecidas, batendo contra as
paredes, murmurando não se sabe o quê, e baixando à terra para fazer correr ao
longo das ruas nuvens brancas de flocos secos.
— Jesus Cristo, tende piedade de nós! — suplicou baixinho.
As lágrimas acumulavam-se-lhe, a expetativa da desgraça da qual o filho
falava com tanta tranquilidade e certeza, agitava-se dentro dela como uma
borboleta noturna. Perante os seus olhos desenrolou-se uma planície coberta de
gelo. O vento levando os flocos de neve, redemoinhava assobiando. No meio da
planície, um pequenino perfil de rapariga caminhava, solitário e vacilante. O
vento enrolava-se-lhe nas pernas, enchia-lhe as saias, atirava-lhe ao rosto flocosagressivos. O caminho era difícil para aqueles pequeninos pés que se enterravam
na neve. Fazia frio e as trevas eram de meter medo. A rapariga inclinava-se para
a frente como débil haste sacudida pelo sopro rápido do vento do outono.
À sua direita, no pântano, uma floresta erguia a sua sombra compacta onde as
bétulas e os frágeis pinheiros tremiam e gemiam tristemente.
Muito ao longe, na sua frente, cintilavam as luzes da cidade.
— Senhor! Tende piedade de nós! — disse ainda a pobre mãe, tremendo de
frio e de medo. VII
Os dias sucediam-se; como as contas de um rosário, adicionavam-se em
semanas e em meses. Todos os sábados, os companheiros reuniam-se em casa
de Pavel; e cada sessão era como um degrau da longa escadaria em suave
declive que conduzia a muito distante, não se sabia aonde, elevando lentamente
os que por ela subiam, e da qual se não via o fim.
Novas caras apareciam constantemente. O pequeno quarto dos Vlassov ia-se
tornando apertado. Natacha continuava a comparecer, transida de frio, fatigada,
mas sempre alegre e bem disposta. Pelagueia tinha-lhe feito as tais meias que ela
própria lhe calçou. A princípio, Natacha tinha rido, depois calou-se, e, refletindo
por um momento:
— Tive uma criada — disse baixinho, — que também me era
extraordinariamente dedicada! Olhe, Pelagueia Nilovna é muito para pensar este
caso: o povo que tem uma vida tão árdua, tão cheia de humilhações, possui mais
coração, mais bondade do que os outros!
Tinha erguido o braço, designando um ponto muito afastado dali.
— E a menina? — disse-lhe a mãe de Pavel — que sacrificou seus pais e o
resto...
Não chegou a concluir o seu pensamento, suspirou e calou-se olhando para
Natacha. Sentia-se-lhe reconhecida, sem bem saber de quê, e deixara-se ficar
sentada no chão, diante da rapariga, que sorria pensativa, com a cabeça descaída
para o peito.
— Sacrifiquei os meus pais... — tinha repetido Natacha. — Mas não é isto o
pior. O meu pai é tão estúpido e ordinário, o meu irmão também, e demais
costuma beber! A minha irmã mais velha é uma desgraçada, causa compaixão.
Casou com um homem muito mais idoso do que ela, muito rico, mas avarento e
repugnante. De quem eu tenho mais saudades é da mamã!
— Coitadinha! — lamentou a mãe de Pavel, com um triste movimento de
cabeça.
A rapariga endireitou-se de súbito e exclamou:
— Ah! Não! Há momentos em que a minha alegria, a minha felicidade não
tem limites!
O seu rosto empalideceu, e saíam chispas de seus olhos azuis. Pondo a mão no
ombro de Pelagueia, disse em voz profunda, num tom que parecia vindo do
coração:
— Se soubesse... se pudesse compreender a obra brilhante e enorme que
estamos realizando!... Havia de senti-la!
Uma impressão, não muito afastada da inveja, apoderou-se do coração de
Pelagueia, que disse tristemente, erguendo-se:— Estou muito velha para essas coisas... sou ignorante... estou muito velha...
Pavel falava muito, discutia cada vez com maior ardor, e emagrecia.
Pelagueia julgava notar que, quando ele conversava com Natacha ou para ela
olhava demoradamente, o seu olhar severo se tornava suave, que a sua voz
vibrava com mais carinho, que ele se revelava ainda mais simples.
— Deus o queira!... — pensava. Sorria à ideia de que Natacha pudesse vir a
ser sua nora.
Quando, nas reuniões, a discussão tomava mais calor, o pequeno-russo
levantava-se, e bamboleando como o badalo dum sino, soltava com a sua voz
sonora palavras claras e simples que faziam voltar o sossego. O taciturno
Vessovtchikov levava constantemente os companheiros a atos mal definidos; era
sempre ele e Samoilov, o rapaz ruivo, quem esquentava as discussões. Tinham
por partidário Ivan Bukine, o rapaz de cabeça redondinha, de sobrolhos brancos, e
que parecia deslavado como o sol. Jacob Somov, sempre modesto, asseado e
bem penteado, falava pouco e breve, em voz baixa e grave. Como Fédia Mazine,
o adolescente de fronte alta, era sempre da opinião de Pavel e do pequeno-russo.
Por vezes, em lugar de Natacha, era Nicolau Ivanovitch quem vinha da
cidade. Usava óculos e tinha barbicha loira. Natural duma província distante, as
inflexões da sua voz eram especiais e cantantes, falando quase sempre sobre
temas simples, a vida em família, as crianças, o comércio, a polícia, o preço da
carne e do pão, enfim a vida de todos os dias. E em tudo descobria erros,
confusão, coisas estúpidas, divertidas às vezes, mas sempre prejudiciais para os
homens. Parecia a Pelagueia que Nicolau Ivanovitch viera de longe, doutro país
onde a existência era fácil e honesta, e que ali, onde ela vivia tudo lhe
desagradava. Era de cor amarelenta; pequenas rugas lhe circundavam os olhos, a
voz era grossa, e tinha as mãos sempre quentes. Quando cumprimentava a mãe
de Pavel, agarrava-lhe a mão por completo com os dedos vigorosos, e tal aperto
era como um consolo para a alma dela.
Da cidade vinham ainda outras pessoas, por exemplo uma rapariga esbelta,
de olhos grandes e rosto magro e pálido. Chamavam-lhe Sachenka. Havia o que
quer que fosse másculo nos seus gestos e no andar; franzia os sobrolhos negros
como irritada; quando falava, as delicadas narinas estremeciam.
Foi ela que um dia disse primeiro que os outros:
— Nós, socialistas...
Quando Pelagueia ouviu esta palavra, olhou para a rapariga com mudo terror.
Sabia que os socialistas tinham assassinado um czar. Fora durante a sua
mocidade; dissera-se então que os proprietários rurais, indignados contra o
imperador por ter libertado os servos, haviam jurado não cortar os cabelos
enquanto ele não fosse morto. Por isso não podia compreender a razão por que oseu filho e a companheira se tinham feito socialistas.
Quando todos se retiraram, perguntou a Pavel:
— Pavlucha, é verdade que és socialista?
— É! — respondeu firme e franco como sempre.
Pelagueia deu um profundo suspiro e disse, baixando os olhos:
— Parece-te bem, meu filho?... Eles são contra o czar... já mataram um!...
Pavel entrou de passear pelo quarto, passando a mão pela cara, até que
respondeu com um sorriso:
— Nós não precisamos disso!
Falou-lhe muito tempo a sério. Ela chorava e refletia. Depois, a terrível
palavra foi repetida cada vez mais amiúde, e tornou-se tão familiar aos ouvidos
de Pelagueia como um amontoado doutros termos incompreensíveis para ela.
Mas Sachenka não lhe agradava; quando a via, sentia-se pouco à vontade,
ansiosa...
Uma noite, disse ao pequeno-russo, com um trejeito de mal-estar:
— É muito ríspida a Sachenka! Está sempre a mandar: façam isto! Façam
aquilo!
O pequeno-russo riu ruidosamente.
— É a pura verdade! Nem mais nem menos! Não é assim, Pavel?
E, piscando o olho, disse em tom escarninho:
— A nobreza!
Pavel replicou secamente:
— É uma rapariga decidida!
E ficou-se com ar de mal disposto.
— Não há dúvida também! — concordou o pequeno-russo. — Há apenas
uma diferença: não compreende que é ela quem deve e que somos nós que
queremos e podemos.
Pelagueia notara também que a severidade de Sachenka caía mais em
particular sobre Pavel a quem por vezes chegava a repreender. Ele sorria, ficava
silencioso, e contemplava a rapariga com o olhar suave que outrora tinha para
Natacha. E isto não agradava a Pelagueia.
Reuniam-se duas vezes por semana; e quando a mãe de Pavel via a atenção
apaixonada com que os novos escutavam as falas do filho e do pequeno-russo, as
interessantes narrativas de Natacha, de Sachenka, de Nicolau Ivanovitch e dos
outros que vinham da cidade, esquecia as suas inquietações, e recordando-se dos
fastidiosos dias da sua mocidade, meneava tristemente a cabeça.
Muitas vezes, Pelagueia ficava surpreendida dos acessos de alegria ruidosaque os atacavam de súbito. O facto dava-se geralmente quando tinham lido nos
jornais notícias da classe operária estrangeira. Era uma alegria extravagante,
como infantil; riam todos com um riso límpido e muito alegre, e batiam
amigavelmente no ombro do companheiro mais próximo.
— Têm trabalhado a valer, os nossos companheiros alemães! — anunciava
qualquer deles, como embriagado de êxtase.
— Vivam os nossos companheiros italianos! — gritava outra voz.
E quando enviavam estas exclamações ao longe, aos amigos desconhecidos,
pareciam convencidos de que eles os ouviam e participavam do seu entusiasmo.
O pequeno-russo, cheio de um amor que abrangia a todos os seres, declarava:
— Deveríamos escrever-lhes, não acham? Para que saibam que têm na
Rússia, tão distante, amigos, operários que professam a mesma religião que eles,
companheiros que têm o mesmo fim, e rejubilam com as suas vitórias...
E, com o sorriso nos lábios, falava-se durante muito tempo dos franceses, dos
ingleses, dos suecos, como de entes queridos, em cujas felicidades e sofrimentos
se tomava parte.
No pequeno quarto nascia assim o sentimento do parentesco espiritual, unindo
os operários daquela terra da qual eles eram ao mesmo tempo os senhores e os
escravos. Esta confraternidade, que lhes dava uma só alma, impressionava
Pelagueia, e embora ela lhe fosse inacessível, fazia-a elevar se sob a influência
daquela força alegre, triunfante, embriagadora e cheia de mocidade,
acariciadora e cheia de esperanças.
— No meio de tudo, como os srs. são! — disse ela um dia ao pequeno-russo.
— Para os srs., todos são companheiros: os judeus, os arménios, os austríacos...
Falam deles como se falassem de amigos, entristecem-se e alegram-se com o
mundo inteiro!
— Sim, mãezinha! — exclamou ele. — O mundo é nosso! O mundo é dos
operários! Para nós não há nações, nem raças! Há somente companheiros e...
inimigos. Todos os operários são nossos amigos; todos os ricos, todos os que têm
autoridade, são nossos inimigos. Quando se olha para a terra com bons olhos,
quando se vê quanto nós, os operários, somos numerosos, que poder espiritual nós
representamos, sente-se o coração invadido pela alegria e pela felicidade, como
na celebração de uma festa solene. O francês e o alemão têm o mesmo
sentimento, e os italianos também rejubilam. Somos todos nascidos da mesma
mãe, da grande, da invencível ideia da fraternidade operária, em todos os países
da terra. Desenvolve-se, aquece-nos com o seu calor, é o segundo sol no céu da
justiça; e este céu está no coração do operário. Qualquer que ele seja, seja qual
for o seu nome, o socialista é nosso irmão em espírito, agora e para sempre, por
todos os séculos dos séculos!Esta exuberância infantil, esta fé luminosa e inabalável manifestava-se de
mais em mais no pequeno grupo, numa força crescente.
E quando Pelagueia via esta alegria, sentia instintivamente que na verdade
viera ao mundo o que quer que fosse grande e resplendente, como um sol
semelhante ao que via no céu.
Às vezes, cantavam, alegremente e a plenos pulmões, canções familiares; por
outras, aprendiam novas canções, também melodiosas, mas com música
melancólica e fora do vulgar. Então, abaixavam a voz, as fisionomias tornavam-
se graves, pensativas, como ao som de um hino religioso. Os rostos tornavam-se
pálidos, os que cantavam animavam-se, e sentia-se que uma grande força se
ocultava sob as palavras sonoras.
Uma daquelas canções principalmente perturbava e inquietava Pelagueia.
Não traduzia os gemidos, as perplexidades da alma ultrajada que vagueia
solitária nos atalhos obscuros das incertezas dolorosas nem dos gritos da alma
incolor e informe assaltada pela miséria, embrutecida pelo medo. Não repetia os
lânguidos suspiros do ser ávido de espaço, nem os gritos de provocação da
audácia fogosa prestes a destruir o mal e o bem, indiferentemente. O cego
sentimento da vingança e do ódio, capaz de aniquilar tudo, impotente para criar,
não aparecia então; não havia em tais canções qualquer vestígio do antigo
mundo, do mundo dos escravos.
As palavras ríspidas, a melodia austera não agradavam a Pelagueia, mas
havia naquelas canções uma como força imensa que abafava o som e as
palavras, despertando no coração o pressentimento de alguma coisa grandiosa
para o pensamento. Pelagueia via isto nos rostos, no olhar dos novos, e, cedendo
àquele poder misterioso, escutava sempre a canção, duplamente atenta, com
inquietação profunda.
— Já é tempo de a cantarmos pelas ruas! — dizia o sombrio Vessovtchikov,
em princípios da primavera.
Quando o pai mais uma vez foi preso, declarou tranquilamente:
— Agora poderíamos reunirmo-nos em minha casa...
Quase todas as tardes, depois do trabalho, um ou outro dos companheiros ia a
casa de Pavel; liam juntos, copiavam trechos das brochuras. Andavam
preocupados e nem já tinham tempo de se lavarem. Ceavam juntos e tomavam
o seu chá sem porem de lado os livros; e as suas conversas cada vez se tornavam
mais incompreensíveis para Pelagueia.
— Precisamos de um jornal! — repetia Pavel, amiúde.
A vida tornava-se febril e agitada; dirigiam-se uns aos outros com mais
celeridade, era com mais rapidez que passavam dum livro a outro, como abelhas
voando de flor para flor.— Começa-se a falar de nós! — disse uma noite Vessovtchikov. —
Provavelmente, acabamos por ser presos, dentro em pouco.
— Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele! — observou o pequeno-
russo.
Cada vez agradava mais a Pelagueia. Quando ele lhe chamava mãezinha,
parecia-lhe que uma suave mão de criança lhe afagava o rosto. Ao domingo, se
Pavel tinha que fazer, era ele quem rachava a lenha; um dia apareceu carregado
com uma grande tábua, pegou na ferramenta e substituiu com habilidade um
degrau podre da porta de entrada; doutra vez, recompôs a varanda que
ameaçava ruína. Enquanto trabalhava, assobiava músicas melancólicas.
Pelagueia disse um dia ao filho:
— Se nós fizéssemos do pequeno-russo nosso hóspede? Seria mais cómodo
para ambos, que não precisaríamos de andar sempre a correr de casa dum para
casa do outro.
— Para que há de ir arranjar mais esse trabalho? — perguntou Pavel,
encolhendo os ombros.
— Ora! Durante toda a minha vida tenho sido atormentada com trabalho sem
saber para quê; posso perfeitamente fazer isto hoje em favor de tão bom
homem.
— Faça o que quiser! Se ele aceitar, dar-me-á satisfação.
E o pequeno-russo passou a viver com eles. VIII
A pequena casa no extremo do bairro despertava a atenção: as suas paredes
já tinham sido como que atravessadas por olhares suspeitosos. As asas do rumor
público agitavam-se por cima dela; tentava-se descobrir o mistério que ali se
ocultava. À noite, havia quem fosse espreitar pela janela; por vezes, alguém
havia que batesse na vidraça, fugindo logo.
Certo dia, na rua, o taverneiro Beguntzev fez parar a mãe de Pavel. Era um
bonito velhote que tinha sempre um lenço de seda preta à roda do pescoço
vermelho e enrugado. O nariz brilhante e agudo era adornado por lunetas de aro
de escama de peixe, o que lhe tinha granjeado a alcunha de «Olhos de osso».
Sem tomar a respiração nem esperar resposta, surpreendera Pelagueia com
uma torrente de palavras secas e vivíssimas:
— Como vai, Pelagueia Nilovna? E o seu filho? Ainda não acha tempo de o
casar? O rapaz já está afinal na devida idade para ter uma mulher. Quando os
filhos casam cedo os pais ficam mais tranquilos. O homem que vive em família
tem mais saúde, tanto de corpo como de espírito, conserva-se como um
cogumelo em vinagre. No seu lugar, eu já o tinha casado. Os tempos que vão
correndo exigem que abramos os olhos no que respeita ao ente humano; há quem
se entregue a uma vida a seu modo, deixando-se arrastar a toda a casta de ações
censuráveis. Já se não veem os rapazes no templo de Deus; afastam-se dos
lugares públicos, mas reúnem-se às escondidas pelos cantos, a cochichar. Porque
andam eles a cochichar? Se me permite a pergunta. Porque se ocultam? O que é
que um homem não pode dizer em público, na taverna, por exemplo? Mistérios!
Mas o lugar dos mistérios é a nossa santa igreja apostólica! Todos os outros
mistérios, realizados a ocultas, vem da desorientação do espírito. Muitos bons dias
lhe desejo.
E tirou o boné com um gesto pretensioso, agitou-o no ar, e foi-se, deixando
Pelagueia imersa na perplexidade.
De outra vez, Maria Korsunova, vizinha dos Vlassov, viúva dum ferreiro, e
que vendia comestíveis na fábrica, disse a Pelagueia ao encontrá-la no mercado:
— Não percas de vista o teu filho, Pelagueia!
— Porquê?
— Correm uns boatos a seu respeito... — segredou com ares misteriosos. —
Coisas feias! Diz-se que está organizando uma espécie de corporação, no género
dos flagelantes. Chama-se a isto uma seita. Fustigar-se-ão uns aos outros como os
flagelantes.
— Não digas mais tolices, Maria!
— Vai ralhar com ele que é quem as faz, e não comigo, que te dou parte do
caso! — replicou a vendedeira.Pelagueia contou a conversa ao filho, que encolheu os ombros sem responder.
Quanto ao pequeno-russo, desatou a rir, com as suas gargalhadas benévolas.
— As raparigas também estão zangadas! Sois todos aptos para vos tornardes
bons maridos, trabalhais bem, não bebeis... e nem olhais para elas! Diz-se que da
cidade vem visitar-vos pessoas de má reputação...
— Já cá faltava! — exclamou Pavel, fazendo uma cara de nojo.
— Num pântano tudo cheira a podre! — disse André suspirando. — Seria
melhor, mãezinha, que explicasse a essas patetinhas o que é o casamento. Talvez
não ficassem com a mesma pressa de cair na asneira!
— Ah! — exclamou Pelagueia. — Elas bem sabem, mas como hão de passar
sem casarem?
— Falta-lhes a compreensão, aliás achariam outra coisa em que se
ocuparem! — disse Pavel.
Ela dirigiu o olhar para o rosto irritado do filho, balbuciando:
— É a vós que cabe ensiná-las! Convidem para isso as mais inteligentes.
— Impossível! — respondeu Pavel, secamente.
— Se tu experimentasses!... — arriscou André.
Depois de um silêncio, Pavel respondeu:
— Começariam a passear aos pares, alguns acabariam por casar, e pronto!
Pelagueia caiu em meditações. A austeridade monacal do filho atordoava-a.
Via que ele era obedecido pelos companheiros, até pelos mais velhos, como o
pequeno-russo, mas parecia-lhe que todos o temiam e que não gostavam da
frieza dos seus modos.
Uma vez que ela estava na cama e Pavel e André ainda liam, apurou o
ouvido às suas palavras que lhe chegavam através do tabique.
— Gosto da Natacha, sabes? — disse de repente o pequeno-russo, a meia voz.
— Sim, sei.
Pavel não respondera logo.
Pelagueia ouviu o pequeno-russo levantar-se, vagaroso, e começar a passear
pelo quarto, com os pés descalços. Assobiou uma triste canção; depois tornou a
falar:
— Ela terá notado?...
Pavel ficou silencioso.
— Que te parece? — perguntou de novo o companheiro, baixando a voz.
— Tem notado! — respondeu Pavel. — E é por isso que já não vem.
André voltou a passear, assobiando; até que:
— E se eu lho dissesse?...— O quê?
— Que...
— Para quê?
Pelagueia ouviu André rir.
— Eu cá, sim, parece-me que quando se ama uma rapariga, devemos dizer-
lho, se não é o mesmo que nada!...
Pavel fechou o livro com ruído e perguntou:
— E que resultado esperas?
Estiveram calados durante alguns minutos.
— E então? — perguntou André.
— É preciso ver claramente o que se quer... — disse enfim Pavel com vagar.
— Suponhamos que ela também te ama. Não creio. Mas suponhamos. Casam. É
uma união interessante, na verdade, a duma rapariga com um operário!... Vem
os filhos... serás obrigado a trabalhar sozinho... e muito. A vossa vida será a de
toda a gente, lutareis para ter com que vos sustentardes, para terdes casa onde
viver com os filhos. E afinal ambos ficareis perdidos para a obra.
Houve um silêncio, até que Pavel concluiu:
— Deixa-te disso, André! Cala-te. Não a perturbes.
— Mas Nicolau Ivanovitch pregava a necessidade de viver a vida integral,
com todas as forças da alma e do corpo... Lembras-te?
— Pregava, mas não para nós. Como atingirias tu a integridade? Não existe
para ti. Quando se ama o futuro, temos que renunciar a tudo no presente, a tudo,
irmão!
— É custoso! — replicou André em voz abafada.
— E como poderia não ser assim? Reflete!
Houve novo silêncio. Ouvia-se apenas a pêndula do relógio,
compassadamente, dividindo o tempo em segundos.
O pequeno-russo disse:
— Metade do coração ama; a outra odeia... E é isto coração, hã?
— E como poderia não ser assim?
Seguiu-se o folhear dum livro: por certo Pavel voltava à leitura. Pelagueia
permanecia deitada com os olhos fechados, sem se atrever a fazer nem um
movimento. Sentia-se profundamente apiedada de André, mas ainda mais do seu
filho. Dizia consigo: «Meu querido filho... meu mártir! Meu sacrificado!»
De súbito, André perguntou:
— Devo então calar-me, não é isso?
— É o mais honesto, André...— Bem! Entrarei nesse caminho! — decidiu o outro.
Mas acrescentou tristemente, decorrido um instante:
— Hás de sofrer, Pavel, quando chegar a tua vez.
— Chegou. Já sofro... e cruelmente.
— Tu também?
Lá fora o vento soprava em torno da casa.
— Não tem nenhuma graça isto!... — disse André lentamente.
Pelagueia meteu a cabeça debaixo da roupa para poder chorar.
Na manhã seguinte, André pareceu-lhe como fisicamente amesquinhado, e
sentiu-o mais próximo do seu coração. Como sempre, o filho tinha o porte seco,
silencioso, rígido. Até então ela tratava o pequeno-russo por André
Onissimovitch; daquele dia em diante, sem querer, sem dar por tal, disse-lhe:
— Deve concertar as suas botas, meu André, senão tem frio nos pés.
— Hei de comprar outras, quando receber a féria.
Depois desatou a rir e perguntou-lhe de chofre, pondo-lhe no ombro a sua
pesada mão:
— Talvez a senhora seja a minha verdadeira mãe, mas que não queira
confessá-lo, porque me ache muito feio! Será assim?
Sem falar, ela deu-lhe uma pancadinha na mão. Desejaria dizer-lhe palavras
carinhosas, mas o coração confrangia-se apiedado, e a sua língua recusava-se a
obedecer-lhe... IX
No bairro começavam a ocupar-se dos socialistas que espalhavam por toda a
parte folhas de papel escritas a tinta azul. Eram papéis que falavam
malevolamente dos regulamentos impostos aos operários, das greves de
Petersburgo e da Rússia meridional; exortavam os trabalhadores a formarem
uma liga e a lutarem na defesa dos seus interesses.
As pessoas de certa idade que ocupavam bons lugares na fábrica, irritavam-
se e diziam:
— Seria conveniente dar uma sova mestra nestes agitadores!
E levavam os papéis aos seus chefes.
Os rapazes, entusiasmados com tais escritos, exclamavam ardentemente:
— O que eles dizem é a verdade!
A maioria dos operários, alquebrados pelo trabalho, indiferentes a tudo,
pensavam indolentemente:
— Aquilo não dá nada.
No entanto as folhas volantes interessavam a todos e, quando não apareciam,
diziam uns para os outros:
— Hoje não há; deixaram de publicá-las...
Mas quando, à segunda-feira, reapareciam, os operários de novo se agitavam
ruidosamente.
Na fábrica e na taverna eram vistas umas pessoas que ninguém conhecia.
Interrogavam, examinavam, farejavam, e impressionavam a todos com a sua
prudência suspeita.
Pelagueia sabia que toda aquela agitação era obra do seu filho. Via-os
cercarem-no, ele porém não era só, o que tornava o caso menos perigoso. E o
orgulho de ter tal filho juntava-se nela à ansiedade que o futuro lhe inspirava:
eram os trabalhos misteriosos do rapaz a misturarem-se como um límpido ribeiro
à torrente lamacenta da vida...
Uma tarde, Maria Korsunova bateu à vidraça e, quando Pelagueia a
entreabriu, a vizinha cochichou:
— Que te dizia eu, Pelagueia? Prepara-te! Os teus passarinhos acabaram de
rir! Esta noite hão de vir fazer uma busca em tua casa, na de Mazine e na de
Vessovtchikov.
Não ouviu mais do que as primeiras palavras; as últimas fundiram-se num
rumor vago e melancólico.
Os lábios espessos de Maria vibravam com rapidez, o seu nariz carnudo
dilatava-se, os olhos tornavam-se piscos, e moviam-se vagamente para um e
outro lado, como em procura de alguém na rua.— E olha que eu não sei nada, nada te disse, minha querida, nem mesmo te vi
ainda hoje... Percebes?
Desapareceu.
Pelagueia fechou a janela e deixou-se cair numa cadeira, com a cabeça
como vazia, sem forças. Mas a consciência do perigo que ameaçava o seu filho
fê-la erguer de súbito; vestiu-se à pressa, envolveu a cabeça num xaile e correu a
casa de Fédia Mazine, que estava doente. Quando entrou, viu-o sentado junto da
janela, a ler, e como que acalentando com a mão esquerda a direita, cujo
polegar se mantinha afastado dos outros dedos. Ao ouvir a má nova, ele pôs-se
logo de pé, empalidecendo.
— Que história esta!... E eu com um abcesso neste dedo! — resmungou.
— Que devemos fazer? — perguntou Pelagueia limpando tremulamente o
suor do rosto.
— Espere... não tenha medo! — respondeu passando pelos cabelos
encaracolados a mão válida.
— Mas se o senhor é o primeiro a ter medo!...
— Eu?
Corou de repente, e disse a sorrir, com embaraço:
— Sim, é verdade, c'os demónios! Precisamos de prevenir o Pavel. Vou
mandar-lhe alguém... Volte para casa... Isto não há de ser nada. Então! Ninguém
há de bater-nos!
Apenas chegou a casa, Pelagueia reuniu em monte os livros, meteu-os
debaixo do braço e pôs-se à busca de um canto onde ocultá-los. Olhou para o
fogão, para o forno, para o canudo do samovar e até para o barril cheio de água.
Dizia consigo que Pavel largaria dali a pouco o trabalho e voltaria para casa; ele
porém demorava-se. Por fim, vencida de cansaço, sentou-se num banco da
cozinha, escondeu os livros debaixo da saia e ficou imóvel até que aparecessem o
filho e André.
— Já sabem?! — disse sem se levantar, apenas os viu.
— Já sabemos! — respondeu Pavel com sorriso calmo. — Tens medo?
— Tenho, muito!
— Não deves ter medo. Não serviria de nada. Nem sequer preparaste o
samovar?!
Ela ergueu-se, e, mostrando os livros, explicou, embaraçadamente:
— Era por causa deles...
O pequeno-russo e Pavel desataram a rir, o que a tranquilizou em parte.
Depois, o filho pegou em alguns dos volumes e saiu para ir escondê-los no pátio;
André dispôs-se a acender o samovar, e foi dizendo:— Nada há terrível nisto; o que faz envergonhar uma pessoa é pensar que
haja quem se ocupe destas coisas. Hão de vir por aí uns homens vestidos de
cinzento, com um sabre à cinta, esporas nos calcanhares, e rebuscarão por toda a
parte. Espreitam para debaixo das camas, e do fogão; se há adega, descem à
adega; se há sótão, sobem ao sótão. As teias de aranha caem-lhes nos focinhos, e
eles espinoteiam. Enfadam-se, envergonham-se, e por isto fingem-se muito
maus e mostram-se furiosos contra a gente. O seu emprego é porco, e eles bem
o sabem. Uma vez, foram dar busca à minha casa, não encontraram coisa
alguma e... eles aí vão! De outra vez, levaram-me consigo. Meteram-me depois
na cadeia, onde estive quatro meses. De tempos a tempos, iam buscar-me e
faziam-me atravessar as ruas no meio de uma escolta de soldados.
Perguntavam-me toda a casta de coisas. Não são criaturas inteligentes, não
sabem falar com critério. Depois diziam aos soldados que me levassem outra vez
para a cadeia. E aqui está como fazem de nós gato sapato. Enfim, têm que
ganhar os seus ordenados!... Acabaram por pôr-me na rua. E pronto!
— Que maneira de falar, meu André! — exclamou Pelagueia mal-disposta.
Ajoelhado em frente do samovar, o pequeno-russo soprava com toda a força
pelo canudo; levantou a cabeça, mostrando a cara avermelhada pelo esforço e
perguntou alisando com as duas mãos o bigode:
— Como é então que eu falo?
— Como se nunca o tivessem ofendido.
Ele ergueu-se, aproximou-se de Pelagueia, e, tendo abanado a cabeça, disse,
sorrindo:
— Há por acaso alguém neste mundo que não tenha sido ofendido? É que
tanto me ultrajaram já, que me cansei de encolerizar-me. Que fazer, se os mais
não podem proceder de outra maneira? Os ultrajes incomodam-me muito,
impedem-me de realizar a minha obra... mas não os podemos evitar, e, se
pensamos nisso, perdemos o nosso tempo. A vida é assim! Dantes zangava-me
contra essa gente; depois, quando me veio a reflexão, vi que todos eles tinham o
coração despedaçado. Cada qual tem medo de ser o primeiro a atacar. A vida é
assim, mãezinha!
As palavras soltavam-se-lhe tranquilamente e faziam extinguir-se a ansiedade
de Pelagueia. Os olhos polpudos dele sorriam, luminosos e tristes; todo o seu
corpo era flexível, elástico, embora como desengonçado.
Ela suspirou e disse com calor:
— Deus o faça feliz, meu André!
O pequeno-russo voltou para o samovar, ajoelhou-se outra vez e murmurou:
— Se me derem a felicidade, não a recusarei; mas não a peço e nunca irei
buscá-la.E pôs-se a assobiar.
Pavel voltou do pátio.
— Não encontrarão coisa alguma! — afirmou, convencido.
Começou a lavar-se. Depois acrescentou, limpando cuidadosamente as mãos:
— Se lhes mostrar que tem medo, mamã, dirão que alguma coisa há para
despertar desconfiança. E nós nada fizemos ainda... nada! Bem o sabe, nada
queremos que seja mau; a verdade e a justiça estão do nosso lado, trabalharemos
por elas toda a vida: eis o nosso crime! Porque havemos de tremer?
— Terei coragem, Pavel! — prometeu.
Mas logo disse, angustiada:
— Se ao menos «eles» viessem depressa!
«Eles» porém não vieram naquela noite.
No dia seguinte, prevendo que Pavel e André iriam chasquear dos seus
terrores, foi a primeira a rir-se de si mesma. X
«Eles» chegaram quando menos os esperavam, quase um mês depois.
Vessovtchikov, André e Pavel estavam reunidos e falavam do seu jornal. Era
tarde, perto da meia-noite. Pelagueia já estava deitada, ia adormecendo e ouvia-
lhes vagamente as vozes receosas e em tom baixo. André levantou-se de chofre,
atravessou a cozinha nos bicos dos pés e fechou de mansinho a porta após ele. No
corredor ouviu-se o ruído duma celha que tombara. André disse em voz alta:
— Oiçam: é o ruído de esporas, na rua!
Pelagueia levantou-se de salto, pegou numa saia, trémula; mas Pavel
apareceu no limiar e disse-lhe tranquilamente:
— Fique deitada... Não está boa...
Ouviu-se depois um deslizar furtivo sob o telheiro.
Pavel aproximou-se da porta, e batendo nela com a mão, perguntou:
— Quem está aí?
Rápido como um relâmpago, um corpo de homem alto surgiu entre os
umbrais; e outro ainda. Os dois guardas repeliram o rapaz, puxando-o depois para
entre eles. Uma voz grave e irritada disse:
— Não é quem esperavas, hã?
Quem falava era um oficial ainda novo, alto e magro, de bigode preto.
Fediakine, agente da polícia do bairro, dirigiu-se para a cama de Pelagueia;
levando a mão ao boné, em continência, indicou com a outra a mulher, dizendo
com um olhar terrível:
— A mãe é esta, meu Senhor!
Depois, apontando para Pavel:
— E o filho é aquele!
— Pavel Vlassov? — perguntou o oficial, franzindo os olhos.
O rapaz respondeu afirmativamente com a cabeça.
Passando a mão pelo bigode, o oficial informou:
— Venho fazer uma busca em tua casa... A velha que se levante! Quem está
ali?
E, tendo olhado para o quarto, entrou nele a passos largos.
Ouviram-no perguntar:
— O seu nome?
Outros dois personagens apareceram ainda: o velho fundidor Tveriakov e o
seu inquilino, o fogueiro Ribine, um homem de cabeleira negra e de bom porte.
Tinham sido trazidos pela polícia como testemunhas:
Ribine disse com voz grossa e possante:— Boa noite, Pelagueia!
Ela vestia-se, e, para se dar coragem, murmurava:
— Esta agora! Virem de noite!... Quando uma pessoa está na cama!...
O quarto parecia pequeno e por ele se espalhara um cheiro ativo a graxa. Os
dois guardas e o comissário de polícia do bairro, Riskine, tiravam da estante os
livros com ruído, e empilhavam-nos diante do oficial. Os outros davam pancadas
nas paredes, olhavam para debaixo das cadeiras; um trepou com custo ao cano
do fogão. O pequeno-russo e Vessovtchikov, unidos um ao outro, conservavam-se
a um canto; o rosto bexigoso do segundo estava coberto de manchas vermelhas, e
os seus olhinhos pardos não podiam desfitar-se do oficial. André retorcia o
bigode, e quando Pelagueia entrou no quarto, fez-lhe com a cabeça um
movimento amigável.
Para ocultar o terror, mexia-se não de lado, como de costume, mas com o
peito deitado para a frente, o que lhe dava um aspeto de importância afetada e
risível. Andava ruidosamente e as pálpebras tremiam-lhe.
O oficial ia pegando rapidamente nos livros com as pontas dos dedos brancos
e delgados, folheava-os, sacudia-os, e rapidamente atirava-os para o lado. Alguns
volumes caíram no chão. Todos estavam calados; não se ouvia mais do que o
respirar dos guardas esbofados, o tintinar das suas esporas; de quando em quando
um deles perguntava:
— Já viste aqui?
Pelagueia colocou-se junto do filho, encostada à parede; como ele, cruzou os
braços no peito e quis observar o oficial. As pernas vacilaram-lhe, um nevoeiro
toldava-lhe a vista.
De súbito, a voz de Vessovtchikov soltou-se concludente:
— Para que serve deitar os livros ao chão?
Pelagueia estremeceu. Tveriakov abanou a cabeça como lhe tivessem batido
na nuca; Ribine resmungou e fitou atentamente o audacioso.
O oficial franziu os olhos e cravou-os no rosto bexigoso e imóvel do rapaz...
Depois os seus dedos folhearam o livro com mais rapidez.
De quando em quando, os olhos pardos de Vessovtchikov abriam-se tanto que
dir-se-ia ele estar sofrendo atrozmente e prestes a gritar, furioso e impotente
contra a dor.
— Soldado! — exclamou de súbito. — Apanha os livros!
Os guardas voltaram-se para ele, e olharam depois para o oficial. Este
levantou a cabeça, e olhando rapidamente de soslaio para o rapaz, ordenou por
entre dentes:
— Vá lá, apanhem os livros.Um dos guardas abaixou-se, e observando furtivamente Vessovtchikov pôs-se
a apanhar os livros esfarrapados.
— Teria feito melhor estando calado... — disse baixinho Pelagueia para o
filho.
Ele encolheu os ombros. O pequeno-russo estendeu o pescoço.
— Que cochichar é esse? Façam favor de estar calados! Quem é que lê aqui
a Bíblia?
— Eu! Respondeu Pavel.
— Ah!... E de quem são estes livros?
— Meus.
— Está bem!... Comentou o oficial apoiando-se às costas da cadeira.
Fez estalar os nós dos seus dedos finos e brancos, estendeu as pernas debaixo
da mesa, cofiou o bigode, e perguntou a Vessovtchikov:
— És tu que te chamas André Nakodka?
— Sou eu! — respondeu o bexigoso avançando.
O pequeno-russo deitou-lhe a mão a um ombro e obrigou-o a recuar.
— Enganou-se! O André sou eu.
O oficial levantou a mão, e ameaçando Vessovtchikov com o dedo indicador
erguido:
— Toma cuidado!...
Começou a remexer nos seus papéis.
A noite luminosa e clara olhava indiferentemente pela janela. Alguém ia e
vinha em frente da casa e a neve estalava sob os seus passos.
— Já foste perseguido por delitos políticos, Nakodka? — perguntou o oficial.
— Já: em Rostov e em Saratov... Com a diferença de que ali as autoridades
não me tratavam por «tu.»
O oficial franziu o olho direito, esfregou-o e disse depois, mostrando os
dentitos:
— Nesse caso, Nakodka, conhece talvez... Sim... deve conhecer os celerados
que espalham pela fábrica folhetos e proclamações proibidas?...
O pequeno-russo teve um estremecimento, ia dizer o que quer que fosse com
um sorriso aberto, quando se ouviu de novo a excitante voz de Vessovtchikov:
— É a primeira vez que vemos celerados!
Houve um instante de silêncio.
O rosto de Pelagueia tornou-se pálido até na cicatriz, enquanto o sobrolho
direito lhe era repuxado para cima. A barba negra de Ribine entrou de tremer deuma maneira estupenda; baixou a cabeça e passou a mão vagarosamente pelo
bigode.
— Ponham fora daqui essa besta! — ordenou o oficial.
Dois guardas agarraram o rapaz por debaixo dos braços e arrastaram-no para
a cozinha. Quando lá chegou, conseguiu parar, e apegando-se ao chão com toda
a força de que os seus pés eram suscetíveis, gritou:
— Esperem! Quero pôr a minha capa!
O comissário de polícia, que estivera a rebuscar no pátio, apareceu dizendo:
— Nada encontrámos. Vimos todos os cantos.
— Está claro! — exclamou o oficial ironicamente. — Já o esperava! Estamos
a contas com homens já muito experientes.
Pelagueia ouviu aquela voz fraca, trémula e imperiosa; e ao observar aquele
rosto amarelento sentia estar ali um inimigo, um inimigo implacável, com o
coração cheio de desprezo pelo povo. Dantes poucas pessoas assim ela tinha
visto, e nos últimos anos chegara a esquecer-se de que elas existiam.
— É a estes que nós causamos inquietações!... — pensava.
— Senhor André Onissimov Nakodka, filho de pai incógnito, está preso!
— Porquê? — perguntou tranquilo.
— Depois lhe direi! — respondeu o oficial com malévola delicadeza.
E voltando-se para Pelagueia, berrou-lhe:
— Sabes ler e escrever?
— Não! — interveio Pavel.
— Não falo contigo! — disse o oficial com severidade. — Responde, velha,
sabes ler e escrever?
Invadida de um sentimento de instintivo ódio contra aquele homem, Pelagueia
aproximou-se de súbito, muito trémula, como se tivesse caído num rio gelado; a
cicatriz fez-se escarlate, e o sobrolho baixou-lhe.
— Não grite! — exclamou, estendendo o braço para o oficial. — É ainda
novo, não sabe o que seja o sofrimento...
— Sossegue, mamã... — interrompeu Pavel.
— É melhor uma pessoa abafar o coração e calar-se! — aconselhou André.
— Espera, Pavel! — exclamou ainda Pelagueia, num arranco para a mesa.
— Porque é que o sr. anda prendendo a gente?
— Isso não é da sua conta. Cale-se! — berrou o oficial, erguendo-se. —
Tragam cá o Vessovtchikov.
E pôs-se a ler um papel que colocara à altura do rosto.
Trouxeram o rapaz.— Tira o boné! — disse-lhe o oficial, interrompendo a leitura.
Ribine aproximou-se de Pelagueia e dando-lhe um encontrão:
— Não se apoquente, tiazinha!
— Como hei de eu tirar o boné, se tenho as mãos agarradas?
O oficial atirou com o auto para cima da mesa, dizendo simplesmente:
— Assinem!
Pelagueia viu os assistentes assinarem o documento, a sua excitação
desaparecera, faltava-lhe a coragem; afluíam-lhe aos olhos amargas lágrimas de
humilhação e de consciência da sua fraqueza. Durante os vinte anos da sua vida
de casada, tinha chorado lágrimas como aquelas; mas esquecera-lhe o ardor
quase por completo desde que enviuvara. O oficial olhou para ela e comentou
com uma expansão desdenhosa:
— Foi cedo para tanto alarde, minha prenda! Creia que é capaz de ficar sem
lágrimas... para o futuro.
Respondeu-lhe, outra vez irritada:
— Às mães nunca faltam as lágrimas!... Se tem mãe, ela deve saber isto,
com certeza!
O oficial meteu rapidamente os seus papéis na carteira, que era nova e de
fechos brilhantes; e dirigindo-se ao comissário de polícia:
— Todos eles denotam uma independência revoltante!
— Que insolência! — murmurou o comissário.
— A caminho! — ordenou o oficial.
— Até à vista, André! Até à vista, Nicolau! — disse Pavel apertando
calorosamente a mão dos companheiros.
— Está claro... até à vista! — repetiu o oficial com ironia.
Sem dizer palavra, Vessovtchikov apertava a mão de Pelagueia entre os seus
dedos curtos. Respirava a custo; o pescoço robusto estava congestionado, os olhos
brilhavam-lhe de raiva. André sorria e meneava a cabeça; disse algumas
palavras a Pelagueia, que fez o sinal da cruz sobre ele, respondendo-lhe:
— Deus conhece os justos!
Enfim o bando de homens de capotes cinzentos desapareceu dobrando a
esquina da casa, com um tintinar de esporas. Ribine foi o último a sair; com o seu
negro olhar perscrutou Pavel; em tom meio abstrato disse:
— Adeus, hã?...
E foi-se, sem pressas, tossindo, de cabeça baixa.
Com as mãos cruzadas nas costas, Pavel entrou de passear de um para outro
lado, por entre as trouxas de roupa e os livros espalhados no chão, até queperguntou em tom sombrio:
— Viste como é?
Sem deixar de olhar para a desordem em que ficara o quarto, ela disse
baixinho, aflita:
— Prender-te-ão também... também, a ti! Para que foi tão grosseiro o
Vessovtchikov?
— Teve medo, provavelmente!... — respondeu Pavel também em voz baixa.
— Não se deve falar àquela gente... nada se consegue deles! São incapazes de
compreender...
— Vieram! Prenderam-no! Levaram-no! — murmurou, com os braços
erguidos.
Só lhe restava o filho. O coração de Pelagueia começou a pulsar mais
vagaroso; o seu pensamento imobilizava-se perante um facto que ela não podia
admitir como real.
— Faz pouco de nós, aquele homem amarelo: ameaça-nos... e...
— Basta, mãe! — disse de repente Pavel com decisão. — Anda cá,
arrumemos tudo isto.
Tinha dito aquele «mãe» e tratara-a por tu como era seu costume quando se
tornava mais comunicativo. Ela aproximou-se, encarou-o e perguntou em voz
baixa:
— Humilharam-te?
— Sim! Custou-me muito! Preferia ir com eles.
Pareceu a Pelagueia que ele tinha os olhos lacrimosos; e para o consolar
daquele desgosto que ela vagamente adivinhava, disse, suspirando:
— Tem paciência... um dia virá em que também sejas preso!
— Bem sei... — respondeu.
Decorridos uns instantes, ela acrescentou com tristeza:
— Como és cruel, meu filho! Se ao menos me tranquilizasses... Mas não! Se
eu digo coisas terríveis, o que tu me respondes é pior ainda!
Ele olhou de relance, aproximou-se, e baixando a voz:
— Não sei que responder-lhe, mamã. Não posso mentir. Tem que acostumar-
se...
Pelagueia suspirou e calou-se; depois, estremecendo:
— Será verdade? Dizem que eles torturam os presos, que lhes retalham o
corpo em tiras, e lhes quebram os ossos... Quando penso nisto, tenho medo,
Pavel, meu querido filho!
— Torturam a alma e não o corpo. É ainda mais doloroso do que a torturatocarem-nos na alma com as mãos emporcalhadas! XI
Soube-se na manhã seguinte que Bukine, Samoilov, Somov e mais cinco
pessoas também tinham sido presos. À noite, Fédia Mazine veio de corrida:
haviam feito uma busca em sua casa; estava radiante por isso, e considerava-se
como um herói.
— Tiveste medo, Fédia? — perguntou Pelagueia.
Empalideceu, encovou-se-lhe o rosto, as narinas estremeceram-lhe.
— Tive medo de que o oficial me batesse! Tinha barba negra e era forte; os
dedos cabeludos; usava lunetas de vidros pretos; parecia que lhe faltavam os
olhos. Gritou, batendo com o pé: «Faço-te apodrecer na cadeia!» Em mim
nunca ninguém bateu, nem o meu pai, nem a minha mãe, porque eu era filho
único, e eles queriam-me muito. Toda a gente tem levado pancada; eu, nunca.
Fechou por um instante os olhos avermelhados e apertou os beiços; com um
gesto rápido, atirou para trás com os cabelos e disse, encarando em Pavel:
— Se alguém me bater, enterro-me nele como uma navalha, retalho-o com
os dentes. É preferível que me estendam de vez!
— Tão magrito e fraco!... — exclamou Pelagueia. — Como poderias lutar?
— Pois lutarei! — respondeu em voz baixa.
Quando ele saiu, ela disse para o filho:
— Será esmagado primeiro do que os outros.
Pavel não respondeu.
Minutos depois, a porta da cozinha abriu-se devagar, e Ribine entrou.
— Boa noite! — disse, sorrindo. — Sou eu outra vez. Ontem à noite,
obrigaram-me a cá vir; hoje venho por minha conta.
Apertou com vigor a mão de Pavel, e pondo a mão no ombro de Pelagueia:
— Dás-me chá?
Pavel observou em silêncio o amplo rosto atrigueirado do seu visitante, a sua
espessa barba negra e os seus olhos inteligentes. Havia um tanto de gravidade no
seu olhar tranquilo; todo o aspeto do recém-chegado, de atlética corpulência,
inspirava simpatia pela sua decidida firmeza.
A mãe foi à cozinha preparar o samovar.
Ribine sentou-se, afagou o bigode, e, encostando-se à mesa, envolveu Pavel
num olhar.
— Com que então... — Assim começou, como se reatasse o fio de uma
conversa. — Devo falar-te abertamente. Observei-te por muito tempo antes de
vir à tua casa. Somos quase vizinhos, via que recebias muita gente e que ninguém
se embriagava nem fazia escândalos. Isto dava nas vistas. Quando alguém seporta bem, é logo notado, vê-se logo quem é. Eu próprio chamo as atenções para
a minha pessoa porque vivo à parte, sem praticar porcarias.
Falava devagar, indolentemente; tinha inflexões que inspiravam confiança.
— Com que então, toda a gente fala de ti. O meu senhorio chama-te
«herético» porque não vais à igreja. Eu também lá não vou. Depois apareceram
essas folhas, esses papéis... A ideia foi tua?
— Foi! — respondeu Pavel sem desviar o olhar da fisionomia de Ribine, que
também o fitava.
— Ora vamos! — exclamou Pelagueia, sobressaltada, e saindo da cozinha. —
Não foste só tu...
Pavel sorriu. Ribine também.
— Ah!... — murmurou este.
A velha fungou e saiu, um tanto irritada por não terem prestado atenção às
suas palavras.
— Era uma boa ideia. Perturbam o povo. Quantas foram ao todo? Umas
dezanove, não?
— Isso mesmo.
— Então li-as todas! Bem... bem... Há por lá coisas incompreensíveis,
supérfluas. Quando o homem fala muito, acontece-lhe falar para nada.
Sorriu; tinha os dentes brancos e sãos.
— Depois, a busca que fizeram em tua casa... Foi o que me dispôs a teu favor.
Tu, o pequeno-russo e Vessovtchikov mostraram-se muito... muito...
Como não encontrava a palavra, calou-se, olhou pela janela, e bateu com um
dedo na mesa:
— Mostraram-se decididos. Foi como se dissessem: «Faça a sua obra,
excelência, que nós faremos a nossa!» O pequeno-russo também é um rapaz
como se quer. Às vezes, na fábrica, quando o ouvia falar, pensava: «Este não é
para se deixar esborrachar, não! Só a morte poderá vencê-lo. Tem um bigode, o
tipo!» Não acha, Pavel?
— Acho! — respondeu, movendo a cabeça afirmativamente.
— Ora bem... Tenho quarenta anos, o dobro da tua idade; tenho visto vinte
vezes mais do que tu. Fui soldado durante mais de três anos; fui casado duas
vezes; morreu-me a primeira mulher; deixei a segunda. Estive no Cáucaso, vi os
Dukobors... Não souberam vencer a vida, irmão! Oh! Não souberam!
Pelagueia escutava avidamente estas palavras; era-lhe agradável ver um
homem de idade respeitável procurar o filho como para confessar-se. Achava,
porém, que Pavel o tratava com demasiada secura, e para destruir esta
impressão, perguntou a Ribine:— Talvez tenhas vontade de comer alguma coisa, Mikhail Ivanovitch?
— Não, obrigado. Já ceei. Com que então, Pavel, pensas que a vida não vai
por bom caminho?
O rapaz levantou-se e passeando, com as mãos atrás nas costas:
— Qual! Por magnífico caminho! E tanto assim que ele o trouxe até mim,
agora que tem a sua alma francamente aberta. Neste caminho, a vida une-nos,
pouco a pouco, a todos nós que trabalhamos incessantemente; e tempo virá em
que há de unir-nos a todos! As coisas acham-se dispostas de uma maneira injusta
e penosa para nós; mas é a própria vida que nos abre os olhos, descobrindo-nos o
que encerra amargo; é ela própria que mostra ao homem como lhe deve dirigir a
norma.
— É verdade! Mas espera! É preciso renovar o homem. Nisto creio eu!
Quando se apanha sarna, a gente toma banhos, lava-se, veste-se com asseio e
fica bom, não é assim? Mas se a sarna ataca o coração, podemos por acaso
arrancar-lhe a pele, ainda que ficasse sangrando? Podemos lavá-lo, vesti-lo de
novo? Hã? Então, como purificar o homem por dentro? O quê?
Pavel falou calorosamente de Deus, do imperador, das autoridades, da
fábrica, da resistência que os trabalhadores do estrangeiro opunham àqueles que
queriam limitar os seus direitos. Ribine sorria por vezes; depois batia com o dedo
na mesa, como para pontuar o discurso de Pavel, sem contudo deixar de dizer de
quando em quando:
— É isso mesmo!
Todavia, comentou a meia voz com um sorrisinho:
— Ah! És ainda novo. Não conheces o próximo!
Pavel, de pé diante dele, explicou gravemente:
— Não falemos de novos nem de velhos! Vejamos antes qual é a melhor
opinião.
— Portanto, em tua opinião até se têm servido de Deus para nos enganarem?
Concordo. Também creio em que a nossa religião é nociva e errónea.
Pelagueia interveio. Quando o filho falava de Deus, das coisas sagradas e
queridas que se ligavam à fé que ela tinha no seu Criador, tentava sempre
encontrar o olhar de Pavel para pedir-lhe tacitamente que não lhe despedaçasse
o coração com palavras de incredulidade, cortantes e aceradas. Ela porém sentia
que, apesar de mostrar-se cético, o seu filho era crente; e isto tranquilizava-a.
— Como poderia eu compreender os seus pensamentos? — dizia a si mesma.
Pensava que devia ser desagradável e ultrajante para Ribine, um homem de
idade, ouvir tais palavras de Pavel. Mas quando Ribine dirigira aquela pergunta
perdeu, de todo a paciência.— Sede mais prudentes falando de Deus! — disse resumidamente, mas com
obstinação. — Façam o que quiserem, mas...
E tendo tomado a respiração, continuou com mais vigor:
— Mas em que me hei de apoiar, no meio dos meus desgostos, eu que estou
velha, se me tirarem o meu Deus?
Os olhos encheram se-lhe de lágrimas. Com as mãos trémulas, continuou
lavando a loiça.
— Não nos compreendeu, mamã! — disse Pavel com suavidade.
— Desculpe-nos! — acrescentou Ribine em tom vagaroso, lançando um olhar
risonho a Pavel. — Esquecia-me de que estás muito velha para ser ainda tempo
de te cortarem as verrugas!...
— Eu não falava, de maneira alguma, do Deus bom e misericordioso no qual
a mãe acredita, mas sim daquele com que os padres nos ameaçam como se
fosse um flagelo, e em nome do qual exigem que a grande maioria dos homens
se submeta à vontade malévola de alguns.
— Exatamente! Isso é que é! — exclamou Ribine, batendo com o dedo na
mesa. — Transformaram-nos até Deus. Os nossos inimigos lançam mão de tudo
quanto lhes sirva para abater-nos. Recordo-te, Pelagueia, que Deus criou o
homem à sua imagem e semelhança e portanto parece-se com o homem, visto
que o homem se parece com Ele. Nós, porém, não nos assemelhamos a Deus,
mas sim aos animais selvagens... Na igreja, o que nos mostram, em lugar de
Deus, é um espantalho. É mister transformar Deus, purificá-lo! Revestiram-no
de mentira e de calúnia, mutilaram o seu rosto para matarem a nossa alma...
Falava baixo, mas com espantosa nitidez; cada uma das suas palavras era
para Pelagueia um golpe doloroso. Sentiu-se assustada por aquela grande cara
taciturna enquadrada numa barba negra, e o brilho sombrio dos seus olhos
tornava-se-lhe insuportável.
— Ah! Prefiro ir-me embora! — disse, sacudindo a cabeça. — Não tenho
coragem de ouvir tais coisas... Não posso!
E fugiu para a cozinha, enquanto Ribine dizia:
— Vês, Pavel? Não é pela cabeça, mas sim pelo coração que se deve
começar. O coração é um lugar da alma humana no qual não brota mais do
que...
— Do que a razão! — acabou Pavel com firmeza. — Será só a razão que
libertará o homem!
— A razão não dá o poder! — replicou Ribine, vibrante e obstinado. — É o
coração que dá a força e não o cérebro!
Pelagueia despira-se e deitara-se sem haver rezado. Tinha frio e sentia-sepouco bem. Ribine, que lhe parecera tão sensato, tão correto, ao princípio,
excitava-lhe uma reservada hostilidade.
— Herético! Agitador! — pensava, prestando o ouvido à voz sonora que saía
com facilidade daquele peito amplo e forte. — Para que veio ele cá?!...
E Ribine ia dizendo, tranquilo e firme:
— Um lugar santo não pode ficar vazio. O lugar onde Deus vive dentro de nós
é atacado; se Ele cair da alma, ficará uma chaga! Ora aí está! É preciso inventar
uma fé nova, Pavel. É preciso criar um Deus justo para todos, um Deus que não
seja nem juiz, nem guerreiro, mas sim o amigo dos homens.
— E que outra coisa foi Jesus?! — exclamou Pavel.
— Espera!... Jesus não era firme de espírito... «Afastem de mim este
cálice...» disse ele. E reconhecia o poder do César. Deus não pode reconhecer
uma autoridade humana reinando sobre os homens, porque ele é que é a
omnipotência! Ele não dividiu a sua alma numa parte divina e em outra humana,
e visto que confirmou a sua divindade, não carece de coisa alguma humana.
Jesus reconheceu também como legítimos o comércio e o casamento. Foi
injustamente que condenou a figueira. Que culpa tinha ela da sua esterilidade?
Não é por sua culpa que a alma não dá bons frutos. Fui eu que semeei nela o
mal?
As duas vozes vibravam sem interrupção no quarto, como se se arrojassem
uma à outra, combatendo-se em luta animada e apaixonada. Pavel ia e vinha, a
passos largos, e o sobrado rangia sob os seus pés. Quando falava, todos os sons se
fundiam no ruído da sua voz; quando Ribine replicava, calmo, tranquilo, ouvia-se
o tiquetaque da pêndula do relógio e o seco estalido da neve que roçava com as
suas garras agudas nas paredes da casa.
— Vou falar-te como autêntico fogueiro que sou: Deus parece-se com o fogo.
É isto, sim! Não consolida coisa alguma, não o pode. Queima e funde,
iluminando. Ilumina as igrejas, mas não as constrói. Vive no coração. Disse-se:
«Deus é o Verbo»; e o Verbo é o espírito.
— A razão! — emendou Pavel, obstinado.
— Isso! Portanto, Deus está no coração, e na razão, e não na igreja. E eis de
onde vêm as desgraças, as dores, os infortúnios do homem: é que todos nós
somos arrancados de nós mesmos! O coração é repelido pela razão, e a razão
foi-se! O homem não é uno. Deus une o homem em um todo, em um globo.
Deus criou sempre coisas redondas: a terra, as estrelas; tudo o que é visível, o que
é agudo, foi o homem quem o fez. Quanto à igreja, é o túmulo de Deus e do
homem.
Pelagueia adormeceu, não tendo ouvido sair Ribine.
Ele voltou a aparecer muitas vezes. Quando qualquer companheiro de Pavelestava em casa deste, o fogueiro sentava-se a um canto e continha-se em
silêncio; de tempos a tempos, dizia:
— Isso! Exatamente!
Uma vez, espraiou o seu negro olhar pelos assistentes, e disse, nada satisfeito:
— Deve-se falar do que é; o que será não sabemos nós. Quando o povo for
livre, ele próprio verá o que tiver de melhor a fazer. Já lhe meteram na cabeça
muitas coisas que ele não queria! Basta! Ele que se examine! Talvez ele repila
tudo, toda a vida e todas as ciências; talvez veja que tudo lhe é hostil, como por
exemplo: Deus e a igreja. Deem-lhe para a mão todos os livros, e ele
responderá. Mas para isto, seria necessário que ele compreendesse que quanto
mais apertada é a coleira, mais penoso é o trabalho.
Quando Pavel e Ribine estavam a sós, punham-se logo a discutir,
tranquilamente, por muito tempo. A velha escutava-os inquieta, seguia-os com o
olhar silencioso, diligenciando compreender. Por vezes, parecia-lhe que ambos
tinham cegado. Nas trevas, entre as paredes do pequeno quarto, os dois
vagueavam dum para outro lado, como em busca duma saída ou duma luz;
agarravam-se a tudo com as suas mãos vigorosas, mas inábeis; agitavam,
revolviam tudo, deixando cair por terra coisas que depois espezinhavam.
Esbarravam em tudo, tateavam e repeliam tudo, sem pressas, sem perderem a
esperança nem a fé. Tinham-na acostumado a ouvir uma palavras terríveis pela
sua simplicidade e audácia; estas palavras já não a oprimiam com a mesma
violência. Ribine não era simpático à velha, mas a repulsão, que a princípio lhe
inspirara, tinha desaparecido.
Uma vez por semana, Pelagueia ia à cadeia levar roupa e livros a André; um
dia obteve licença de vê-lo; e ao voltar para casa, contou enternecidamente:
— Continua sendo o mesmo. Amável para com todos. Todos brincam com
ele. Parece que tem sempre o coração em festa. Custa-lhe a vida, sofre, mas não
quer dá-lo a perceber.
— E é assim que devem fazer todos! — replicou Ribine. — Todos nós
estamos envolvidos em desgostos como numa segunda pele... Respiramos
desgostos... vestimo-nos de desgostos... Não temos de que nos gabar. Nem toda a
gente tem os olhos furados, e muitos há que os fecham de moto próprio... Quando
se é parvo, então sim, não há remédio senão esperar o sofrimento... XII
A velha casa parda dos Vlassov atraía de mais em mais as atenções do bairro.
Às vezes um operário aparecia por lá, e depois de ter olhado para todos os lados,
cautelosamente, dizia a Pavel:
— Irmão, tu que lês nos livros, deves conhecer as leis. Portanto, explica-me.
E contava qualquer arbitrariedade da polícia ou da administração da fábrica.
Nos casos complicados, Pavel remetia o consulente, com duas palavras de
recomendação, a um advogado dos seus amigos, e, quando podia, ele próprio
dava conselhos.
Pouco a pouco, os frequentadores do bairro foram nutrindo um sentimento de
respeito por aquele rapaz tão comedido, que falava de tudo com simplicidade e
afoiteza, que raras vezes ria, que encarava e escutava todos os assuntos com
atenção, metendo-se na embrulhada de qualquer negócio particular e
descobrindo sempre o fio que ligava as criaturas umas às outras por milhares de
nós tenazes.
Pelagueia via ampliar-se a influência do seu filho, começava a aprender o
sentido dos trabalhos de Pavel, e quando o compreendia, invadia-a uma alegria
infantil.
Pavel tornou-se maior na opinião pública por ocasião da história do
«kopeck [3] do pântano».
Um grande pântano com pinheiros e bétulas cercava a fábrica como um
fosso infeto. No verão, vinham dele exalações amarelentas, opacas, de mistura
com nuvens de mosquitos que se espalhavam no bairro produzindo febres. O
pântano pertencia à fábrica; o novo diretor, querendo tirar partido dele, concebeu
o projeto de esgotá-lo, extraindo-lhe ao mesmo tempo o nateiro. Esta operação,
disse aos operários, tornaria salobras as circunvizinhanças e melhoraria as
condições de vida a todos; portanto ordenou que fosse descontado um kopeck por
cada rublo, nas férias, quantia que seria destinada ao saneamento do pântano.
Nos operários houve uma agitação; irritava-os principalmente o facto de não
reverter para os empregados o imposto.
No sábado em que foi publicada a decisão do diretor, Pavel estava doente e
não fora trabalhar; nada sabia. Na manhã seguinte, depois da missa, o fundidor
Sizov, um bom velho, o serralheiro Markotine, homem alto, muito irascível,
foram a casa dele para lhe dizer o que se passava.
— Os mais velhos de entre nós reuniram-se, — disse rudemente Sizov; —
discutimos; os nossos companheiros mandaram-nos cá para te perguntarmos —
visto seres um homem de espírito lúcido, se há alguma lei que permita ao diretor
extinguir os mosquitos à nossa custa.
— Nota — acrescentou Markotine, revolvendo os olhos, — que há quatro anosaqueles ladrões nos apanharam dinheiro para construírem um estabelecimento
de banhos... Que é dele?
Pavel explicou que o imposto era injusto, que a fábrica tiraria uma grande
vantagem do projeto. Assim, os dois operários retiraram-se com ares de poucos
amigos. Depois de os haver acompanhado até à porta, Pelagueia disse sorrindo:
— Vêm então os velhos a tua casa aprender contigo, Pavel!...
Sem responder, o rapaz sentou-se e começou a escrever, preocupado.
Decorridos instantes:
— Peço-te que vás imediatamente à cidade e entregues este bilhete...
— É coisa arriscada?
— Sim. É para onde imprimem o nosso jornal. Esta história do kopeck deve
aparecer, sem falta, no próximo número.
— Está bem! Está bem! — respondeu ela, vestindo-se à pressa. — Eu vou.
Era o primeiro recado importante de que o filho a encarregava. Sentia-se feliz
por ver que ele lhe dizia francamente do que se tratava, e por poder ser-lhe útil
na sua obra.
— Compreendo, Pavel! Vou num momento. Como se chama ele? Iegor
Ivanovitch, não?...
Regressou de noite, já tarde, fatigada, mas satisfeita.
— Vi a Sachenka. Manda-te recomendações. Como é divertido o Iegor!
Sempre de brincadeira!...
— Muito folgo com que ele seja do teu agrado.
— Que simpleza de gente! São tão simpáticas as pessoas simples!... E olha
que todos eles te estimam muito.
Na segunda-feira, Pavel não pôde ir à fábrica, doía-lhe a cabeça. Mas ao
meio-dia, Fédia Mazine apareceu-lhe, em grande excitação, radiante: participou
esbofado:
— Toda a fábrica está em revolta! Mandaram-me vir à tua procura. Sizov e
Markotine dizem que tu explicarás a coisa melhor do que os outros. Se visses o
que por lá vai!
Pavel vestiu-se sem dizer palavra.
— As mulheres estão reunidas e fazem uma gralhada!...
— Vou ter com elas! — disse Pelagueia. — Tu não estás bom, talvez seja
perigoso... Os outros para que servem, então? Eu irei falar com eles...
— Vamos! — disse Pavel simplesmente.
Saíram rapidamente, em silêncio. Pelagueia, ofegante e comovida, pressentia
o que quer que fosse grave. À entrada da fábrica, uma multidão de mulheresberrava e discutia. Pelagueia via que todos os rostos estavam voltados para o
mesmo lado, para a parede das forjas. Ali, Sizov, Markotine, Valov e mais cinco
operários influentes e idosos tinham trepado para um montão de velha ferragem.
— Aí vem o Vlassov! — gritou alguém.
— Vlassov! Tragam-no cá!
Levaram Pavel, de roldão. Pelagueia ficou só.
— Silêncio! — ordenaram muitas vozes a um tempo.
Próximo de Pelagueia ouviu-se a voz monótona de Ribine:
— Não é pelo kopeck que se deve mostrar resistência, mas sim pelo princípio
da justiça. Não é o kopeck o que nos custa, não é mais redondo do que os outros,
mas é para nós mais pesado: há nele mais sangue humano do que em um só
rublo do diretor!
Estas palavras caíam sobre a multidão com energia e provocavam ardentes
exclamações.
— É verdade! Bravo, Ribine!
— Silêncio, seus diabos!
— Tens razão, fogueiro!
— Olhem o Vlassov!
As vozes confundiram-se num turbilhão tumultuoso, abafando o ruído surdo
das máquinas e os suspiros do vapor. De toda a parte corria gente que começava
a discutir, agitando os braços, excitando-se mutuamente com palavras febris e
cáusticas. A irritação que dormia nos peitos fatigados, despertava; escapava dos
lábios e tomava o voo, triunfante. Ao de cima da multidão pairava uma nuvem
de poeira e ferrugem; os rostos cobertos de suor estavam em fogo, a pele das
faces vertia lágrimas negras. No fundo sombrio das fisionomias, brilhavam os
olhos e os dentes.
Afinal, Pavel apareceu ao lado de Sizov e de Markotine; ouviram-no gritar:
— Companheiros!
Pelagueia viu que o filho estava pálido e que os seus lábios tremiam;
involuntariamente, quis avançar, abrindo caminho, à força; mas disseram-lhe
com mau modo:
— Ó velha, deixa-te estar!
Empurraram-na. Mas não desanimou, com os ombros e os cotovelos afastava
toda a gente e aproximava-se do filho, pouco a pouco, impelida pelo desejo de ir
ficar a seu lado.
Pavel, depois de haver soltado frases a que costumava dar um sentido
profundo, sentiu as goelas apertadas pelo espasmo resultante da grande alegria de
combater. Invadiu-o o desejo de entregar-se à força da sua crença, de arrojaràquela gente o seu coração consumido pelo ardente sonho da justiça.
— Companheiros! — repetiu, dando a esta palavra todo o entusiasmo e vigor.
— Somos nós que construímos as igrejas e as fábricas, que fundimos o dinheiro,
que forjamos os grilhões... Somos nós a força viva que nutre e diverte o mundo
inteiro, desde que nascemos até à morte...
— Isso! Isso! — exclamou Ribine.
— Sempre e em toda a parte, somos os primeiros no trabalho, enquanto nos
atiram para os últimos lugares na vida. Quem se preocupa de nós? Quem nos
quer bem? Quem nos considera como homens? Ninguém!
— Ninguém! — repetiu uma voz como se fosse um eco.
Senhor de si, Pavel passou a falar com mais simplicidade e mais calmo. A
multidão avançava lentamente para ele, como um corpo sombrio de mil
cabeças. Olhava para o rapaz com centenas de olhos atentos, respirava as suas
palavras. O ruído decrescia.
— Não teremos melhor quinhão enquanto não nos sentirmos solidários,
enquanto não formarmos uma única família de amigos, estreitamente ligados
pelo mesmo desejo: o de lutarmos pelos nossos direitos.
— Entra no assunto! — disse uma voz perto de Pelagueia.
— Não o interrompam! Calem-se! — replicaram de vários pontos.
Quase todas aquelas caras tinham uma expressão de incredulidade soez;
poucos olhares estavam fixados em Pavel com gravidade.
— É um socialista, mas não tem nada de tolo! — disse um.
— É um revolucionário! — acudiu outro.
— Fala com tesura! — afirmou um operário, forte e vesgo, dando um
empurrão em Pelagueia.
— Companheiros! Chegou o momento de resistirmos à força ávida que vive
do nosso trabalho; chegou o momento de nos defendermos. Deve cada qual
compreender que ninguém virá em nosso auxílio, se não nós mesmos. Um por
todos, todos por um: deverá ser a nossa lei, se quisermos vencer o inimigo.
— Ele diz a verdade, irmãos! — exclamou Markotine. — Escutem a verdade!
E com um gesto largo, ergueu o punho cerrado.
— É indispensável mandar chamar o diretor, imediatamente! — continuou
Pavel. — É preciso perguntar-lhe...
De súbito, dir-se-ia que um furacão caíra sobre todo o povo. Toda aquela
massa de gente ondeou como o oceano sob uma rajada; dezenas de vozes
berraram a um tempo:
— Venha o diretor!— Ele que se explique!
— Vão buscá-lo!
— Mandemos-lhe delegados!
— Não!
Tendo conseguido chegar à frente, Pelagueia olhava para o filho, sentindo-se
dominada por ele. Estava repleta de orgulho: o seu Pavel, no meio dos velhos
operários mais queridos, sendo escutado e apoiado por toda a gente!... Admirava
o seu sangue-frio, a sua simplicidade e o seu falar sem fastio e sem pragas, como
era o dos outros.
As exclamações, os gritos de revolta, as invetivas choviam como saraivada
grossa em telhados de zinco. Pavel encarava na multidão, e parecia procurar o
que quer que fosse entre os grupos.
— Delegados!
— Fale o Sizov!
— O Vlassov!
— O Ribine, que tem uns dentes terríveis!
Afinal, escolheram Pavel, Sizov e Ribine para parlamentários, e iam mandar
chamar o diretor, quando de chofre se ouviram algumas hesitantes exclamações:
— Vem aí, sem ser chamado...
— O diretor...
— Ah!... Ah!...
A multidão abriu caminho a um figurão alto, seco, de rosto comprido, e barba
em bico.
— Com licença! — dizia, afastando o povo com um movimento ligeiro, mas
sem lhe tocar. Tinha os olhos semicerrados, e, como experiente em lidar com os
homens, ia observando as fisionomias dos operários.
Estes inclinavam-se, tiravam o boné, cumprimentando-o. Ele não respondia a
estas demonstrações de respeito, semeava o silêncio e o constrangimento por
onde ia passando; sentia-se já, sob os sorrisos contrafeitos e o tom abafado das
palavras, o como arrependimento da criança, cônscia de ter feito uma tolice.
O diretor passou em frente de Pelagueia, lançou-lhe um olhar severo e parou
junto do montão de ferragem. De cima, alguém estendeu-lhe a mão: não a
aceitou. Com um movimento vigoroso e ágil, subiu, ficou à frente e perguntou
em tom frio e autoritário:
— Que significa esta reunião? Porque abandonaram o trabalho?
O silêncio foi completo por alguns instantes. As cabeças dos operários
balouçavam como espigas. Sizov agitou o boné, encolheu os ombros e baixou acabeça.
— Respondam! — berrou o diretor.
Pavel abeirou-se a ele e disse-lhe em voz alta, apontando para Sizov e Ribine:
— Nós três fomos encarregados pelos nossos companheiros de exigir que
reconsiderasse na sua resolução relativamente ao desconto do kopeck.
— Porquê? — perguntou o diretor sem olhar para Pavel.
— Porque reputamos injusto este imposto! — replicou com voz sonora.
— Portanto, não veem no meu projeto senão o desejo de explorar os
operários, e não o cuidado de melhorar a sua existência, não é verdade?
— Exato!
— E o sr. também? — perguntou, dirigindo-se a Ribine.
— Somos todos da mesma opinião.
— E o sr.? — perguntou ainda, voltando-se para Sizov.
— Eu cá... também lhe peço que não nos tire o nosso kopeck.
Depois, baixando outra vez a cabeça, Sizov sorriu contrafeito.
O diretor passou vagarosamente o olhar pela multidão e encolheu os ombros.
Em seguida olhou perscrutadoramente para Pavel, e disse:
— O sr. é, segundo creio, um homem instruído. Não compreende todas as
vantagens da minha medida?
Pavel respondeu distintamente:
— Ninguém deixaria de compreendê-las, se a fábrica esgotasse o pântano à
sua custa.
— A fábrica não trata de filantropias! — replicou. — Ordeno-lhes, a todos,
que voltem imediatamente para o trabalho.
E preparou-se para descer, tateando cautelosamente os ferros com a ponta da
bota, sem olhar para ninguém.
Ouviu-se um rumor de desaprovação.
— Que é isso? — perguntou o diretor, parando.
Calaram-se todos; apenas, a distancia, replicou uma única voz:
— Trabalha, tu!
— Se dentro de um quarto de hora não voltarem para o trabalho, multá-los-ei,
a todos! — declarou secamente.
E seguiu o seu caminho por entre a multidão, enquanto atrás dele se ia
levantando um surdo murmúrio. Quanto mais ele se afastava, mais o ruído se
tornava intenso.
— Vão lá falar-lhe!— São então estes os nossos direitos! Estupor de sorte!
Dirigiam-se a Pavel, gritando:
— Olá! Jurisconsulto! Que devemos fazer agora?
— Enquanto se tratou de falar, falaste; mas ele apareceu e mudaram os
ventos!
— Então, Vlassov! O que fazemos?
As perguntas eram cada vez mais insistentes. Pavel respondeu enfim:
— Companheiros, proponho que abandoneis o trabalho até que o diretor
renuncie ao injusto desconto.
Ergueram-se logo frases irritadas:
— Julgas que somos parvos?
— É o que se deve fazer!
— A greve?!
— Por causa de um kopeck?!
— Pois façamos greve!
— Vamos todos para o olho da rua!
— E quem trabalharia?
— Encontrariam outros operários!
— Onde? Traidores?! XIII
Pavel desceu e colocou-se ao lado da mãe. Em volta deles, todos começaram
a falar ruidosamente, a discutir, a agitarem-se, gritando.
— Não se fará a greve! — disse Ribine aproximando-se de Pavel: — o povo
embora seja sovina em se tratando de dinheiro, é muito poltrão. Não encontrarás
mais de trezentos que tenham opinião igual à tua. Não se pode revolver
semelhante esterco só com uma forquilha.
Pavel ficou silencioso. Perante ele, a multidão com a sua enorme cara negra
movia-se e observava-o como se ele lhe tivesse feito uma exigência. O seu
coração pulsava violento. Parecia-lhe que as suas palavras tinham desaparecido,
sem deixarem vestígios naqueles homens, tais como gotas de chuva ténue,
esparsas em terreno gretado por uma longa estiagem. Uns após outros, os
operários aproximaram-se dele, felicitaram-no pelo seu discurso, mas
duvidavam do êxito da greve, e lamentavam que o povo não compreendesse
nem a sua força nem os seus interesses.
O sentimento de desilusão apoderava-se de Pavel, que também já não
acreditava na sua força. Doía-lhe a cabeça, sentia-se como vazio! Dantes, nos
momentos em que ele fantasiava o triunfo da verdade que tão querida lhe era, o
entusiasmo de que se enchia o seu coração dava-lhe vontade de chorar. E agora,
tendo exprimido a sua fé diante do povo, aparecera-lhe mais pálida, impotente,
incapaz de tocar no que quer que fosse. Acusava-se, a si próprio; tinha a
impressão de haver adornado o seu sonho com vestimentas informes, sombrias, e
míseras, e que por isto ninguém lhe descobrira a beleza.
Voltou para casa triste e fatigado. A mãe e Sizov seguiam-no.
— Falas bem — dizia Ribine, — mas não chegas ao coração. É o que é!
Precisa-se lançar a faísca até ao fundo dos corações. Não será pela razão que os
captarás. É calçado muito fino e muito apertado para o povo; não lhe serve nos
pés. E ainda que servisse, o sapato ficaria acalcanhado em pouco tempo!
Sizov dizia a Pelagueia:
— Chegou o momento de nós, os velhos, irmos a caminho do cemitério!
Levanta-se um povo novo. Como temos vivido? Arrastando-nos de joelhos,
constantemente curvados para a terra. E hoje não se sabe ao certo se há
consciência do que se faz ou se o caminho novo é mais errado do que o nosso...
Em todo o caso, os de hoje não se parecem connosco. Vejam lá: os novos
falando ao diretor como de igual para igual!... Ah! Se o meu filho fosse vivo!...
Até à vista, Pavel Mikhailovitch... És um belo rapaz, tomas a defesa do povo...
Queira Deus que encontres o bom caminho, a boa saída... Deus queira!
E foi-se.
— Pois! Que todos morram! — resmungou Ribine. — Já agora, não soishomens, sois uma argamassa, boa apenas para tapar as fendas das paredes!
Reparaste, Pavel, nos que mais gritaram para que tu fosses designado como
nosso delegado? Eram os que dizem que tu és um revolucionário, um
perturbador. Ora aí tens! Pensaram que serias expulso da fábrica; era isto o que
eles queriam.
— Sob o seu ponto de vista, têm razão.
— Os lobos também têm as suas razões quando se despedaçam uns aos
outros.
Ribine estava rabugento, a voz tremia-lhe.
— Os homens não têm confiança na palavra nua e crua... É preciso
mergulhá-la no sangue...
Durante o dia todo, Pavel sentiu-se desgraçado, como se tivesse perdido
alguma coisa e pressentisse a sua própria perda sem compreender no que ela
consistiria.
De noite, quando a mãe já dormia e ele ainda estava lendo na cama, a polícia
voltou para revolver raivosamente em toda a casa, no pátio e no sótão. O oficial
amarelento portou-se, como da primeira vez, duma maneira impliquenta e
ofensiva, sentindo prazer em melindrar Pavel e a mãe. Assentado a um canto,
Pelagueia mantinha-se em silêncio, com o olhar fixo no rosto do filho. Este
tentava ocultar a perturbação, mas quando o oficial ria, os dedos do rapaz tinham
movimentos não vulgares; a mãe percebia quanto ele estava sofrendo por não
poder responder à letra aos gracejos do oficialzito. Sentia-se menos assustada do
que na primeira busca, mas era maior o seu ódio por aqueles visitantes noturnos,
vestidos de cinzento, de esporas tintinantes.
Pavel conseguiu dizer-lhe baixinho:
— Vão levar-me.
Baixando a cabeça ela respondeu:
— Percebo...
Compreendia: iam metê-lo na cadeia pelas frases que ele dirigira aos
operários. Mas estes tinham-nas apoiado, e todos iriam tomar a defesa de Pavel,
que só por pouco tempo ficaria preso.
Tinha vontade de chorar, de abraçar o filho; mas ao seu lado o oficial
observava-a com olhar malévolo, os lábios tremiam-lhe assim como o bigode, e
Pelagueia sentiu que aquele homem esperava com alegria que ela se desfizesse
em lágrimas, em súplicas, em lamentações. Reunindo todas as suas forças,
falando o menos possível, apertou a mão do filho e disse em voz baixa, retendo a
respiração:
— Até à vista, Pavel. Levas contigo tudo que precisas?— Levo. Não te dê cuidado.
— O Senhor vá contigo.
Quando o levaram, a mãe deixou-se cair num banco e soluçou docemente
com as pálpebras abaixadas. Encostada à parede, como seu marido fazia outrora,
torturada pela angústia e pelo sentimento da sua impotência em semelhante
transe, chorou durante muito tempo, fazendo passar às lágrimas a dor do seu
coração ferido. Via na sua frente, como se fosse uma mancha imóvel, uma
fisionomia amarela, de bigode delgado, olhos semicerrados, aspeto feliz. No seu
peito contorciam-se, como em negro torvelinho, o desespero e a cólera contra
quem roubava um filho a sua mãe, só porque ele procurava a verdade.
Estava frio: as gotas de chuva batiam nas vidraças, ao longo das paredes
deslizava o que quer que fosse; dir-se-ia que nas trevas, silhuetas pardas, de
grandes caras sem olhos, e de braços compridos, rondavam, espiando. E as suas
esporas tintinavam fracamente.
— Seria melhor que me tivessem levado também! — pensou.
O apito da fábrica vibrou, na sua ordem de começar o trabalho. Naquela
manhã, foi um apito vago, e hesitante. A porta abriu-se, Ribine entrou.
Aproximou-se de Pelagueia, e limpando as gotas de chuva que se lhe haviam
espalhado pela barba:
— Levaram-no?
— Sim. Malditos!
— Bonita coisa! A mim, revistaram-me, rebuscaram tudo... Injuriaram-me...
mas afinal não me prenderam. Com que então, levaram o Pavel?! O diretor deu
o sinal, a polícia obedeceu, e aqui está como se prende um homem! Entendem-
se bem uns aos outros, como os gatunos nas feiras. Uns encarregam-se de
ordenhar o povo, enquanto outros o seguram pelo focinho.
— Devem tomar a defesa do Pavel! — exclamou ela, erguendo-se. — Foi
por causa de todos que ele se comprometeu.
— Mas quem deve tomar essa defesa?
— Todos vós!
— Que ideia! Não conte com isso! Foram precisos milhares de anos para
reunir a sua força. Cravaram-nos um sem número de pregos no coração... Como
seria possível ajuntarem-nos de súbito? Necessitamos primeiro de arrancar os
nossos espinhos de ferro... São estes espinhos que impedem os nossos corações de
reunirem-se numa massa compacta.
E com um risinho, foi-se lentamente. As suas palavras cruéis e desesperadas
tinham aumentado o desgosto de Pelagueia.
— Podem matá-lo, torturá-lo...E imaginou o corpo do filho crivado de pancadas, despedaçado,
ensanguentado; e, como uma camada de argila gelada, sufocava-a o medo caído
no seu coração. A luz fazia-lhe mal aos olhos.
Não acendeu o fogão, não preparou o jantar, não tomou o chá; só muito tarde,
à noite, comeu um pouco de pão. Quando se deitou, reconheceu que nunca na
sua vida se sentira tão humilhada, tão isolada, como nua. Nos últimos anos,
acostumara-se a viver na constante expetativa do que quer que fosse importante,
feliz. Em torno dela, a gente nova movia-se, ruidosa e decidida, dominada pelo
seu filho de rosto grave, seu filho, o senhor e o criador daquela vida cheia de
inquietação, mas boa. E naquele momento em que já não o via, tudo tinha
desaparecido. XIV
O dia decorreu lentamente, seguido de uma noite sem sono. O dia seguinte
pareceu-lhe ainda mais comprido. Esperava não sabia o quê, mas ninguém veio.
Caiu a tarde, depois a noite. A chuva glacial tombava roçando pelas paredes, o
vento soprava pela chaminé, o madeiramento da casa rangia. Ouvia-se apenas a
melodia melancólica e dolorosa das gotas de água caindo do telhado, como
lágrimas. Parecia que toda a casa vacilava e que uma surda angústia gelava o
ambiente.
Bateram de manso à vidraça. Pelagueia estava acostumada a este sinal; não
se assustou; estremeceu como se lhe tivessem despertado bondosamente, o
coração. Vaga esperança fê-la levantar-se de pronto. Atirando um xaile para os
ombros, abriu a porta. Samoilov entrou, seguido de outra pessoa que ocultava a
cara na gola erguida da capa; tinha o boné descaído para os olhos.
— Viemos acordá-la? — perguntou Samoilov sem mais cumprimentos.
Fora do costume, o seu ar não era tranquilo.
— Não; eu não estava a dormir.
E olhou inquiridoramente para os recém-chegados.
Com um suspiro abafado e profundo, o companheiro de Samoilov tirou o boné
e estendeu a Pelagueia a mão forte e de dedos grossos.
— Boa noite, mãezinha! Não me reconheceu? — disse-lhe amigavelmente
como a um velho conhecimento.
— Ora?! — exclamou ela com alegria. — Iegor Ivanovitch! O sr.?!
— Eu, sim!
Tinha o cabelo comprido como um menino de coro. Iluminava-lhe a
fisionomia um sorriso de bondade; os seus olhitos pardos fitavam-se em
Pelagueia com expressão carinhosa. Assemelhava-se a um samovar no seu
corpito redondo, no pescoço grosso e nos braços curtos. A pele da cara reluzia; no
seu peito parecia pesar e restolhar alguma coisa...
— Vão para aquele quarto; eu vou vestir-me! — propôs ela.
— Temos que dizer-lhe! — respondeu Samoilov, preocupado e olhando-a de
soslaio.
Iegor passou para a divisão do lado, dizendo:
— Mãezinha, esta manhã um dos nossos amigos saiu da cadeia, onde esteve
três meses e onze dias. Viu por lá o pequeno-russo e Pavel que lhe envia muitas
recomendações; o seu filho pede-lhe que não se apoquente por causa dele, e
manda-lhe dizer que no caminho que ele escolheu, a cadeia é o lugar que serve
para o descanso; assim o resolveram as nossas autoridades sempre interessadas
pelo nosso bem-estar... Vamos agora ao que importa: Sabe quantas pessoasforam presas ontem?
— Não. Pavel não foi o único?
— Foi o quadragésimo nono... — declarou Iegor tranquilamente. — E espera-
se que ainda sejam presos uns dez... Entre outros este cavalheiro aqui presente.
— Eu mesmo! — disse Samoilov, sombrio.
Pelagueia respirava mais facilmente.
— Não está então sozinho!...
Quando acabou de vestir-se, passou ao outro quarto, sorrindo, bem disposta.
— Não os conservarão presos por muito tempo se eles são muitos.
— Diz bem! E se conseguirmos torcer o jogo dos nossos adversários, não
terão adiantado mais do que dantes. Se deixarmos de propagar agora os nossos
folhetos, os patifes da polícia notarão o caso, e perceberão que a propaganda era
feita pelo Pavel e pelos companheiros, agora seus companheiros na cadeia.
— Como? Não percebo...
— Nada mais simples, mãezinha. Às vezes a gente da polícia chega a
raciocinar com acerto... Repare: enquanto o Pavel era livre apareciam os
folhetos; metido na cadeia, desapareceram. Logo era ele quem os espalhava.
— Percebo!... — murmurou ela tristemente. — Que fazer? Ah! Deus do céu!
A voz de Samoilov veio da cozinha:
— Diabos me levem! Prenderam quase todos os nossos! É preciso continuar a
trabalhar como dantes, não só pela nossa causa, mas também para salvar os
companheiros.
— E ninguém para trabalhar!... — suspirou Iegor. — Temos folhetos
magníficos... Fui eu mesmo que os fiz. Mas como introduzi-los na fábrica? Eu cá
não sei!
— Agora, toda a gente é revistada à entrada... — explicou Samoilov.
Pelagueia adivinhava que lhe queriam alguma coisa.
— Então que fazer? — perguntou vivamente.
Samoilov parou e perguntou:
— Pelagueia Nilovna, conhece a vendedeira Korsunova?
— Conheço. Porquê?
— Fale-lhe. Talvez que ela se encarregue dos nossos folhetos.
Ela ergueu logo o braço num movimento negativo:
— Ah! Não! É uma tagarela! Não! Saber-se-ia logo que fui eu... que foi coisa
vinda da nossa casa... Não!
E de súbito, iluminada por uma ideia repentina, exclamou com alegria:— Deem-me os folhetos! Deem-mos! Eu acharei um meio... Deixem isso
por minha conta! Pedirei à Maria que me tome ao seu serviço. Tenho que
trabalhar, se quiser comer. Levarei também os jantares à fábrica, aos
operários... Deixem isso por minha conta.
Com as mãos unidas no peito, afirmava que saberia proceder sem que a
descobrissem, e concluiu com uma exclamação triunfante:
— Ah! Hão de ver que mesmo com Pavel na cadeia, a sua mão os atinge!
Todos três se sentiam de novo animosos. Iegor sorria, esfregando
rapidamente as mãos, dizendo:
— Bravo, mãezinha! Se soubesse como isso lhe fica bem! Como é para
entusiasmar!
— Se for bem sucedida, sentir-me-ei tão feliz na cadeia como se estivesse
sentado numa cadeira estofada! — declarou Samoilov, rindo.
— É um tesouro, mãezinha! — exclamou Iegor roufenhamente.
Pelagueia sorriu. Era simples: se conseguisse introduzir na fábrica os folhetos,
diriam que não era Pavel quem os distribuía. Sentindo-se capaz de desempenhar-
se de tal compromisso, Pelagueia estremecia jubilosa.
— Quando for visitar o Pavel, diga-lhe que ele tem uma boa mãe!
— Hei de vê-lo mesmo antes do dia da visita! — prometeu Samoilov,
sorrindo.
— Diga-lhe abertamente que hei de fazer quanto for necessário. Que ele o
fique sabendo!
— E se o Samoilov não for preso, como há de sabê-lo o Pavel? — perguntou
Iegor.
— Paciência! Temos que nos resignar!
E ambos entraram de rir. Quando ela compreendeu a sua tolice, riu também,
mas um tanto contrafeita.
— Quando olhamos para os nossos, não vemos bem os que lhe ficam por
detrás... — murmurou ela, a justificar-se.
— É natural! — concordou Iegor. — A propósito de Pavel: não se inquiete
nem se entristeça. Há de sair da cadeia ainda melhor do que quando para lá
entrou. Por lá descansa-se, há tempo para adquirir instrução, o que não nos
acontece quando estamos à solta. Estive preso três vezes, sem grande vontade,
mas o meu coração e a minha razão aproveitaram sempre...
— Custa-lhe respirar... — disse Pelagueia olhando para ele afetuosamente.
— Por motivos especiais... — respondeu levantando um dedo para o ar.
— Portanto, está combinado, mãezinha. Amanhã trazemos-lhe o que sabe, e
outra vez entrará em movimento a roda que aniquila as trevas seculares. Viva aliberdade da palavra, mãezinha! E viva o coração materno! Até amanhã!
— Até amanhã! — disse também Samoilov apertando com força a mão de
Pelagueia. — Eu não posso dizer palavra disso tudo à minha mãe.
Quando eles saíram, Pelagueia fechou a porta e ajoelhando-se no meio do
quarto, pôs-se a rezar, ao ruído da chuva. Rezou sem soltar dos lábios uma só
palavra; era como um pensamento muito longo e intenso; rezou por todos aqueles
que Pavel associara à sua vida. Via-os passar entre ela e as imagens dos santos;
eram simples, tão extraordinariamente aproximados uns dos outros, e tão isolados
na vida.
Logo muito cedo, foi a casa de Maria Korsunova.
A ruidosa vendedeira, com o fato engordurado como sempre, acolheu-a
compassivamente:
— Aborreces-te? — perguntou, batendo-lhe com a mão no ombro. —
Consola-te! Agarraram-no, levaram-no? Grande coisa! Que mal há nisso?
Dantes metiam uma pessoa na cadeia, quando roubava; agora é quando se diz a
verdade. Pavel disse naturalmente coisas que não se devem dizer. Mas foi para
defender os companheiros, e isto toda a gente o percebe. Não tenhas medo.
Todos sabem que ele é um belo rapaz... embora não o digam. Eu queria ir a tua
casa, mas não tive tempo. Estou sempre a cozinhar, esgoto o meu artigo, e afinal
estou certa de que virei a morrer pobre. Os amantes arruínam-me! Os
sacripantas! Comem! Comem!... Parecem baratas a devorar um pão. Apenas
tenho uns dez rublos, aparece-me um desses heréticos e rouba-mos! É isto! Má
coisa ser mulher! Que estúpida vida! É difícil viver só, e ainda mais viver
acompanhada!
— Pois olha eu vim pedir-te que me aceites como ajudante... — disse
Pelagueia, pondo um dique à catadupa das palavras.
— O quê?!
Mas quando a sua amiga lhe expôs todo o seu pensamento, meneou a cabeça
em sinal de aprovação.
— Está dito. Lembras-te quantas vezes me deste esconderijo quando o meu
marido andava à minha procura? Pois serei eu agora que te furtarei à miséria.
Cada qual deve correr em teu auxílio porque o teu filho está sofrendo por causa
de todos. É um bom rapaz! Toda a gente o diz; e todos o lastimam. Eu, cá por
mim, penso que estas prisões não trazem nenhum bem à fábrica. Se soubesses o
que por lá se diz!... Os chefes imaginam que não há de ir longe o homem que
eles morderam no calcanhar. Mas por cada um que eles atacam, há cem que se
revoltam. Deve-se ter cuidado quando se quiser tocar no povo, porque ele vai
aturando por muito tempo, mas, num belo dia, estoira! XV
Os operários logo notaram a velha. Alguns dirigiram-se a ela amigavelmente:
— Encontraste trabalho, Pelagueia?
E consolavam-na, afirmando-lhe que Pavel seria posto em liberdade dentro
em breve, pois tinha este direito. Outros comoviam o seu coração dolorido com
prudentes palavras de compaixão; outros ainda invetivavam abertamente o
diretor e a polícia e despertavam nela um eco sincero. Havia também quem para
ela olhasse com certa satisfação malévola; Isaías Gorbov, operário apontador,
disse por entre dentes:
— Se eu governasse, mandava enforcar o teu filho, para lhe ensinar a não
desnortear o povo.
Estas palavras gelaram-na mortalmente. Não respondeu, lançou apenas um
olhar àquele rosto coberto de sardas, e baixou a fronte, suspirando.
Percebia que havia no ar certa agitação; os operários ajuntavam-se em
pequenos grupos, discutiam a meia voz, mas animadamente; os contramestres,
desconfiados, rondavam por toda a parte; de vez em quando, ouviam-se
invetivas, risos irritados.
Viu então dois guardas da polícia levarem Samoilov. Uns cem operários
seguiram-no, injuriando ou troçando dos guardas.
— Vais dar um passeio, amigo? — gritou alguém.
— Honra seja ao nosso companheiro! — disse outro. — Dão-lhe uma
escolta!...
E ressoou uma saraivada de pragas.
— Ao que parece, é menos rendoso agarrar os ladrões! — berrou muito
irritado o vesgo. — Metem-se com a gente de bem!
— Se ao menos, isto fosse de noite! Mas qual! Esta canalha não tem vergonha
da luz do dia!
Os guardas iam andando depressa e com ar carrancudo, buscando não verem
nada, nem ouvirem os insultos que de toda a parte lhes atiravam. Três operários
avançaram para eles, com uma barra de ferro, gritando:
— Cuidado, pecadores!
Quando passou diante de Pelagueia, Samoilov abanou a cabeça, rindo e
dizendo:
— Vão arrastando um humilde servo de Deus!...
Ela ficou silenciosa e curvou-se profundamente comovida pelo espetáculo
daqueles rapazes honrados, inteligentes e modestos que iam para a cadeia com o
sorriso nos lábios. Sem dar por tal, começava a consagrar-lhes um compadecido
amor de mãe. E era-lhe agradável ouvir as frases de censura para os diretores,porque nelas sentia a influência do filho.
Quando saiu da fábrica, passou o dia em casa de Maria, ajudando-a, dando
atenção à sua tagarelice. Só tarde voltou para a sua casa vazia, fria, hostil. Por
muito tempo vagueou de um canto para o outro, sem saber que fazer nem onde
sentar-se. Estava inquieta vendo que Iegor ainda não viera, como prometera.
Lá fora, caíam pesados flocos pardos duma neve de outono. Colavam-se aos
vidros, deslizavam sem ruído e derretiam-se deixando rastos húmidos. Pelagueia
pensava em Pavel.
Porque batessem cautelosamente à porta, acorreu logo a puxar pelo ferrolho:
era Sachenka. Pelagueia não a via desde muito tempo; chamou-lhe logo a
atenção a gordura da rapariga.
— Boa noite! Tem estado muito longe daqui?
— Não. Na cadeia! — respondeu, sorrindo. — Ao mesmo tempo com o
Nicolau Ivanovitch. Lembra-se dele?
— Como havia de esquecê-lo? O Iegor disse-me que o tinham posto em
liberdade, mas de si não me falou, nem ele, nem ninguém.
— E para que serviria isso? Deixe-me despir antes que o Iegor venha.
— Está toda molhada!
— Trouxe os folhetos...
— Dê cá! Dê cá!
— Pronto!
Entreabriu a capa, sacudiu-a e logo caíram no chão pacotes de folhetos.
Pelagueia apanhava-os, rindo.
— E eu, que ao vê-la tão roliça, imaginei que tivesse casado e esperasse um
menino! Ah! Mas que quantidade que trouxe! E veio a pé?
— Vim.
A rapariga estava outra vez magra e esbelta. Pelagueia notou-lhe até as faces
um tanto encovadas, e que os olhos bem rasgados eram assombreados por fundas
olheiras.
— Puseram-na na rua, e em lugar de ir repoisar, faz uma caminhada de sete
quilómetros com tudo isto em cima de si!...
— Assim era preciso. Diga-me: como está o Pavel Mikhailovitch? Não lhe
custou muito?...
Falava sem olhar para Pelagueia, abaixando a cabeça para arranjar o cabelo
com os dedos trémulos.
— Não! — respondeu Pelagueia. — Oh! Aquele não se trairá!
— Tem uma saúde de ferro, não é verdade? — perguntou ainda em voz baixae ligeiramente tremelicante.
— Nunca esteve doente. Mas como está tremendo!... Espere; vou tratar do
chá; também tenho uma compota de framboesas...
— Não será mau! — disse Sachenka com um leve sorriso. — Mas para que
há de ter esse trabalho? É tarde; deixe que seja eu quem faça o chá.
— Mas está tão fatigada!... — replicou em tom de censura; e pôs-se a
acender o samovar.
Sachenka seguiu-a até à cozinha, sentou-se num banco e enclavinhando os
dedos em cima da cabeça:
— Estou fatigada, estou. Apesar de tudo, a prisão esgota. Que maldita inação!
Não há coisa mais penosa! Fica-se para ali uma semana, um mês, sem nada que
fazer... Há quem conte connosco para receber instrução, sabemos que podemos
dar-lha... e vemo-nos metidos numa jaula como animais ferozes!... É de
ressequir o coração!
— E quem vos recompensará?... — suspirou Pelagueia. Mas logo
acrescentou: — Ninguém, se não Deus! Também... a sra. não acredita nele,
naturalmente...
— Não!
— E eu não acredito em si nem nos outros! — exclamou, animando-se de
súbito.
Limpando ao avental as mãos sujas de carvão, continuou com convicção
profunda:
— Não compreendeis a nossa crença... Como pode alguém dedicar-se a
semelhante vida sem acreditar em Deus?
Sob o telheiro ouviram-se passos e o resmungar de alguém. Pelagueia
estremeceu; a rapariga pôs-se logo de pé e disse baixinho:
— Não abra! Se for a polícia, diga que não me conhece.. que bati a esta porta
por engano... que entrei aqui por acaso, que desmaiei e que a sra. me despiu para
pôr-me à vontade, encontrando então em mim os folhetos. Percebe?
— E para que hei de dizer isso? — perguntou enternecida.
— Espere!... Parece-me que é o Iegor...
Era ele, a escorrer água, estafado.
— Ah! O samovar está pronto!... — exclamou. — É o que há de melhor neste
mundo, mãezinha! Já cá está, Sachenka?
Enchia a cozinha com os sons guturais da sua voz; tirou vagarosamente o
casacão e continuou:
— Ora aí tem, mãezinha, uma rapariga muito desagradável para as
autoridades! Como um dos carcereiros a tivesse insultado, declarouterminantemente que se deixaria morrer de fome, se ele não lhe pedisse
desculpa. E durante oito dias não comeu coisa alguma, estando em riscos de
abalar desta para melhor. É bonito, não acha? E o que me diz à minha
barriguinha?
Sacudiu o ventre postiço, feito de maços de folhetos e passou ao quarto,
fechando a porta.
— O quê? Pois esteve oito dias sem comer? — perguntou Pelagueia,
admirada.
— Se era indispensável que ele me pedisse desculpa!... — respondeu, com
uma tremura de ombros friorenta.
Esta tranquilidade e esta obstinação austeras levaram ao animo de Pelagueia
o que quer que fosse semelhante a uma censura. «Ah! É assim, é assim!...»
pensou.
E perguntou ainda:
— E se tivesse morrido?
— Estaria morta, naturalmente. Afinal, o homem acabou por pedir desculpa.
Ninguém deve perdoar os ultrajes.
— Sim... Mas nós, as mulheres, somos ultrajadas durante toda a nossa vida...
— Pronto! Já larguei a carga! — informou Iegor, aparecendo. — O samovar
está pronto? Se me dá licença...
Pegou nele e passando-o para o quarto:
— O meu papá bebia pelo menos vinte copos de chá por dia; por isso passou
neste mundo setenta e três anos sossegadamente e sem nunca estar doente.
Pesava mais de cem quilos e era sacristão da aldeia de Vosskressensky...
— É filho do tio Ivan? — perguntou Pelagueia.
— Sim, sra. Como o sabe?
— É que eu também sou de Vosskressensky!
— Então somos da mesma terra! Que nome era o seu, em rapariga?
— Sereguine... Éramos vizinhos...
— É a filha do Nile, o coxo? Não conheci eu outro figurão! Quantas vezes ele
me puxou as orelhas!
Estavam de pé e riam no meio das perguntas. Sachenka olhando para ele a
sorrir, ia preparando o chá. O ruído da loiça chamou Pelagueia aos seus deveres.
— Desculpem. Começo o tagarelar e esqueço-os. É tão agradável encontrar
um patrício...
— Eu é que peço desculpa de me servir primeiro... — disse Sachenka. — Mas
já são onze horas e ainda tenho muito que andar.— Para ir para onde? Para a cidade?!
— Sim, para a cidade.
— Mas chove, é noite, está cansada. Deixe-se ficar. O Iegor dorme na
cozinha, e nós, as duas, aqui.
— Não! Tenho forçosamente que partir.
— É verdade, patrícia: é forçoso que esta menina desapareça. Conhecem-na
por cá. E se amanhã a vissem na rua, seria mau.
— E vai-se embora sozinha!
— Vai! — disse Iegor com um risinho.
A rapariga deitou ainda mais chá, pegou num pedaço de pão de centeio,
salgou-o e entrou de comê-lo, olhando pensativamente para Pelagueia.
— Admira-me como é capaz de ir sozinha. E a Natacha também... Eu cá não
era. Tenho um medo!...
— Mas olhe que ela também tem medo. Não é verdade, Sachenka?
— É.
Pelagueia lançou-lhe um olhar, murmurando:
— Como são corajosas!
Depois de ter tomado o chá, Sachenka apertou a mão a Iegor sem dizer
palavra e passou à cozinha seguida pela velha.
— Se vir o Pavel, dê-lhe muitas recomendações minhas.
Tinha já a mão no fecho da porta, quando, voltando-se rapidamente,
perguntou:
— Deixa-me beijá-la?
Sem responder, Pelagueia abraçou-a efusivamente.
— Obrigada! — disse a rapariga, a meia voz.
E saiu, meneando a cabeça.
Ao voltar ao quarto, a velha olhou com ansiedade para o lado da janela. Nas
trevas espessas e húmidas caíam lentamente flocos de neve meio derretidos.
Vermelho e suando, Iegor sentara-se, com as pernas afastadas e soprando
ruidosamente ao chá. Sentia-se satisfeito.
A velha sentou-se também, e olhando tristemente para ele:
— Pobre Sachenka!... Como chegará ela ao fim do caminho?...
— Cansada! A cadeia serviu-lhe de provação... Era dantes mais robusta...
Depois, não foi educada como nós, à bruta... Parece-me que já tem os pulmões
atacados.
— Quem é ela?— Filha dum proprietário rural. O pai é riquíssimo e... canalhíssimo.
Naturalmente, mãezinha, já sabe que eles se amam deveras e que querem casar.
— Quem?
— O Pavel e ela. É isto! Mas afinal não o conseguem. Quando ele está em
liberdade, está ela na cadeia, e vice-versa.
— Não sabia, não... Pavel nunca fala da sua pessoa.
E ainda mais se apiedou da rapariga.
— O sr. devia tê-la acompanhado! — lembrou com certa hostilidade
involuntária.
— Impossível! — respondeu tranquilamente. — Tenho uma caterva de coisas
que fazer por cá, e para dar conta de tudo hei de andar o dia inteiro. É uma
ocupação muito desagradável quando somos asmáticos.
— Que bela rapariga! — exclamava, pensando vagamente no que Iegor lhe
dissera.
Vexava-a ter sabido aquela notícia por outrem e não pelo seu filho; mordeu os
beiços fortemente e abaixou as pálpebras.
— Sim! — disse Iegor. — Noto que ela lhe causa piedade. Faz mal! Se
começa a ter piedade dos revoltados não lhe chega o coração para todos.
Francamente, ninguém tem boa vida... Há tempos, um dos meus companheiros
regressou do exílio; quando chegou a Níjni, a mulher e o filho esperavam-no em
Smolensk, e quando ele chegou a Smolensk, já eles estavam presos em Moscovo.
Agora é a mulher que vai exilada para a Sibéria. Eu também tive mulher,
também, e era uma excelente criatura, mas cinco anos desta vida bastaram para
a atirar para a cova.
Bebeu dum trago o seu copo de chá e continuou a discorrer. Contou os anos e
meses que passara preso, e no exílio, as suas catástrofes, a fome na Sibéria, os
massacres nas prisões... A velha ouvia-o atentamente, admirando-se da
simplicidade tranquila com que ele descrevia aquele viver cheio de perseguições
e de torturas.
— Bem! Vamos agora ao nosso negócio...
A voz transformou-se-lhe, a fisionomia tornou-se grave. Perguntou como
imaginava ela poder introduzir na fábrica os folhetos, e Pelagueia ficou
surpreendida ao perceber que ele conhecia a fundo todos os meios para chegar
ao desejado fim.
Depois de combinarem tudo, voltaram a falar da sua aldeia; enquanto Iegor
gracejava, a velha ia percorrendo em pensamento o passado, que lhe parecia
semelhante a um pântano com monótonos montículos, e com faias, pinheirinhos
e bétulas brancas balouçando mansamente ao vento nas pequeninas colinas. As
bétulas cresciam muito devagar, e depois de terem vivido cinco ou seis anosnaquele solo pútrido e movediço, caíam e decompunham-se... A velha
considerava este quadro com indefinível e misteriosa mágoa. Na sua frente
ergueu-se uma silhueta de rapariga de feições acentuadas e cheias de obstinação.
Ia, sob os flocos de neve, fatigada e solitária... E o seu filho estava encerrado
numa pequena casa, cuja janela tinha grades de ferro... Talvez àquela hora ele
não dormisse; pensava, por certo. Mas não estaria pensando em sua mãe, porque
havia alguém que lhe era mais querido... Como uma nuvem de variegadas cores
e informe, avançavam para ela os dolorosos pensamentos, invadindo-lhe a alma
com violência.
— Deve estar cansada, mãezinha! Vamo-nos deitar! — disse Iegor, sorrindo.
Desejou-lhe uma boa noite, e passou à cozinha, caminhando de esguelha,
com precaução, com o coração cheio de ardente amargura.
Na manhã seguinte, ao tomar o chá, Iegor disse-lhe:
— E se a apanharem, e lhe perguntarem onde adquiriu os folhetos, o que
responde?
— «Isso não é da sua conta!»... Aqui está o que eu respondo.
— Por esse ajuste é que eles não estão! O importante para eles é isso mesmo,
e sobre o assunto hão de interrogá-la demoradamente.
— Não direi uma palavra!
— Metem-na na cadeia!
— Que me importa! Graças a Deus, terei ao menos servido para alguma
coisa! A quem faço eu falta? A ninguém. E segundo dizem, já não torturam os
presos...
— Hum!... Não a torturarão. Mas uma boa mulher como a sra. deve ter
cuidado em si.
— Não me parece que seja consigo que possam aprender isso.
Depois de ter dado alguns passos, em silêncio, Iegor aproximou se dela.
— É custoso, patrícia! Sinto que há de custar-lhe muito!
— Todos estamos sujeitos!.. Talvez seja mais fácil para os que têm uma
compreensão clara... Enfim, eu não compreendo bem, mas alguma coisa sei do
que quer a nossa boa gente.
— E desde que o sabe, mãezinha, é útil a todos, a todos!
Pelo meio-dia, Pelagueia, tranquila e importante, meteu um maço de folhetos
no seio. Vendo a destreza com que ela os ocultava, Iegor deu um estalido com a
língua e exclamou satisfeito:
— Sehr gut! como dizem os alemães ao esvaziarem um barril de cerveja. A
literatura não a transformou: continua sendo uma mulher como se quer! Os
deuses protegem a sua empresa!Meia hora depois, com o mesmo sangue-frio e acurvada ao peso da comida
que levava para os operários, Pelagueia chegava à porta da fábrica. Dois
guardas, irritados pela troça dos operários com quem trocavam doestos,
apalpavam sem cerimónias todos os que entravam no pátio. Um agente de
polícia passeava não distante dali, bem como um homem de olhar vago, pernas
curtas, e cara vermelhaça. A velha observou este, de soslaio, enquanto passava o
fardo para o outro ombro; adivinhava que ele era um espião.
Um rapagão de cabelos encaracolados, com o boné para a nunca, gritava aos
guardas que o revistavam:
— Procurem na cabeça e nas algibeiras, seus diabos!
Um dos guardas respondeu:
— Não és cara para teres na cabeça o que quer que seja... a não ser piolhos!
— Pois nesse caso, catem-nos, que é trabalho digno de vós!
O espião lançou-lhe um mau olhar, e escarrou para o chão.
— Deixem-me passar! — pediu Pelagueia. — Não veem que a minha carga
é pesada? Trago o corpo quebrado...
— Vá! Vá! Pode passar mas não grite tanto! — respondeu o guarda com mau
modo.
Chegando ao seu lugar, Pelagueia pôs no chão as panelas da sopa e olhou em
volta, limpando o suor.
Dois serralheiros, os irmãos Gussev, vieram logo; o mais velho, Vassili,
perguntou-lhe em voz retumbante, franzindo o sobrolho:
— Temos hoje empadas?
— Amanhã! — respondeu logo.
Eram as palavras convencionadas. A fisionomia dos dois homens abriu-se.
Incapaz de subjugar-se, Ivan exclamou:
— Ah! Como tu és boa!
Vassili agachou-se, observando uma das panelas, e ao mesmo tempo um
maçinho de folhetos deslizou-lhe para o peito.
— Ó Ivan, para que havemos de ir comer a casa? Jantemos aqui! — E meteu
os folhetos nos canos das botas. — Deve-se proteger a nova vendedeira.
— Dizes bem! — E desatou a rir.
Pelagueia apregoava de quando em quando, continuando a olhar
prudentemente em volta:
— Quem quer sopa? Aletria quente! Carne assada!
Pouco a pouco, ia tirando do seio mais folhetos, entregando-os
cautelosamente aos dois irmãos. Sempre que isto acontecia, parecia-lhe ver desúbito na frente o rosto do oficial da guarda, como uma nódoa amarela,
semelhante à luz dum fósforo num quarto escuro. E, em pensamento, ela atirava-
lhe estas palavras, repassadas de satisfação:
— Chucha, tiozinho!
E ao passar mais folhetos, pensava ainda:
— Anda! Chucha mais estes!
Quando os operários se aproximavam, de prato na mão, Ivan Gussev ria com
estrondo; Pelagueia suspendia a faina de passar os folhetos, deitava nos pratos
sopa de ervas ou de aletria, enquanto Vassili lhe dirigia gracejos.
— Olhem que é muito hábil, a tia Pelagueia!
— A miséria até nos ensina a apanhar ratos... — disse em tom sorna um
fogueiro. — Tiraram-lhe aquele que lhe dava o pão... Canalhas! Pois venham de
lá três kopecks de aletria. Coragem, boa velha! Tudo há de acabar em bem!
— Obrigado por essa consolação! — respondeu ela sorrindo.
Ao que ele retorquiu afastando-se:
— Não me custa nada!...
— Mas não vejo a quem ela aproveite! — replicou um ferreiro, rindo.
E acrescentou, encolhendo os ombros:
— É isto a vida, rapazes! Ninguém a quem dirigir com proveito palavras de
consolação... ninguém é digno delas... não achas?
Vassili ergueu-se, abotoando cautelosamente o casacão:
— A comida estava quente, e, apesar disto, estou com frio.
Afastou-se, assim como o irmão, assobiando.
Pelagueia continuava apregoando, sorrindo amável:
— Sopa quente! Aletria! Sopa de ervas!
Ia pensando em que contaria ao filho a sua primeira experiência. A cara
amarelenta do oficial, irritado e estupefacto, aparecia-lhe constantemente ao
espírito; o bigode negro movia-se confusamente, e sob o lábio superior, contraído
por uma expressão de cólera, brilhava o marfim dos seus dentes cerrados. Como
um passarinho, no coração da velha adejava e trinava uma alegria intensa. E
continuava dizendo em pensamento:
— Chucha! Chucha ainda mais folhetos!... XVI
Durante todo o dia um sentimento novo para ela lhe ameigou a alma. À noite,
concluído o seu trabalho, e quando estava tomando o chá, o tropel de um cavalo
soou sob a janela, e ouviu-se uma voz conhecida. Pelagueia levantou-se, rápida,
e correu à cozinha para abrir a porta: alguém avançava a passos largos. Sentiu-se
perturbada, encostou-se ao umbral e empurrou a porta com o pé.
— Boa noite, mãezinha! — E duas mãos magras e compridas poisaram-lhe
nos ombros.
Invadiu-a o desgosto da desilusão e ao mesmo tempo a alegria de tornar a ver
o recém-chegado, André. E estes dois sentimentos fundiram-se em imensa onda
ardente que a arrebatou, atirando-a de encontro ao peito do pequeno-russo.
Este abraçou-a com força; as mãos tremiam-lhe. Pelagueia chorava
brandamente, sem falar enquanto André lhe acariciava os cabelos, dizendo-lhe
com a sua voz sempre cantante:
— Não chore, mãezinha, não fatigue o seu coração! Dou-lhe a minha palavra
de honra que em breve ele será posto em liberdade. Não têm nenhuma prova
contra ele, os companheiros não deram com a língua nos dentes.
E envolvendo com os seus grandes braços os ombros de Pelagueia levou-a
para a maior divisão da casa; ela apertava-se contra ele com o movimento
rápido e assustadiço dum esquilo; depois aspirou com sofreguidão as palavras de
André.
— O Pavel manda-lhe muitas recomendações. Está de saúde e satisfeito
quanto é possível. Na cadeia não se vive à larga. Foram presas mais de cem
pessoas, aqui e na cidade; metem aos três e aos quatro em cada cela. Nada há a
dizer da direção da cadeia; não são maus; são apenas coagidos: os diabos da
polícia dão-lhes tanto que fazer!... Por consequência a severidade é pouca.
Dizem-nos constantemente: «Estejam mais sossegadinhos, senhores, não nos
deem sensaborias!...» Assim, as coisas vão às mil maravilhas. Podíamos falar
uns com os outros, trocar os nossos livros, dividir a nossa comida. Que
encantadora cadeia! É velha e suja, mas suave e levezinha. Os criminosos de
direito comum eram também uma boa gente; prestavam-nos muitos serviços.
Deram-me a liberdade e ao Bukine e ainda a mais quatro, porque os lugares não
chegavam. E dentro em breve hão de pôr na rua o Pavel. É mais do que certo. O
Vessovtchikov é que há de ficar por lá mais tempo, porque estão muito irritados
contra ele. Insulta toda a gente, a todo o momento. Os guardas não o podem ver.
Há de acabar por ser julgado, se não lhe derem uma sova. O Pavel diligencia
sossegá-lo: «Cala-te, Nicolau; para que servem os teus insultos? Não consegues
que eles se façam melhores!» Ao que responde aos berros: «Hei de arrancar da
terra estas chagas!» O Pavel porta-se muito bem: é firme e ao mesmo tempo
comedido com todos. Afianço-lhe que dentro em pouco põem-no na rua.— Dentro em pouco!... — repetiu ela, sorrindo. Ah! Sim! Dentro em pouco!
— Verá! Vamos ao chazinho! O que tem feito nestes últimos tempos?
André contemplava-a risonho, muito próximo do coração dela. Na
profundeza azul dos seus olhos redondos brilhava uma como estrela de amor e de
tristeza.
— Quero-lhe muito, André! — exclamou com um longo suspiro; e ficou-se
olhando para o rosto magro dele, coberto de pelos.
— Um poucochinho já me bastaria. Sei que me estima, sim. Tem uma
grande alma, pode estimar a todos.
— Não! Quero-lhe muito em especial. Se o André tivesse mãe, haveriam de
invejar-lhe tal filho.
Ele meneou a cabeça, esfregou vigorosamente as mãos, e disse a meia-voz:
— Eu também tenho mãe... também... algures...
— Sabe o que eu fiz hoje?
E, com a voz trémula pela satisfação, contou vivamente como tinha
conseguido meter os folhetos na fábrica.
A princípio, ele esbugalhou os olhos, surpreso; depois bateu na testa com o
dedo e exclamou, cheio de alegria:
— Oh! Mas isso é sério! O Pavel vai ficar radiante! Muito bem, mãezinha!
Isso é tão útil para o Pavel, como para os que foram presos com ele!
Fazia estalar os nós dos dedos, satisfeitíssimo, assobiava, balouçava-se na
cadeira. A sua alegria ecoava poderosamente na alma de Pelagueia.
— Meu querido André, quando penso na minha vida!... Ai! Meu Deus! Para
que tenho eu vivido? Para trabalhar e levar pancada! Não via mais ninguém
senão o meu marido; não conhecia mais nada do que o medo. Não vi como o
Pavel cresceu... nem mesmo sei se o amava enquanto o meu marido era deste
mundo. Todos os meus pensamentos, todos os meus cuidados, pertenciam a uma
coisa única: alimentar aquele animal selvagem, para que andasse satisfeito e
cheio, para que não se zangasse e me poupasse à pancada, uma vez ao menos.
Mas não me recordo de que ele compreendesse isto. Batia-me com tal violência,
que parecia estar castigando não a sua mulher, mas sim aquela contra quem
andava irritado. Assim vivi vinte anos. Do que fui antes de casar nem já me
lembro. Quando tento recordar-me, nada vejo: é como se estivesse cega. Com o
Iegor Ivanovitch — somos da mesma aldeia — conversei ultimamente e a
respeito destes e daqueles... recordava-me das casas, revia as pessoas, mas não
me lembrava da maneira como viviam, o que diziam, o que lhes acontecera.
Lembro-me dos incêndios, de dois incêndios... O meu marido tanto me bateu,
que de mim sacudiu todas as recordações. A minha alma era hermeticamente
fechada; tornou-se depois cega e muda.Resfolegou demoradamente, como um peixe fora de água; curvou-se para a
frente, e continuou:
— Quando ele morreu, agarrei-me ao meu filho, que começou a preocupar-
se com essas coisas... Foi então que tive compaixão dele. «Como hei de viver
sozinha, se ele morrer?» perguntava a mim mesma. Quantos receios! Quantas
angústias! O meu coração despedaçava-se, quando eu pensava na sorte do
Pavel!
Calou-se por instantes, meneou a cabeça, e continuou:
— É impuro o nosso amor, o das mulheres! Amamos aquilo de que
precisamos... Quando o vejo pensar em sua mãe... Que falta lhe faz ela? E
aqueles que sofrem pelo povo, que são metidos na cadeia ou mandados para a
Sibéria, que morrem ou são enforcados por lá... essas raparigas que andam
sozinhas de noite por cima da neve, da lama, e à chuva, que andam sete
quilómetros para virem ver-nos... o que é que as leva a isto? É o amor, mas um
amor puro! Têm a fé... a fé...! Eu não sei amar assim; amo o que me diz
respeito, o que me é próximo!...
— Tem razão! Todos amam o que lhes fica ao alcance, mas, para uma
grande alma como a sua, do longe faz-se perto. Pode amar muito, porque tem
um grande amor materno.
— Deus queira! Sinto que há de ser bom viver assim. Por exemplo, estimo-o,
André, talvez mais do que o Pavel... Ele é tão reservado! Olhe: quer casar com a
Sachenka e nunca me disse uma palavra, a mim, sua mãe!
— Não é verdade! Sei que não é verdade! Ama-a, e ela também o ama.
Quanto a casarem, não. Ela quereria, mas o Pavel...
— Ah!... — exclamou ficando a olhar tristemente para André. — É isso!
Deve-se renunciar a si mesmo.
— O Pavel é um homem extraordinário! Um caráter de ferro.
— E agora... preso! Mas a minha alma transformou-se, abriu os olhos, vê.
Enquanto houver ricos, poderosos, o povo não obterá justiça, nem alegria, nada!
Não é isto, André?
Ele levantara-se pensativo.
— É isso mesmo! Havia em Kertch um rapaz judeu que fazia versos, e que
uma vez disse assim:
Podem assassinar os inocentes,
Que a força da verdade os ressuscita!
Ele mesmo foi assassinado pela polícia, em Kertch, mas isso que importância
teve? Conhecia a verdade e semeara-a no coração dos homens. Ah! Pelagueia!
A sra. é também uma criatura condenada à morte... Ressuscitou. O poeta sabia oque dizia.
— Falo, falo, e sinto-me, e não creio nos meus ouvidos. Hoje penso em todos.
Não compreendo talvez muito bem isso em que andam metidos... mas todos sinto
próximo de mim, e desejo a felicidade de todos, a sua principalmente, meu
André!
Ele aproximou-se dizendo:
— Obrigado. Não falemos mais de mim.
E pegando-lhe na mão, apertou-a com força e voltou o rosto para o lado.
Fatigada pela comoção, Pelagueia começou de lavar a loiça vagarosamente,
enquanto o pequeno-russo, passeando pelo quarto, ia falando.
— Mãezinha, deve tratar de amansar o Vessovtchikov! O pai está com ele na
mesma cadeia; é um velhote repelente. Quando o filho o vê, pela janela, insulta-
o. Não é bonito! O rapaz é bom, gosta dos cães, dos ratos, de todos os seres,
menos dos homens! Ora veja até que ponto pode ser corrompida uma alma
humana!
— A mãe desapareceu, sem dar novas nem mandados. O pai é um bêbedo...
— disse Pelagueia, pensativa.
Quando André foi deitar-se, fez-lhe no peito o sinal da cruz, sem que ele desse
por isso. Meia hora depois, perguntava, baixinho:
— Já dorme, André?
— Não. Porquê?
— Nada. Boa noite.
— Obrigado, obrigado! — respondeu, reconhecido. XVII
Quando no dia seguinte ela chegou à porta da fábrica, carregada com o seu
fardo, os guardas detiveram-na rudemente, mandaram-na pôr no chão tudo o
que trazia e examinaram-na atentamente.
— Olhem que a sopa arrefece! — disse, tranquila, enquanto a apalpavam
sem cerimónia.
— Cala-te!
O outro disse, dando levemente com o ombro no camarada.
— Se eu te afirmo que os atiram cá para dentro por cima do muro!...
O velho Sizov foi o primeiro a aproximar-se dela, perguntando-lhe em voz
baixa:
— Ouviste?
— O quê?
— Os folhetos tornaram a aparecer. As prisões e as buscas não serviram para
nada. O meu sobrinho Mazine está preso, o teu filho também, e afinal os folhetos
continuam a ser distribuídos.
E concluiu, passando a mão pela barba:
— O caso não está nas prisões, mas sim nos pensamentos. E os pensamentos
não são coisa que se agarre como quem apanha pulgas. Porque não vens tu à
nossa casa? É aborrecido tomar o chá sozinha.
Agradeceu. Apregoando sempre, ia ativando o movimento cheio de
animação que havia na fábrica. Os operários pareciam contentes; formavam-se
grupos, as vozes eram excitadas; pairava no ar um como sopro de audácia. Ora
dum canto, ora doutro, partiam exclamações aprovativas, gracejos pesados e até
ameaças. A figura avantajada do Gussev aparecia aqui e ali; o irmão seguia-o,
rindo. Um mestre marceneiro chamado Vavilov e o apontador Isaías passaram
diante de Pelagueia sem se apressarem. Este último disse vivamente:
— Olha, Ivan Ivanovitch: riem, andam satisfeitos, embora o caso possa trazer
a destruição do império, como disse o sr. diretor. O necessário não é mondar,
mas sim semear.
Vavilov, com os braços cruzados nas costas, apertava fortemente os dedos.
— Imprimam tudo o que quiserem, cães do diabo! Mas não se metam em
falar da minha pessoa!
Vassili Gussev aproximou-se de Pelagueia.
— Dá cá de comer. O que tu vendes é bom.
Depois, baixaram a voz:
— Vê, mãezinha, que o nosso fim está conseguido!Ela disse que sim com a cabeça. Sentia-se feliz por lhe falar em segredo
aquela criatura que tinha tão má fama no bairro; e ao notar a efervescência que
ia pela fábrica, dizia a si mesma, satisfeita:
— E pensar que se não fosse eu!...
Três operários pararam perto dela; um disse, a meia voz:
— Não encontrei...
— Se conseguíssemos lê-lo!... Eu nem mesmo sei soletrar; mas percebo que
ele é útil.
O terceiro, olhou em volta, e depois propôs:
— Vamos para o pé dos fornos de fundição; eu mesmo o leio.
— Os folhetos vão fazendo o seu efeito!... — cochichou Gussev a Pelagueia.
Ela voltou para casa, satisfeitíssima, pois tinha visto com os seus olhos que as
proclamações atingiam o fim desejado.
— Os operários lamentavam-se de serem ignorantes. Quando eu era
rapariga, sabia ler, mas depois esqueci tudo.
— É tornar a aprender! — disse André.
— Na minha idade! Isso até dava vontade de rir!
Mas André pegou num livro e perguntou, apontando para uma letra.:
— Que é isto?
— Um R! Respondeu, rindo.
— E isto?
— Um A.
E depois de compreender que o sorriso dele nada tinha humilhante nem
irónico:
— Pensa, na verdade, eu instruir-me, André?
— E porque não? Tentemos. Já que uma vez aprendeu, ser-lhe-á agora fácil.
Se o conseguirmos, tanto melhor; se não, paciência.
E a lição continuou.
Dedicando-se com toda a boa vontade; mexendo os sobrolhos, procurava
recordar-se das letras esquecidas; tanto se mergulhara no estudo, que não se
lembrava de nada mais; os seus olhos fatigaram-se dentro em pouco, e neles se
acumularam as lágrimas que o cansaço provocava.
— Aprendo a ler! — exclamou, soluçando... — na hora em que só devia
pensar na morte.
— Não chore! Há milhares de criaturas que podiam instruir-se ainda mais, e
todavia vegetam como brutos, embora se gabem de que vivem bem... E o que há
na sua existência que seja bom? Sempre a mesma vida: trabalhar e comer. Devez em quando, fazem filhos: a princípio acham-lhes graça, mas quando eles
começam também a comer, entram de embirrar com eles, e dizem-lhes:
«Vejam lá se crescem depressa, seus comilões, e se começam a trabalhar!»
Nunca a sua alma é animada por uma alegria, por um pensamento que dê júbilo
ao coração. Uns mendigam sempre, como os pobres, os outros fazem-se ladrões.
Inventaram-se leis infames, entregaram a guarda do povo a umas criaturas a
quem disseram: «Obriguem a que respeitem as nossas leis, que nos permitem
sugar o sangue humano.» Se o homem não cede quando o comprimem, metem-
lhe à força, nos miolos, preceitos que brigam com a razão.
Encostado à mesa, fitava o olhar em Pelagueia, continuando:
— Mas os outros, como o seu filho, são homens que libertam o corpo e o
cérebro. E a mãezinha também se consagrou a esse trabalho, dentro das suas
forças.
— Eu?!
— Sim. É como a chuva. Cada gotinha vai alimentar um grão de trigo. E
quando souber ler...
Levantou-se; e a rir:
— O Pavel é que há de ficar espantado, quando voltar!...
— Ah! Meu André! Tudo é fácil enquanto se é novo; mas quando se é velha...
À noite, o pequeno-russo saiu. Pelagueia foi fazer meia, mas, de súbito,
fechando-se bem por dentro, tirou da estante um livro, encostou-se à mesa,
acurvou-se sobre ele, e os seus lábios começaram a mover-se... Quando vinha da
rua algum ruído, fechava o livro, a tremer, e punha o ouvido à escuta. E ficava-
se a soletrar, mentalmente:
— L... A... V... I... A... XVIII
Bateram à porta. Foi pôr o livro na estante.
— Quem é?
— Eu.
Ribine entrou. Tendo trocado os cumprimentos, alisou a barba
demoradamente, olhou para o quarto, e disse:
— Dantes deixavas entrar toda a gente, sem perguntares quem era... Estás
sozinha?
— Estou.
— Julguei que estivesses com o André. Vi-o hoje. A cadeia não corrompe o
homem. O que corrompe mais do que tudo é a estupidez.
Passou ao quarto e sentou-se.
— Venho dizer-te alguma coisa. Tive uma ideia...
A sua gravidade e o seu ar misterioso sobressaltaram Pelagueia, que se
sentara diante dele.
— Tudo custa dinheiro! — começou. — Ninguém nasce nem morre
gratuitamente. Ora os folhetos também custam dinheiro. Sabes de onde ele vem
para pagar os folhetos?
— Não sei.
— Nem eu. Em segundo lugar: quem os compõe?
— Sábios...
— Gente que está acima de nós. Portanto são os grandes que compõem os
folhetos. Ora se os folhetos são contra eles, que interesse têm eles em publicá-los,
gastando para isso o seu dinheiro?
Pelagueia fechou os olhos; e ao reabri-los:
— O que pensas? Diz!
— Ah! — exclamou, movendo-se na cadeira como um urso. — Senti
também um calafrio quando me veio este pensamento!...
— O que há então? Soubeste alguma coisa?
— É tudo um embuste! Entendo que é um embuste! Eu compreendo a
verdade, e não quero entender-me com os ricos. Quando precisam de nós,
atiram-nos para a frente, para que os nossos corpos lhes sirvam de ponte.
Estas palavras acerbas confrangiam o coração da pobre velha.
— Ó Senhor! — exclamava angustiada. — E o Pavel que não compreendeu
nada disso? Pois dar-se-á o caso de que todos aqueles, que vinham da cidade,
fossem...?
As fisionomias graves de Nicolau Ivanovitch, de Iegor, de Sachenka,apareceram-lhe na frente.
— Não! Não!... Não posso acreditar. São criaturas animadas só pela sua
consciência, sem más intenções...
— Não é para esses que devemos olhar, mas para mais alto. Os que mais se
nos aproximam sabem naturalmente tanto como nós. Creem que procedem
bem... amam a verdade. Mas talvez que por detrás deles haja outros que não
pensem da mesma maneira. O homem não trabalha contra si próprio, não tendo
para isso fortes razões.
E acrescentou, com a tacanha certeza do campónio, eivado de uma
incredulidade secular:
— Das mãos dos grandes e dos ilustrados nunca nos virá coisa boa!
— O que resolves, então?
— Que não devemos aliar-nos aos que estão acima de nós! Ora aqui está!
Tornou a calar-se, como se se dobrasse sobre si mesmo.
— Vou pôr-me a caminho. Desejava ter-me reunido aos companheiros e
trabalhar com eles. Sirvo para isso; sou teimoso, e não muito parvo; sei ler e
escrever. E principalmente percebo o que se deve dizer a essa gente... Vou pôr-
me a caminho; é o que devo fazer, já que não posso acreditar. Vou sozinho por
essas cidades e aldeias a sublevar o povo, a quem cumpre correr à conquista da
sua liberdade. Se souber compreender, encontrará para isso uma saída. Tentarei
fazê-lo compreender que em ninguém deve ter esperança senão nele próprio.
Ela teve piedade de Ribine, a sua sorte assustava-a; parecera-lhe sempre
antipático; e naquele momento sentia-o mais perto dela, mais familiar.
— O Pavel vai por um caminho... e ele vai por outro. O Pavel terá menos
trabalho... — murmurou involuntariamente, acrescentando: — Serás preso!
Ribine olhou para ela e replicou:
— Mas soltar-me-ão!
— A gente do campo será a primeira a entregar-te... e poderás ficar preso
por muito tempo...
— Acabarei por vir para a rua, e voltarei à mesma. Quanto aos campónios,
entregar-me-ão duas ou três vezes, mas hão de acabar por compreender que
farão melhor escutando-me. Dir-lhes-ei: «Não acreditem em mim: oiçam-me
apenas!» E se me ouvirem, acabarão por acreditar-me.
— Vais morrer!.. — disse tristemente a velha, meneando a cabeça.
Ele fitou-a com um olhar cheio de interrogação. O seu corpo vigoroso estava
inclinado para a frente; as mãos apoiavam-se na cadeira; o seu rosto moreno
empalidecera, enquadrado na barba negra.
— Sabe o que Jesus disse do grão de trigo? «Não morrerá, mas ressuscitaráem uma nova espiga!» O homem é um grão de verdade... E eu ainda não estou
às portas da morte...
Levantou-se, vagaroso.
— Vou ate à taverna. Quando o André voltar, repete-lhe o que eu te disse?
— Sim.
Passaram à cozinha e trocaram algumas frases curtas, sem olharem um para
o outro.
— Adeus...
— Adeus... Quando recebes a tua féria?
— Já a recebi.
— E quando partes?
— Amanhã de manhãzinha. Adeus!
Curvou-se, e saiu um pouco assustado, como contra vontade. Durante uns
momentos, a velha ficou à porta prestando o ouvido ao andar que se afastava...
Depois foi até ao quarto e pôs-se a olhar pela janela. Densas trevas se apegavam
às vidraças, parecendo esperar o que quer que fosse que pudesse tragar as suas
fauces insondáveis.
— Vivo de noite! — pensou. — Sempre de noite!
André chegou dali a pouco, animado, alegre. Quando a velha lhe falou de
Ribine, exclamou:
— Parte?! Pois que vá! Que vá espalhar pelas aldeias a verdade, e acordar o
povo. Era-lhe difícil ficar connosco. Tem na cabeça umas ideias especiais, que
não lhe deixam adotar as nossas.
— Falou dos ricos, dos nobres, dos ilustrados. Parece haver no caso alguma
coisa torta!... — disse ela prudentemente. — Oxalá não sejamos enganados!...
— Isso dá-lhe cuidado, mãezinha? Ah! O dinheiro! Não é? Vamos vivendo
por conta de outrem. O Nicolau Ivanovitch ganha setenta e cinco rublos por mês,
e entrega-me cinquenta. Os outros fazem o mesmo. Os estudantes, que passam
privações, cotizam-se também, e conseguem mandar-nos pequenas quantias,
acumuladas kopeck a kopeck. É isto! Há homens para tudo: uns enganam-nos,
outros não nos deixam avançar; mas há os melhores, os que nos acompanham no
caminho da vitória!
E esfregando as mãos:
— Mas o triunfo ainda vem longe, ainda! Enquanto não chega, vamos
organizar um primeiro de maiozinho! Há de ser divertido!
As suas palavras e a sua animação tranquilizaram Pelagueia. Ele, passeando a
passos largos continuava:— Se soubesse que extraordinária sensação eu tenho às vezes!... Parece-me
que por toda a parte por onde vou, os homens são companheiros, incendidos na
mesma fé, que todos são bons. Todos se compreendem sem precisarem de falar,
ninguém ofende o próximo. Vive-se em boa harmonia, cada alma canta a sua
canção, e, como regatos, todas as canções se reúnem em um único rio, que vai
avançando, majestoso e grave, para o mar onde brilham os clarões da vida livre.
E digo com os meus botões que isto há de realizar se, que isto não pode deixar de
ser, se nós quisermos que seja! E então o meu coração transborda de alegria;
tenho vontade de chorar, tal é a minha felicidade!
A velha nem se movia, para não o interromper. Escutara-o sempre mais
atentamente do que aos seus companheiros porque ele falava com mais
simplicidade, e as suas palavras iam mais fundo à alma. O Pavel também era
para a frente que olhava, mas mantinha-se solitário e nunca dizia o que via.
Parecia a Pelagueia que André olhava sempre para o futuro com o coração: a
lenda do triunfo de todas as criaturas surgia sempre nos seus discursos. E aos
olhos de Pelagueia aquela brilhante lenda iluminava-lhe a compreensão da vida e
do trabalho a que o filho e os seus companheiros se tinham entregado.
— É humilhante isto! — exclamou ele de súbito. — Não se pode acreditar no
homem. Precisamos até de temê-lo e de odiá-lo. O homem desdobra-se, a vida
parte-o em dois. Como seria possível amar somente? Como perdoar àquele que
se arroja sobre vós, como um animal selvagem? Impossível! Não falo por mim.
Suportaria todos os ultrajes; mas não quero ter conivência com os opressores; não
quero que se sirvam dos meus costados para aprenderem a bater nos outros.
Uma expressão de frieza acudiu ao seu olhar, a voz tornou se-lhe mais firme.
— Não devo perdoar o que seja mau, ainda quando não me prejudique. Não
sou só eu na terra. Admitamos que hoje me deixo insultar sem responder ao
insulto; hei de rir talvez, porque não me senti ferido; mas amanhã o insultador,
que experimentou em mim a sua força, vai tirar a pele a outro. Por isto não
devemos considerar toda a gente da mesma maneira; convém reprimir o
coração, ver quem são os inimigos e quem são os amigos. É justo, embora não
seja divertido!
Sem saber porquê, Pelagueia pensou em Sachenka e no oficial. Disse com um
suspiro:
— Como se há de fazer pão com trigo que não foi semeado?
— Esse é o mal!
No espírito da velha desenhava-se a figura de seu marido, semelhante a uma
grande pedra coberta de musgo. Fantasiou André casado com Natacha, e o seu
filho casado com Sachenka.
O pequeno-russo e Pelagueia tiveram muitas conversas deste género. Eleconseguira meter-se outra vez na fábrica, e entregava todo o seu dinheiro a
Pelagueia, que o aceitava naturalmente, como se fosse de Pavel.
Às vezes, com um sorriso no olhar, André propunha-lhe:
— Se nós aprendêssemos a contar?...
Ela recusava; o sorriso de André acanhava-a. Pensava, um tanto vexada: «Se
tu ris, para que havemos de falar nisso?»
Ele notou que a velha era mais frequente em pedir-lhe a significação de
certas palavras; percebia que ela ia-se instruindo às escondidas, e por isto deixou
de insistir em ensiná-la.
— Vai-me faltando a vista, meu André; sinto-a cansada... — disse-lhe, um
dia. — Gostava muito de usar uns óculos.
— Está dito! No domingo vamos ambos à cidade consultar um doutor que eu
conheço, e compraremos depois os óculos. XIX
Já por três vezes ela solicitara licença para ver o filho, recebendo sempre a
negativa benévola do chefe dos guardas, um velho de cabelos brancos, faces
escarlates e nariz comprido.
— Daqui a uma semana, mulherzinha. Antes, não! Para a semana veremos.
Hoje é impossível.
— É muito delicado! — contava ela a André. — Sempre a sorrir!... Não me
parece bem. Quando se é chefe, não se deve levar assim as coisas de
brincadeira.
— Sim, sim... São amáveis, sorriem muito... Se lhes dizem: «Vê aquele
homem inteligente e honrado? É perigoso para nós: enforque-o!» Eles sorriem,
enforcam-no, e depois continuam a sorrir.
— Aquele que veio cá fazer a busca era mais simples, valia mais: via-se logo
que era um canalha!
— Dir-se-ia que não são homens mas sim martelos, ferramentas, para nos
talharem por forma a ficarmos ao gosto do governo. Eles próprios foram
acomodados à mão que nos dirige...
Afinal, Pelagueia obteve a ambicionada licença. No domingo, entrou na
secretaria da cadeia e sentou-se modestamente a um canto. Havia mais visitas
naquela casa acanhada e suja, de teto baixo. Não era a primeira vez que se
encontravam ali: conheciam-se uns aos outros. A conversa ia-se arrastando
lentamente, a meia voz.
— Sabe? — dizia uma mulherona já de alguma idade, e que tinha uma maleta
nos joelhos. — Esta manhã, à primeira missa, o mestre-capela da catedral,
esteve outra vez quase a arrancar uma orelha a um menino de coro.
Um homem de meia idade, com o uniforme de soldado reformado, tossiu
ruidosamente e replicou:
— Os tais meninos de coro são uns garotos!...
Um homenzinho calvo, de pernas curtas, braços compridos, a maxila
proeminente, passeava dum lado para o outro, com ares de preocupado. Sem
parar dizia:
— A vida está cada vez mais cara; e é por isto que os homens nunca foram
tão maus! A carne de vaca de primeira qualidade custa a catorze kopecks o
arrátel, o pão dois kopecks e meio...
De quando em quando, entravam prisioneiros, vestidos de cinzento, com
grossos sapatos de coiro. Um deles trazia uma corrente no pé. Parecia que os
visitantes estavam acostumados havia muito àquele espetáculo. O coração de
Pelagueia tremia de impaciência; olhava perplexa para tudo o que a cercava.A seu lado estava uma velhinha com as faces enrugadas e com os olhos
amortecidos. Prestava atenção à conversa, estendia o pescoço delgado e fugia a
olhar para os assistentes, com uma expressão de irascibilidade.
— Quem tem a sra. aqui? — perguntou-lhe Pelagueia com doçura.
— O meu filho, que é estudante! E a sra.?
— Também o meu filho, operário.
— Como se chama ele?
— Vlassov.
— Não conheço. Está cá há muito tempo?
— Há sete semanas.
— E o meu há dez meses!
E Pelagueia, julgou perceber-lhe no tom da voz, o que quer que fosse
parecido com o orgulho.
Uma senhora alta, vestida de preto, de rosto comprido e pálido, disse
vagarosamente:
— Daqui a pouco metem na cadeia todas as pessoas de bem. Já não as podem
aturar.
— Sim, sim! — replicou o velho calvo. — A paciência vai faltando. Toda a
gente se zanga e clama, e tudo vai aumentando de preço. É por isto que as
pessoas vão diminuindo de valor. E não aparece nenhuma voz conciliadora...
A conversa generalizou-se e animou-se. Cada qual formulava a sua opinião
acerca da vida, mas todos falavam a meia voz; e Pelagueia sentia naquelas
palavras o que quer que fosse estranho. Em sua casa, falava-se de outra maneira,
duma maneira mais compreensível, mais natural, mais aberta.
Um guarda, de grande barba grisalha, gritou:
— A Vlassov!
Mediu-a com o olhar e disse:
— Vem!
E foi andando, arrastando os pés. A vontade de Pelagueia era empurrá-lo
para que ele andasse mais depressa. Afinal, num pequenito quarto, encontrou-se
com Pavel, que lhe estendeu a mão, sorrindo.
Ela agarrou-a, rindo muito, e dizendo:
— Bons dias! Bons dias!
— Olá, mulher! — exclamou o guarda. — Afastem-se um pouco um do
outro. É do regulamento.
E bocejou.
Pavel pediu à mãe notícias da sua saúde, da sua casa. Ela esperava outrasperguntas, procurava-as até, no olhar do filho, mas não as encontrou. Como
sempre, ele apresentava-se tranquilo; apenas um pouco mais pálido; os seus olhos
pareciam maiores.
— A Sachenka manda-te recomendações.
As pálpebras de Pavel estremeceram e abaixaram. O seu rosto dulcificou-se
e brilhou com um sorriso.
— Pôr-te-ão em breve na rua? — perguntou, irritada de súbito. — Por que foi
que te prenderam? Sim porque afinal os tais folhetos voltaram a aparecer.
Os olhos de Pavel tiveram um lampejo de alegria.
— Sério?!
— É proibido falar dessas coisas! — observou o guarda, indolente. — Só se
pode falar de assuntos de família.
— Ora essa! Então isto não é assunto de família? — perguntou ela.
— Sei lá! O que digo é que é proibido. Falem da comida, da bebida, da roupa
lavada, e de mais nada! — elucidou, continuando como indiferente.
— Está bem! Falemos da nossa casa, mamã? O que é que tu fazes?
— Levo comida aos operários, comida e outras coisas! — respondeu com
audácia.
Deteve-se e explicou melhor, depois de resfolegar:
— Sopa, carne assada, tudo o que Maria costuma cozinhar, e... toda a espécie
de alimento.
Pavel compreendera. O rosto contraiu-se-lhe numa gargalhada abafada.
Depois, carinhosamente:
— Minha querida mãe... Muito bem! Muito bem! Sinto-me feliz, sabendo que
tens tão bom emprego, que não te aborreces. Não é verdade que não te
aborreces?
— E sabes? Revistaram-me toda quando os tais folhetos tornaram a aparecer!
— informou um tanto fanfarrona.
— Outra vez?! — exclamou o guarda. — Já lhes disse que é proibido. Priva-se
um homem da sua liberdade, para que ele não saiba do que vai lá por fora, e
vens tu, mulher, e começas a tagarelar!... Compreendam que o que é proibido é
proibido!
— Está bem! Não se fala mais nessas coisas, mamã. O Matvé Ivanovitch é
um bom homem: não devemos fazê-lo zangar. Damo-nos bem um com o outro.
É por acaso que ele assiste hoje às entrevistas dos presos com os visitantes. Quem
costuma assistir é o diretor. E o Matvé Ivanovitch receia que tu digas coisas...
supérfluas.
— Acabou o tempo da visita! — disse o guarda, tendo consultado o seurelógio.
— Obrigado, mamã! Muito obrigado, querida mãezinha! Não te dê cuidado,
que dentro em pouco serei posto em liberdade.
Abraçou-a com efusão; ela começou a chorar.
— Separem-se! — ordenou o guarda; e, reconduzindo Pelagueia, ia-lhe
dizendo, resmungando: — Não chore... Está aqui está na rua! Vão dar a liberdade
a muitos... os lugares são poucos... não cabem todos...
Em casa, ela disse ao pequeno-russo:
— Falei-lhe... com jeito... percebeu-me muito bem.
E acrescentou com um suspiro:
— Percebeu-me, sim, se não, não me abraçava com tanta gana! Foi a
primeira vez...
— Ah! Todos desejam isto ou aquilo, mas as mães não desejam senão
afagos!
— Mas se tivesses visto as outras pessoas! — exclamou ela, com assombro na
voz. — Dir-se-ia que já estão acostumados. Levaram-lhes os filhos, meteram-
nos na prisão e não se importam nada com isso. Vão à prisão, sentam-se, e falam
de banalidades enquanto esperam. Quando as pessoas instruídas se conformam
desta maneira, o que farão os operários?...
— Isso é natural — respondeu o pequeno-russo com um sorriso. — A lei não
é tão severa com eles como connosco... além de que eles precisam dela mais do
que nós. Quando a lei os importuna eles reclamam, mas sem grande alarido. A
lei, a eles, dá-lhes alguma proteção, ao passo que a nós só nos dá cadeias que nos
impedem de bulir. XX
Uma noite, estando Pelagueia a fazer meia e André lendo em voz-alta a
história da revolta dos escravos romanos, alguém bateu violentamente à porta. O
pequeno-russo foi abrir, e Vessovtchikov entrou, com um embrulho debaixo do
braço, o boné descaído para os olhos, e todo ele enlameado até aos joelhos.
— Passando na rua, vi luz cá dentro e bati à porta para a cumprimentar. Saí
da cadeia agora mesmo!
E apertando a mão de Pelagueia:
— O Pavel recomenda-se muito.
Deixando-se cair numa cadeira, hesitantemente olhou em volta, como de
costume desconfiado.
A sua cabeça angulosa e rapada e os seus olhitos tornavam-no antipático a
Pelagueia, o que não impedia que estivesse gostando de vê-lo e que lhe dissesse,
afetuosa:
— Emagreceste!... Ó André, vamos fazer-lhe o chá!
— Já cá estou preparando o samovar! — respondeu da cozinha o pequeno-
russo.
— E então como vai o Pavel? Vieram outros para a rua contigo?
Vessovtchikov respondeu abaixando a cabeça:
— O Pavel continua preso... Encheu-se de paciência... Para a rua vim só eu.
E levantando o olhar, continuou vagaroso e com os dentes cerrados:
— É que eu disse-lhes: «Deixem-me ir embora, que já estou farto! Senão
mato o primeiro que puder, e suicido-me depois!» Ora!... Foi logo! E fizeram
bem, porque eu cumpria o que prometera!
— Sim, sim, creio!... — balbuciou ela, afastando-se, com as pálpebras
tremulas, como sempre lhe acontecia quando fitava aquele rosto bexigoso.
— E como vai o Fédia Mazine? — perguntou da cozinha André. — Continua
fazendo versos?
— Continua! Quer dizer... não o percebo bem. Parece um pintassilgo: metem-
no na gaiola, e canta. O que sei é que não tenho nenhuma vontade de ir para
casa.
— E tens razão. Vais encontrá-la vazia, o fogão apagado, tudo muito frio...
Vessovtchikov calou-se, cerrou os olhos, depois, tirando da algibeira um maço
de cigarros, começou a fumar, muito descansadamente. Com o olhar ia seguindo
as nuvens de fumo que se esvaía por cima da sua cabeça; e de súbito, rindo
esganiçadamente como o uivar dum cão:
— Sim, muito frio... Naturalmente, o chão está, cheio de baratas geladas, osratos devem estar também mortos de fome... Pelagueia Nilovna, dás licença que
eu durma cá em casa?
— Está dito! — respondeu logo. Sentia-se pouco à vontade; por isto não disse
mais.
Foi ele que murmurou em tom abatido:
— Estamos agora no tempo em que os filhos têm vergonha dos pais.
— O quê? — perguntou ela, estremecendo.
— Não te apoquentes, que não falo de ti. Tu nunca envergonharás o Pavel. Eu
é que me envergonho do meu pai... Não quero voltar para casa dele. Já não tenho
pai, nem casa. Estou sob a vigilância da polícia, agora, senão ter-me-iam
mandado para a Sibéria. Creio que um homem, que não se poupasse a trabalhos,
teria muito que fazer na Sibéria... Daria a liberdade aos exilados, ajudá-los-ia a
fugir...
Graças ao seu coração sensível, a velha percebia que o rapaz estava sofrendo,
mas a sua dor não lhe provocava a compaixão.
— Dizes bem. Sendo assim, seria melhor teres ido...
André veio da cozinha.
— Que estás tu para aí a cantar, homem?
A velha ergueu-se.
— Vou arranjar alguma coisa para comer.
Vessovtchikov olhou fixamente para o pequeno-russo e respondeu com
firmeza:
— Digo que é preciso matar umas pessoas!...
— Ih!... E para quê? — perguntou, tranquilo.
— Para que deixem de existir!
— Tens então o direito de transformar os vivos em cadáveres?
— Tenho!
— E onde foste buscá-lo?
— Foram os homens que mo deram!
O pequeno-russo, alto, magro, parou no meio do quarto, bamboleando o
corpo; com as mãos nas algibeiras, observava dos pés à cabeça o bexigoso. Este,
sentado e envolto numa nuvem de fumo, tinha naquele momento o rosto pálido
salpicado de manchas vermelhas.
— Foram os homens que mo deram! — repetiu, de punho cerrado. — Desde
que me dão pontapés, tenho o direito de responder, atirando-me aos focinhos, aos
olhos... Se não me tocarem, eu não toco em ninguém. Deixem-me viver como
quero, que eu viverei quieto, sem incomodar os mais. Juro! Suponhamos quequero viver numa floresta, construir uma cabana numa ravina, na margem dum
regato... e viver ali, sozinho...
— Pois faz isso! — respondeu, encolhendo os ombros.
— Agora? Não! É impossível! Estou ligado estreitamente aos homens até à
morte! Ligaram o meu coração com o ódio, prenderam-me a eles com o mal. É
um laço muito sólido. Odeio-os, e vá por onde for não os deixarei viver
tranquilos. Incomodam-me, e eu incomodá-los-ei. Respondo por mim, só por
mim; não posso responder por mais ninguém. E se o meu pai é um ladrão...
— Ah! — exclamou repreensivamente André, em voz baixa, aproximando-
se.
— Ainda acabo por arrancar a cabeça ao Isaías Gorbov, verás!
— E porquê?
— Porque anda a espiar-me. Foi por causa dele que o meu pai se perdeu, é
com ele que o meu pai conta para entrar para a polícia secreta!
— Olhem o grande mal! Mas quem te censura, a ti, pela vida do teu pai? Isso
é para os tolos!
— Para os tolos e para os não tolos! Olha: tu és inteligente, o Pavel também.
Diz lá: têm por mim consideração igual à que têm pelo Fédia Mazine ou pelo
Samoilov, ou um pelo outro? Não mintas, que não te acreditaria. Atiram-me para
o canto!
— Tens a tua alma doente, amigo! — respondeu André, afetuosamente,
sentando-se ao lado dele.
— A vossa também sofre. Mas imaginam que as suas úlceras são mais nobres
do que as minhas. Procedemos uns para os outros como canalhas! É o que te
digo! O que respondes a isto, hã?
Fitou o olhar penetrante em André e esperou, com os dentes à mostra. O seu
rosto pálido estava impassível; apenas lhe tremiam os lábios grossos como se
tivessem sido queimados e contraídos por algum líquido cáustico.
— Nada te responderei! — disse André acariciando o olhar hostil de
Vessovtchikov com o sorriso luminoso e triste dos seus olhos azuis. — Sei demais
que querer discutir com alguém, cujo coração está sangrando, é o mesmo que
irritá-lo. Sei, irmão.
— Não se pode discutir comigo; não sei discutir! — resmungou, abaixando os
olhos.
— Estou certo de que todos nós caminhámos como tu agora, com os pés
descalços por cima de vidros partidos; que todos nós respirámos essas mesmas
evaporações de horas sombrias...
— Não podes dizer coisa alguma que me sossegue. Nada! A minha alma uivacomo um lobo!
— Nem tenho tal intuito. O que sei é que isso há de passar. Talvez não muito
depressa; mas há de passar.
E pôs-se a rir, batendo no ombro do rapaz:
— É uma doença de crianças, no género da escarlatina, irmão. Todos nós
fomos atacados do mesmo mal, com maior ou menor violência, conforme
éramos fortes ou fracos. Ataca a gente da nossa condição, quando nos
encontramos sozinhos, quando não compreendemos ainda a vida, quando não
vemos o lugar que nos foi destinado. Parece-nos que somos o único homem neste
mundo e que ninguém se importa connosco, a não ser para nos devorar. Mais
tarde, quando vires que há também boas almas noutros peitos além do teu,
consolar-te-ás... e envergonhar-te-ás de ter acreditado que só tu davas a nota
afinada, e de ter querido trepar ao campanário sendo o teu sino tão pequeno, que
ninguém o ouve na bimbalhada dos dias de festa. Perceberás então que és uma
voz apenas percetível, mas necessária, no coro poderoso e magnifico da verdade.
Compreendes o que eu quero dizer?
— Compreendo... compreendo... Mas não te acredito!
— Também eu não queria acreditar...
O bexigoso pôs-se então a rir com a boca aberta até às orelhas.
— Que é isso?
— Pensava que seria um grande parvo aquele que te insultasse.
— E porque hão de insultar-me? — perguntou ainda André, encolhendo os
ombros.
— Sei lá! O que digo é que o homem que te tiver insultado, há de ficar depois
com uma linda cara de parvo!
— Era a isso que querias chegar!... — comentou, rindo.
Ouviu-se a voz de Pelagueia:
— Venha, André! Venha buscar o samovar.
A sós, Vessovtchikov olhou em volta; estendeu a perna, observou as botas
grossas; acurvou-se, palpando a barriga da perna; depois observou atentamente a
palma e as costas da mão peluda; levantou-a, e ergueu-se.
Quando André trazia o samovar, o bexigoso, diante do espelho, acolheu-o
com estas palavras:
— Há quanto tempo eu não via o meu focinho!... Estou feio como o diabo!
— Que te faz isso?
— A Sachenka diz que o rosto é o espelho da alma...
— Qual história! Tem o nariz de gancho, as faces agudas como bicos detesoura, e todavia a sua alma é pura como uma estrela!...
Sentaram-se para tomarem o chá e comerem. Vessovtchikov deitou a mão a
uma grande batata, salgou um pedaço de pão e começou a comer
tranquilamente, vagarosamente, como um lobo.
— E como vão as coisas por cá? — perguntou com a boca cheia.
E, tendo ouvido as informações de André:
— Tudo isso vai devagar! É preciso ir mais depressa.
— A vida não é um cavalo: não a fazemos andar às chicotadas.
Mas o bexigoso meneava a cabeça, obstinado.
— Vai devagar... vai... Eu não tenho grande paciência... Que é preciso que eu
faça?
— Devemos aprender a ensinar os outros. É este o nosso dever!
— E quando entraremos em luta?
— Ignoro. Segundo a minha opinião, antes de pegarmos em armas,
deveremos armar o nosso cérebro.
O rapaz ficou silencioso, voltando a comer. Sem que ele percebesse, a velha
observava-lhe o rosto picado das bexigas, tentando descobrir nele alguma coisa
que a reconciliasse com aquele caráter agressivo; mas ao encontrar-lhe o olhar
penetrante, ficava na mesma e movia os sobrolhos, desanimada.
No seu íntimo, os dois moradores do velho pardieiro sentiam-se como
apertados, pouco à vontade, e lançavam de quando em quando olhares furtivos
para o hóspede.
Até que este ergueu-se.
— Não me saberia mal deitar-me. Estive encarcerado por muito tempo,
puseram-me na rua de repente... vim por aí adiante... Estou cansado.
Quando ele foi para a cozinha, a velha cochichou a André:
— Tem uns pensamentos terríveis!...
— Não é um rapaz dócil, não. Mas há de passar-lhe. Eu também era assim.
Quando o coração não aquece a valer, junta-se nele muita gordura... Vá deitar-
se, mãezinha, que eu ainda vou ler um pouco.
André ouviu-a rezar num murmúrio. Enquanto ele ia lendo, um tanto
febrilmente, a pêndula do relógio oscilava em cadência, nas vidraças o vento
gemia.
A velha murmurava:
— Ó Senhor! Quanta gente por este mundo, queixando-se conforme os seus
males! Onde estão os felizes?
— Há-os, sim; e dentro em breve serão em grande número! Ah! Muitogrande! — respondeu ele. XXI
A vida ia decorrendo rápida, de dias variados. Cada qual trazia novas a
Pelagueia, que não se perturbava com elas. Cada vez eram mais os
desconhecidos que vinham à noite conversar com André, e que, sempre
desconfiados e cautelosos, se retiravam no meio das trevas, com a gola do
casaco levantada, a pala do boné sobre os olhos.
Para Pelagueia todos aqueles rostos, novos ou velhos, fundiam-se em um só
rosto magro, calmo e decidido, de olhar profundo, carinhoso e severo ao mesmo
tempo, como o de Jesus a caminho de Emaús.
Contava-os e imaginava-os cercando Pavel, como para torná-lo menos visível
aos seus inimigos.
Uma noite, uma rapariga esperta, de cabelo encaracolado, chegou da cidade,
com um embrulho para André; e, ao sair, disse para Pelagueia com um olhar
brilhante e cheio de alegria:
— Até à vista, companheira!
— Até à vista.
E foi à janela para ver a sua «companheira» pela rua abaixo, em passinhos
miúdos, fresca como uma flor de primavera, ligeira como uma borboleta.
— «Companheira»!... Ah! Minha queridinha! Deus te dê um bom
companheiro por toda a vida.
Notava por vezes nos que vinham da cidade aspetos variegados que lhe
despertavam a simpatia; mas o que principalmente a impressionava era a sua
simplicidade, o seu belo e tão generoso esquecimento de si próprios.
Compreendia já muitas coisas que os visitantes discutiam; sentia, que de facto,
eles tinham descoberto a verdadeira origem da desgraça dos homens, e ia-se
acostumando a aprovar as suas opiniões. Mas não acreditava que eles pudessem
transformar a existência à sua maneira, nem que tivessem a suficiente força de
atrair a si todos os operários.
Regularmente, continuava levando folhetos para a fábrica, com o sentimento
do dever cumprido; imaginava toda a espécie de astúcias; e os guardas,
acostumados a vê-la, nem já lhe prestavam atenção. Todavia, revistavam-na por
vezes, mas sempre nos dias seguintes a ter havido distribuição de folhetos.
Quando não os levava, Pelagueia sabia fazer-se notada, excitar a curiosidade dos
guardas, que a detinham, ficando afinal com caras de tolos.
Vessovtchikov não tornou a ser aceite na fábrica; meteu-se como operário
numa estância de madeira, e de manhã à noite guiava os carretos de traves,
lenha, tábuas. Os cavalos que puxavam a carroça iam como às cegas, em risco
de atropelarem quem passava, de irem de encontro às outras carroças; o rapaz
era perseguido por uma chuva de doestos e de imprecações. Sem levantar acabeça, sem responder, assobiava estridentemente, e chicoteava, nos intervalos,
resmungando:
— Toma! Toma!...
Sempre que havia reuniões em casa de André para a leitura dum folheto ou
do último número dum jornal estrangeiro, Vessovtchikov aparecia, sentava-se e
escutava sem dizer palavra, durante uma ou duas horas. Concluída a leitura, os
novos discutiam; ele porém não entrava na conversa, e era o último a sair.
A sós com André, falava então com o seu modo sorna.
— Quem é o mais culpado de todos?
— Aquele que foi o primeiro a dizer: «Isto é meu!» Mas como já morreu há
milhares de anos, não vale a pena zangarmo-nos com ele! — respondia André,
gracejando.
— Mas os ricos e os poderosos? E os que os defendem? Têm razão?
O pequeno-russo apertava a cabeça entre as mãos, retorcia o bigode e falava
durante muito tempo acerca da vida dos homens, com palavras simples e claras.
Ele porém volvia:
— Não! Há de haver culpados! Existem! Digo-te que é preciso revolvermos a
vida toda, sem piedade, como um campo coberto de más ervas!...
— Foi o que o Isaías disse uma vez, falando do senhor... — observou
Pelagueia.
— O Isaías?
— Sim. Que mau homem! Espia toda a gente... Vem até espreitar às nossas
janelas.
— Às suas janelas?...
Ela estava já deitada e não lhe podia ver a cara. Mas percebeu que tinha
falado de mais, quando André disse, em tom conciliador:
— Pouco importa que ele venha espreitar-nos. Não tem que fazer a essa hora:
passeia.
— Qual! Exclamou o rapaz! Ora aí tens o culpado?
— Culpado de quê? De ser parvo?
Mas o bexigoso não respondeu e saiu.
Pelagueia não dormia.
— Tenho medo dele! — exclamou. — Parece um fogão levado ao rubro: não
dá calor, mas queima.
— Sim... é um garoto irascível. Nunca lhe fale do Isaías, mãezinha. Esse tal
Isaías é em verdade um espião... Pagam-lhe até para isso.
— Que admira? O seu melhor amigo é um agente de polícia!— O Vessovtchikov ainda acaba por torcer-lhe o pescoço! Veja que
sentimentos os que mandam na nossa vida fazem nascer nas camadas inferiores.
O que sucederá quando aqueles que se parecem com este rapaz tiveram a
consciência da sua situação humilhante e perderem a paciência? O céu raiar-se-
á de sangue, e a terra cobrir-se-á de espuma, como se a tivesse invadido um
musgo vermelho.
— É terrível, meu André!
— Os nossos inimigos não terão o que merecem. Todavia, mãezinha, cada
gotinha do seu sangue terá sido lavado previamente pelos lagos de lágrimas que o
povo chorou.
E acrescentou, rindo:
— É justo, mas não é consolador! XXII
Um domingo, quando a velha, voltando da mercearia, abriu a porta e
apareceu no limiar, foi invadida por súbita alegria, pois ouvira lá para o interior
da casa, a voz de Pavel.
— Cá está ele! — gritou André.
Pelagueia notou a rapidez com que o filho se voltou para ela e o brilho que lhe
assomou ao rosto.
— Eis-te afinal na nossa casa! — murmurou.
Pavel avançou, muito pálido, com pequeninas lágrimas bailando-lhe nos
olhos, com os lábios trémulos. Em silêncio, os dois contemplavam-se.
— Obrigado, mamã! — exclamou por fim, apertando-lhe a mão que
estremecia. — Obrigado, minha querida mãe!
Comovida por aquelas palavras, ela acariciava-lhe os cabelos, e reprimindo
as pulsações do coração, disse com doçura:
— Deus seja contigo! O que me agradeces?
— O teu auxílio na nossa grande obra! Obrigado! É uma honra enorme para o
homem poder dizer que sua mãe também é sua parenta pelo espírito.
Não respondeu, aspirando, sôfrega, as palavras do filho, contemplando-o,
como em êxtase perante aquele rosto que lhe parecia tão luminoso.
— Eu calava-me, mamã, porque percebia que certas coisas da minha vida te
impressionavam; tinha piedade da tua alma, e nada podia fazer que lhe fosse
agradável. Imaginava que nunca te juntarias a nós, que nunca seguirias as nossas
opiniões, que continuarias a suportar tudo, em silêncio, como o tinhas feito em
toda a tua vida. E isto custava-me muito.
— O André deu-me a compreender tantas coisas!... — observou, desejando
chamar André ao sentimento do filho.
— Contou-me tudo o que tu fazias! — disse, rindo.
— O Iegor também. Somos da mesma aldeia. Olha o André quis ensinar-me
a ler.
— E tu tiveste vergonha e puseste-te a estudar sozinha, às escondidas.
— Espreitou-me, então! — notou, contrafeita. — Mas que é dele? Foi-se
daqui, para nos deixar à vontade. Chama-o, que ele... não tem mãe.
— André! Onde estás tu?
— Aqui. Vou rachar lenha.
— Tens tempo. Anda cá.
— Lá vou.
Não veio logo; e à porta, observou, dando importância ao caso:— É preciso dizer a Vessovtchikov que traga lenha, que já há pouca. Vê como
a cadeia fez bem ao Pavel? Em lugar de punir os revoltados, o governo engorda-
os.
— Ainda não comeste!... Vamos jantar, Pavel! — propôs ela.
— Não. O guarda vigilante informou-me ontem de que tinham resolvido pôr-
me em liberdade, e logo perdi a vontade de comer. A primeira pessoa que
encontrei por cá foi o velho Sizov. Apenas me viu, atravessou a rua para me
falar. Aconselhei-o a ser mais prudente, porque eu estou sob a vigilância da
polícia. «Que tem isso?» foi a sua resposta. E sabes o que me perguntou acerca
do sobrinho? «O Fédor tem-se portado bem na cadeia?» E eu: O que entende por
isso de portar-se bem? «Ora!... Não dar com a língua nos dentes a respeito dos
companheiros!» Quando lhe disse que ele era um bom rapaz e inteligente,
passou a mão pela barba, e disse com altivez: «Nós, os Sizov, não temos patifes
na família!»
— Não tem nada de tolo, esse velho. E o Fédia vem para a rua por estes dias?
— Provavelmente. Creio mesmo em que virão todos. Não há provas contra
nós. Apenas o depoimento do Isaías... Mas o que pode ele saber?
— Sentemo-nos! — disse Pelagueia, servindo o jantar.
Comendo, André referiu-se a Ribine. Quando acabou de contar o que se tinha
passado, Pavel murmurou, com muito pesar:
— Se eu cá estivesse, não o teria deixado partir assim. O que leva na sua
alma? Um sentimento de revolta e umas ideias embrulhadas...
— Ora! — disse André, sorrindo. — Quando um homem tem quarenta anos e
lutou durante muito tempo contra as dúvidas e as hesitações da sua alma, é difícil
transformá-lo.
Discutiam, empregando termos que a velha não compreendia, até ao fim do
jantar, embora por vezes falassem mais a claro.
— Devemos continuar no nosso caminho, sem nos desviarmos dele nem uma
linha! — exclamou Pavel com firmeza.
— E esbarrarmos no caminho com dezenas de milhões de homens que nos
consideram seus inimigos.
Pelagueia pôde concluir que Pavel não gostava dos camponeses, ao passo que
André os defendia, entendendo ser preciso ensinar-lhes o bem. Compreendia
melhor André. Sempre que ele dizia qualquer coisa a Pavel, prestava muita
atenção, deixando mesmo de respirar, esperando com impaciência a resposta do
filho, para ver se o pequeno-russo o teria ofendido. Mas os dois continuavam
discutindo sem se zangarem.
De quando em quando, perguntava:— É assim, Pavel?
E ele respondia, sorrindo:
— É.
— Com que então o senhor — dizia André, em tom de malícia, — comeu
bem, não mastigou bastante e ficou embatocado?...
— Não digas tolices!
— Eu. Estou mais sério do que num enterro!
E a velha ria... XXIII
Aproximara-se a primavera, ia-se derretendo a neve, descobrindo a lama e o
suor engordurado das chaminés da fábrica, que ela havia ocultado sob a sua
camada branca.
Dia a dia, a lama tornava-se mais agressivamente aparente, todo o bairro
parecia imundo e envolto em farrapos. O Sol mostrava-se mais amiúde, e os
regatos ainda indecisos começavam a dirigir-se para o pântano. Ao meio-dia, a
canção cariciosa das esperanças primaveris palpitava pairando sobre o bairro.
Andavam em preparação as festas do primeiro de maio.
Pela fábrica e pelo bairro todo tinham sido espalhados muitos folhetos,
explicando a significação daquelas festas. Até a gente nova, que nada tinha de
comum com os socialistas, dizia ao lê-los:
— É preciso tratar disso!
Vessovtchikov resmungava com o seu sorriso sorna:
— E não é cedo. O jogo das escondidas dura há muito tempo!
Fédia Mazine rejubilava. Tinha emagrecido e o nervosismo dos seus gestos e
das suas palavras lembravam uma cotovia que estivesse metida numa gaiola.
Acompanhava-o sempre Jacob Somov, rapaz taciturno, muito grave apesar de
novo, e que trabalhava então na cidade. Samoilov, cujos cabelos e barba
pareciam terem-se avermelhado ainda mais na cadeia, Vassili, Gussev, Bukine,
Dragunov e outros julgavam indispensável munirem-se de armas; mas Pavel, o
pequeno-russo, Somov e os seus amigos não eram da mesma opinião. Iegor
chegou então, como sempre fatigado, ofegante, e coberto de suor. Disse de
brincadeira:
— A transformação da organização atual é uma grande obra, companheiros,
mas para que ela caminhe mais facilmente é necessário... que eu compre um
par de sapatos para a minha pessoa!
E mostrou as botas rotas e que metiam água.
— As minhas galochas estão na mesma, também muito doentes; todos os dias
molho os pés. Não quero descer ao seio da terra sem ter renegado do velho
mundo, duma maneira bem pública e visível. Eis porque, rejeitando a moção do
companheiro Samoilov relativamente a uma demonstração de força armada,
proponho que me calcem com um bom par de valentes botas, porque estou
convencido de que serão mais úteis ao triunfo da nossa causa do que a maior das
sarrafuscas!
Pavel disse uma vez, falando de Iegor:
— Sabes, André, aqueles que mais riem, são aqueles cujo coração mais
sofre.Depois de um curto silêncio, o outro respondeu:
— Qual história! Se assim fosse, toda a Rússia morreria de riso!
Natacha apareceu também; estivera na cadeia, noutra cidade, mas não
mudara de aspeto. Pelagueia notou que, quando ela estava presente, o pequeno-
russo ficava mais alegre, brincava com todos, com uma malícia sem maldade
que provoca as gargalhadas da rapariga, e que, quando ela se ia embora, ele
entrava de assobiar tristemente as suas inúmeras canções, passeando pela casa,
arrastando os pés.
Sachenka vinha amiúde, sempre apressada, tornando-se dia a dia mais acre,
mais angulosa.
Uma vez que Pavel tinha saído para acompanhá-la, sem fechar a porta após
si, Pelagueia ouviu-lhes estas frases:
— É o sr. que levará a bandeira?
— Sou.
— É caso resolvido?
— É o meu direito!
— Não seria possível...?
— O quê?
— ... deixar que fosse outro...?
— Não!
— Reflita. O sr. tem tanta influência... estimam-no tanto... Aqui os chefes são
o André e o senhor. Quantas coisas poderão fazer, estando livres!... Reflita. São
capazes de exilá-lo... para muito longe e por muitos anos!...
Estas palavras, cujo sentimento Pelagueia estava entrevendo, caíam-lhe no
coração como pingos de água gelada.
— Não! Estou decidido. Não renunciarei por coisa alguma neste mundo!
— Ainda que eu lhe pedisse...?
Pavel interrompeu-a rapidamente, tendo na voz uma severidade especial:
— Não deve falar assim. No que está pensando?
— Sou uma criatura humana!... — murmurou, defendendo-se.
— Uma excelente e meiga criatura! — disse ele em voz baixa e como se lhe
custasse respirar. — Uma criatura que me é querida... muito querida! E é por isto
mesmo que não deve falar assim!
— Adeus!
E pelo ruído dos seus passos, a velha percebeu que ela ia correndo.
Compreendeu que nova desgraça a ameaçava, e no cérebro cravou-se como um
prego esta interrogação: «O que será preciso fazer?»Ao entrar na cozinha, Pavel avançou para André que lhe perguntou:
— E aquele desgraçado do Isaías?
— Devemos aconselhá-lo a que renuncie à espionagem.
— Denunciará aqueles que tal lhe aconselharem.
— Que pensas fazer, Pavel? — perguntou-lhe a mãe, desviando o olhar.
— Quando? Agora?
— Não: no primeiro de maio.
— Ah! Quero levar a nossa bandeira. Pôr-me-ei à frente do cortejo, com a
bandeira em punho. Naturalmente metem-me outra vez na cadeia.
Os olhos de Pelagueia tornaram-se como candentes, a boca foi-lhe invadida
por uma secura febril. O filho pegou-lhe na mão e ameigou-a:
— Assim é preciso, mãe. A honra está nisto mesmo.
— Eu não disse nada... — balbuciou.
— Deverias regozijar-te, em vez de entristeceres-te.
— Eu não disse nada... Não me oporei... Se tenho pena de ti, é natural... e fica
comigo...
Pavel afastou-se, e ela ouviu-o resmungar palavras acerbas:
— Há afeições que impedem o homem de viver!
Receando que ele dissesse pior, exclamou vivamente:
— Não fales assim, Pavel! Compreendo. Tens que fazer o que tencionas, por
causa dos companheiros.
— Não! Por minha própria causa! Poderia proceder de outra forma, mas não
quero! Hei de ir!
André parou no limiar; parecia metido numa moldura: era mais alto do que a
porta e curvava os joelhos caricatamente, com um dos ombros encostados a um
umbral, e com a cabeça e o outro ombro estendido para a frente.
— Seria melhor que o senhor tagarelasse menos!
Parecia um lagarto semioculto na fenda dum rochedo.
A velha tinha vontade de chorar, mas, não querendo que Pavel a
surpreendesse, disse de repente:
— Ah!... Ia-me esquecendo...
E retirou-se, rápida. Sob o alpendre, encostou a cabeça à parede, e deu livre
curso a todo o seu pranto. As palavras dos dois amigos chegavam até lá.
— Divertes-te em atormentá-la! — dizia André.
— Não tens o direito de falar-me assim!
— Não seria um bom companheiro, se me calasse ao ouvir as tuas estúpidascabriolices! Para que respondeste tão rudemente à tua mãe?
— Deve-se falar sempre com firmeza, seja a quem for!
— À tua própria mãe?
— A todos! Dispenso qualquer amor ou amizade que me detenham no meu
caminho.
— Que herói! À Sachenka é que devias falar assim.
— Foi o que fiz.
— Com essa rispidez? Não creio! Havias de falar-lhe com uma voz carinhosa,
terna... É como se estivesse a ouvir-te! Guardas o teu heroísmo para quando a tua
mãe está presente. Pois fica sabendo, animal, que o teu heroísmo não vale nada!
Pelagueia receou que a discussão se azedasse; limpou rapidamente as
lágrimas e apareceu, dizendo:
— Oh! Que frio que faz! E é isto a primavera!...
E, nos arranjos domésticos, deu alguns passos pela casa, voltando de novo à
cozinha.
Após um silêncio, André aproximou-se de Pavel.
— Percebeste-a?... Tem mais coração do que tu.
— Querem chá? — perguntou a velha.
E sem esperar resposta, acrescentou logo:
— É que estou transida de frio.
Pavel dirigiu-se a ela, com um sorriso a tremer-lhe nos lábios.
— Perdoa, mãe... Sou ainda uma criança... um garoto...
Ela estreitou-o a si.
— Não me ralhes mais. Não me digas mais nada. Deus seja contigo, filho!
Segue lá a tua vida, mas não bulas no meu coração. Como não haveria de uma
mãe ter piedade do seu filho? Tenho piedade de todos...
— Está bem, mamã. Perdoa. Fiz mal.
E afastando se, enleado:
— Nunca mais o esquecerei, palavra de honra!
Passando à cozinha, Pelagueia disse a André, que se conservara à porta:
— Não ralhe com ele. Bem sei que o André é mais velho, mas...
Ele não se moveu, e pôs-se a berrar comicamente:
— Ora! Ora! Ora! Ralho... e até lhe chego, se calhar!
A velha apertou-lhe a mão comovida.
— Meu bom amigo!...
André entrou na cozinha, e, continuando no mesmo tom irónico:— Desaparece, Pavel, se não queres que eu te torça o pescoço. Por enquanto,
não, porque estou arranjando o samovar! Oh! Que péssimo carvão! Está
molhado, com mil diabos!
Calou-se. Quando a viu perto de si, foi dizendo, baixinho, todo entretido no seu
trabalho:
— Não tenha medo, mãezinha, que não lhe tocarei nem com um dedo! Sou
simplório como um nabo cosido. E gosto muito dele. Olha tu é que não deves dar
ouvidos ao teu herói! Anda como se tivesse estreado um colete garrido: com o
peito espetado, empurrando em toda a gente para que lhe vejam bem o colete...
É bonito, lá isso é; mas para que diabo empurra ele o próximo?
Pavel disse de lá:
— Ainda estás resmungando? — E aproximou-se logo.
André, sempre sentado no chão, tinha posto entre as pernas o samovar e
contemplava-o. Pelagueia, encostada à porta, fixava o olhar na nuca e no farto
pescoço do pequeno-russo. Ele então deitou o corpo para trás, com as mãos
apoiadas no chão, e, depois de ter observado a mãe e o filho:
— Em verdade, olhem que são muito boa gente!
Pavel abaixou-se para lhe pegar num braço.
— Não puxes por mim, que me fazes cair!
— Para que se zangam? — perguntou ela tristemente. — Não seria melhor
que se abraçassem?
— Queres?... — murmurou Pavel.
— Porque não?
Pavel ajoelhou-se e os dois homens abraçaram-se, unindo-se numa só alma,
animada da mais quente amizade.
Pelagueia chorava; era porém um pranto sem amargor. Enxugando os olhos,
balbuciou:
— As mulheres gostam de chorar.. de tristeza... e de alegria...
André afastou o amigo, e esfregando os olhos:
— Basta! Basta! Que diabo de carvão! Tenho os olhos cheios dele!
Pavel sentara-se junto da janela, e murmurou:
— Lágrimas como estas não devem envergonhar.
— Sim! Acabámos de viver uns momentos de uma boa vida, humana, repleta
de amor! — exclamou André.
Ao que a mãe observou:
— Tudo está mudado! O pesar é outro... outra é a alegria... já nem sei.. já não
sei o que me faz viver... faltam-me as palavras...— Tudo está mudado. E assim é que deve ser! — acudiu André. — E sabe
porquê? Porque se desenvolve na vida um coração novo, mãezinha. Os corações
estão todos eles despedaçados pela diversidade dos interesses, roídos pela cega
avareza, mordidos pela inveja, cobertos de chagas e de feridas purulentas... de
mentira, de covardia. Os homens são uns doentes, que têm medo de viver...
perdidos como em um nevoeiro... conhecendo apenas a sua própria dor. Mas eis
que aparece um homem que ilumina a vida com o fogo da razão e que grita:
«Eh! Pobres insetos perdidos! Chegou o tempo de compreender que tendes todos
os mesmos interesses e o mesmo direito à vida e ao desenvolvimento!» O
homem que clama está isolado, sente-se triste e tem frio sozinho. E ao seu
chamamento, todos os corações se reúnem, formando um coração imenso, forte,
sensível como um sino de prata. E este sino diz assim: «Uni-vos, homens de todos
os países, formai uma única família! A mãe da vida é a afeição e não o ódio!»
Irmãos, eu oiço este sino!
— E eu também! — disse Pavel.
— Deitado, de pé, vá para onde for, oiço-o e sinto-me feliz. Eu sei: a terra
está farta de suportar a injustiça e a dor; ecoa como se quisesse responder,
saudando o novo sol que desponta no peito do homem!
Pavel ergueu um braço, ia falar; mas a mãe deteve-o, e disse baixinho:
— Não o interrompa.
— Sabem? Há ainda muitas dores reservadas aos homens; ainda muito sangue
lhes será arrancado por mãos ávidas. Mas tudo isto, toda a minha dor e todo o
meu sangue, nada são perante o que já possuo no meu cérebro, na minha
medula, nos meus ossos! Já sou rico como uma estrela é rica em cintilações.
Suportarei tudo, porque tenho em mim uma alegria, que ninguém nem coisa
alguma matará, e que é a minha força!
E até à meia-noite, a conversa prosseguiu, harmónica e sincera, acerca da
vida, dos homens, do futuro. XXIV
De manhã muito cedo, apenas André e Pavel tinham saído, Maria Korsunova
bateu à janela com estrondo.
— O Isaías foi assassinado! Vamos ver!
Pelagueia estremeceu: o nome de assassino atravessou-lhe o peito como uma
flecha.
— Quem o matou?
— O assassino fugiu!
Tendo posto um xaile, à pressa, Pelagueia foi ter com ela à rua.
— Naturalmente começam outra vez a fazer buscas. Ainda bem que a tua
gente não saiu de casa àquela hora. Posso testemunhar. À meia-noite passei eu
por aqui, olhei pela janela e vi-os a todos três sentados à mesa.
— Mas, Maria, porque haveriam de acusá-los? — perguntou aterrorizada.
— O assassino é forçosamente dos vossos! Todos sabem que o Isaías os
espionava...
Pelagueia parou, ofegante, com a mão no peito.
— Que é isso? Não tenhas medo. O Isaías não merecia outra coisa. Vamos
depressa, que não chegamos a tempo.
A pobre velha caminhava sem mesmo perguntar a si própria para que ia ver
o cadáver; tremia pensando em Vessovtchikov: «Conseguiu o seu fim!»
Não distante da fábrica, sobre o entulho duma casa recentemente destruída
por um incêndio, grande ajuntamento de povo murmurava como uma nuvem de
besouros, e movia-se levantando em poeira a cinza com os seus passos. Já lá
estavam muitas mulheres, ainda mais crianças, lojistas, os moços da taverna
próxima, agentes de polícia, o guarda Petline, um guarda velho, de barbas
brancas como prata, e com o peito coberto de medalhas.
Isaías estava meio deitado no chão; tinha as costas apoiadas a uma trave
enegrecida pelo fogo, a cabeça descaída para o ombro direito. Conservava a
mão direita na algibeira das calças; os dedos da esquerda desapareciam
contraídos sob a terra fofa.
Pelagueia olhou para o rosto do morto. Um dos olhos tinha-o ele fixado no
boné posto entre as pernas estendidas, a boca entreaberta numa como expressão
de assombro; a barbicha ruiva pendia. O corpo magro, com a cabeça pontiaguda,
e o rosto ossudo coberto de manchas avermelhadas, parecia diminuído,
comprimido pela morte.
Ela então benzeu-se suspirando. Em vida, aquele homem fora-lhe antipático;
morto, fazia-lhe dó.
— Não tem sangue! — disse alguém. — Talvez o prostrassem aos murros.— Talvez ainda esteja vivo.
— Vão-se daqui! — berrou o guarda.
— O médico já veio, e disse que ele estava morto!
— Fecharam a boca a um denunciador... Foi bem feito!
O guarda afastou as mulheres que o cercavam e perguntou
ameaçadoramente:
— Quem é que falou?
Muitos recuaram; outros deitaram a fugir. Ouviram-se risos escarninhos.
Pelagueia voltou para casa.
— Ninguém tem dó dele!... — ia pensando.
— E o perfil maciço do bexigoso erguia-se na sua frente; os seus olhos tinham
um brilho frio e rude; a sua mão direita balouçava, como se estivesse ferida.
Quando André e Pavel entraram para o jantar, perguntou-lhes logo:
— E então? Não está ninguém preso por causa do Isaías?
— Não ouvi nada... — respondeu o pequeno-russo.
Ela notou que os dois vinham sombrios e reservados.
— Não falam do Vessovtchikov?... — avançou.
O filho encarou-a com severidade e respondeu, acentuando muito as
palavras:
— Não! Ninguém pensa nele. Está ausente. Ontem ao meio-dia, partiu a
caminho da ribeira e ainda não voltou... Tirei informações...
— Deus seja louvado! — exclamou ela com um suspiro de alívio.
Ao jantar, Pavel deixou cair de repente a colher no prato e disse:
— Não entendo isto!
— O quê? — perguntou André, até ali triste e silencioso.
— Admito que matem um animal feroz, uma ave de rapina... Julgo-me capaz
de matar um homem que se tornasse uma fera para os seus semelhantes. Mas
como há quem possa levantar a mão para assassinar uma criatura miserável e
repugnante?
André encolheu os ombros, e depois:
— Ele era tão nocivo com uma fera.
— Sei...
— Nós também esborrachamos o mosquito que nos suga um pouco de
sangue...
— Sim, é verdade. Não é esse o meu ponto de vista. Digo que é repugnante!
— Que se há de fazer? — e encolheu outra vez os ombros.— Poderias matar uma criatura daquelas? — perguntou Pavel depois de curta
pausa.
O pequeno-russo fitou-o, lançou um rápido olhar a Pelagueia, e respondeu
tristemente mas com firmeza:
— Se se tratasse de mim só, não tocaria em ninguém. Pelos companheiros,
pela nossa causa, faria tudo. Mataria até meu próprio filho, se preciso fosse!
— Oh!... — suspirou Pelagueia.
Ele sorriu, concluindo:
— Impossível proceder de outra maneira! É a vida que assim o quer!
Como se obedecesse a um impulso íntimo, André ergueu-se de repente.
— Que se há de fazer? É-se obrigado a odiar o homem, para que venha mais
cedo o tempo de admirá-lo sem reservas. Temos que destruir aquele que obsta
ao curso da existência, que vende os outros para adquirir honrarias ou o descanso.
Se encontramos no caminho dos justos um Judas que nos espera para nos trair, eu
próprio seria um traidor, se não o aniquilasse. É crime? É contra o direito? E os
outros, os nossos senhores, com que direito se servem de soldados e carrascos, de
casas públicas e de prisões, do degredo e de tanta coisa infame para protegerem
a sua segurança e o seu bem-estar? Os nossos senhores assassinam-nos às
centenas, aos milhares; isto dá-me o direito de levantar a mão e de deixá-la cair
na cabeça dum inimigo, daquele que mais se aproximou de mim e que mais me
prejudica na vida. Sei que o sangue dos meus inimigos não cria, que é estéril...
Desaparece sem deixar vestígios, porque está podre; ao passo que quando o nosso
rega a terra como uma chuva compacta, a verdade desenvolve-se exuberante!
Também o sei! Mas se vir que é indispensável matar, matarei e reivindicarei a
responsabilidade do meu crime. Não falo senão de mim. O meu pecado morrerá
comigo, não maculará o futuro com uma única nódoa, não manchará ninguém,
ninguém senão eu!
Cheia de tristeza e de inquietação, Pelagueia sentia que ele tinha como que
uma mola partida no seu espírito, e que sofria. Não a inquietava já o caso do
assassínio: não tendo sido Vessovtchikov, nenhum outro companheiro de Pavel o
seria, por certo.
André prosseguia:
— Tempo virá em que os homens se admirarão uns aos outros, em que cada
qual brilhará como uma estrela, em que escutará a voz do seu semelhante, como
se fosse uma música. Haverá na terra homens ricos, grandes pela sua liberdade,
tendo todos o coração aberto, purificado de qualquer ambição ou interesse. A
vida será então um culto prestado ao homem; a sua imagem será exaltada
porque para os homens livres todas as alturas são acessíveis. Viver-se-á então na
liberdade e na igualdade, pela beleza; os melhores serão os que mais souberemabarcar o mundo no seu coração, os que mais o amarem! E por esta vida assim,
estou pronto a tudo. Arrancaria o coração a mim próprio, e pisá-lo-ia, com os
meus pés!
O seu rosto tremia; as suas feições tinham uma excitação luminosa; uma a
uma, as lágrimas deslizavam-lhe pelas faces.
Pavel levantou a cabeça e contemplou-o. Pelagueia sentia-se inquieta, com
um vago e terrível pressentimento.
— O que tens, André? — perguntou Pavel, a meia voz.
Ele esticou o corpo, e fitando a velha:
— Eu vi... eu sei...
Pelagueia levantou-se, correu a ele, pegou-lhe nas mãos.
— Sossega, André! Meu filho!... Sossega!... Murmurava.
— Esperem!... Quero dizer-lhes como a coisa foi...
— Não! Não! — acudiu ela, com os olhos rasos de água.
Pavel aproximou-se dele, com as mãos trémulas e muito pálido, e segredou-
lhe:
— A minha mãe receia que tivesses sido tu...
Ela porém ouviu, e disse:
— Não receio, não. Sei que não foi ele. Ainda que tivesse sido, não
acreditaria.
— Oiçam... — pediu André, sem os fitar e buscando libertar as mãos que
Pelagueia não abandonava. — Não fui eu... mas poderia ter evitado o crime.
— Cala-te, André! — exclamou Pavel, pondo-lhe a mão no ombro, como
para fazer cessar a tremura que lhe abalava todo o corpo.
O pequeno-russo explicou então:
— A coisa foi assim: quando nos deixaste, ficámos à esquina, eu e o
Dragunov. O Isaías apareceu de repente... e conservou-se afastado... Troçava de
nós, observando-nos... Dragunov disse-me: «Não vês! Anda-me a espiar todas as
noites. Ainda venho a dar-lhe uma lição!» E afastou-se para entrar em casa, ao
que julguei... Então o Isaías chegou-se a mim...
Suspirou:
— Ninguém me insultou mais relesmente do que aquele cão!
Sem falar, Pelagueia fora conseguindo puxá-lo para junto da mesa até
obrigá-lo a sentar-se.
— Disse-me que todos nós éramos conhecidos da polícia, que tinha os olhos
em nós, e que antes do primeiro de maio estaríamos servidos!... Não respondi,
limitei-me a rir-me, mas cá por dentro começava a ferver. Disse-me depois queeu era um rapaz inteligente, que não deveria meter-me a tais caminhos...
— Percebo!... — murmurou Pavel.
— Isso! Acabou por dizer-me que seria melhor eu entrar ao serviço da
polícia...
E de punho cerrado erguido:
— Que alma infame a daquele homem! Mais valia que me houvesse
esbofeteado! Ter-me-ia custado menos! E talvez fosse melhor para ele. Perdi a
paciência quando assim me cuspiu no coração a sua saliva infeta! Dei-lhe um
muro em pleno rosto, e retirei-me. Ouvi uma voz atrás de mim: «Fizeste muito
bem!» Era Dragunov, que por certo tinha ficado oculto na esquina. Não olhei
para trás, apesar de sentir, de compreender a possibilidade... Ouvi depois um
ruído, mas não fiz caso. Eu ia tão tranquilo como se tivesse acabado de esmagar
um sapo. Quando cheguei à fábrica, dizia toda a gente: «Mataram o Isaías!»
Não quis acreditar. A minha mão é que teve a culpa... Não sou senhor dela... Não
me faz sofrer, não... mas dir-se-ia que a sinto retraída agora...
Lançou à mão um olhar rápido e exclamou:
— Não conseguirei nunca lavá-la desta mancha!
— Tenhas tu bem puro o teu coração!... — disse Pelagueia chorando.
— Não me acuso, não! — declarou ele com energia. — Mas é repugnante...
Não é agradável ter esta lama cá dentro no peito!
— Que pensas fazer?
— O que quero fazer?
E depois de refletir, de cabeça baixa, ergueu-a e respondeu com amargo
sorriso:
— Não tenho medo de dizer que fui eu... mas tenho vergonha do que fiz! Não!
Não posso dizê-lo! Tenho vergonha!
— Não te percebo bem! — exclamou Pavel, encolhendo os ombros. — Não
foste tu quem matou; e ainda que...
— Irmão, apesar de tudo, era um homem. O assassínio é coisa repugnante.
Saber que alguém assassina, e não o impedir... é talvez uma covardia infame!
— Continuo sem perceber!
Ouviu-se o apito da fábrica. André deixou tombar a cabeça para o ombro,
escutando aquele autoritário chamamento e disse:
— Não quero ir trabalhar.
— Nem eu!
— Quero ir tomar um banho!
Vestiu-se à pressa e saiu.Pelagueia seguiu-o com um olhar de compaixão; depois abriu-se com o filho.
— Pode dizer o que quiser, Pavel. Sei que é pecado matar um homem, mas
neste caso não encontro culpa em ninguém. Lembro-me de que o Isaías me
ameaçou uma vez com a forca para ti... Eu não lhe queria mal, nem me alegro
por ele ter morrido... Tinha apenas dó dele... E agora... nem mesmo isso já
sinto...
— Aí tens o que é a vida, mãe! XXV
Alguém acabava de chegar sob o alpendre. Mãe e filho entreolharam-se,
estremecendo.
A porta abriu-se e deu entrada a Ribine. Trazia vestida uma capa curta, de
peles, toda manchada de alcatrão, e nos pés sapatos de cânhamo; do cinto
pendiam-lhe grosseiras luvas de lã preta; na cabeça um boné de peles.
— Como vão de saúde? Puseram-te na rua, Pavel? E tu, Pelagueia, como
vais?
— Ah! És tu? Muito estimo ver-te!
— Olha que vens mesmo lindo! — disse Pavel.
Ribine respondeu, tirando vagarosamente a capa:
— Sim. Fiz-me camponês. Tu e os teus vão-se transformando pouco a pouco
em senhores; eu ando para trás.
E passando ao quarto, lançou o olhar em roda.
— Não têm mais mobília do que dantes. Os livros é que aumentaram. São o
melhor bem que se pode possuir hoje. Como vão as coisas por cá? Conta-me.
Sentou-se abrindo muito as pernas, apoiou as palmas das mãos nos joelhos,
parecendo satisfeito na expetativa da resposta de Pavel.
— Vão bem.
— Muito me alegro! Muito me alegro!
— Queres chá? — perguntou a dona da casa.
— Pudera! E um copinho de aguardente... e se me oferecessem de comer,
também não recusaria. Estou contente por tornar a vê-los!
— E como vai?
— Bem. Parei em Eguildievo. Conhecem? É uma bela vila, com duas feiras
por ano e mais de dois mil habitantes. Má gente. Não há terras para cultivar;
arrendam-nas, mas são de má qualidade. Entrei como assalariado ao serviço de
um explorador do povo; não faltam destas sanguessugas; são como as moscas à
roda de um cadáver. Fazemos carvão, extraímos alcatrão das bétulas. Trabalho
duas vezes mais do que trabalhava aqui, e ganho quatro vezes menos. Ao serviço
desta sanguessuga somos sete, todos lá da terra, menos eu. Sabem ler e escrever.
Um deles, chamado Jéfim, é muito bulhento...
— E fala muito com eles?
— Está claro. Levei comigo todos os meus folhetos. Tenho trinta e quatro.
Mas prefiro servir-me da Bíblia: encontra-se lá tudo o que se quer, e é um livro
permitido, publicado pelo Santo-Sínodo, e no qual se pode crer.
Piscou o olho, malicioso, e continuou:— O pior é que não basta. Vim cá buscar leitura. Como vamos fazer uma
entrega de alcatrão, o tal Jéfim e eu, combinámos a patuscada de passar por tua
casa... Dá cá livros antes que ele apareça... É inútil que ele fique sabendo...
Pelagueia observava-o; parecia-lhe que ao largar a capa, largara também
qualquer coisa da sua pessoa: estava menos grave do que dantes, e havia no seu
olhar mais astúcia.
— Mamã, vai buscar os livros. Diz que vão para o campo, que logo sabem o
que te hão de dar.
— Irei apenas o samovar esteja pronto.
— Quero livros proibidos e bem incisivos. Distribui-los-ei às escondidas. E se
o padre ou alguém da polícia os descobrir, imaginarão que os mestres-escolas é
que fazem a propaganda. De mim ninguém suspeitará.
Satisfeito por este achado, desatou a rir.
— Olha sabes? — disse Pelagueia. — Tens assim o aspeto de um urso, e
afinal és uma raposa!
Pavel ergueu-se, em tom de censura:
— Dar-lhe-emos os livros que deseja, mas o que pensa fazer não lhe fica
bem.
— E porquê?
— Porque se deve responder sempre pelo que se faz.
— Não percebo o que dizes!
— Acha bem que os mestres-escolas sejam metidos na cadeia como
suspeitos de fazerem propaganda?
— Então? Que tem isso? Essa é boa! Os livros são coisa que lhes dizem
respeito, a eles; portanto eles que tenham a responsabilidade!
Pelagueia interveio, mostrando-se da opinião de Ribine, ao que Pavel objetou:
— Se qualquer de nós, o André por exemplo, praticasse uma infração da lei e
me metessem na cadeia, a mim, o que diria a minha mãe?
— Ah! Ah! É um caso melindroso!... — exclamou Ribine.
Mas assumindo uns ares doutorais:
— Ainda és muito ingénuo, irmão! Não nos devemos preocupar com casos de
honra, quando trabalhamos por uma causa secreta. Reflete: quem primeiro cairá
na cadeia será a pessoa a quem forem encontrados os livros, e não o mestre.
Depois, o texto dos livros autorizados que os mestres distribuem é o mesmo dos
livros proibidos, com simples diferenças de palavras e com menos coisas
verdadeiras do que os nossos. Portanto os mestres têm o mesmo fim que eu, mas
servem-se de rodeios, ao passo que eu vou por caminho direito; e assim, aos
olhos das autoridades, somos igualmente culpados; não achas? Em terceiro lugar,que tenho eu a ver com os mestres-escolas? Não procederia da mesma maneira
com um camponês. O mestre-escola é um filho de padre; a mestra uma filha de
proprietário; não sei porque se põem a querer levantar o povo. Eu, camponês,
não posso conhecer os seus pensamentos de pessoas instruídas. Sei o que faço,
mas ignoro o que eles querem. Durante milhares de anos, os grandes eram
verdadeiros senhores e tiravam a pele do povo; de repente acordam e começam
a abrir os olhos às suas vítimas. Nunca tive predileção por contos de fadas, e este
é um deles. Para mim, a gente rica e instruída, seja qual for, fica afastada de
nós. No inverno, quando atravessamos os campos e vemos ao longe alguma coisa
a mexer, perguntamos a nós mesmos: será uma raposa, um lobo, um cão? Sabe-
se lá o que é!
E, passando a mão pela barba:
— Não tenho tempo para delicadezas. O momento é grave. Trabalhe cada
qual, segundo a sua consciência... Todas as aves têm o seu canto especial.
— Mas há ricos que se sacrificam pelo povo, que passam toda a vida na
cadeia... — observou a velha, recordando-se de pessoas amigas.
— Com esses o caso é outro. Quando o homem do povo enriquece, acotovela-
se com os senhores. Estes, quando empobrecem, tornam-se amigo do povo.
Quando a algibeira está vazia, a alma torna-se pura, à força.
Ergueu-se e continuou, sombriamente:
— Durante cinco anos, desacostumei-me do campo, andando errante de
fábrica em fábrica. Quando para lá voltei e vi o que se passava, disse comigo que
não podia viver como vivem os camponeses. Percebes? Parecia-me impossível.
Por cá não se conhece a fome, nem a muita humilhação. Mas na aldeia a fome
segue o homem como uma sombra durante toda a vida, sem nunca lhe dar a
esperança de obter pão que chegue. A fome devorou as almas, apagou as feições
humanas; não se vive: apodrece-se irremediavelmente na miséria. E as
autoridades vigiam, cuidadosas; como os corvos, espreitam, não se dê o caso de
que o camponês tenha um bocado de pão a mais. Quando o descobrem,
arrancam-lho da mão, e ainda lhe dão com ele na cara!
Encostado à mesa, de pé, falando muito perto de Pavel, prosseguiu:
— Julguei que não poderia suportar semelhante vida. Todavia, dominei-me.
Disse com os meus botões: «Não devo consentir que a minha alma me faça
partidas! Ficarei aqui, e, não podendo dar pão aos camponeses, farei a
zaragata!»
Com a fronte coberta de suor, exclamou:
— Dá-me livros que não deixem mais em descanso aqueles que os lerem.
Ajuda-me! É preciso meter ouriços dentro da cabeça daquela gente. Diz aos que
escrevem folhetos para os da cidade, que os escrevam também para os docampo. Que os escrevam de maneira a regar o campo de água a ferver, para
que os cultivadores, depois de lê-los, caminhem para a morte sem protestarem!
As frases vigorosas de Ribine impressionavam Pelagueia. Havia naquele
homem o que quer que fosse que lhe recordava o marido: um e outro mostravam
os dentes e arregaçavam as mangas, com a mesma irritação impaciente. Ao
menos, Ribine falava.
— Sim! É indispensável! — disse Pavel. — É indispensável organizar um
jornal para o campo. Dê-nos o assunto, narre-nos os factos, e nós lhe daremos
um jornal.
Ao que Ribine respondeu.
— Está dito! Mas escrevam com simplicidade, para que até os vitelos os
entendam! XXVI
Pelagueia tinha saído. Pouco depois alguém entrava.
— É o Jéfim! — informou Ribine. — Entra! Anda cá. Este homem, que vês
aqui, chama-se Pavel. Foi dele que eu te falei.
Jéfim era um rapagão de cara ampla, cabelos ruivos, olhos pardos, robusto e
bem talhado, trajando uma capa curta. Avançou até Pavel, de boné na mão e
olhar baixo.
— Ora viva! — resmungou, apertando a mão de Pavel, e tendo percorrido o
quarto com o olhar, demorando-o na estante dos livros, pôs-se a alisar com a
mão os cabelos ásperos.
— Já os viu! — exclamou Ribine.
Jéfim foi ver os livros mais de perto.
— Ih! Quantos há por cá! E naturalmente lê-os muito. No campo, não temos
tempo...
— E pouca vontade, não? — perguntou Pavel.
— Ao contrário! Hoje somos obrigados a pensar, se não, não nos resta mais
do que deitarmo-nos e esperarmos a morte. Como o povo não quer morrer, pôs-
se a trabalhar com o cérebro. «Geologia?...» O que é isto?
Pavel explicou.
— Não precisamos disso! — concluiu Jéfim pondo o livro no seu lugar.
Ribine comentou:
— O camponês não tem curiosidade de saber de onde veio a terra, mas sim
como foi distribuída, como os proprietários a arrancaram de sob o domínio do
povo. Que ela se mova ou não, que importa! Contanto que dê de comer!
— «Historia da escravatura!» Isto é com a gente?
— Aqui tem um acerca da servidão.
— É já muito velho.
— Possui algumas terras?
— Somos três irmãos, e temos quatro hectares... terreno de areia fina. Coisa
fresca, para limpar metais! Mas para cultivar o trigo... Eu cá libertei-me da terra.
Não sustenta o homem, antes o traz manietado. Há quatro anos que me alugo
como manufator... Para o outono vou para a tropa.
O Mikhail diz-me que não vá, porque obrigam os soldados a baterem no povo.
Mas vou, por força! É tempo de acabar com isto. Que lhe parece?
— É tempo, é... — respondeu Pavel, sorrindo. — Mas o difícil está em saber
falar aos soldados.
— Aprende-se!— Mas se o apanham em flagrante, podem fuzilá-lo.
— Sim... não me perdoarão... — respondeu tranquilamente, voltando a ver os
livros.
— Vamos ao chazinho, companheiro, que temos que abalar! — disse Ribine.
André entrou muito vermelho, acalorado e taciturno. Apertou a mão de
Jéfim, sem falar, assentou-se ao lado de Ribine, e, depois de olhar para ele,
sorriu.
— Pareces triste, homem! Porquê? — perguntou aquele dando-lhe uma
palmada no joelho.
— Porque sim!
Jéfim, observava atentamente André, até que disse:
— Os trabalhadores das cidades e vilas são magricelas, têm os ossos a romper
a pele. Nós cá, os do campo, somos mais roliços...
Ribine completou:
— O camponês tem mais firmeza nas pernas. Sente a terra debaixo dos pés,
ainda que não lhe pertença. Mas o operário é como um pássaro: não tem pátria,
nem lar; um dia aqui, outro dia ali.
Pelagueia entrou. Jéfim tinha-se aproximado de Pavel a quem pediu:
— Poderia dar-me um livro?
— Da melhor vontade.
O júbilo brilhou-lhe no olhar.
— Eu restituo depois. Obrigado! Hoje, os livros são tão precisos como à noite
uma candeia.
Ribine tinha posto a capa.
— Vamos, que são horas.
— Olha: já tenho que ler! — exclamou Jéfim, mostrando-lhe o livro, com um
sorriso muito aberto.
Quando eles saíram, Pavel dirigiu-se a André.
— Que me dizes àqueles diabos?
— Parecem nuvens à hora do crepúsculo: grossos, sombrios, arrastando-se
lentamente...
— Tenho pena de que não chegasses mais cedo. Terias observado um
coração, tu, que estás sempre a falar de coração. Ribine disse das suas... Não
soube que responder-lhe. A minha mãe tem razão: aquele homem traz em si
uma força terrível!
— Conheço isso! Essa gente do campo anda envenenada! Quando se
revoltarem, derrubarão tudo, sem distinção. Querem a terra absolutamente sua, earrancarão tudo o que a cobre.
Falava devagar; percebia-se que pensava noutra coisa. Pelagueia disse-lhe
com blandícia:
— Deves espairecer, André!
— Deixe, mãezinha, deixe... Embora eu não quisesse tê-lo feito, a ação foi
abominável!
E voltando ao assunto da conversa:
— O nosso camponês queimará tudo, como se tivesse havido uma peste, para
que todos os vestígios das suas humilhações voem com as cinzas.
— E levantar-se-á depois contra nós... — continuou Pavel.
— O nosso dever é não lho consentir, reprimindo-o! Somos nós quem se
encontra mais perto dele. Acreditar-nos-á... seguir-nos-á!
— Sabes? O Ribine pediu-me que fizéssemos um jornal para os camponeses.
— Apoiado! É tratar disso.
E depois de comentar as últimas palavras de Ribine, ergueu-se, dizendo:
— Vou dar um passeio ao campo.
— Depois do banho? Olha que faz muito vento... Vais arranjar uma irritação
na pele! — acudiu Pelagueia.
— Deixá-lo! Quero sair.
Vestiu-se e foi-se sem dizer palavra.
— Sofre! — suspirou a velha.
— Tens um belo coração, mamã!
— Oxalá assim seja! Se ao menos pudesse ajudá-los!... Se eu soubesse!...
— Não te dê cuidado: hás de saber.
O pequeno-russo voltou tarde; estava fatigado; deitou-se logo, dizendo:
— Parece-me que andei uns dez quilómetros...
— Isso vai melhor?
— Não sei... Não faças barulho... Deixa-me dormir.
Pouco depois, Vessovtchikov apareceu, sujo, esfarrapado e de mau humor
como sempre.
— Não sabes quem matou o Isaías?
— Não! — respondeu Pavel.
— Até que houve um homem que não achou antipático esse feito! E eu que
me preparava para torcer-lhe o pescoço!...
— Não digas essas coisas, companheiro!
Pelagueia interveio:— És bom e tens sempre palavras tão cruéis!... Para quê?
Era-lhe então agradável tornar a vê-lo; o seu rosto bexigoso chegava até a
parecer-lhe bonito; sentia mais piedade por ele.
— Eu não sirvo para nada, senão para tais empresas! Pergunto
constantemente qual é o meu lugar. Não o encontro. Se é preciso falar... não sei...
Vejo tudo, sinto todas as humilhações dos homens, e não posso exprimi-las.
Tenho uma alma muda. Irmãos, deem-me um trabalho penoso, seja qual for.
Não posso viver assim, sem fazer nada em favor da nossa causa.
Pavel pegou-lhe numa das mãos.
— Havemos de pensar em ti, descansa.
— André disse lá da cama:
— Ensinar-te-ei a conhecer as letras de imprensa, e serás um dos nossos
compositores; queres?
— Se me ensinares, dar-te-ei de presente uma navalha.
— Vai para o diabo mais a tua navalha!
— Uma navalha boa! — insistia.
André e Pavel riram à larga. Ele parou no meio do quarto, perguntando:
— Estão a rir-se de mim?
— Então de quem?
E o pequeno-russo saltou da cama.
— Se fossemos dar um passeio pelo campo? A noite está boa, há luar.
Vamos?
— Pois vamos! — apoiou Pavel.
— E eu também vou. Gosto de ouvir rir o André!
— E eu gosto que me prometas presentes! XXVII
Os dias decorriam com tal rapidez que não deixavam que Pelagueia pensasse
no primeiro de maio. Só à noite quando se deitava, fatigada dos trabalhos e
preocupações, é que o seu coração se confrangia, e o seu cérebro a fazia
monologar:
— Se ao menos já tivesse passado!...
Todas as noites as folhas impressas convidando os operários a festejarem o
primeiro de maio eram coladas até à porta das estações policiais; todas as
manhãs apareciam também na fábrica. Os polícias percorriam o bairro logo de
manhãzinha e arrancavam das paredes os pequenos cartazes cor de violeta; mas
pelo meio-dia eles tornavam a aparecer espalhados pelo chão. Da cidade vieram
polícias da secreta que às esquinas espiavam os menores movimentos dos
operários que iam e vinham, animados, alegres, pelas ruas.
Era um prazer desfrutar a impotência da polícia; até a gente de idade dizia,
sorrindo:
— Tem graça isto!
Pavel e André quase não dormiam. Regressavam a casa, pálidos, fatigados,
pouco antes do apito da fábrica soltar a sua estrídula chamada. Pelagueia sabia
que eles organizavam reuniões na floresta, no pântano; não ignorava que a polícia
trabalhava para abafar o movimento, chegando até a prender alguns operários;
compreendia que todas as noites o filho e André se arriscavam a serem presos, e
chegava a pensar que talvez isto fosse melhor.
Em volta do assassínio de Isaías tinha-se feito um silêncio extraordinário. A
polícia interrogou a princípio umas dez pessoas; depois desinteressou-se do
assunto.
Um dia, Maria Korsunova, que vivia em paz com a polícia como com toda a
gente, dizia:
— É lá possível encontrar o criminoso!... Naquela manhã mais de cem
pessoas viram o Isaías, e pelo menos noventa tê-lo-iam esganado de boa vontade.
André transformava-se a olhos visto. As faces tinham-se-lhe encovado; as
pálpebras descaíam-lhe cerrando-lhe os olhos; sorria menos; das narinas descia-
lhe uma ruga até ao canto dos lábios. Todavia entusiasmava-se mais, falando do
futuro, da festa luminosa e deslumbrante do triunfo da liberdade e da razão.
Falando de Isaías, declarou:
— Quanto mais penso nele, mais dó me causa. Não queria que o matassem,
não! Não queria!
— Acaba com isso! — disse Pavel.
Pelagueia acrescentou:— Houve quem topasse num tronco podre, que se desfez em pó.
Chegou enfim o dia tão impacientemente desejado: o primeiro de maio.
Como de costume, o apito da fábrica fez-se ouvir autoritário, implacável.
Pelagueia levantou-se dum salto e foi acender o samovar, que ficara preparado
de véspera.
— Ouves, Pavel? Chamam por nós... — disse André.
— E nós levantamo-nos! — respondeu Pavel alegremente.
— Já faz sol... e as nuvens vão-se embora. Seriam de mais, hoje!
Ao vê-lo perto de si, a velha suplicou-lhe:
— Meu André, não te afastes dele!
— Está dito! Andaremos sempre juntos. Descanse.
— Que estão a dizer? — perguntou Pavel.
— Nada. É a mãe que quer que eu me lave mais que de costume, porque as
raparigas hoje vão olhar muito para mim!
Pelagueia pensava: «Eles agora estão de brincadeira; mas o que acontecerá
ao meio-dia?»
À mesa, tomando o chá, André contou:
— Quando eu era um garoto de dez anos, tive um dia a ambição de apanhar
um raio de sol com o meu copo. Parti o copo, cortei a mão, e levei pancada. Saí
depois para o pátio, e como o sol se refletisse numa poça de água, saltei nela aos
pulos. Levei mais pancada porque fiquei coberto de lama. Berrei para o sol:
«Isto não faz mal! Seu diabo ruivo! Isto não faz mal!» E deitei-lhe a língua de
fora, por vingança.
— Porque lhe chamavas diabo ruivo?
— Defronte de nós morava um ferreiro de cara vermelhaça e barba ruiva;
era um rapagão sempre alegre; e eu achava que o sol se parecia com ele.
Pelagueia exclamou:
— Ora esta! Pois não seria melhor que falassem do que vão fazer?
— Está tudo organizado! — replicou o filho.
— No caso de sermos presos, mãezinha, o Nicolau Ivanovitch virá dizer-lhe o
que tem a fazer, auxiliando-a em tudo.
O apito da fábrica tinha tocado de novo, mas dir-se-ia já menos firme, como
receoso.
Pavel aventou:
— Se fôssemos para a rua?...
— Não. Deixa-te estar em casa até à hora... — aconselhou André. — Para
que hás de atrair a atenção da polícia, que te conhece perfeitamente?Fédia Mazine entrou radiante.
— O povo já se mexe... Pelas ruas, as caras andam severas como machados.
Vessovtchikov, Vassili Gussev e Samoilov estão à porta da fábrica e falam aos
operários... Muitos já voltam para casa. Vamos! São dez horas.
— Vamos! — disse Pavel, resoluto.
Pelagueia exclamou:
— Arde de impaciência, como uma vela ao vento!
Levantou-se e passou logo à cozinha para vestir-se.
— Que vai fazer, mãe?
— Arranjar-me para ir também!
André lançou um olhar a Pavel, puxando pelo bigode. Rapidamente, ele foi
ter com a mãe.
— Não falarei contigo, nem tu comigo. Está combinado?
— Está combinado! Deus os acompanhe! XXVIII
Quando na rua ela ia ouvindo o murmúrio das vozes, quando via por toda a
parte, nas janelas, às portas das casas, grupos que seguiam com o olhar André e
Pavel, o coração ora parecia brilhar-lhe, ora toldar-se de uma nuvem opaca.
Ouviam-se frases soltas:
— Ali vem os comandantes do exército!
— Sabemos lá quem são os comandantes?!...
— Isto não foi por mal.
— Se a polícia os agarra, estão perdidos!
— Isso agarra ela!
Um grito agudo, de mulher, partiu duma janela.
— Estás doido? És pai de família!... Eles são solteiros!
Ao passarem defronte da casa de um tal Zossimov, operário inabilitado que
vivia duma pensão da fábrica, ele chegou à janela e berrou:
— Ó Pavel, olha que te cortam a cabeça, como a um salteador!
André e Pavel pareciam não ver, não ouvir nada. Caminhavam, calmos, sem
pressa, falando em voz alta de vários assuntos.
Encontrando Mironov, homem de idade, modesto, respeitado pela vida
exemplar que levava:
— Também não trabalha hoje, Danilo Mironov? — perguntou Pavel.
— A minha mulher está com as dores do parto... e depois... anda uma coisa
no ar... Dizem que os senhores querem fazer escândalo, partir os vidros da
fábrica...
— Não somos uns bêbados! — exclamou Pavel.
André explicou:
— Atravessaremos apenas as ruas, levando bandeiras e cantando o hino da
liberdade. Oiça o nosso hino, que ele lhe ensinará as nossas crenças.
— Já as conheço...
E vendo Pelagueia:
— Também tu?
— Devemos caminhar com a verdade, mesmo à beira da cova.
— É isso! Aqui está porque dizem que tu levas folhetos proibidos para a
fábrica.
— E quem o diz? — perguntou Pavel.
— Toda a gente. Adeus... adeus.... Não façam algum disparate.
Pelagueia pôs-se a rir baixinho: envaidecia-a que assim falassem dela. O filhodisse-lhe:
— Metem-te na cadeia, mamã.
— Quem me dera!
À esquina duma pequena praça, à entrada de uma rua estreita, umas cem
pessoas cercavam Vessovtchikov, que discursava.
— Espremem-nos para nos tirarem o sangue, como espremeriam um limão
para lhe tirarem o suco.
— É verdade! — responderam algumas vozes que se confundiram depois no
confuso ruído.
— Faz o que pode, o pobre rapaz! — disse André. — Vou ajudá-lo.
Aproximou-se do grupo, abaixou-se, penetrou nele como um saca-rolhas e
começou:
— Companheiros! Dizem que há na terra toda a espécie de povos: judeus e
alemães, franceses, ingleses, tártaros. Mas não creio que assim seja. Há só duas
raças, dois povos irreconciliáveis: os ricos e os pobres. Os vestuários são
diferentes, as línguas também; mas quando se vê como os senhores tratam o
povo, compreende-se que eles são verdadeiros carrascos para os miseráveis,
uma espécie de espinha atravessada na garganta.
Rebentou uma gargalhada.
O ajuntamento aumentou; os ouvintes estendiam o pescoço, punham-se nos
bicos dos pés.
— No estrangeiro, os operários já compreenderam esta simples verdade. E
hoje todos confraternizam neste luminoso dia primeiro de maio. Deixam o
trabalho, e saem para a rua, para se verem, para medirem a sua grande força.
Hoje formam um coração único, porque todos os corações têm a consciência da
força do povo operário, porque a amizade os une, estando cada qual disposto a
sacrificar a vida lutando pela felicidade de todos, pela liberdade, pela justiça a
todos!
— A polícia! — gritou alguém.
Dez guardas a cavalo voltaram a esquina próxima e dirigiram-se para o
ajuntamento, de chicote no ar, e intimando:
— Nada de ajuntamentos!
— Girem!
— Que conversas eram essas?
— Quem falava?
As fisionomias anuviaram-se: todos davam passagem aos cavalos; alguns
treparam a uns tapumes.Depois veio a troça.
— Olhem: montaram uns porcos a cavalo, e eles grunhem: «Nós também
damos ordens!»
André ficou sozinho no meio da rua. Dois cavalos avançaram para ele, ao
mesmo tempo que Pelagueia o agarrava, dizendo-lhe:
— Prometeste não abandonar o Pavel, e vens expor-te assim!...
Chegaram afinal à grande praça, ao centro da qual se erguia a igreja. No
largo havia umas quinhentas pessoas, movendo-se impacientes.
— Mitia! — suplicava uma voz feminina. — Tem cuidado em ti!
— Deixa-me em paz!
A voz amiga e grave de Sizov dizia, calma e persuasiva:
— Não! Não devemos abandonar os rapazes. Têm mais juízo do que nós, e
mais audácia. Quem foi que se meteu no caso do kopeck para o pântano? Foram
eles. Não nos esqueçamos. Estiveram na cadeia por causa disso, mas todos nós
aproveitámos da sua coragem!
O rugido do apito da fábrica suplantou o ruído das conversas. A multidão
estremeceu; muitos empalideceram.
— Companheiros! — gritou Pavel.
A seu lado, a mãe tremia. Decorridos instantes, quando tudo caíra em
silêncio:
— Irmãos! Chegou a hora de renegarmos desta vida cheia de aridez, de
trevas e de ódio, esta vida de opressão em que não há um lugar para nós, em que
não somos homens! Companheiros! Resolvemos declarar hoje, abertamente,
quem somos, desfraldando a nossa bandeira, a bandeira da razão, da verdade, da
liberdade!
Um pau de bandeira comprido e branco for levantado ao ar, tremulando nele,
como uma ave vermelha, a bandeira do povo operário.
Pavel estendeu o braço, gritando:
— Viva o povo operário!
Centenas de vozes lhe responderam em uníssono.
— Viva o nosso partido, companheiros! Viva a liberdade do povo russo!
Mazine, Samoilov, os dois Gussev tinham-se postado junto de Pavel;
Vessovtchikov ia empurrando quem lhe impedia o caminho até ele. Pelagueia,
trémula, com os olhos cheios de lágrimas, agarrou-lhe novamente numa das
mãos, balbuciando:
— Sim!... É a verdade!... Meus amigos!
Ele contemplava a bandeira, rugindo palavras vagas, e com a outra mãoestendida para o símbolo da liberdade. Depois abraçou-se a Pelagueia, rindo.
— Companheiros! — começou então André, dominando o sussurro com a sua
voz meiga, potente e cantante. — Erguemo-nos em honra dum novo Deus, do
Deus da luz e da verdade, da razão e da bondade! Partimos para a cruzada,
companheiros, e o caminho será comprido e difícil. O fim está distante, e os
espinhos estão próximo. Queremos ao nosso lado os que vejam o fim e creiam
no bom êxito; os outros não, porque só os esperam o pesar e o sofrimento. Entrai
nas fileiras, companheiros! Viva o primeiro de maio, a festa da humanidade
livre!
Pavel ergueu a bandeira.
— Reneguemos do velho mundo! — cantou Fédia Mazine com voz sonora.
A resposta veio logo como uma enorme vaga potente:
— Sacudamos a poeira dos pés!
Pelagueia, com um sorriso ardente, via por cima da cabeça de Fédia, o filho e
a bandeira. No meio das vozes mais próximas que entoavam o hino, chegava-lhe
aos ouvidos a de André:
Ergue-te, ergue-te, ó povo operário!
Revoltai-vos, esfomeados!...
E o povo corria, apertava-se, avançando para a bandeira, prosseguindo no
hino, que em voz baixa tinha sido aprendido em casa.
Corramos para aqueles que sofrem...
Um rosto de mulher, meio jubiloso e meio assustado, surgiu ao lado de
Pelagueia.
— Mitia, onde vais?
E a velha respondeu:
— Deixe-o lá! Não lhe dê cuidado! Eu também tinha medo, dantes. O meu
está à frente de todos. Aquele que tem na mão a bandeira é o meu filho!
A outra porém continuava:
— Ó desgraçado! Que fazes? Os soldados estão ali adiante!
— Não se assuste! Isto é uma missão sagrada! Até Jesus não teria existido, se
não houvessem homens que morreram por sua causa!
Sizov apareceu perto dela, agitando no ar o boné, ao compasso do hino:
— Isto é que é bem às claras! Hã? Inventaram um hino que é mesmo lindo!
Hã?
O czar quer soldados na tropa:
Vossos filhos lhes dais...— Não têm medo de nada! — exclamou Sizov. — O meu filho está na cova...
Foi a fábrica que o matou!
Ergue-te, ergue-te, ó povo oprimido!
A multidão, alucinada, nem olhava para trás de si, com os olhos fitos na
bandeira vermelha, que balouçava ao vento.
— Belo coro! Bravo, rapaz! — berrava um entusiasta; e invadido por um
sentimento, que não sabia exprimir, desatou a rogar pragas.
Duma janela partiu uma voz de cana rachada:
— Heréticos! Revoltarem-se contra sua majestade o imperador! Contra o
czar!
Mas o hino continuava, firme, altivo.
Pelagueia, que no meio dos encontrões, fora sendo empurrada para distante
do centro do grande ajuntamento, ouvia então frases soltas:
— Perto da escola está uma companhia de soldados, e outra na fábrica...
— O governador já chegou...
— O quê? É verdade?
— Vi-o com os meus olhos!
— Ainda bem! Começam a ter medo de nós! Já nos mandam soldados, e o
governador.
As vozes do coro foram enfraquecendo; dir-se-ia um movimento de recuo.
Alguns iam-se calando. Aqui e ali havia quem tentasse animar de novo o hino
moribundo.
Ergue-te, ergue-te, ó povo oprimido!
Ao inimigo, ó gente esfaimada!
Pelagueia não podia ver o que se passava no centro; abrindo à força caminho,
notou que a multidão tendia a dispersar, de cabeça baixa, sobrolhos franzidos,
com as narinas contrafeitas. Ouviam-se já alguns assobios trocistas.
— Companheiros! — gritava Pavel. — Os soldados são homens como nós.
Não nos farão mal. Porque haviam de fazê-lo? Porque levamos a liberdade a
todos? Mas precisam também da nossa verdade. Não compreendem ainda, mas
tempo virá, e muito em breve, em que entrarão nas nossas fileiras, em que já
não marcharão sob o estandarte dos gatunos e dos assassinos, mas sim à sombra
da nossa bandeira da liberdade e do bem! E para que eles compreendam mais
depressa a nossa liberdade, caminhemos para a frente! Avante! Companheiros!
Avante!
A sua voz era firme, mas o rebanho dispersava. XXIX
Pelagueia distinguiu à entrada da rua um como pequeno muro, cinzento baixo,
composto de seres humanos sem fisionomia e que tapavam a saída da praça.
Era este muro que infundia o receio em toda aquela gente.
— Companheiros! — continuava Pavel. — A vida inteira está na nossa frente!
Não temos outro caminho! Cantemos! Prà frente!
Respondeu-lhe um silêncio esmagador. A bandeira ergueu-se, balouçou, e
agitando-se por sobre as cabeças, apontou para o muro cinzento dos soldados.
Pelagueia estremeceu, fechou os olhos e suspirou: apenas quatro pessoas se
tinham destacado da multidão e avançavam: Pavel, André, Samoilov e Mazine.
Ouviu-se a voz trémula de Fédia, cantando:
— Sois as vítimas prostradas!...
— Na grande luta fatal! — continuaram duas vozes como dois suspiros
abafados.
E uma voz de comando chegou aos ouvidos de alguns:
— Cruzar baionetas!
O muro cinzento agitou-se, as baionetas fuzilaram no ar, na direção da
bandeira.
— Marche!
— Aí veem eles! — exclamou um vesgo que estivera próximo de Pelagueia;
e metendo as mãos nas algibeiras, afastou-se com grandes pernadas.
Os soldados avançavam em fila, de baioneta calada. Pelagueia aproximou-se
do filho, com as mãos no peito e viu André colocar-se na frente dele, como para
protegê-lo.
— Ao meu lado, companheiro! — ordenou Pavel.
Com as mãos nas costas, André cantava, de cabeça erguida, avançando
sempre. Pavel deu-lhe um encontrão com o ombro, exclamando:
— Aqui! Ao meu lado! Não tens o direito de ir à minha frente! O primeiro
deve ser o porta-bandeira!
— Dis... per... sai!... — gritava um oficialzito com voz aguda, de sabre no ar,
marchando sem dobrar os joelhos e batendo com os tacões, raivoso.
A seu lado, um pouco atrás, marchava pesadamente um homem muito alto
de farto bigode branco, com uma grande capa cinzenta, debruada de vermelho, e
as amplas calças listradas de amarelo. Como o pequeno-russo, caminhava com
as mãos nas costas. Tinha os olhos cravados em Pavel.
Os da bandeira e os soldados iam-se aproximando; estes, no seu caminho, iam
fazendo dispersar a multidão sem lhe tocar.— Salve-se quem puder!
— Vem, Vlassov!
— Para trás, Pavel!
— Dá cá a bandeira, Pavel! — dizia Vessovtchikov. — Eu a escondo.
E deitou-lhe a mão.
— Deixa! — berrou Pavel.
O bexigoso retirou logo a mão, como se se tivesse queimado. O hino cessara
de todo. Os rapazes pararam, envolvendo Pavel num círculo, que ele acabou por
transpor.
Sob a bandeira haveria, quando muito, uns vinte homens; mas firmes.
— Tenente, prenda aquele! — ordenou o velho alto apontando para Pavel.
O oficialzito acorreu logo, e agarrou no pau da bandeira.
— Dá cá isso!
— Não! Abaixo os opressores do povo!
A bandeira tremia; inclinava-se ora para a direita, ora para a esquerda,
ficando depois ereta. Vessovtchikov passou pela frente de Pelagueia, com o
braço erguido, de punho cerrado, e com uma rapidez que ela não lhe conheceu.
— Agarrem todos! — berrou o velho, batendo com o pé.
Alguns soldados avançaram, um deles com a coronha no ar; a bandeira
estremeceu, baixou e desapareceu no grupo cinzento.
Pelagueia soltou um grito, um rugido que não tinha nada de humano. Aos
ouvidos chegou-lhe a voz do filho:
— Até à vista, mãe! Até à vista!
«Está vivo! Não se esqueceu de mim!» tais foram os seus dois rápidos
pensamentos.
Pôs-se nos bicos dos pés e conseguiu ver a cara de André.
— Meus filhos, meus queridos filhos! André! Pavel!
E eles iam dizendo:
— Até à vista, companheiros!
Algumas vozes lhes responderam, mas não em uníssono; vinham das janelas,
dos telhados, não se sabia de onde. XXX
Alguém deu um empurrão em Pelagueia. Através do nevoeiro que lhe
toldava os olhos, viu diante dela o oficialzito, que lhe gritou:
— Vai-te daqui, velha!
Mediu-o com o olhar de alto a baixo, viu-lhe aos pés o pau da bandeira partido
em dois; a um dos pedaços estava preso um resto da bandeira. Abaixou-se para
apanhá-lo. O oficial arrancou-lho das mãos, lançou-o para distante, e ordenou de
novo:
— Vai-te, velha!
Do meio dos soldados partiu o estribilho:
— Ergue-te, ergue-te, ó povo oprimido!
O oficial retrocedeu, rápido, e esganiçou-se, ordenando:
— Façam-os calar! Krainev...
Vacilante, Pelagueia apanhou outra vez o destroço da bandeira. A dez passos
dela formara-se novo ajuntamento. Urravam, grunhiam, assobiavam, recuando
lentamente, e dispersando para os pátios vizinhos.
— Vai para o diabo! — berrou um soldado, empurrando Pelagueia para cima
do passeio.
Para não cair, porque os joelhos vergavam, ela caminhava apoiada ao
destroço da bandeira, ouvindo sempre atrás de si os soldados. Até que estes
passaram-lhe à frente.
Parou. À entrada da rua, um cordão de tropa impedia a passagem para a
praça, que ficara deserta. Quis voltar para trás, mas sem saber o que fazia,
continuou para a frente; meteu-se por uma ruazinha estreita. Parou de novo. Ao
longe, o povo sussurrava.
A ruazita quebrava perto dela para a esquerda. Num grupo compacto
discutia-se.
— Não é por insolência que eles afrontam as baionetas, irmãos!
— Viram, hã! Os soldados a marcharem sobre eles, e eles impassíveis! Sem
medo!
— Que valente é o Pavel Vlassov!
— E o pequeno-russo!
— Meus amigos! Boa gente! — exclamou ela, avançando.
— Olhem: traz na mão o resto da bandeira!
— Cala-te! — ordenou uma voz severa.
Ela estendeu o braço, com um gesto largo.
— Escutem, em nome de Jesus! Sois todos dos nossos, gente sincera. Abrideos olhos... olhai sem receio... O que se passou? Os nossos filhos levantam-se,
pacificamente... Os nossos filhos, o nosso sangue, levantam-se em nome da
verdade, abrem lealmente um caminho novo, largo, direito, destinado a todos...
Por todos vós, pelos vossos filhos, empreendem uma cruzada... dirigindo-se para
um mundo cheio de encanto. Em nome de todos e pelo nome de Cristo,
caminham contra todas as coisas por meio das quais os maus, os mentirosos, os
rapinantes, nos prendem, nos estrangulam prisioneiros. Meus amigos! É pelo
povo, pelo mundo inteiro, por todos os oprimidos que os nossos filhos se
sublevaram. Não os abandoneis, não os renegueis, não deixeis os vossos filhos
seguirem sozinhos a sua estrela. Tende piedade de vós mesmos... amai-os...
compreendei aqueles corações juvenis... tende confiança neles.
Fatigada, avergou. Alguém amparou-a.
— É Deus que a inspira! — disse um deles. — É Deus que a inspira, amigos!
Escutem-na!
Outro lamentou-a:
— Ah! Está-se matando!
— Não se está matando, não, idiota! A nós é que fere, fica sabendo!
A mesma voz aguda e ansiosa tornou a fazer-se ouvir:
— Cristãos! O meu Mitia... A sua alma é pura... O que fez ele? Seguiu os seus
companheiros muito queridos. Fez bem. Por que abandonais os nossos filhos? Que
mal fizeram eles?
Sizov disse a Pelagueia:
— Volta para casa... Vai... Estás arrasada!
Passando depois pelo auditório o olhar severo:
— O meu filho Matvei foi esmagado, na fábrica, bem sabeis. Mas se vivesse,
eu próprio o teria mandado entrar nas fileiras daqueles... Ter-lhe-ia dito. «Vai
com eles, vai, porque defendem uma causa justa, uma causa santa!» É um
velho quem lhes está falando. Conhecem-me todos. Há trinta e nove anos que
trabalho aqui... há cinquenta e sete que vivo neste mundo. O meu sobrinho, um
belo rapaz, inteligente e honrado, foi preso hoje outra vez. Ia também à frente de
todos com o Vlassov, ao lado da bandeira.
E pegando na mão de Pelagueia:
— Esta mulher disse a verdade. Os nossos querem viver com honra, segundo
o que manda a razão; e nós... nós abandonamo-los! Vai para casa, minha velha,
vai!
— Meus amigos, a vida é para os nossos filhos! É para eles a terra! — disse
ela passando pela multidão o olhar toldado de lágrimas.
— Vai, Pelagueia, vai... Toma o teu arrimo!E deu-lhe o destroço da bandeira.
Olhavam para a velha com respeitosa tristeza; seguiu-a um murmúrio de
compaixão. Sem falar, Sizov abria-lhe caminho; e o povo afastava-se sem
protesto, obedecendo a uma força inexplicável, trocando em voz baixa breves
palavras de lamento.
Ao chegar à porta de casa, Pelagueia voltou-se para eles, e disse com muito
reconhecimento:
— Obrigada a todos!
E acrescentou:
— Nosso Senhor Jesus Cristo não teria vindo ao mundo, se os homens não
morressem pela sua glória!
A multidão olhou para ela em silêncio.
Quando Pelagueia entrou em casa acompanhada por Sizov, houve ainda na
rua algumas frases em que a reflexão dominava... Depois todos dispersaram,
vagarosos. SEGUNDA PARTE
I
O resto do dia passou num nevoeiro entrecortado de recordações, numa
fadiga extrema que oprimia corpo e alma. Como uma sombra pardacenta, o
oficialzito saltitava sob os olhares da velha, e em negro redemoinho movediço
luziam o rosto bronzeado de Pavel e os olhos risonhos de André...
A velha ia e vinha pelo quarto, sentava-se junto da janela, olhava para a rua,
tornava a levantar-se e franzia o sobrolho; sentia-se estremecer, relanceava os
olhares em torno; e com a cabeça esvaída, procurava o que quer que fosse, sem
mesmo saber o que queria... Bebeu água sem acalmar a sede, sem extinguir no
coração o ardente braseiro de angústia e de humilhação que toda a consumia.
Aquele dia apresentava-se-lhe dividido em duas partes. A primeira tinha uma
significação, um conteúdo, mas a segunda era como se se evaporasse, era um
vácuo absoluto. Pelagueia não encontrava resposta à pergunta tremente de
perplexidade que a si própria apresentava:
— Que havia de fazer... agora?...
Maria Korsunova apareceu então. Pôs-se a gesticular com força, gritou,
chorou, bateu o pé, alvitrou e prometeu qualquer coisa, ameaçou quem quer que
fosse. Mas tudo aquilo não conseguiu impressionar sequer a outra.
— Ah! — dizia a voz destemperada de Maria, — assim como assim, o povo
mexeu-se desta vez... Aí a têm em revolta, toda a fábrica!
— É verdade, é — respondeu baixinho Pelagueia, meneando a cabeça. E
com o olhar fito, considerava quão longe ficara o passado e tudo o que dela se
afastara com André e com Pavel. Não podia chorar. Tinha o coração
confrangido mas árido; os lábios secos também, como a garganta. Tremiam-lhe
as mãos e tinha arrepios gélidos pelas costas. Mas subsistia nela uma centelha de
cólera, fixa, cravada no coração qual agulha. E a tal íntimo instigamento
respondia ela com uma promessa de fria reflexão:
— Esperem um pouco!...
E então, tossindo ruidosamente, franzia as sobrancelhas.
Pela noite, veio a polícia. Recebeu-os sem admiração nem temor. Entraram
pela casa dentro fazendo muita bulha, com ares satisfeitos. O oficial de pele
amarelada disse, mostrando os dentes:
— Então como vai isso? É esta a terceira vez que nos encontramos, hã?
Ela ficou-se em silêncio e passou a língua pelos beiços para humedecê-los.
Entrou então o oficial a falar muito, em tom de pessoa fina. E Pelagueia percebia
que ele falava pela satisfação de se ouvir a si próprio. Mas as palavras nem lhe
chegavam aos ouvidos nem a impressionavam. No entretanto, quando o oficial
lhe disse:— Tu própria tens culpas, porque não soubeste inspirar a teu filho o respeito a
Deus e ao Imperador...
Respondeu sem o fitar:
— Os nossos filhos é que são os nossos juízes... Eles hão de condenar-nos, e
com toda a razão, visto que os deixámos seguir tal caminho...
— O quê? — gritou o oficial, — fala mais alto!
— Digo que os nossos juízes são os nossos filhos! — repetiu com um suspiro.
O outro pôs-se então a discorrer em voz rápida e irritada, mas as frases
precipitavam-se e não comoviam a velha.
Citada como testemunha, Maria Korsunova ficara de pé ao lado de Pelagueia,
para quem nem olhava. Quando o oficial lhe fazia qualquer pergunta, inclinava-
se logo muito baixo e respondia em voz monótona:
— Não sei, excelência! Sou uma pobre mulher ignorante, só trato do meu
negócio... Graças à minha estupidez, nada sei...
— Cala-te daí! — ordenou o oficial retorcendo os bigodes com violência.
A mulher inclinou-se, e logo, fazendo-lhe um gesto de provocação que ele
não viu, murmurou:
— Toma, guarda lá este!
Mandaram-lhe que revistasse a velha. Pestanejou primeiro; depois fitou o
oficial, com os olhos muito abertos. E declarou com voz submissa:
— Mas eu não sei fazer isso, excelência!
O oficial bateu o pé, zangado.
— Está bem... Desabotoa-te, Pelagueia — disse Maria. E muito corada,
passou a revolver e a apalpar o fato da outra, comentando baixinho:
— Hem? Que corja!
— O que é? — gritou o oficial desabridamente, e insinuou o olhar,
desconfiado, pela abertura por onde Maria se desempenhava da tarefa.
— Nada, excelência, não é nada; coisas que só nós usamos... — murmurou
Korsunova timidamente.
Ao ordenar-lhe o oficial que assinasse o auto de investigação, Pelagueia
traçou estas palavras numa caligrafia desconforme, em grandes letras garrafais:
«Pelagueia Nilovna Vlassov, viúva dum operário».
— Que escreveste tu ali? Porque escreveste aquilo? — prorrompeu o oficial,
de sobrecenho carregado e em tom de desdém; e acrescentou com um riso de
mofa: — Que selvagens!
Retiraram-se os guardas. A mãe foi pôr-se diante da janela. Com os braços
cruzados no peito; para ali ficou muito tempo, olhando sem ver.Desfranzira as sobrancelhas, e comprimia os lábios. Ao mesmo tempo,
apertava as maxilas de encontro uma à outra, com tal força, que dentro em
pouco ficou com dor de dentes. Acabara-se o petróleo do candeeiro, a luz ia a
sumir-se, crepitando. Soprou-a de vez e ficou às escuras. A cólera e a
humilhação de havia pouco desapareciam nela; agora era uma nuvem negra e
fria de angústia e de louco terror, que toda a penetrava, que lhe enchia o peito,
dificultando-lhe o pulsar do coração. E imóvel permaneceu, até sentir cansados
os olhos e as pernas. Ouviu então sob a janela, Maria parar e gritar-lhe com voz
avinhada:
— Pelagueia! Estás a dormir? Minha pobre Pelagueia!... Dorme, dorme!
Todos estão sofrendo os mesmos enxovalhos, — ouves? — todos!
Deitou-se sobre a cama, sem se despir, e caiu em sono profundo, como quem
rola para um precipício.
Em sonhos, viu-se junto do montículo de saibro amarelo que ficava para lá do
pântano, no caminho que conduzia à cidade. Ali, no cume da encosta, que dava
acesso às pedreiras de onde se extraía a areia, Pavel cantava em voz doce, mas
com uma voz que era a mesma de André:
Ergue-te, ergue-te, ó povo oprimido...
Pelagueia passou por diante do montículo e contemplou seu filho, ao mesmo
tempo que levava a mão à fronte. Destacava-se nitidamente o perfil do rapaz no
fundo azul do céu. Mas a mãe sentia vergonha em aproximar-se dele, pois que
estava grávida. E levava ao colo, outra criança. Prosseguiu no seu caminho.
Pelos campos, havia outras crianças a brincar com uma bola; eram muitas, as
crianças, e a bola era vermelha. O pequenito que tinha nos braços queria ir
brincar com os outros e entrou a fazer grande berreiro. Deu-lhe de mamar e
voltou pelo mesmo caminho. O montículo estava já então ocupado por muitos
soldados que lhe apontavam as baionetas. Deitou a fugir em direção a uma igreja
edificada em meio dos campos, uma igreja muito branca, altíssima e de
levíssima construção, como se fosse formada de nuvens. Lá dentro, cantavam-se
responsos; o caixão era grande, preto, hermeticamente fechado. Padre e acólito,
vestiam alvas de imaculada brancura, e entoavam: «Cristo ressuscitou de entre
os mortos...»
O acólito agitou o turíbulo e, ao avistar Pelagueia, sorriu-lhe. Tinha os cabelos
ruivos e uns modos prazenteiros, assim como Samoilov. Da cúpula caíam raios
de sol em verdadeiras toalhas. E, no coro, crianças repetiam a meia-voz:
«Cristo ressuscitou de entre os mortos»...
— Prendam-nos! — gritou subitamente o padre, estacando a meio da igreja.
A alva que vestia tinha desaparecido e no rosto surgia-lhe um bigode grisalho e
espesso. Todos se puseram em fuga, até mesmo o acólito, que atirara para longeo turíbulo e apertava a cabeça entre as mãos, como o pequeno-russo costumava
fazer. A mãe deixou cair a criança sob os pés dos fiéis que se afastavam
evitando-a, com olhares de temor para o pequenino corpo nu. Ela caíra de
joelhos e gritava:
— Não abandonem a criança! Salvem-na...
E, de mãos atrás nas costas, com um sorriso nos lábios, o pequeno-russo
prosseguia cantando:
— «Cristo ressuscitou de entre os mortos!...»
Pelagueia abaixou-se, agarrou na criança, pô-la num carrinho ao lado do qual
Vessovtchikov ia caminhando vagarosamente. Este ria, dizendo:
— Sempre me deram um trabalhão!...
Percorriam uma rua muito suja. Pelas janelas, havia gente que assobiava,
gritava, gesticulava.
O dia estava claro, brilhava o sol com ardor; não havia uma nesga de sombra,
em parte alguma.
— Cante, cante, tiazinha! — dizia o pequeno-russo. — É a vida, isto!
E ia cantando sempre, dominando tudo com a sua boa voz sonora e jovial. A
mãe seguia-o, lamentando-se.
— Porque está ele a mangar comigo?
Nisto, recuou; mas logo se sentiu despenhar para um grande abismo sem fim,
que escachoava com estrondo...
Acordou em sobressalto, toda a tremer, banhada de suores; apurou o ouvido,
perscrutando-se. Estupefacta, sentiu vazio o próprio peito. Parecia-lhe que mão
desconhecida, ferrenha, lhe esquadrinhara o seio e, tendo-se-lhe apoderado do
coração, lho estava a apertar brandamente, como em cruel brinquedo. O silvo da
fábrica uivava teimosamente. Pelo som, calculou que fosse já a segunda
chamada.
Reinava a desordem no quarto; livros e fatos jaziam de mistura, no sobrado
emporcalhado; tudo em confusão.
Levantou-se, cuidou dos arranjos, sem se lavar, sem mesmo rezar. Na
cozinha, encontrou um pau que ainda conservava amarrado um farrapo
encarnado; pegou nele e, irritada, esteve para atirá-lo para debaixo do fogão;
mas, suspirando, tirou e dobrou cuidadosamente o pedaço de pano vermelho e
meteu-o na algibeira. Em seguida, procedeu a uma grande lavagem ao sobrado e
à janela. Acabou de vestir-se, arranjou o samovar e depois foi sentar-se ao pé da
janela da cozinha, a repetir a si mesma a pergunta da véspera:
— Que se há de fazer?
Mas lembrou-se que ainda não tinha orado; postou-se por alguns momentosdiante das imagens santas, e depois tornou a sentar-se. No lugar do coração tinha
um vácuo. O próprio pêndulo do relógio, ordinariamente tão ágil, dir-se-ia ter
afrouxado o seu tiquetaque precipitado. As moscas zumbiam hesitantes e
debatiam-se estonteadas de encontro às vidraças...
Reinava em todo o bairro um silêncio singular; parecia que toda aquela gente,
que na véspera tanto gritara pelas ruas, se tivesse escondido em suas casas para
refletir em silêncio naquele extraordinário dia.
De súbito, Pelagueia recordou-se de uma cena que presenciara uma vez,
quando era rapariga: no velho parque dos senhores Zaussailov havia um vasto
tanque todo esmaltado de nenúfares. Por ali passara em um dia de outono
nevoento e triste; a meio da laguna, um barco jazia, como que estático na água
tranquila e sombria, salpicada de folhas amarelecidas. E desta embarcação sem
remos nem remadores, solitária e imóvel na água opaca, entre folhas mortas,
provinha funda melancolia, um pesar misterioso. Pelagueia permanecera ali
muito tempo, procurando adivinhar quem impelira a canoa para longe da
margem e porquê... Afigurava-se-lhe agora ser ela mesma igual à barquinha que
outrora a levara a pensar nalgum esquife à espera do cadáver. Nesse mesmo dia,
à noite, viera a saber-se que a esposa do intendente se havia afogado, — uma
mulherzinha de modos sacudidos, os cabelos pretos sempre em desalinho...
Passou a mão pelos olhos, como para expulsar tais recordações, mas logo o
pensamento indeciso e horrorizado lhe deslizou brandamente para as impressões
da véspera, dominadoras. Com os olhos apegados à chávena de chá, que lhe
arrefecia na frente, conservou-se longamente imóvel, sentindo nascer-lhe na
alma o desejo de falar com quem quer que fosse, sincero e inteligente, para lhe
perguntar inúmeras coisas.
E, como de propósito para realizar o seu desejo Nicolau Ivanovitch apareceu
pela volta da tarde. Ao vê-lo, apoderou-se dela brusca inquietação. Com voz
sumida, disse sem responder aos cumprimentos de Nicolau:
— Ah! Tiozinho; fez mal em vir até aqui! É uma imprudência; se o veem,
prendem-no!
Depois de lhe ter apertado a mão com energia, Nicolau Ivanovitch segurou
melhor os óculos no nariz, e ao ouvido dela, explicou-lhe rapidamente, em voz
baixa:
— É que nós tínhamos combinado, o André, o Pavel e eu, que se os
prendessem, eu havia de vir buscá-la logo no dia seguinte, para a levar para a
cidade. Vieram cá fazer alguma busca?
— Vieram; revolveram tudo; até me apalparam. Essa gente não tem
consciência nem pudor!
— E porque o haviam de ter? — retorquiu Nicolau com um encolher deombros; e logo lhe expôs as razões por que era conveniente que ela passasse a
residir na cidade.
A outra escutava aquela voz amiga, cheia de solicitude, fitava aquele rosto de
resignado sorriso e sentia-se admirada da confiança que tal homem lhe inspirava.
— Uma vez que o Pavel assim decidiu, e se não o incomodo... — disse.
— Não pense nisso — interrompeu ele logo. — Vivo sozinho, minha irmã só
raramente aparece...
— Mas é que eu quero trabalhar, quero ganhar o meu sustento!
— Pois se quer trabalhar, há de se lhe encontrar trabalho, descanse!
Para ela, a ideia do trabalho relacionava-se indissoluvelmente com a espécie
de atividade a que se entregavam seu filho, André e os mais companheiros.
Aproximou-se de Nicolau e perguntou-lhe fitando-o muito:
— Parece-lhe?...
— Pois está claro! A casa não é grande, e quando a gente vive só...
— Não lhe falo disso, falo-lhe da nossa grande empresa... — explicou em voz
baixa.
E soltou um suspiro triste, melindrada por não ter sido compreendida. Nicolau
ergueu-se e, franzindo os olhos míopes num sorriso, declarou em tom de
gravidade:
— Pois para a grande causa, também há de ter que fazer, se quiser...
Uma ideia simples e clara formara-se subitamente no espírito dela. Já uma
vez conseguira auxiliar Pavel; talvez o conseguisse de novo. Quanto mais gente
houvesse a trabalhar por tal causa, tanto mais clara se tornaria aos olhos de toda a
gente a razão que a Pavel assistia em defendê-la. E ao mesmo tempo que
analisava a fisionomia bondosa de Nicolau Ivanovitch, esperava ela que este lhe
falasse compassivamente de Pavel, de André e dela própria. Mas o outro limitou-
se a acrescentar, acariciando a barba, como que absorto:
— Veja se pode saber pelo Pavel, quando lhe falar, as moradas desses
camponeses que pediram jornais...
— Já as sei! — exclamou ela alegremente. — Sei perfeitamente quem eles
são e onde moram. Dê-me o jornal que eu mesma lho levo. Eu mesma irei
procurá-los e farei o que me mandar... Ninguém será capaz de supor que levo
comigo livros proibidos. Deus seja louvado, bastantes quilos deles meti na
fábrica!
Era como um súbito desejo de partir, de ir ao acaso, fosse para onde fosse,
pelas estradas sem fim, por bosques e aldeias, com o cajado na mão e a alcofa
ao ombro.
— Não encarregue mais ninguém desse serviço, peço-lho, meu amigo —disse ela. — Irei a toda a parte onde julgar preciso. Não tenha medo, que não me
perderei, seja em que província for. De verão e de inverno, caminharei sem
descanso... até morrer! Tornar-me-ei um apóstolo por amor da verdade. Não
será digno de inveja o meu destino? Que bela vida, a do viandante! Vaguear pelo
mundo, sem se possuir nada e sem se ter necessidade de coisa alguma, a não ser
do pão de todos os dias; não humilhar ninguém; percorrer a terra, tranquilamente
e sem que ninguém nos conheça!... Também eu quero viver assim!... E hei de
encontrar Pavel, hei de encontrar André, hei de chegar até onde eles estiverem...
Mas aqui entristeceu ao ver-se já, em pensamentos, sem lar, errante, a
mendigar em nome de Deus pelas portas das cabanas...
Nicolau agarrou-lhe meigamente na mão e afagou-lha ao calor das suas.
— Havemos de falar nisso mais tarde! — declarou, olhando para o relógio. —
É perigosa a tarefa de que quer encarregar-se... pense bem!
— Meu bom amigo! — exclamou ela. — Para que serve pensar? Pois se os
nossos filhos, a parte mais pura do nosso próprio sangue, parcelas dos nossos
próprios corações, os que mais do que tudo nos são queridos, sacrificam vida e
liberdade e morrem sem contemplação por si mesmos, o que não hei de eu de
fazer, eu, que sou mãe?
Nicolau fez-se pálido.
— Sabe que é a primeira vez que oiço falar dessa maneira?...
— Que sei eu dizer! — murmurou ela, sacudindo desconsoladamente a
cabeça. E os braços penderam-lhe num gesto de desalento. — Se eu encontrasse
palavras que exprimissem o que sente o meu coração de mãe!...
E ergueu-se, impelida pelo ardor que nela se concentrava e lhe excitava no
cérebro frases candentes de revolta.
— ... Muitos haviam de chorar... até os malvados, os entes sem consciência...
Nicolau ergueu-se e tornou a ver as horas.
— Pois então, fica combinado, vem para minha casa, para a cidade!
Ela abanou a cabeça, sem uma palavra.
— Quando há de ser? — continuou Nicolau. — O mais depressa possível.
E acrescentou com meiguice:
— Vou ficar em cuidado por sua causa, palavra!
Pelagueia ergueu para ele um olhar admirado: que interesse podia ela inspirar
àquele homem? O outro permanecia de cabeça baixa, com um sorriso de
constrangimento, míope e um tanto corcovado, no seu modesto fato preto.
— Tem dinheiro em casa? — perguntou sem a fitar.
— Não.Com vivacidade, tirou logo da algibeira uma bolsa, abriu-a e apresentou-lha.
— Aí tem, tire, se faz favor...
A pobre mãe esboçou involuntário sorriso e, com um meneio de cabeça,
observou:
— Como tudo está mudado! O próprio dinheiro já não tem valor para vocês.
Há por aí gente capaz de tudo para o possuir, que chega até a perder a própria
alma... e para vocês não passa duns bocados de papel... dumas rodelas de cobre...
Chega-se a imaginar que se vocês o têm é só por caridade para com os outros!
— O dinheiro é na verdade desagradável e incómodo — retorquiu Nicolau
Ivanovitch, rindo. — É por igual coisa enfadonha pedi-lo ou dá-lo!...
Tomou-lhe novamente da mão, apertou-lha fortemente.
— Venha o mais depressa que possa, sim? — repetiu.
E, como das outras vezes, foi-se sem fazer ruído. Ao despedir-se dele,
Pelagueia pensava:
— É tão bom homem!... Contudo não teve uma palavra de compaixão...
E não chegou a perceber bem se tal facto lhe era desagradável ou se lhe
causava simples admiração. II
Quatro dias após a visita de Nicolau, punha-se Pelagueia a caminho, em
direção a casa dele. Quando o carro que a transportava e às duas malas,
atravessou o burgo e rodou em pleno campo, voltou-se para trás ainda uma vez e
sentiu nesse instante que era para sempre que abandonava aquele lugar onde
decorrera a quadra mais sombria e penosa da sua vida, onde outra existência
começara, período repleto de novos desgostos e de novas alegrias, em que os dias
voavam velozes.
Semelhante a imensa aranha dum vermelho escuro, estendia-se a fábrica ao
longo do solo sujo de fuligem, erguendo muito ao alto na atmosfera, as enormes
chaminés. Em torno, amontoavam-se os casinhotos do operariado. Pardacentos e
mesquinhos, formavam grupo compacto à beira do charco e pareciam
entreolhar-se lastimosamente pelas suas janelinhas sem brilho. A meio deles
erguia-se a igreja, de cor vermelha como a fábrica, com o seu campanário, que
parecia menos elevado do que as chaminés da fábrica.
A pobre mulher suspirou, desapertou a gargantilha do vestido, que a
incomodava. Ia triste, mas de uma tristeza árida como a poeira duma tarde de
estio.
— Para diante! — resmungava o carroceiro, puxando pelas rédeas.
Era manco, de idade imprecisa, com uns olhos sem cor definida e uns raros
cabelos de tom sujo. Bamboleando-se todo, caminhava ao lado do veículo,
demonstrando claramente que o fim da viagem, qualquer que ele fosse, se lhe
tornava totalmente indiferente.
— Para diante! — repetia com uma voz sem timbre, atirando por maneira
caricata com as pernas cambadas, calçadas de grossas botas cheias de lama. A
passageira, essa, vagueava o olhar em torno. A desolação da planície era tão
profunda como a da sua alma...
O cavalo, sacudindo lamentosamente a cabeça, enterrava as patas pela areia
profunda, que rangia, frouxamente requentada pelo sol. A carroça, em mau
estado e com os eixos mal azeitados, chiava a cada volta das rodas. A todos estes
ruídos vinha juntar-se a poeira.
Morava Nicolau Ivanovitch no extremo da cidade, num pequeno pavilhão
pintado de verde, encostado a um sombrio prédio de dois andares, a cair de
vetustez, em rua solitária. À frente do pavilhão, havia um jardim, de forma que
pelas janelas dos três quartos metiam-se as frescas ramadas de algumas acácias,
lilases e um ou outro alamozinho prateado. Os quartos eram asseados e
silenciosos; sombras mudas e recortadas, tremiam sem cessar nos sobrados;
pelas paredes havia prateleiras carregadas de livros e alguns retratos de pessoas
de modos graves e ponderados.— Parece-lhe que lhe há de agradar isto? — perguntou Nicolau, introduzindo
a sua hóspede num quarto com uma janela para o jardim e outra para o pátio
coberta por espessa relva. E, neste como nos outros quartos, guarneciam as
paredes várias estantes carregadas de livros.
— Antes queria ficar na cozinha.
Falava assim porque lhe parecia ver em Nicolau o receio de qualquer coisa.
Ele dissuadiu-a de tal propósito, mas com uns modos de constrangimento, e logo
que ela renunciou a ir habitar na cozinha, tornou a mostrar-se satisfeito.
Reinava em toda a casa particular atmosfera: era agradável respirar ali, mas
as vozes instintivamente faziam-se menos ruidosas; não se sentia o desejo de
falar alto, nem de perturbar a beatífica meditação das personagens que do alto
das suas molduras olhavam concentradamente.
— Estas plantas precisam de ser regadas — disse ela depois de tatear a terra
dos vasos.
— Sim, sim — concordou o dono da casa, um tanto confuso. — Bem vê, gosto
muito de flores, mas não tenho tempo para tratar delas.
Notava Pelagueia que, mesmo em sua casa, bastante confortável aliás,
Nicolau movia-se com prudência, sem fazer bulha, como que estranho e a mil
léguas de tudo o que o cercava. Ia pôr a cara mesmo em cima do que queria ver;
compunha os óculos com os dedos afusados da mão direita, assestando, por assim
dizer, uma interrogação muda, a cada objeto que considerava. Dir-se-ia que
fizera a viagem com a sua hóspede e que tudo naquela casa lhe era
desconhecido. Então, ao vê-lo assim distraído, Pelagueia entrou a sentir-se
inteiramente à vontade na sua nova habitação.
Precedida de Nicolau, percorria a casa, notando de memória o lugar de cada
objeto e interrogando o seu amigo sobre os seus hábitos de vida, ao que este dava
respostas embaraçadas, como alguém que tivesse a consciência de não proceder
como deveria, mas que não tivesse outro expediente a tomar.
Regadas as plantas e reunidas em um só monte as músicas esparsas sobre o
piano, deu com o samovar.
— Tem de ser limpo — observou.
Nicolau passou um dos dedos pelo metal embaciado pela sujidade e, pondo-o
mesmo diante do nariz, observou-o com atenção. Isto fê-la rir com gosto.
Quando se encontrou na cama, e depois de ter recordado as peripécias de tal
dia, Pelagueia deitou a cabeça fora da roupa e pôs-se a olhar em volta. Era a
primeira vez na sua vida que se via em casa de um estranho. Não se sentia
perturbada com esta ideia. Solicitamente, pensou no seu hospedeiro; a si própria
prometeu amenizar-lhe a existência com um pouco de carinhosa afeição.
Impressionavam-na a timidez, o feitio desjeitoso e ridículo de Nicolau, aexpressão a um tempo ingénua e séria dos seus olhos claros. E logo o pensamento
lhe voou para o filho; reviveu mentalmente os episódios do dia primeiro de maio.
Esta lembrança causava-lhe uma dor particular, como particular fora aquele dia:
era um sofrimento que não abatia a cabeça para o solo como a pancada dum
malho, mas que torturava o coração com mil picadas e excitava surda cólera,
fazendo altear-se o dorso corcovado da velha.
— Como é triste ter filhos para os ver partir por esse mundo fora!... —
pensava. E apurava o ouvido, escutando os ruídos, desconhecidos para ela, da
vida noturna da cidade, que lhe chegavam amortecidos e atenuados pela janela
aberta, por entre as folhagens do jardim, vindos de longe, a morrerem
suavemente dentro do quarto.
Pela manhã, cedo, procedeu à limpeza do samovar e acendeu-lhe o lume;
guardou toda a loiça sem fazer barulho; depois, foi sentar-se na cozinha e esperou
que o seu hospedeiro acordasse. Houve um ruído de tosse e apareceu Nicolau
com os óculos na mão.
Tendo correspondido aos bons dias que este lhe dirigiu, Pelagueia levou o
samovar para a casa de jantar, enquanto Nicolau se lavava, espalhando a água
pelo sobrado, deixando cair a todo o momento o sabonete, a escova,
resmungando de contínuo contra si próprio.
Ao almoço, Nicolau participou-lhe:
— É bem triste a minha ocupação na administração da província: emprego-
me em observar como é que a nossa gente do campo se arruína...
E repetiu com um sorriso contrafeito:
— Sim, observo, é o verdadeiro termo. Essa pobre gente morre de fome,
ainda novos, lá vão para a cova, roídos pela miséria; as crianças nascem fracas e
enfezadas, caem aos centos, como as moscas, quando chega o inverno...
Sabemos tudo isso perfeitamente... conhecemos as causas dessa calamidade e
afinal, depois de as termos analisado, recebemos o nosso ordenado... e ficamos
por aqui.
— Mas o senhor o que é? — perguntou Pelagueia. — Foi estudante?
— Nada; era mestre-escola rural... Meu pai é diretor duma fábrica em
Viatka; e eu fiz-me professor. Mais tarde, por ter distribuído uns livros pelos
habitantes do lugar, atiraram comigo para uma enxovia. Depois, fui empregado
de livraria Ali, parece que também cometi qualquer imprudência, porque fui
outra vez preso: então mandaram-me para a província de Arkangel... Por lá tive
também os meus desaguisados com o governo local e fui recambiado lá para as
margens do mar Branco, para um lugarejo onde vivi cinco anos...
E dizendo isto, a voz ressoava-lhe calma e suave na tranquilidade daquele
quarto claro, inundado de sol.Frequentes vezes tinha a sua interlocutora ouvido histórias do género daquela;
mas nunca pudera compreender porque era que quem as contava o fazia com tal
placidez, sem que nunca formulasse, por tantos sofrimentos, uma acusação
contra ninguém, como se aquilo devesse fatalmente acontecer a todos...
— Sabe que chega hoje minha irmã — anunciou ele.
— É casada?
— Viúva. O marido foi exilado para a Sibéria. De lá conseguiu fugir, mas no
caminho apanhou um resfriamento e morreu no estrangeiro, há de haver dois
anos.
— Sua irmã é mais nova do que o senhor?
— Não, tem mais seis anos do que eu... Devo-lhe muitos favores... Há de
ouvi-la tocar naquele piano, que é mesmo dela... de mais, há aqui muita coisa
que lhe pertence... Os livros, esses, são meus...
— E onde mora?
— Em toda a parte! — respondeu ele, sorrindo. — Onde quer que seja
precisa uma criatura decidida, lá a encontrarão...
— Então também trabalha pela nossa causa?
— Está claro!
Dito isto, saiu em direção à sua repartição e a velha ficou-se a pensar naquela
causa comum que de dia para dia tornava os homens tão frios e obstinados.
Parecia-lhe estar em frente de altíssima montanha, em plena escuridão.
Por volta do meio-dia veio uma senhora alta e elegante, vestida de preto.
Aberta a porta, a recém-chegada atirou para o chão uma malinha amarela e
tomou com vivacidade uma das mãos de Pelagueia, interrogando:
— A senhora é a mãe do Pavel Vlassov, não é?
— Sou eu, sim, senhora! — declarou Pelagueia, constrangida pela elegância
da dama.
— Pois a senhora é tal qual eu a tinha imaginado! Meu irmão mandou-me
dizer que vinha viver para casa dele! Somos amigos velhos, seu filho e eu...
Falava-me tanto de si!
A voz era baça; exprimia-se com lentidão, mas tinha gestos rápidos e
sacudidos. Brilhava-lhe nos grandes olhos cinzentos um franco sorriso de
mocidade. Algumas rugazinhas delicadas sulcavam-lhe já as fontes, e por cima
das orelhas bem feitas ondeava um ou outro cabelo branco, como prata.
— Venho com fome! — declarou. — Não desgostava de tomar uma chávena
de café...
— Vou preparar-lho imediatamente — disse a outra; e, ao tirar uma cafeteira
do armário, inquiriu em voz baixa: — Então sempre é certo que o Pavel lhefalava de mim?
— Com certeza, e até muitas vezes!
E a irmã de Nicolau tirou da algibeira uma carteirinha, tomou de um cigarro
e acendeu-o. Percorrendo o quarto a grandes passadas, prosseguiu:
— Está em cuidados por causa dele?
Pelagueia sorria, fitando a chama azulada da lâmpada de espírito de vinho, a
crepitar sob a cafeteira. O constrangimento de havia pouco desaparecera na
sinceridade da sua satisfação.
«Fala então muito em mim, o meu filho!» pensava.
E prosseguiu:
— Pergunta-me se estou em cuidado?... Com certeza, é bem triste o que se
passa... Mas antigamente era pior ainda... Agora, como sei que ele não está só...
Fixou o olhar no rosto da sua nova conhecida.
— Como se chama, minha senhora? — perguntou.
— Sofia.
Passou a examiná-la melhor. Havia naquela mulher o que quer que fosse de
audácia, demasiada confiança em si própria e excessiva precipitação. O seu
falar era por demais imperioso.
— O que é importante é que os companheiros não vão ficar muito tempo na
cadeia, e que sejam julgados depressa. Quando o Pavel estiver na Sibéria, nós o
faremos fugir... Ninguém pode passar sem ele, aqui...
Sofia procurava com a vista onde deitar a ponta do cigarro; por fim enterrou-
a num dos vasos de flores.
— Olhe que assim a planta morre! — observou a velha maquinalmente.
— Queira perdoar! — disse Sofia. — É isso o que o Nicolau me está sempre a
repetir...
E retirando do vaso a ponta de cigarro, atirou-a pela janela.
— Sou eu que lhe peço desculpa. Falei sem refletir. Não é a mim que
compete repreendê-la.
— E porque não?... Se eu sou uma estouvada! — redarguiu Sofia serenamente
e com um encolher de ombros. — O café está pronto? Muito obrigada! Então, só
uma chávena? Não se serve?
E, colocando-lhe as mãos nos ombros, puxou-a para si, fitou-a e perguntou-
lhe em tom de admirada:
— Estará por acaso a fazer cerimónia?
A outra respondeu com um sorriso:
— Ainda ontem cheguei aqui, e já hoje me parece que estou em minha casae que conheço a senhora há muitos anos... Nada receio; digo o que me vem à
cabeça; faço observações...
— E está muito bem! — exclamou Sofia com entusiasmo.
— Nem sei onde tenho a cabeça! Nem já me conheço! — continuou
Pelagueia. — Antigamente, a gente estudava as pessoas por dentro e por fora
primeiro que lhes falasse com o coração nas mãos; agora, não, parece que nada
se receia, dizem-se de repente coisas que dantes nem mesmo nos atrevíamos a
pensar... e que coisas!
Sofia acendeu outro cigarro; pousara o olhar cinzento na sua interlocutora,
cariciosamente.
— Disse há pouco que se há de arranjar a fuga do Pavel... Mas como vai ele
viver depois?
Era esta pergunta que importunava Pelagueia e que conseguira enfim
formular.
— É coisa fácil! — respondeu Sofia, servindo-se outra vez de café. — Há de
viver como vive grande número de evadidos... Olhe, agora acabo eu de ir buscar
um deles, que acompanhei até ao estrangeiro. É também um homem valioso; é
operário no sul; foi condenado a cinco anos de degredo, mas só cumpriu três anos
e meio. É por este motivo que me vê tão bem vestida. Julgava que era o meu
trajo habitual? Não; detesto os farrapos e os enfeites... A humanidade é de
origem humilde; deve trajar com humildade, — vestuário bem feito mas
simples...
Pelagueia, abanando a cabeça, disse em voz baixa:
— Ah! Esse primeiro de maio é que me pôs as ideias em confusão! Não me
sinto bem; chega-me a parecer que vou por duas estradas, ao mesmo tempo...
tão depressa julgo que compreendo tudo, tão depressa me vejo cercada de
nevoeiros... A senhora, por exemplo... Vejo que é uma senhora fina... e a
senhora também trabalha pela nossa causa... conhece o Pavel... e diz que o tem
em grande conta... Não sei como agradecer-lhe...
— Não, os agradecimentos são para si — disse Sofia, rindo.
— Para mim?! Não fui eu que lhe ensinei essas coisas todas! — respondeu a
mãe com um suspiro. — Dizia-lhe eu então — continuou: — umas vezes, tudo
isto me parece simples, outras, nem essa mesma simplicidade eu posso
compreender... Assim, agora, encontro-me com o espírito sossegado, daqui a
instantes, já sinto medo por me ver tão sossegada. Toda a minha vida tenho
passado em meio de inquietações... e agora, que há motivo para receios, já quase
não sinto medo... Porque é isto? Não sei!...
Pensativamente, Sofia respondeu:
— Há de vir um dia em que tudo compreenderá!... Parece-me tempo deabandonar todos estes esplendores de vestuário...
Colocou a ponta do cigarro no pires, e sacudindo a cabeça, fez rolar sobre os
ombros, em madeixas espessas, os doirados cabelos. Depois saiu...
A outra seguiu-a com a vista, suspirou, olhou em torno e começou a arrumar
a loiça, com a cabeça vazia de ideias, prostrada por uma sonolência que a
amodorrava. III
Pelas quatro da tarde, Nicolau estava de volta. Ao jantar, Sofia contou, rindo,
o seu encontro com o forçado evadido; falou do terror desse homem, sempre a
ver espiões em todos os cantos, e dos modos esquisitos do evadido... No tom de
voz em que falava alguma coisa fazia lembrar à velha Pelagueia a fanfarronada
dum operário que terminou uma tarefa difícil e que dela se gaba.
Vestia agora Sofia um roupão cinzento, leve e adejante que lhe caía dos
ombros até aos pés em pregas harmoniosas, vaporoso e simples.
Este novo trajo fazia-a parecer mais alta, ao passo que o olhar se lhe anuviara
e os movimentos se lhe tornavam mais serenos.
— É preciso que trates doutro negócio, Sofia! — disse Nicolau, terminado o
jantar. — Como sabes, há ideia de editar um jornal para a gente dos campos...
mas, graças às últimas prisões efetuadas, os laços que nos uniam a esses
camponeses, quebraram-se. Só Pelagueia sabe como poderemos reaver o
homem que se encarrega da distribuição do jornal... Parte com ela... o mais cedo
que possas...
— Está bem — disse Sofia, recomeçando a fumar. — Está combinado,
mãezinha?
— Porque não? Pois, vamos!
— E é longe?
— Oitenta quilómetros, pouco mais ou menos.
— Otimamente!... Agora vou tocar um bocado de piano... Está disposta para
um pouco de música?
— Nada me pergunte, faça de conta que não estou aqui — respondeu ela. E
foi sentar-se para um canto do canapé coberto de uma capa de linho. Notava ela
que os dois irmãos, sem parecerem ligar-lhe importância, a intrometiam todavia,
e amiúde, na conversação.
— Ouve isto, Nicolau; é de Grieg. Trouxe hoje a música. Fecha a janela!
Abriu a partitura e acariciou as teclas de mansinho, com a mão esquerda. As
cordas entraram a vibrar em acordes indolentes e pesados.
Houve primeiro um profundo suspiro, depois outra nota veio juntar-se às
primeiras, numa forte e tremente amplidão de som. A mão direita entrou então
em ressonâncias claras, em gritos parecidos com os de uma ave assustada,
balanceou-se depois, em cadência, imitando o palpitar das asas no fundo sombrio
das notas graves, que cantavam, harmoniosas e compassadas, quais vagas batidas
pela tempestade. Em resposta à canção, vinham logo caudais de acordes
soturnos, chorando com dor, sufocando queixumes, implorações, gemidos, tudo
fundido num ritmo de angústia. Por vezes, como num impulso de desespero, a
melodia soluçava, desfalecida, mas logo recaía, rastejando, hesitante, sob atorrente espessa e cascadeante das notas cavas, e afogava-se, sumia-se, para de
novo reaparecer por entre o ribombar igual e monótono; tomava alento, então
vibrava e dissolvia-se por fim num poderoso martelar de notas húmidas que toda
a salpicavam, e ficava a suspirar sem cansaço, com a mesma força e a mesma
resignação...
Ao princípio, a música não impressionou Pelagueia; não a compreendia; era
para ela como um caos de sonoridades. O ouvido não lhe permitia distinguir a
melodia na palpitação complexa daquele aluvião de notas. Meio sonolenta, fitava
Nicolau, sentado no outro extremo do canapé, com as pernas dobradas por
debaixo do corpo; considerava também o severo perfil de Sofia, de cabeça
inclinada, sob o velo espesso dos seus cabelos de oiro. Ia pôr-se o Sol. Um raio
trémulo nimbou primeiro a cabeça, o ombro da pianista; depois, deslizando para
o teclado, brincou-lhe entre os dedos. Toda a sala estava cheia daquela melodia,
e o coração da mãe despertava enfim, sem que ela mesma o percebesse.
Sucediam-se, entretanto, três notas vibrantes como a voz de Fédia Mazine,
regularmente e sustentando-se mutuamente à mesma altura, tais três peixes de
prata flutuando num regato, cintilando por entre a torrente dos sons...
De vez em quando, outra nota mais vinha juntar-se às primeiras, e, todas ao
mesmo tempo, entravam a cantar uma canção ingénua, triste e acalentadora. E
Pelagueia começava a poder segui-las, esperando que voltassem, não escutando
outra coisa, abstraindo-as do caos inquietador da harmonia geral, que pouco a
pouco ia deixando de ouvir...
E subitamente, das negruras remotas do seu passado, veio-lhe a recordação
duma humilhação esquecida havia muito, mas que ressuscitava agora com
nitidez cruel.
De uma vez, o marido voltara-lhe para casa tardíssimo e completamente
embriagado. Puxara-a pelo braço, atirara-a da cama e enchera-a de pontapés,
regougando:
— Vai-te daqui, canalha, que não te posso aturar!... Vai-te!
Para se esquivar aos maus tratos, tomara precipitadamente nos braços o filho,
que então tinha dois anos, e, firmando-se nos joelhos, protegia-se com o corpinho
do inocente, como se fosse um escudo. O pequeno chorava, barafustava, com
medo, nu, e quentinho do berço.
— Vai-te daqui! — rugia Mikhail.
Ela saltara da cama, descalça, correra à cozinha; então, atirando uma
camisola para os ombros e embrulhando a criança num xaile, sem uma palavra,
sem um queixume nem uma exortação, com os pés no lajedo, saíra para a rua.
Era em maio, a noite ia fresca; a frígida terra da calçada colava-se-lhe aos pés,
penetrando-a toda, regelando-a.A criança chorava sempre e debatia-se. Desnudara o seio, conchegou a si o
pequeno; e, instigada pelo medo, lá se foi pelas ruas escuras, cantando baixinho
para adormecer o filho. Ia despontar o dia; Pelagueia toda se envergonhava com
a ideia de ser encontrada naquele estado. Desceu até à margem do pântano,
sentou-se no chão debaixo de compacto bosque de álamos... E para ali esteve
muito tempo, disfarçada na treva, com os olhos esgazeados fitos na escuridão, a
cantar timidamente para embalar o filho e o coração ultrajado. Súbito, uma ave
negra, silenciosa, esvoaçara-lhe por sobre a cabeça e sulcara o céu, acordando-
a. E a tremer de frio, erguera-se e lá voltara para casa, a arrostar com o seu
habitual terror das sevícias e das injúrias incessantes...
Pela última vez, ecoou um acorde sonoro, mas de indiferença e frieza, que
num suspiro se imobilizou no ambiente.
Voltou-se Sofia e a meia voz perguntou ao irmão:
— Gostas?
— Muito! — respondeu, estremecendo como se saísse dum sonho; —
muito!...
Os dedos de Sofia desfiaram então um harpejo suave e harmonioso.
No íntimo do seu peito, Pelagueia escutava ainda o eco débil e tremente das
suas recordações. O seu desejo era que a música prosseguisse. E um pensamento
germinava nela:
— Ora aqui está uma gente que vive sossegada... o irmão, a irmã... muito
amigos... Entretêm-se com a música... Não dizem palavradas, não bebem
aguardente, não questionam por qualquer futilidade... nem pensam sequer em
ofender-se um ao outro, como se faz entre toda a gente de baixa extração...
Sofia, entretanto, fumava um cigarro. Fumava muito, quase sem descanso.
— Era este o trecho favorito do pobre Kostia! — disse, aspirando com força
uma fumaça, e assentou de novo a mão, num débil acorde triste. — Como eu
gostava de lho tocar! Era tão inteligente! Nada havia que não compreendesse... O
espírito dele era acessível a tudo.
— É do marido que fala — pensou a hóspede. E sorriu.
— Quanta felicidade ele me trouxe! — continuou Sofia em voz baixa, ao
passo que acompanhava os seus pensamentos com leves acordes repetidos. —
Como ele sabia viver bem!... Sempre alegre, de uma alegria infantil, cheia de
vida, que todo o iluminava...
— Infantil! — repetiu a mãe consigo mesma.
— É verdade — disse Nicolau, revolvendo a barbicha, — uma alma de
iluminado!
Sofia atirou fora o cigarro ainda aceso, voltou-se para Pelagueia, perguntou:— Esta bulha não a incomoda?
— Já lhe disse que não se importe comigo — respondeu ela com um ligeiro
despeito que não pôde disfarçar. — Eu nada percebo disso... Estou aqui quieta, a
escutar e a pensar...
— Não, senhora, é preciso que compreenda! — replicou Sofia. — Uma
mulher, principalmente quando está triste, não pode deixar de compreender a
música...
E pulsou as teclas com força. Ressoou um grito violento, como se a alguém
acabassem de dar uma destas notícias terríveis, das que ferem em pleno coração
e arrancam um dolorido queixume. Entraram então a vibrar umas vozes frescas
que, logo, horrorizadas e desconcertadas fugiram velozmente, não se sabia para
onde; de novo, ecoou uma outra voz sonora e irritada, abafando todo o conjunto...
Era com certeza uma desgraça, mas desgraça que incitava cóleras, não gemidos.
Depois outra voz enérgica mas reconfortante entrou a entoar uma canção bonita
e simples cheia de persuasão, de incitamento. Surdamente, em tom de melindre,
as vozes dos graves murmuravam...
Sofia tocou por muito tempo ainda. Pelagueia sentia-se perturbada. Todo o
seu desejo era perguntar o que significava tal música, que assim fazia germinar
nela imagens indistintas, sentimentos, pensamentos mutáveis sem cessar. O pesar
e a angústia cediam o lugar perante as cintilações duma serena alegria; dir-se-ia
que um bando de invisíveis passarinhos remoinhasse pela sala, acariciando as
almas com o perpassar das delicadas asas, contando gravemente alguma coisa
que provocasse instintivamente o curso do pensamento com palavras
incompreensíveis, acalentando os corações com esperanças vagas, enchendo-os
de força e de vigor.
E Pelagueia sentia o ardente desejo de dizer o que quer que fosse meigo aos
seus companheiros. Sorria ternamente, inebriada por aquela música.
Procurou com a vista o que poderia fazer; ergueu-se, e nos bicos dos pés, foi
para a cozinha dispor o samovar.
Mas o desejo de se tornar útil não se lhe extinguiu, continuava a pulsar-lhe no
coração com obstinada regularidade; serviu depois o chá com um sorriso de
embaraço e de comoção, com a alma banhada em tépidos eflúvios de ternura
que ela partilhava por igual entre si e os seus companheiros.
— Nós cá, gente do povo — explicou, — sentimos tudo, mas é-nos difícil
exprimi-lo, não podemos formar senão ideias incertas; e envergonhamo-nos de
não podermos dizer o que se sente. E quantas vezes, para falar com consciência,
a gente não se zanga com as próprias ideias e com aqueles que no-las sugerem!
Entramos a irritar-nos e afugentamo-las! Em que agitações se passa esta vida! É
ela que por todos os lados nos assalta e nos magoa. Era tão bom descansar!... Mas
os pensamentos não deixam à alma um só momento de repouso e ordenam-lheque veja, que oiça.
Nicolau escutava-a, com aprovações de cabeça; limpava os óculos com
movimentos sacudidos; Sofia encarava fixamente aquela mulher, esquecida do
cigarro, que se apagara. Continuava sentada ao piano, e de vez em quando
afagava o teclado. Acordes muito brandos acompanhavam assim as
considerações da anciã, a qual se deu pressa em revestir os seus pensamentos
íntimos com palavras da mais simples sinceridade.
— Agora, posso falar um pouco de mim própria e dos meus... porque já
compreendo a vida, e comecei a conhecê-la quando pude comparar. Dantes, não
tinha pontos de comparação. Na nossa classe, todos levam vida igual. Hoje, que
vejo como vivem os outros, lembro-me de como eu vivi e custa-me muito o
recordá-lo... Enfim, é impossível voltar atrás; e mesmo quando o pudéssemos
fazer, não encontraríamos uma nova mocidade...
Baixou a voz; prosseguiu:
— Talvez eu esteja dizendo coisas insensatas ou néscias, pois que o senhor e
sua irmã devem conhecer tudo isto... mas vejam que é de mim que estou falando
e que falo a quem teve a bondade de me chamar para o seu lado.
Tremiam-lhe na voz lágrimas de grata felicidade; fitou-os a ambos com um
olhar muito risonho e continuou:
— Queria abrir-lhes a minha alma para que vissem todo o bem que lhes
quero.
— Mas nós bem vemos! — disse Nicolau com bondade. — E sentimo-nos
felizes por tê-la na nossa companhia.
— Sabem o que isto me parece? — interrogou ela, sempre com voz sumida,
risonha, — parece que foi um tesoiro que eu achei, que estou rica, que posso
presentear toda a gente... Isto é talvez um efeito da minha tolice...
— Não diga tal! — interrompeu com gravidade Sofia.
Não era para acalmar de pronto aquela sede de expansão; continuou portanto
Pelagueia a falar-lhes de tudo o que para ela era novo e lhe parecia de
inapreciável importância. Contou-lhes a sua misérrima vida cheia de
humilhações e resignado sofrer; por vezes, interrompia-se; julgava ter-se
afastado de si mesma e estar falando de si como o faria de qualquer outra...
Sem rancor, em termos correntios e nos lábios sorriso de piedade, desenrolou
em presença de Nicolau e da irmã a monótona e lúgubre história dos seus tristes
dias, enumerado os maus tratos infligidos pelo marido, intimamente admirada,
ela própria, da futilidade dos pretextos que os provocavam, admirada por não ter
sabido esquivar-se-lhes...
Atentos e silenciosos, Nicolau e Sofia escutavam-na; sentiam-se esmagados
pela significação profunda daquela história, daquele ente humano tratado comoum animal e que passara tanto tempo sem sentir a injustiça da sua condição, sem
um murmúrio. Eram milhares de vidas a falar pela boca daquela mulher. Tudo
nesta existência era banal e indiferente, mas havia pelo mundo inumerável
quantidade de criaturas avergadas àquele modo de vida... E, avantajando-se mais
e mais nos seus raciocínios, aquela história assumia as proporções dum símbolo...
Nicolau, com os cotovelos sobre a mesa, a cabeça entre as mãos, quedava-se
imóvel, considerando a sua hóspede por detrás do vidro dos óculos, com os olhos
piscando de atenção. Sofia, reclinada no espaldar da cadeira, sentia-se
estremecer, murmurava de quando em quando o que quer que fosse, abanando a
cabeça negativamente. Deixara de fumar; o seu rosto parecia agora mais magro
ainda, e mais pálido.
— Um dia — começou ela, em voz baixa, — senti-me muito infeliz; parecia-
me que toda a minha vida nada mais era do que um delírio de febre. Estava eu
então no desterro, numa miserável povoação da província, onde nada tinha a
fazer, ninguém em quem pensar, a não ser em mim própria... Para ocupar este
ócio, pus-me a fazer a conta das minhas infelicidades, recordando-as todas:
ficara de mal com meu pai, a quem estimava, fora expulsa do colégio por ler
livros proibidos; em seguida, fora a prisão, a traição dum companheiro a quem
muito queria, a captura de meu marido, outra vez a prisão e o degredo, a morte
dele... E então parecia-me que a mais desgraçada criatura de toda a terra era
eu... Mas todos os meus males justapostos e decuplicados, não chegam a valer
um mês da sua vida, pobre mulher... não! Essa tortura de todos os dias durante
anos e anos... Onde vão os pobres buscar essa força contra o sofrimento?
— Acabam por se habituar! — respondeu ela, suspirando.
— E julgava eu conhecer o mundo! — disse Nicolau, pensativo. — E afinal,
quando não se trata só de impressões fragmentadas, quando não é já um livro
que nos fala, mas uma criatura em pessoa, como é horrível! E os pormenores
são também horrorosos, os próprios nadas, cada um dos segundos que formam
um ano inteiro!...
E a conversa prosseguia em voz baixinha. Mergulhada nas suas recordações,
Pelagueia extraía do crepúsculo sombrio do seu passado todas as injúrias
mesquinhas e habituais; ia compondo negro quadro de mudo horror imenso, em
que soçobrava a sua juventude de mulher. De repente, exclamou:
— Ai, e eu aqui a palrar!... São horas de nos irmos deitar! É impossível contar
tudo!
Nicolau inclinou-se diante dela mais do que costumava e apertou-lhe com
mais força a mão. Sofia acompanhou-a à porta do quarto, e ali, parando,
murmurou:
— Durma bem!... Boa noite!
Era caloroso o seu falar; envolvia num meigo olhar de carícia o rosto dePelagueia... Esta agarrou-lhe em uma das mãos e, apertando-a nas suas,
respondeu:
— Quanto lhes agradeço! IV
Quatro dias depois, apresentavam-se a Nicolau as duas mulheres pobremente
vestidas de saias de chita já usadas, de cajados na mão e alforge ao ombro. Este
trajo tornava Sofia mais baixa e dava-lhe à fisionomia uma expressão de
austeridade.
— Parece que passas a vida a jornadear de convento em convento! — disse-
lhe o irmão.
E ao despedir-se dela, apertou-lhe a mão com energia. Mais uma vez, notou a
velha esta simplicidade e esta calma. Decididamente, não eram pródigos de
beijos nem de demonstrações de estima, e contudo, mostravam-se tão sinceros
um para o outro, tão solícitos para com os estranhos! Porque nos meios onde
Pelagueia vivera, todos se beijavam muito, todos se animavam com bonitas
palavras, o que não impedia que se mordessem como cães danados.
Atravessaram as viandantes a cidade, alcançaram o campo e tomaram a
vasta estrada bem calcetada, orlada de velhas bétulas.
— Não estará cansada? — inquiriu a mais idosa.
— Julga que não estou costumada a andar? Pois engana-se...
Jovialmente, por entre risadinhas, como se tratasse de travessuras de criança,
Sofia entrou de contar os seus feitos de revolucionária. Vivera já com um nome
suposto, servindo-se para isso dum passaporte falsificado; disfarçara-se para
fugir aos espiões, transportara para diversas cidades muitos quintais de brochuras
proibidas. Tinha arranjado a fuga a muitos companheiros exilados,
acompanhara-os ao estrangeiro. De uma vez, montara na sua própria casa uma
imprensa clandestina; e quando os gendarmes, sob denúncia do delito, tinham
vindo proceder às buscas, disfarçara-se ela de criada, minutos antes deles
chegarem e saíra, cruzando-se com os inquisidores já no limiar do prédio. Sem
uma capa, com uma simples mantilha pela cabeça e de almotolia de petróleo em
punho, percorrera de outra vez a cidade de extremo a extremo, sob um frio
rigoroso, em pleno inverno. Doutra ocasião, porque se tivesse dirigido a casa de
uns correligionários, numa cidade distante, ia a subir a escada quando percebeu
que havia lá polícia, varejando. Era tarde para sair do prédio; bateu portanto com
o maior atrevimento, no andar de baixo. Entrou em casa de gente que não
conhecia, de mala na mão, e tratou de pôr a claro o acontecido.
— Os senhores podem denunciar-me se quiserem, mas não os julgo capazes
disso — declarara ela convictamente.
Atrapalhadíssimos, não fecharam os olhos toda aquela noite, julgando a todo o
momento que lhes vinham bater à porta. Contudo, não a denunciaram e, chegada
a manhã, mangaram, como ela, com a polícia. Também lhe acontecera vestir-se
de irmã da caridade e fazer viagem no mesmo compartimento e no mesmoassento do vagão em que ia um espião encarregado de lhe seguir a pista, o qual,
para fazer valer a sua esperteza, se lhe pusera a contar como era que procedia
em tal diligência. Estava certo o homem de que Sofia ia naquele comboio, em
segunda classe: e a cada nova paragem, descia e comentava regressando para o
pé da pseudo-religiosa:
— Não a vejo... Provavelmente vai a dormir. É que essa gente também
cansa... Levam uma vida tão dura... tal qual a nossa!
A outra ria com estas histórias, olhava para Sofia com afeto. Alta e magra, a
jovem senhora caminhava com passo leve mas firme; tinha os pés fortes e bem
feitos. Na maneira de andar, no falar, no próprio timbre da voz, decidida se bem
que um pouco baça, em toda a sua figura esbelta, transparecia uma como boa
saúde moral, uma audácia alegre, um desejo de ar e de espaço, e os seus olhares
para tudo se dirigiam com uma expressão de juvenil contentamento.
— Olhe aquele pinheiro tão bonito! — exclamou, mostrando uma árvore à
sua companheira, que parou para vê-la. Mas o pinheiro, afinal, não era nem
maior nem mais folhudo que os outros.
— É verdade, bonita árvore! — repetiu, risonha.
— Olhe uma cotovia!
E os olhos pardos de Sofia brilharam de satisfação. Às vezes, com
movimentos flexuosos, baixava-se, apanhava uma flor e acariciava-lhe
amorosamente as pétalas trémulas com o ligeiro contacto dos seus dedos
afusados e ágeis. E trauteava canções meigas.
Pelo caminho, cruzavam-se com peões ou campónios empoleirados nas suas
carroçadas, que lhes diziam:
— A paz seja convosco!
Brilhava um lindo Sol primaveril; todo o vasto azul resplandecia; aos dois lados
da estrada, estendiam-se densas florestas de madeiras resinosas, herdades de um
verde muito vivo; cantavam pássaros, o ar tépido e perfumado acariciava
brandamente as faces.
Tudo contribuía para aproximar Pelagueia daquela mulher de alma e de olhos
tão límpidos; e involuntariamente, chegava-se mais para ela, esforçando-se por
igualar a sua andadura pela dela. Contudo, às vezes, destacava-se das frases de
Sofia uma expressão demasiado viva, demasiado sonora, que a Pelagueia se
afigurava supérflua. Então, era tomada de inquietação:
— Estou vendo que não vai agradar ao Ribine...
Mas um instante depois, Sofia voltava a falar com simplicidade, cordialmente,
e ela de novo a olhava com ternura.
— Como é nova ainda! — suspirou.— Ora! Olhe que já tenho trinta e dois!
A outra riu.
— Não é isso que quero dizer... À primeira vista parece ter mais idade... mas
quando se repara nos seus olhos, quando a ouvimos falar, fica-se muito
admirado, parece uma menina... A sua vida é desassossegada, penosa, cheia de
perigos... e todavia, tem o coração alegre...
— Não vejo em que a minha vida seja penosa, nem posso imaginar outra
mais interessante e melhor do que esta...
— E quem há de recompensá-la dos seus trabalhos?
— Se já estamos recompensados! — respondeu Sofia, em tom que à outra
pareceu denunciar fundo orgulho. — Arranjámos uma existência que nos
satisfaz; que mais havemos de desejar?
A mãe olhou para ela furtivamente e baixou a cabeça, repetindo a si mesma:
«Não vai gostar nada dela, o Ribine...»
Aspirando a plenos pulmões o ar tépido, as duas mulheres caminhavam em
passo lento mas firme. A Pelagueia parecia-lhe que andava em romaria.
Lembrava-lhe aquilo a sua meninice e a pura felicidade que a animava quando,
nos dias de festa, partia da aldeia em direção a algum mosteiro, onde houvesse
uma imagem milagrosa.
De vez em quando, Sofia entoava com a sua voz novas canções em que se
falava de amor e do Céu; outras vezes, punha-se de súbito a declamar estrofes
célebres que celebravam os campos e as florestas, o Volga; e a outra escutava-a,
prazenteira, meneando, sem dar por isso, a cabeça ao ritmo do verso, cuja
melodia a enfeitiçava.
Naquele coração, tudo era paz, carinho e doçura, como num velho
jardinzinho, numa tarde de estio. V
Ao terceiro dia, ao chegarem a uma aldeia, perguntou a mais velha das duas
a um trabalhador do campo onde ficava a fábrica do alcatrão. E logo tiveram de
descer por estreito atalho íngreme e agreste, qual escada, onde as velhas raízes
formavam degraus. Avistaram dali uma clareirazinha circular atapetada de
aparas de lenha e de carvão e onde, aqui e ali, havia poças de alcatrão.
— Eis-nos chegadas! — disse a velha, olhando em volta com desconfiança.
Junto a uma choça feita com estacas e algumas ramadas, jantavam quatro
operários, em torno duma mesa feita com três tábuas em bruto estendidas sobre
umas estacas cravadas no solo. Eram eles: Ribine, muito sujo, com a camisa
aberta no peito, Jéfim e mais dois rapazes. Ribine foi o primeiro que avistou as
duas mulheres; quedou-se à espera, em silêncio, formando pala com a mão, para
abrigar os olhos.
— Viva, irmão Mikhail! — gritou-lhe de longe Pelagueia.
Levantou-se então e veio-lhes ao encontro, mas sem se apressar. Ao
reconhecer quem lhe falava, deteve-se a acamar a barba.
— Andamos em romaria! — disse ela, aproximando-se mais. — E fiz um
rodeio para vir ver-te. Esta minha amiga veio comigo; chama-se Ana...
Contente com o seu achado, olhou de soslaio para Sofia. Esta permaneceu
séria e impassível.
— Vivam lá — respondeu Ribine com um sorriso contrafeito. — Apertou-lhe
a mão, cumprimentou Sofia e acrescentou:
— É inútil mentir; não estamos na cidade; aqui não são precisas mentiras.
Aqui só há gente séria, todos nos conhecemos uns aos outros.
Jéfim, à mesa, onde continuava sentado, examinava com atenção as recém-
vindas; segredou o que quer que fosse aos seus comensais.
Ao aproximarem-se as duas, levantou-se, cumprimentou sem dizer uma
palavra. Os outros dois deixaram-se ficar, como se não tivessem dado pelas
viandantes.
— Vive-se aqui como presidiários! — prosseguiu Ribine, batendo
familiarmente no ombro da sua conhecida. — Ninguém vem ver-nos, o patrão
não está na aldeia, a mulher dele lá está no hospital e eu sou agora aqui uma
espécie de gerente... Sentem-se. Tomam chá? Ó Jéfim, vai buscar o leite!
Vagarosamente, Jéfim encaminhou-se para a choupana, enquanto as duas se
desembaraçavam dos alforges. Um dos camponeses, um grande latagão magro,
levantara-se para as ajudar. O outro, atarracado e coberto de farrapos,
acotovelado sobre a mesa, olhava pensativo para elas, coçando a cabeça e
trauteando baixinho. Aromas sufocantes de alcatrão fresco casavam-se com o
cheiro das folhagens apodrecidas, provocando tonturas.— Este chama-se Jacob — disse Ribine, apresentando o mais alto dos dois
operários; — aquele é o Ignati... E então o teu filho?
— Está na cadeia! — gemeu a mãe.
— Outra vez! — exclamou Ribine. — Ao que parece deu-se bem por lá...
Ignati deixara de cantarolar. Jacob tomou o cajado das mãos de Pelagueia.
— Senta-te, tiazinha!
— E a senhora sente-se também — disse Ribine, dirigindo-se a Sofia.
Sem uma palavra, esta tomou assento em cima dum fardo e pôs-se a
examinar Ribine.
— E quando foi ele preso? — perguntou este; e acrescentou com um abanar
de cabeça: — Não tens sorte nenhuma, Pelagueia!
— Que importa!
— Então, já te vais costumando?
— Não, mas cheguei ao convencimento de que as coisas não podem ir de
outra forma!
— Ora aí está! — disse Ribine. — Conta, então...
Jéfim trouxe uma infusa de leite; o outro tomou de sobre a mesa uma tigela,
laviscou-a com um pouco de água e depois de a encher de leite, empurrou-a
para o lugar de Sofia. Ia e vinha sem ruído, com precaução. Depois da mãe ter
finalizado a sua curta narrativa, todos ficaram calados. Ignati, que continuava à
mesa, fazia gravuras nas tábuas com as unhas. Jéfim encostava-se ao ombro de
Ribine. Jacob, de braços cruzados no peito, baixava a cabeça. Sofia continuava a
analisar as caras daqueles campónios.
— Pois está visto! — declarou Ribine, arrastando muito as sílabas. —
Decidiram-se a proceder às claras...
— Eles que viessem para cá com uma fantochada dessas — declarou Jéfim,
— que os mujiques dariam cabo deles!...
— Disseste que o Pavel vai ser julgado? — perguntou Ribine.
— Sim, é coisa decidida — respondeu a mãe.
— E que pena pode ele apanhar... não sabes?
— Ou as galés ou o degredo para a Sibéria, por toda a vida! — respondeu,
baixando a voz.
Os outros três operários fitaram-na simultaneamente.
Ribine prosseguiu:
— E quando ele se meteu nesse negócio, sabia o que o esperava?
— Não sei... provavelmente.
— Sim, sabia-o! — afirmou Sofia com decisão.Calaram-se todos e ficaram-se como estáticos, mergulhados num mesmo
pensamento consolador.
— Ora aí está! — continuou Ribine em tom de severa gravidade. — Também
eu creio que o soubesse. É um homem sério; não se mete levianamente nessas
coisas. Vejam lá companheiros. Sabia que o podiam espetar numa baioneta ou
que lhe davam as honras dum presídio, e atirou-se para a frente ainda assim! Era
preciso que se atirasse — atirou-se! E se lhe tivessem posto a própria mãe no
caminho, passava-lhe por cima... não é isto Pelagueia?
— Com certeza... — murmurou a mãe com estremecimento.
E depois de ter circunvagado o olhar em torno, soltou do peito profundo
suspiro. Sofia afagou-lhe com meiguice uma das mãos e teve para Ribine um
olhar de descontentamento.
— Aquilo é que é um homem? — declarou ele a meia voz, fixando os
sombrios olhos nos companheiros. E novamente todos se quedaram silenciosos.
Pendiam da atmosfera ténues réstias de sol, como fitas de oiro. Perto dali
grasnava um corvo. Os olhares de Pelagueia vagueavam, impressionada com a
lembrança de Pavel e de André. Pelo solo, na clareira exígua onde estavam,
jaziam barricas escangalhadas que tinham servido a alcatrão, madeiros sem
casca e com a fibra a desfiar-se; flutuavam ao vento as aparas, em longas fitas.
Os carvalhos e as bétulas perfilavam-se em fila compacta; por todos os lados,
ganhavam insensivelmente o espaço da clareira como para apagar, aniquilar
todos aqueles destroços, toda aquela imundice que os ultrajava, e, aliados no seu
silêncio, imóveis, projetavam no solo as suas sombras negras e trágicas.
De súbito, Jacob afastou-se da árvore a que se encostava, deu um passo e logo
parou para interrogar com voz forte e desabrida, abanando a cabeça:
— E é contra gente dessa que nos vão mandar a combater, o Jéfim e eu?
— Pois contra quem pensavas? — retorquiu Ribine em tom frio. — Andam a
esganar-nos com as nossas próprias mãos... É o cúmulo!
— Pois assim como assim, prefiro ser soldado! — declarou Jéfim com voz
indecisa.
— E quem te pega? — exclamou Ignati. — Pois vai!
E, fitando Jéfim, acrescentou a rir:
— Em todo o caso, quando me apontares a espingarda, aponta à cabeça, não
me deixes estropiado... mata-me de vez!...
— Já me disseste isso! — gritou Jéfim com desabrimento.
— Escutem, companheiros! — prosseguiu Ribine; e ergueu o braço num gesto
lento. — Olhem para esta mulher! — e apontava para Pelagueia. — O filho está
perdido; provavelmente...— Porque dizes isso? — perguntou a mãe, angustiada.
— Porque assim é preciso! Pois haviam os teus cabelos de embranquecer em
vão e o teu coração de sofrer inutilmente?... Tu ainda não morreste, não é
verdade?... Trouxeste livros?
A mãe lançou-lhe furtivo olhar e confirmou após um silêncio:
— Trago.
— Ora ainda bem! — disse Ribine, dando uma palmada na mesa. — Percebi-
o logo mal te vi. E para que terias tu vindo, a não ser para isso? Vejam lá vocês, o
filho desapareceu-nos das fileiras, e aí temos a mãe no lugar dele!
Ergueu-se e pôs-se a gritar com voz cava e gestos ameaçadores:
— Essa canalha não sabe o que anda a semear por aí, às cegas! Hão de ver,
quando nós estivermos mais fortes, quando entrarmos a ceifar nessas ervas
malditas! Hão de ver!
A estas palavras, toda se assustou Pelagueia; olhou para Ribine, achou-o muito
mudado, muito magro; já não tinha a barba cuidada como dantes, mas
emaranhada; distinguiam-se-lhe perfeitamente as saliências dos malares. No
branco azulado dos olhos corriam-lhe laivos sanguíneos, como de quem anda mal
dormido. O nariz afilara-se-lhe, mais cartilaginoso e adunco, qual bico de ave de
rapina. Pelo cós da camisa, desabotoado, dantes sempre sujo de tintas e alcatrão,
viam-se-lhe as clavículas mirradas e o denso velo do peito. Toda a pessoa deste
homem respirava alguma coisa mais soturna e melancólica do que o fora até
então. O brilho dos exaltados olhos iluminava-lhe o rosto sombreado por uma
expressão de sofrimento e de rancor, que relampejava em purpúreos clarões.
— No outro dia — continuou ele, — o governador do distrito manda-me
chamar e pergunta-me:
«Que foste tu dizer ao padre, grande garoto?» «E porque é que eu sou
garoto? Ganho o meu sustento com o meu trabalho, não faço mal a ninguém»,
respondi-lhe eu. Pôs-se logo a berrar e deu-me um murro em cheio na cara... e
mandou-me para o calaboiço por três dias. Ah! Assim é que vocês sabem falar
ao povo? Está bem! Mas não esperem pelo perdão, excomungados! Se não for
eu, outro há de lavar a injúria, em vocês ou nos filhos de vocês... lembrem-se
bem! Andaram a lavrar no peito do povo com as garras de ferro da avidez e da
cobiça e nele semearam a maldade... Pois seremos sem piedade, malditos! Aí
tem!
Espumava de furor; na voz tinha impetuosidades que amedrontavam
Pelagueia.
— E afinal que tinha eu dito ao padre? — prosseguiu mais calmo. — À saída
duma reunião, estava ele na rua num grupo de campónios e dizia-lhes que os
homens eram um rebanho e que precisavam sempre dum pastor... aí está! E eudisse-lhe por brincadeira: «Se fizessem a raposa chefe da floresta, penas havia
de haver muitas, mas pássaros, nem um!» O padre olhou-me de revés e entrou a
dizer que o povo devia sofrer, resignar-se e orar a Deus com mais frequência,
para que ele lhe desse forças para tudo suportar. E eu respondi-lhe: «O povo reza
muito; provavelmente Deus é que não tem tempo para escutá-lo. Se nem o
ouve!» Ora aí está! Ele então perguntou-me quais eram as minhas orações. E eu
respondi-lhe: «Não aprendi senão uma só na minha vida; é a do povo inteiro:
Deus, ensina-me a trabalhar para os nossos senhores, a comer pedras, a escarrar
sangue!» O padre não me deixou acabar... A senhora é da nobreza, ao que vejo?
— perguntou bruscamente Ribine, interrompendo a narrativa e voltando-se para
Sofia.
— Porque julga isso? — disse ela com um sobressalto de surpresa.
— Ora, porquê... — disse Ribine. — É sorte sua, nasceu assim, aí está! A
senhora imagina que pode disfarçar o seu pecado de fidalguia só porque tapou a
cabeça com um lenço de chita? O padre conhece-se bem, mesmo quando não
traz coroa... Agora acaba a senhora de pôr o cotovelo na mesa, que estava
molhada e a senhora fez uma careta... E olhe que tem as costas muito aprumadas
para uma operária...
Receando que ele ofendesse Sofia com aquela maneira de falar, aqueles ditos
e aquela graça pesada, Pelagueia interveio com viveza e severamente:
— É minha amiga esta senhora. É uma excelente mulher... Foi a trabalhar por
nós e pela nossa causa que fez os cabelos brancos... Não sejas tão desabrido com
ela...
Ribine soltou um suspiro mal contido.
— Então eu disse-lhe alguma coisa injuriosa?
Sofia olhou para ele e perguntou secamente:
— Tinha alguma coisa a comunicar-me?
— Eu? Ah, sim! Aí tem: nós temos cá um homem que chegou há dias; é
primo do Jacob, está doente, está tísico, mas é esperto e percebe muita coisa.
Posso mandar chamá-lo?
— Porque não? — retorquiu Sofia.
Ribine fitou-a franzindo as pálpebras e ordenou em voz baixa:
— Jéfim, vai a casa do homem... diz-lhe que venha cá à noite.
Jéfim dirigiu-se à choupana, pôs o boné e sem uma palavra, sem mesmo
olhar para quem estava, sumiu-se pelo bosque, a passo sossegado. Ribine meneou
a cabeça e, apontando para ele, disse surdamente:
— Sofre muito!... É teimoso... Dentro em pouco vai ser soldado... E o Jacob
também... O Jacob diz que não pode, que não vai para o regimento. O Jéfimtambém não pode, mas diz que quer ir, custe o que custar... Teve uma ideia...
Lembrou-se que poderá levar aos soldados pruridos de liberdade... Eu cá, a
minha opinião é que não se pode arrombar uma parede dando-lhe com a cabeça.
E eles, metem-lhes uma espingarda na mão e abalam por aí fora. Para onde
vão? Não percebem que marcham contra si mesmos... Anda a sofrer, o Jéfim. E
o Ignati ainda mais lhe revolve o punhal na ferida. Parece-me inútil...
— Qual história! — replicou Ignati com indignação, sem fitar o seu
contendor. — Lá no regimento se encarregam de o converter, e há de acabar por
fazer fogo, como os outros!
— Não, não creio! — replicou o outro, pensativo. — Mas, seja como for,
mais vale evitar isso... A Rússia é grande... Como podem eles descobrir um
homem? É preciso arranjar um passaporte e fugir de aldeia em aldeia.
— São essas as minhas intenções! — declarou Ignati, batendo na perna com
uma acha. — Uma vez que está resolvido combater-se, é preciso marchar sem
hesitação.
A conversa cessou. Voltavam pelo ar, atarefadas, as abelhas e as vespas,
esmaltando o silêncio com os seus zunidos. Os passarinhos chilreavam; de longe,
vinha uma canção numa toada que vagueava por sobre os campos. Depois de
curto silêncio, prosseguiu Ribine:
— É preciso trabalhar, companheiros... Ou talvez prefiram descansar... Lá
dentro da choupana há camas a lastro. Ó Jacob, vai-lhes arranjar folhas bem
secas... E tu, dá cá os livros, tiazinha! Onde estão?
Sofia e Pelagueia abriram os alforges. Ribine inclinou-se a espreitar e disse,
satisfeito:
— Aí está... Mas que grande quantidade trouxeram! Ora venham ver! Há
muito tempo que trabalha neste negócio, a senhora? — acrescentou, falando com
Sofia.
— Há doze anos.
— Então, como se chama?
— Chamo-me Ana Ivanovna. Porquê?
— Cá por coisas. E já esteve presa provavelmente?
— Já estive.
— Bem vês! — disse Pelagueia, baixo e em tom de censura. — E tu que a
trataste mal...
Ficou calado um momento. Depois, tomando um pacote de livros, respondeu:
— Não se zangue! Campónio e fidalgo são como o alcatrão e a água, não há
maneira de os misturar, não se dão...
— Não sou fidalga; sou uma criatura que pensa, que sofre e geme! —contestou Sofia.
— É possível! — disse Ribine. — Vou esconder tudo isto.
Ignati e Jacob aproximaram-se dele, de mãos estendidas.
— Dá-nos alguns! — disse Ignati.
— São todos iguais? — perguntou Ribine a Sofia.
— Nem todos. Vem também um jornal...
— Ah!
Os três homens precipitaram-se para a cabana.
— É exaltado, este rapaz! — observou Pelagueia, baixando a voz e seguindo-
os com olhar pensativo.
— É verdade — disse Sofia no mesmo tom. — Nunca vi uma cara como
aquela... Dir-se-ia um mártir heroico!... Vamos lá também; estou curiosa por ver
o efeito do jornal.
— Mas não se zangue com ele... — suplicou brandamente a outra.
— Que bom coração é o seu, Pelagueia!
Ao ver surgir as duas mulheres à porta da choupana, Ignati levantou a cabeça
e lançou-lhes rápido olhar; depois, enterrando os dedos pelos cabelos anelados,
curvou-se de novo sobre o jornal, que desdobrara nos joelhos. Ribine, de pé,
apresentava o periódico à luz duma réstia, que penetrava na choupana por uma
greta do teto; ia deslocando pouco a pouco o jornal sob o feixe de luz, à medida
que ia lendo e lia por boca pequena. Jacob, ajoelhado, firmava o peito de
encontro à borda duma cama e lia também.
Pelagueia viu que a Sofia não passava despercebido o entusiasmo dos três por
aquelas palavras de verdade. O rosto iluminou-se-lhe num sorriso. Devagarinho,
foi para um canto da choça e sentou-se. Sofia, em silêncio, passou-lhe o braço
pelos ombros.
— Tio Mikhail! Olhe que nos insultam, neste papel, a nós, camponeses! —
proferiu Jacob a meia voz, sem se mexer.
Ribine voltou-se para ele e disse, risonho:
— É porque nos estimam. Aqueles que nos amam podem dizer-nos tudo o que
quiserem sem que nos irritemos.
Ignati respirou ruidosamente, ergueu a cabeça e pôs-se a rir; em seguida,
fechou os olhos, dizendo:
— Está aqui escrito: «O homem dos campos deixou de ser uma criatura
humana.» E é bem verdade; já o não é!
Perpassou pelo seu rosto ingénuo e franco uma expressão de aviltamento.
— Este sábio das dúzias! — continuou, referindo-se ao articulista. — Euqueria ver-te na minha pele! Fizesses-te tu fino! Então é que se havia de ver o
que tu eras!
— Vou descansar um bocado — disse Pelagueia a Sofia. — Sinto-me um
pouco fatigada e este cheiro do alcatrão faz-me dores de cabeça. Vem?
— Ainda não.
Pelagueia estendeu-se na cama e daí a pouco dormitava. Sofia, sentada à
cabeceira, continuava observando os leitores, ao passo que ia enxotando com
solicitude os zângãos e as vespas que vinham adejar em volta do rosto da
companheira. Pelagueia, com os olhos meio cerrados, percebia-o e tais atenções
impressionavam-na.
Ribine aproximou-se, perguntou:
— Está a dormir?
— Está.
Ele calou-se um pedaço, atentou no sereno rosto da anciã e com um suspiro
prosseguiu baixinho:
— É talvez esta a primeira que tenha seguido o filho pelo mesmo caminho!...
A primeira!
— Vamo-nos embora, não a incomodemos — propôs Sofia.
— Temos de ir trabalhar. Eu preferia ficar a conversar consigo, mas é
forçoso deixar isso para a noite. Vamos, camaradas!
Saíram os três homens, deixando Sofia na choupana. Pelagueia pensava:
— Deus seja louvado! Fizeram as pazes!... Entendem-se um com o outro!...
E adormeceu sossegadamente, aspirando o ar perfumado da floresta. VI
À noitinha, voltaram os quatro operários, satisfeitos por verem terminado o
seu dia. Ao ruído das vozes, Pelagueia acordou, veio à porta da cabana, risonha,
bocejando.
— Vocês a trabalharem e eu a dormir como uma fidalga! — disse, fitando-os
afetuosamente a todos.
— Não faz mal, nós perdoamos-te — disse Ribine.
Mostrava-se mais sossegado do que ao jantar; o cansaço dissipara o seu
excesso de agitação.
— Ignati! — ordenou. — Arranja a ceia. Cada um trata da casa, por sua vez.
Hoje é ao Ignati que compete dar-nos de comer e de beber... Ora aí está!
— De bom grado cedia hoje a minha vez a outro qualquer — declarou Ignati.
E, enquanto procurava distinguir a conversa, começou a apanhar aparas, a fim
de acender o lume.
— As visitas são sempre interessantes para toda a gente! — confirmou Jéfim,
sentando-se ao lado de Sofia.
— Eu te ajudo, Ignati! — disse Jacob.
Penetrou na choça e de lá trouxe um pão redondo. Partiu-o em fatias.
— Chiu! — murmurou Jéfim, — oiço tossir...
Ribine apurou o ouvido e disse:
— É ele que chega.
E, voltado para Sofia, explicou:
— Vai ouvir uma testemunha. A minha vontade era poder levá-lo a essas
cidades, pô-lo em exposição por essas praças, e o povo que fosse ouvi-lo... Diz
sempre o mesmo, mas é digno de ser ouvido!...
Silêncio e escuridão tornavam-se mais profundos; as vozes ecoavam com
mais suavidade. Sofia e Pelagueia seguiam com o olhar os camponeses a
moverem-se pesadamente, mas devagar, com singular prudência.
Do bosque surgiu um homem corcovado, de alta estatura, caminhando
apoiado com todo o seu peso a uma bengala. Ouvia-se-lhe o ruído da respiração
rouca.
— Aí vem o Saveli! — exclamou Jacob.
— Aqui me têm! — disse o homem, parando, sacudido por um acesso de
tosse.
Vestia um sobretudo usado que lhe caía até aos pés; de sob o chapéu redondo
e muito velho, saíam-lhe em madeixas ténues uns cabelos amarelentos e ásperos.
Cobria-lhe o rosto ossudo e pálido uma barba loira; a boca aberta, os olhos comum brilho de febre, nas orbitas profundamente cavadas, como no fundo de
sombrias cavernas.
Apresentado a Sofia, perguntou:
— Segundo parece, trouxe livros para o povo ler?
— Sim, senhor.
— Agradeço-lho... pelo povo. O povo não pode ainda compreender o livro da
verdade... ainda não pode agradecer-lhe como merece; mas eu que o
compreendi já, agradeço-lhe em nome do povo.
Respirava com avidez, absorvendo o ar em pequenas golfadas repetidas.
Falava a espaços.
Os dedos descarnados das diáfanas mãos, perpassava-os pelo peito, tentando
abotoar o sobretudo.
— Pode ser-lhe doentio, para si, este passeio tão tarde, pela floresta... Há
muita humidade e sufoca-se, ali! — fez notar Sofia.
— Para mim já nada há salubre ou doentio! — respondeu, ofegante. — Só a
morte será bem-vinda.
Era doloroso ouvir falar aquele homem, tanto mais que toda a sua pessoa
provocava dó, uma compaixão infinita mas improfícua. Agachou-se sobre uma
barrica, dobrando os joelhos com precaução, como se receasse que se
quebrassem; depois, enxugou a fronte, coberta de suor. Tinha os cabelos secos e
sem viço.
O lume começava a atear-se. Ao clarão das chamas tudo se deslocou; as
sombras, lambidas pelas labaredas, fugiam assustadas pela floresta. Por cima do
braseiro apareceu por instantes a cara redonda de Ignati, a soprar. Depois,
apagado o lume, ficou persistente o cheiro do fumo, e o silêncio e as trevas
apoderaram-se de novo da clareira, como se viessem apurar o ouvido para o
falar rouco do doente.
— Mas ainda posso ser útil ao povo... Sim, como o testemunho dum enorme
crime! Olhem para mim! Tenho vinte e oito anos e ando a morrer... Há dez anos,
levantava nos ombros, sem me custar, até duzentos quilos... Pensava eu então que
com uma saúde daquelas, havia de levar setenta anos para chegar à cova, direito
e sem tropeçar... E afinal vivi dez... e não posso ir mais longe.
— Aí têm a canção deste homem! — disse Ribine com voz rancorosa.
Reacendeu-se mais viva a fogueira; de novo as sombras debandaram, para se
sumirem nas chamas, agitando-se em torno do braseiro numa dança silenciosa e
hostil. Sob a mordedura do lume, os velhos troncos estralejavam e gemiam. A
folhagem sussurrava em segredo, agitada por uma corrente de ar quente. Vivas e
folgazãs, as línguas de fogo purpúreas e doiradas brincavam, abraçavam-se,
erguiam-se, despedindo faíscas. Voou uma folha em brasa. No céu, as estrelassorriam para as centelhas, atraindo-as a si.
— Não é só minha esta canção; há milhares de criaturas que também a
cantam, mas só para si! E cantam-na só para si porque não compreendem que as
suas miseráveis existências são uma lição salutar para o povo... Quantos seres
minados ou estropiados pelo trabalho e pela cadeia, não morrem para aí de
fome, sem um queixume!... É preciso gritar bem alto, companheiros, é preciso
gritar!
E Saveli entrou a tossir, todo curvado e trémulo.
Jacob pôs na mesa uma caneca de kvass [4]e atirou para o lado um molho de
cebolas, e disse ao enfermo:
— Anda, Saveli, trouxe leite para ti.
O outro abanou negativamente a cabeça; mas Jacob agarrou-o por debaixo
dos braços e fê-lo sentar à mesa.
— Oiçam — disse Sofia a Ribine, em voz baixa e em tom de censura, — para
que o obrigaram a vir? Pode morrer dum momento para o outro.
— É certo — replicou Ribine. — Mas mais vale morrer rodeado de amigos;
ser-lhe-á menos doloroso do que na solidão. Tem sofrido muito na sua vida; pois
que sofra ainda mais um pouco para servir de aviso aos homens... Que lhe pode
fazer isso? Ali está!
— Chega a parecer que se desinteressa dele com horror pelos seus
sofrimentos — exclamou Sofia.
Ribine lançou-lhe rápido olhar e respondeu com modos sombrios:
— Só os fidalgos é que se recreiam com o espetáculo do Cristo a gemer na
sua cruz; mas nós outros, nós queremos estudar os homens ao vivo e gostávamos
que a senhora também aprendesse a conhecê-los...
O enfermo retomou a palavra:
— Destrói-se um homem com o trabalho, dá-se cabo dele com a prisão... e
porquê? O nosso patrão — era na fábrica Nefedov que eu trabalhava à doida — o
nosso patrão deu a uma cançonetista uma grande bacia de mãos e mais uma
bacia de cama tudo de oiro... E foi em tal vaso que ficaram as nossas forças, as
nossas vidas... as minhas e as de milhares doutros. Aí têm para que elas
serviram!
— O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus! — disse Jéfim,
sorrindo — e aí está o emprego que lhe dão... não vai mal!
— É necessário gritar isso! — exclamou Ribine com violenta palmada na
mesa.
— Não devemos suportá-lo! — acrescentou Jacob mais baixo.
Ignati limitou-se a sorrir.Notava a velha que os três operários falavam pouco, mas escutavam com
uma atenção insaciável de almas sequiosas. De cada vez que Ribine abria a boca,
fitavam-no, copiavam-lhe os menores movimentos. As frases de Saveli, porém,
provocavam-lhes singulares trejeitos de enfado. Dir-se-ia não sentirem dó algum
do enfermo.
E Pelagueia inclinando-se ao ouvido de Sofia, perguntou baixinho:
— É certo o que ele conta?
Sofia respondeu em voz muito alta:
— É certo, sim senhora! Os jornais falaram do caso; foi em Moscovo que isso
se deu.
— E esse homem não foi castigado! — disse Ribine com ódio. — Devia ter
sido punido; precisava que o levassem a uma praça pública e ali cortá-lo aos
bocados, atirando aos cães essa carne imunda! Grandes castigos se hão de ver,
quando o povo se levantar!
— Que frio que faz! — disse o tísico.
Ajudou-o Jacob a levantar e a chegar-se para o lume.
A fogueira ardia em clarão uniforme e vivo. Sombras imprecisas erravam
em torno, contemplando surpresas o brinquedo das labaredas. Saveli, sentou-se
num cepo e ofereceu ao calor as mãos secas e transparentes. Ribine designou-o
com um gesto do mento, e disse para Sofia:
— Sabe mais do que um livro! Eu é que o conheço... Quando uma máquina
arranca um braço ou mata um homem, compreende-se; é sempre do homem a
culpa. Mas sugar o sangue dum homem e atira-lo depois à margem como uma
coisa podre, isso é que não se explica.
— Sim... — pronunciou com lentidão Ignati, — não se explica... Um chefe de
distrito conheci eu, que obrigava a gente do campo a cumprimentar-lhe o cavalo,
quando o levavam a passeio pela aldeia, e que punha a ferros quem
desobedecesse. Para que lhe servia aquilo?... É o que também não se explica!
Depois de comerem, fizeram roda junto à fogueira. Diante deles o lume
ardia, devorando rapidamente a lenha; por detrás, céu e floresta envolviam-se na
treva. O estropiado fixava no lume os olhos esgazeados, tossia sem descanso,
com grandes arrepios. Parecia que do peito lhe saíam pedaços da própria vida,
solertes em abandonar aquele corpo esquálido. Dançavam-lhe no rosto reflexos
do fogo sem que lhe colorissem a pele fenecida. Só os olhos cintilavam numa
coruscação azulada, bruxuleante.
— Talvez preferisses abrigar-te na cabana, hã, Saveli? — lembrou Jacob,
inclinando-se-lhe no ombro.
— Para quê? — respondeu esforçadamente. — Quero ficar aqui. Já não tenho
muito tempo a viver entre os homens... Não, não tenho para muito tempo.Vagueou o olhar em volta, ficou um bocado calado e prosseguiu, com um
sorriso pálido:
— Sinto-me bem entre vocês. Estou-os vendo e estou a pensar que talvez
sejam vocês que hão de vingar todos os que foram maltratados... o povo inteiro!
Ninguém lhe respondeu. E daí a pouco, a cabeça pendia-lhe para o peito e
entrou a dormitar. Ribine considerou-o demoradamente e disse meio em
segredo:
— É sempre assim quando vem visitar-nos; senta-se para aí e conta sempre a
mesma coisa.
— Aborrece ouvi-lo repetir-se! — murmurou Ignati. — Bastava ouvir uma
vez essa história para não a esquecer e ele sempre a moê-la!
— É que para ele, nessa história, tudo se resume, a sua vida inteira,
compreende-o bem! — justificou Ribine, soturno. — E da mesma sorte a vida de
toda uma legião de seres. Ouvi-lhe essa história dezenas de vezes já, e, ainda
assim, acontece-me ter certas dúvidas. Há horas de bondade em que a gente se
recusa a crer na vilania do homem, ou na sua loucura, e em que se sente
compaixão por todos, ricos e pobres... porque o rico também é um transviado do
bom caminho. A um cega-o a fome, ao outro, o dinheiro... E então, a gente
pensa:
«Homens, meus irmãos! Desentorpeçam esses raciocínios, reflitam com
lealdade, reflitam bem.»
O doente oscilou estremunhado, abriu os olhos e deitou-se sobre a terra. Sem
ruído, Jacob levantou-se, foi à cabana buscar um pequeno agasalho de peles, e
estendeu-lho por cima. Depois, retomou o seu lugar ao lado de Sofia.
Às vozes dos homens misturavam-se o surdo crepitar da lenha e o murmúrio
das labaredas; e aquele lume, qual rosto rubicundo, parecia sorrir-se com malícia
para os sombrios vultos que lhe faziam círculo.
Falou então Sofia da luta dos povos em prol do direito à vida e à liberdade, dos
remotos combates dos rústicos da Alemanha, dos infortúnios dos irlandeses, dos
feitos do operariado francês.
Sob a floresta, revestida de veludos, na pequena rotunda limitada pelos
majestáticos arvoredos, sob a abóbada do negro firmamento, perante a risonha
lareira, em meio daquele grupo de sombras hostis e assombradas, ressuscitavam
os acontecimentos que haviam revolucionado o mundo dos saciados, dos entes
tresloucados pela cobiça; desfilavam uns após outros, os povos da terra,
sangrentos, esgotados em mil combates; celebravam-se os nomes dos heróis da
liberdade e da justiça...
Aquela débil voz de mulher ecoava mansamente, como se viesse do passado;
instigava esperanças, inspirava confianças. O auditório escutava religiosamenteaquela melopeia, a vasta história dos seus irmãos espirituais. Todos fitavam o
rosto pálido e magro da narradora, correspondiam com sorrisos ao sorrir dos
olhos cinzentos. E com mais viva luz brilhava para eles a sagrada causa da
humanidade; nos seus peitos medrava mais e mais o sentimento do parentesco
moral com os seus irmãos do mundo inteiro; um novo coração nascia para eles
na própria terra e ardiam no desejo de tudo compreenderem, de tudo resumirem
nele.
— Há de chegar o dia em que os povos todos levantarão cabeça, bradando:
«Basta! Não queremos continuar nesta vida!» — proclamou Sofia com voz
sonora, — e então há de desabar o fictício poder daqueles que só na avidez
encontram a sua força, a terra fugir-lhes-á debaixo dos pés e ficarão sem saber
em que apoiar-se.
— É o que há de acontecer! — afirmou Ribine, de cabeça baixa. — Que
ninguém poupe as suas forças e tudo vai de vencida!
Pelagueia escutava, arregalando muito as sobrancelhas e com um sorriso de
surpresa nervosa. Estava a ver que tudo o que nas maneiras de Sofia lhe parecia
insólito, a sua audácia, a sua extrema vivacidade, tudo desaparecera, como
submerso no fluxo regular e entusiástico das suas palavras. A noite silenciosa, o
revoltear do lume, a fisionomia da jovem oradora, interessavam-na; mas o que a
deleitava principalmente era a absorta atenção dos campónios. Permaneciam
imóveis, esforçando-se por não perturbarem fosse com o que fosse o
desenvolvimento sereno do discurso; dir-se-ia neles um receio de quebrarem o
fio luminoso que os ligava ao mundo. De tempos a tempos, um deles colocava
com precaução uma nova acha no lume; e dispersava com a mão as faúlhas e o
fumo, para que não incomodassem Sofia.
Ao romper da aurora, Sofia calou-se, fatigada, e atentou, sorrindo, nos rostos
pensativos e tranquilizados que a cercavam.
— É tempo de partirmos — disse a velha.
— Vamos! — respondeu Sofia com expressão de cansaço.
Um dos operários suspirou ruidosamente.
— É pena que se vão! — declarou Ribine com desacostumada meiguice. —
A senhora fala tão bem! Grande coisa é ligar as criaturas pela sorte comum!
Quando a gente pensa que há milhões de seres a quererem o mesmo que nós
queremos, o coração torna-se bom... E há tanta força na bondade!
— E quando se procede com bondade, pagam-nos com a violência! —
protestou Jéfim numa risadinha e pondo-se de pé com presteza. — É bom que
elas se vão, tio Mikhail, antes que sejam vistas... Quando os livros estiverem
distribuídos pelo povo, as autoridades hão de indagar de onde vieram... E pode
alguém lembrar-se das peregrinas e denunciá-las...— Obrigado pelo incomodo, mãe! — disse Ribine interrompendo Jéfim. —
Sempre que olho para ti me lembro do Pavel... Fizeste bem em seguir-lhe o
exemplo...
Inteiramente apaziguado agora, esboçava franco e amigável sorriso. Fazia
fresco; no entanto, conservava-se de blusa, o cós entreaberto, o peito à mostra.
Pelagueia atentou-lhe no robusto corpo e aconselhou, solícita:
— Devias agasalhar-te, faz frio.
— Se eu estou tão quente cá por dentro! — objetou.
De pé, junto do fogo, os três rapazes conversavam baixo; aos pés deles,
dormia o doente, embrulhado nas peles. Branqueava-se o céu, fundiam-se as
sombras. Trémula, a folhagem aguardava o sol.
— Está bem, adeus! — disse Ribine, apertando a mão de Sofia. — Como hei
de perguntar por si, na cidade?
— Basta que me procures — responde Pelagueia.
Lentamente, em um só grupo, vieram os operários apertar a mão de Sofia
com expressões desastradas, de afeto. Em cada um deles transparecia secreta
gratidão e amizade, e tal sentimento, novo como era para eles, desconcertava-os.
Com os olhos prazenteiros e amortecidos pela insónia, consideravam Sofia,
firmando-se ora num pé, ora no outro.
— Querem beber uma gota de leite antes de partirem? — ofereceu Jacob.
— Ainda ficou algum? — interrogou Jéfim.
— Um pouco.
Mas Ignati, confuso, declarou, coçando a cabeça:
— Não há; eu entornei-o.
E todos os três se puseram a rir.
Falavam no leite, mas Pelagueia percebia que pensavam em coisa bem
diversa; que ambicionavam para Sofia e para si própria todas as felicidades
possíveis, mas sem poderem expressar-se. Sofia estava visivelmente comovida, e
a sua perturbação era tal, que apenas conseguiu dizer em tom de voz humilde:
— Obrigada, companheiros!
Entreolharam-se, como se este tratamento os tivesse feito cambalear de
prazer.
Ouviu-se um acesso de voz rouca do enfermo. No lume extinguiam-se os
brasidos.
— Até mais ver! — disseram os campónios a meia voz; e os adeuses
melancólicos de todos acompanharam por muito tempo as duas mulheres.
Vagarosamente estas embrenharam-se por um atalho da floresta, à claridadeda aurora.
Entraram a falar de Ribine, do doente, dos operários, que sabiam conservar
tão atencioso silêncio e que haviam exprimido sentimentos de reconhecida
amizade por forma desjeitosa mas eloquente, dispensando às duas mulheres mil
cuidados. Entraram no campo. O sol vinha-lhes ao encontro. Invisível ainda, o
astro abrira no céu um leque diáfano de purpúreos raios; pela erva cintilavam
gotas de rocio em multicolores lumes de alegria viva e primaveril. Despertavam
os pássaros e animavam a aurora com gritos joviais.
Com o seu grasnar pressuroso, corpulentos corvos voavam para longe,
agitando pesadamente as asas; pelos campos semeados já desde o outono, outros
corvos de lustrosa plumagem, saltitavam, tagarelando em vozes ritmadas; perto,
andava um verdelhão a assobiar, inquieto. Desanuviavam-se os longes e
acolhiam o sol, apagando as sombras noturnas das cumeeiras. VII
A existência de Pelagueia decorria em singular sossego que por vezes a
surpreendia. Tinha o filho na cadeia, sabia que o esperava duro castigo; de cada
vez que nisso pensava, apresentavam-se-lhe, mau grado seu, à memória as
imagens de André, de Fédia e doutros, — toda uma larga série de caras
conhecidas.
Resumindo para si todos os que da sua sorte compartilhavam, a figura de
Pavel avantajava-se aos olhos de Pelagueia e quando pensava no filho, os seus
pensamentos alastravam, dirigiam-se para todos os lados, sem que ela desse por
tal. Era uma dispersão em mil lampejos desiguais que tudo interessavam, que
tudo pretendia e tudo reuniam em um mesmo quadro e assim impediam a mãe
de se concentrar no desgosto que experimentava por não ter Pavel junto de si, e
no terror que lhe inspirava a sorte do filho.
Pouco depois partiu Sofia. Cinco dias mais tarde, voltava ela desenvolta e
alegre, para desaparecer de novo algumas horas passadas. Então só a tornou a
ver ao fim de quinze dias.
Dir-se-ia percorrer a existência em círculos cada vez maiores. Vinham assim
de vez em quando a casa do irmão para lhe encher a casa de valorosa decisão e
de música.
Tornara-se agradável a música a Pelagueia, quase indispensável mesmo.
Sentia-a correr-lhe no peito, penetrar-lhe no coração, fazendo brotar catadupas
de pensamentos rápidos e intensivos, e desabrochar expressões suaves e belas,
sugeridas pela força das melodias.
Dificilmente se resignava, porém, ao desleixo de Sofia, que atirava para todos
os cantos os objetos que lhe pertenciam, e as pontas e a cinza dos cigarros; mais
lhe custava a habituar-se à sua maneira de falar tão decidida. Era por demais
flagrante o contraste com a pesada tranquilidade de Nicolau, com a gravidade
benévola e constante das suas palavras. Ao entendimento de Pelagueia, Sofia não
passava duma rapariguita com vontade de passar por pessoa de juízo e que
olhava ainda para as pessoas como para brinquedos engraçados. Falava muito da
santidade do trabalho e aumentava nesciamente a tarefa da pobre mulher com o
seu desmazelo; discorria sobre a liberdade e, contudo, era visível incómodo que a
todos proporcionava com a sua irritável impaciência, com as suas incessantes
discussões e o seu propósito de se colocar acima dos outros. Muitas contradições
se davam nela; Pelagueia tratava-a com prudência constante, mas sem o
sentimento caloroso que nutria por Nicolau.
Sempre meticuloso, este levava dia por dia a mesma vida monótona e
regrada; almoçava às oito horas, lia o seu jornal em voz alta, comentando as
notícias mais importantes. Pelagueia descobria nele afinidades de caráter com
André. Como acontecia com o pequeno-russo, o seu hospedeiro nunca falava doshomens com rancor; considerava-os a todos culpados da má organização da
existência. Mas a fé numa vida nova não era nele tão fervorosa como em André,
nem mesmo tão idealmente luminosa. Tinha um modo de falar pausado, uma
voz de juiz integérrimo e rigoroso; até quando fazia qualquer narrativa de
horrores, esboçava sempre um sorriso compassivo; mas nos olhos tinha um
clarão sinistro. Quando reparava naquele olhar, Pelagueia compreendia que não
era homem para perdoar; e, sentindo quão mortificadora se lhe devia tornar tal
severidade, tinha pena dele. E afeiçoava-se-lhe cada vez mais.
Às nove horas, ia ele para a repartição; a velha arranjava os quartos,
preparava o jantar, lavava-se, mudava de vestuário; depois, sentava-se no quarto
e punha-se a ver as estampas dos livros. Aplicando toda a sua atenção, ainda
podia ler um bocado; mas, ao cabo de algumas páginas, ficava cansada e perdia
o sentido ao que lia. Em compensação, as gravuras distraíam-na muito, qual a
uma criança: desenrolavam-lhe diante da vista um mundo novo, maravilhoso,
compreensível, no entanto, e quase tangível. Via cidades imensas com
magníficos edifícios, máquinas, navios, monumentos, riquezas incalculáveis
amontoadas pelos homens, a par das criações da natureza, numa diversidade que
a confundia.
Alargava-se a vida até o infinito, patenteando-lhe em cada dia coisas
colossais, desconhecidas, portentosas; e pela abundância das suas riquezas, o
variegado das suas belezas, exaltava mais e mais aquela alma sedenta que
despertava. Gostava ela principalmente de folhear um livro de zoologia; e bem
que tal obra estivesse escrita em língua estrangeira, eram as suas ilustrações as
que mais nítida representação lhe davam da riqueza, da beleza e da imensidade
da terra.
— Como a terra é grande! — disse um dia a Nicolau.
— É; e apesar disso a humanidade vive apertada...
O que sobretudo a enternecia eram os insetos, particularmente as borboletas;
percorria, surpresa, os desenhos que as representavam e dizia:
— Que beleza! Não é verdade, Nicolau? Quantas destas perfeições existem
por toda a parte! Mas vivem ocultas aos nossos olhos, passam ao nosso alcance
sem repararmos nelas. Cada qual corre à sua vida, nada sabe, nada admira,
porque não há tempo nem vontade para isso. Quanto prazer poderíamos
desfrutar, se todos soubessem como a terra é rica e que de coisas admiráveis ela
encerra! E é tudo para todos e cada um para tudo... não é assim?
— Sim, com efeito... — respondia Nicolau, sorrindo. E trazia-lhe mais livros.
À noite, havia visitas muitas vezes; entre elas, Alexei Vassiliev, um belo
homem de rosto claro, barba preta, taciturno e grave; Romão Petrov, este de
cara redonda e avermelhada, que fazia constantemente estalar os beiços num
gesto de lástima; Ivan Danilov, baixo e magro, barba em bico, e uma vozinhafina, agressiva, berrante e acerada como um estilete; Iegor, que de tudo
gracejava, de si, dos companheiros e da doença que o ia minando. Amiúde,
vinha gente que Pelagueia não conhecia, de povoações distantes e tinham longas
conferências com Nicolau, sempre sobre o mesmo assunto: a liberdade e os
operários de todas as nações. Discutiam acaloradamente, gesticulavam com
força, bebia-se muito chá. Ao ruído da vozearia, Nicolau compunha às vezes
umas proclamações que passava a ler aos consócios e ali mesmo eram copiadas
em carateres de imprensa. Ela recolhia cuidadosamente os fragmentos dos
rascunhos e queimava-os.
Enquanto ia servindo o chá, admirava ela o ardor com que os companheiros
falavam da vida e da sorte do operário e do campónio, da maneira mais
vantajosa e rápida de semear entre o proletariado a ideia da verdade e da
liberdade, educando-lhe o espírito. Muitas vezes, divergiam as opiniões,
zangavam-se, acusavam-se uns aos outros, injuriavam-se, mas logo voltavam a
discutir.
Mas ela sentia bem que conhecia melhor do que todos aqueles palradores, a
vida do operário; que avaliava com mais nitidez a enormidade da tarefa que eles
se propunham, o que lhe permitia tratar os visitantes com a condescendência um
tanto melancólica duma pessoa de idade madura a ver crianças a brincarem de
marido e mulher sem compreenderem o lado trágico da situação.
Mau grado seu, comparava-lhes os discursos com os de seu filho, com os de
André, e percebia agora diferenças que dantes não podia avaliar. Gritava-se
mais ali do que lá no sítio, ao que lhe parecia. E concluía:
— É que sabem mais, falam mais de rijo...
A maior parte das vezes, porém, notava ela que todos aqueles homens parecia
que se exaltavam de propósito uns aos outros, que eram fictícias as suas
exaltações; cada qual pretendia demonstrar aos colegas que andava mais perto
da verdade do que eles e que mais prezava esta verdade do que qualquer deles.
Os outros vexavam-se e, a seu turno, para provarem como conheciam bem tal
verdade, questionavam com desabrimento e rudeza. Cada qual, tudo era querer
subir mais alto do que os mais e isto causava-lhe pungente tristeza. Agitava então
os supercílios, divagando pela assistência olhares de súplica, e pensava:
«Já se esqueceram do Pavel e dos companheiros!... Já não pensam neles.»
Escutava sempre atenta as discussões, que, naturalmente não compreendia;
procurava descobrir os sentimentos sob aquele fluxo de palavras. Percebeu então
que nas reuniões do seu bairro, quando se falava do bem, todos o aceitavam
íntegro e completo, ao passo que ali, tudo se fragmentava, tudo se dividia; além,
os sentimentos tinham mais força e convicção; aqui, era o domínio das ideias
radicais que retalhavam tudo em bocados. Aqui, falava-se mais da destruição do
velho mundo; além, sonhava-se um mundo novo, e era por isso que os discursosdo seu filho e de André lhe eram mais compreensíveis, mais ao seu alcance.
Surdo descontentamento para com os homens se lhe introduzia furtivamente
no coração, trazendo-a inquieta; nascia nela a desconfiança, sentia desejos de
compreender tudo, e o mais depressa possível, para falar também do mundo
com palavras ditadas pela sua alma.
Notava igualmente Pelagueia, quando vinha algum companheiro operário,
que Nicolau o recebia com uma sem-cerimónia singular; dava ao rosto uma
expressão de bonomia e falava por maneira diversa do costume, se não com
mais grosseria, pelo menos com maior liberdade.
— É que faz o possível para descer ao nível deles — pensava.
Mas esta razão não a satisfazia, pois que o operário claramente se sentia
constrangido, com a inteligência como que opressa, e não chegava a expressar-
se tão simples e livremente como com ela, por exemplo, mulher da sua
condição. Um dia, num momento em que Nicolau se ausentara da sala,
perguntou a um deles:
— Porque estás tu tão contrafeito? Olha que não és um menino a fazer
exame.
O homem abriu-se num franco sorriso.
— É a falta de hábito... Assim como assim... não é cá da nossa classe!
E ficou-se cabisbaixo.
— Não quer dizer nada — replicou ela. — Pois se ele é tão boa pessoa...
O operário volveu para ela o olhar, sorriram um para o outro e nada
acrescentaram.
Às vezes, aparecia por lá Sachenka.
Nunca se demorava, falava sempre apressadamente, sem se rir. E quando se
retirava, perguntava invariavelmente a Pelagueia:
— Como está o Pavel? Passa bem?
— Sim, senhora; graças a Deus! Está bom, bem disposto.
— Cumprimentos da minha parte! — concluía a rapariga, e desaparecia.
Umas vezes por outras, queixava-se-lhe a pobre mãe por conservarem preso
o Pavel tanto tempo, sem se fixar data para o julgamento. Sachenka calava-se,
franzindo o sobrolho; tremiam-lhe os lábios e os dedos agitavam-se-lhe
nervosamente.
A mãe de Pavel tinha ímpetos de lhe dizer:
— Minha querida, eu sei que o amava... sim, bem o sei!
Mas não se atrevia: os ares sérios da rapariga, a sua boca franzida, a recusa
do seu falar pareciam repudiar de antemão qualquer meiguice. Limitava-se asorrir e a apertar a mão que lhe estendiam, dizendo consigo:
«Pobre pequena!...»
Um dia, apareceu-lhe Natacha. Muito satisfeita com ver que Pelagueia a
beijava afetuosamente, anunciou-lhe, em voz sumida, e entre outras coisas:
— Morreu minha mãe... morreu, a minha pobre mamã!
E, limpando os olhos, em rápido gesto:
— Que pena tenho!.. Ainda não tinha feito cinquenta anos... Podia viver muito
mais tempo. Mas, quando penso em tudo o que vejo, chego a pensar que a morte
lhe há de ser mais leve do que a vida! Vivia sempre só, estranha a todos; não era
precisa a ninguém; meu pai tinha-a feito tímida com os seus contínuos ralhos...
Pode-se por ventura dizer que era viver aquilo? Só vive quem espera alguma
coisa boa; mas ela, ela nada tinha a esperar, a não ser os maus tratos!
— É bem certo o que diz, Natacha! — declarou a outra depois de refletir. —
Para viver é preciso que se espere alguma coisa. Nada esperar é viver?
Afagou com mimo a mão da rapariga e perguntou-lhe:
— E agora, vive sozinha?
— Vivo — respondeu Natacha.
Calou-se Pelagueia um instante; depois, concluiu com um sorriso:
— Que importa! Quando se tem uma alma boa, nunca se está só, sempre se
está acompanhada... VIII
Natacha foi residir, na qualidade de professora, para um distrito onde havia
uma fábrica de fiação. Pelagueia ia de vez em quando levar-lhe livros proibidos,
proclamações, jornais. Estava já encartada neste ofício. Várias vezes em cada
mês, vestida de irmã da caridade, de vendedeira de rendas ou de retrosaria, de
burguesa ricaça ou de peregrina, lá se ia pela província fora, a pé, de caminho de
ferro, numa carroça, alforge ao ombro ou de mala na mão. Nos hotéis ou nas
estalagens, nos vapores, assim como nos comboios, a sua atitude era sempre
calma e simples; com os desconhecidos, era a primeira a dirigir-lhes a palavra, e
captava irresistíveis simpatias com o seu falar afável, a sua tranquilidade de
mulher que muito viu e aprendeu.
Agradava-lhe conversar com os infelizes e informar-se das suas opiniões
sobre o mundo, dos seus infortúnios e perplexidades. Enchia-se-lhe o coração de
alegria sempre que observava nestes interlocutores aquele vivo
descontentamento que, embora proteste contra os golpes da adversidade,
ardentemente busca solução para os grandes problemas da humanidade. Mais
vasto sempre e mais variado, desenrolava-se aos seus olhos o panorama da vida
com todas as suas lutas. Em tudo e por toda a parte ela encontrava a tendência
cínica do homem para enganar o homem, para roubá-lo, para tirar dele o maior
proveito possível. E também via a abundância por toda a terra, ao passo que o
povo jazia na miséria, vegetando a bem dizer esfomeado, no meio das
incomensuráveis riquezas.
Das cidades, via os templos a abarrotar de oiro e prata inúteis a Deus,
enquanto fora, nos adros, os necessitados tiritavam na vã expetativa duma esmola
que não vinha. Aquele espetáculo era-lhe já conhecido: as igrejas opulentas, as
vestes bordadas dos padres, as mansardas dos pobres e os seus ascorosos
farrapos; mas nesse tempo tudo lhe parecia natural, pois que no presente
considerava tal estado de coisas ofensivo para os pobres, aos quais, ela bem o
sabia, a religião é mais necessária que aos ricos.
Mercê das imagens de Jesus, das narrativas que ouvira, Pelagueia sabia que
Ele era um amigo para os miseráveis, que Ele se vestia sem ostentação; e nas
igrejas, onde os pobres vinham a Ele para serem consolados, ia encontrá-lo
oprimido em arrebiques de oiro e de sedas, desdenhosamente insolentes em face
de tanta privação.
E as palavras de Ribine voltavam-lhe à memória:
— Até de Deus se serviram para nos ludibriarem! Disfarçaram-no com
embustes e calúnias para nos assassinarem a alma...
Sem que desse por tal, Pelagueia rezava agora menos, mas pensava mais em
Jesus, nas criaturas que não falavam d'Ele que nem mesmo o conheciam,
segundo parecia, mas que viviam segundo o Seu evangelho e, como Ele,consideravam a terra o reino dos pobres, queriam distribuir em partes iguais
entre os homens todas as riquezas. Refletia muito em todas estas coisas,
aprofundando-as, comparando-as com tudo o que via, e estes pensamentos
tomavam corpo, revestiam a forma luminosa de oração, derramando uma
claridade igual na escuridão do mundo, na vida e na humanidade. E afigurava-se
à boa mulher que o próprio Cristo, a quem sempre venerara com vago amor,
com um sentimento complexo em que o medo se aliava estreitamente à
esperança, à ternura e à dor, que o próprio Cristo se aproximava mais dela, que
se transformara, que lhe era mais visível, numa serenidade mais satisfeita.
Agora, via os seus olhos sorrirem-lhe tranquilos com uma viva claridade interior,
como se tivesse verdadeiramente ressuscitado, lavado e reanimado pelo sangue
candente que por Seu amor generosamente derramam aqueles que têm a
sabedoria de nunca O nomear. Destas viagens voltava, portanto, feliz e animada,
porque muito vira e ouvira, e satisfeita com a missão cumprida.
— É agradável jornadear para um lado e outro e ver tantas coisas — disse ela
uma noite a Nicolau. — Fica a gente percebendo como esta vida está arranjada.
O povo é escorraçado, atirado à margem, refervendo na sua humilhação e
perguntando a si mesmo: «Porque me põem de parte? Porque tenho fome,
quando há de tudo em abundância? Porque sou eu estúpido, ignorante, quando há
tanta inteligência por toda a parte? E onde está Ele, esse Deus de misericórdia,
para o qual não há ricos nem pobres, e de quem todos são bem amados?» Pouco
a pouco, o povo revolta-se contra a sua existência; o povo sente que há de
aniquilá-lo a injustiça, se não tratar do seu bem estar.
E experimentava, cada vez com mais frequência, a necessidade de falar, ela
mesma, na linguagem que era a sua, das injustiças da vida; e, por vezes, era-lhe
difícil resistir...
Quando a encontrava a folhear os desenhos, Nicolau contava-lhe coisas
surpreendentes. Impressionava-a a audácia dos problemas que o homem se
propunha; perguntava, incrédula:
— Pois isso é possível?
E Nicolau descrevia-lhe um futuro de sonho, com uma confiança inabalável
nas suas profecias.
— Os desejos do homem não conhecem limite, a sua força é inesgotável! —
afirmava ele. — Contudo, o mundo só muito lentamente se enriquece em dons do
espírito, pois que, para serem independentes, os homens são obrigados a juntar
dinheiro, e não ciência. Quando tiverem banido a avidez, libertar-se-ão da
escravatura do trabalho obrigatório.
Pelagueia era raro que compreendesse o sentido das palavras de Nicolau, no
entanto, pungia sensivelmente a fé tranquila que as ditava.
— Há muito poucos homens livres nesta terra; é o que faz o infortúnio dahumanidade! — dizia ele.
Com efeito, Pelagueia conhecia pessoas que se haviam libertado dos rancores
e da cobiça; e pensava que se o número dessas pessoas avolumasse, o rosto
sombrio e horrível da existência havia de tornar-se mais benévolo e simples,
melhor e mais luminoso.
— O homem é obrigado a ser cruel contra sua vontade! — dizia tristemente
Nicolau.
Ela aquiescia com um aceno de cabeça e lembrava-se do pequeno-russo. IX
Um dia, Nicolau, por hábito tão pontual, chegou da repartição muito mais
tarde do que o costume. Em vez de tirar o sobretudo, disse com vivacidade, a
esfregar as mãos:
— Sabe, Pelagueia? Fugiu hoje da cadeia um dos nossos companheiros, à
hora das visitas!... Mas não consegui saber quem seja.
Ela sentiu-se cambalear, tomada de comoção; deixou-se cair numa cadeira e
mal pôde balbuciar, em segredo:
— Será o Pavel, talvez?
— Talvez! — respondeu Nicolau, encolhendo os ombros. — Mas como
havemos de o ajudar a esconder-se? Onde estará ele? Tenho andado a passear
por essas ruas, a ver se o encontrava. É uma tolice, mas é forçoso fazer qualquer
coisa! Eu torno a sair.
— Também eu saio! — declarou a mãe de Pavel.
— Então, vá a casa do Iegor; talvez ele saiba alguma coisa... — aconselhou
Nicolau. E saiu.
Ela atirou para a cabeça um lenço, e foi-se nas peugadas de Nicolau, nadando
em esperança. Levava a vista turvada; o coração batia-lhe em fortes pulsações
que quase a obrigavam a correr. Voava ao encontro duma possibilidade, de
cabeça baixa, sem nada ver em torno. «Talvez já esteja em casa do Iegor!»
Este pensamento instigava-lhe o passo. Fazia calor; Pelagueia ia ofegante. Na
escada de Iegor parou, sem forças para ir mais longe. Voltou-se então e soltou
um grito de espanto: tinha-lhe parecido ver na soleira da porta Vessovtchikov, de
mãos nas algibeiras e um sorrizinho nos lábios, a olhar para ela. Mas, quando
tornou a abrir os olhos, não viu ninguém.
— Foi alucinação! — concluía pela escada acima, apurando sempre o ouvido.
Do pátio veio um ruído abafado de passos pachorrentos. Deteve-se a meio da
escada, foi à janela e olhou: outra vez distinguiu uma cara bexigosa a sorrir para
ela.
— O Vessovtchikov! Foi ele! — exclamou, descendo a correr-lhe ao
encontro, mas com o coração confrangido por aquela deceção.
— Não! Sobe! Sobe! — disse-lhe ele debaixo, a meia voz, apontando para o
andar superior.
Obedeceu; entrou pelo quarto de Iegor, a quem encontrou estendido do
canapé. Segredou, esbaforida:
— O Vessovtchikov fugiu da cadeia!
O outro ergueu a cabeça e numa voz áspera:
— O picado das bexigas?— Sim, esse!... E vem para aqui!
— Está muito bem! Mas eu é que não estou para me levantar a recebê-lo.
O fugitivo entrou neste comenos. Fechou bem a porta no ferrolho, tirou o boné
e pôs-se a rir devagarinho.
— Se não te tivesse visto, não me restava mais que voltar para a prisão! Não
conheço ninguém na cidade... Se tivesse ido lá para o bairro, prendiam-me logo!
Eu dizia com os meus botões, enquanto ia andando: «Palerma! Para que
fugiste?» Quando nisto, vejo cá a tiazinha a correr. Pus-me logo no seu encalço!
— E como pudeste fugir? — perguntou Pelagueia.
O rapaz sentou-se desastradamente na beira do canapé e disse com
embaraço, encolhendo os ombros:
— Não sei... Foi a ocasião que se ofereceu.
Andava a passear no pátio... Os presos de crimes comuns atiraram-se à
bordoada a um carcereiro, um que foi da polícia e que expulsaram por causa
dum roubo... É um que espia dá partes e torna a vida de toda a gente um
inferno... Então, houve barafunda; os vigias tiveram medo, uns apitavam, outros
corriam... Eis senão quando, vejo a grade aberta. Aproximei-me, vejo um largo,
a cidade... Foi uma atração!.. E saí sem pressa nenhuma, como se estivesse
sonhando... Dei alguns passos e caí em mim. Para onde havia de ir?... Entretanto,
as portas da cadeia tinham-se tornado a fechar... Não me sentia bem; tinha
saudades dos companheiros... enfim, aquilo era estúpido; eu não fazia ideia de
fugir...
— Hum! — resmungou Iegor. — Pois, meu caro senhor, devia ter voltado
para trás, bater à porta e pedir delicadamente que o deixassem entrar: «Queiram
perdoar, foi momento de distração...»
— Sim — continuou Vessovtchikov, — rindo, isso também era tolice, bem
vejo. Mas ainda assim, andei mal com os companheiros. Não digo nada a
ninguém e ponho-me ao fresco... Na rua, encontrei um enterro. Pus-me atrás do
caixão — era uma criança — e lá fui de cabeça baixa, sem olhar para ninguém.
Estive um bocado no cemitério, de toutiço ao vento, e então veio-me uma ideia...
— Uma só? — observou Iegor, e com um suspiro acrescentou: — Parece-me
que não lhe havia de faltar lugar.
O bexigoso pôs-se a rir, sem se zangar.
— Oh! Já não tenho a cabeça tão vazia como dantes... E tu, Iegor, continuas
sempre doente?
— Faz-se o que se pode! — respondeu o outro, sacudido por acesso de tosse.
— Continua!
— Dali fui ao museu. Passei por lá vi, as coleções, mas sempre a pensar:«Para onde hei de eu ir, agora?» Estava furioso comigo mesmo e tinha uma
fome horrorosa!... Voltei para a rua, pus-me a caminhar. Sentia-me
envergonhado com aquilo! Percebi que os polícias olhavam com atenção para
quem passava... E dizia com os meus botões! «Bom! Graças ao meu focinho,
estou aqui, estou nas mãos da justiça!...» Nisto, vejo cá a velhota a correr.
Passou-me ao lado; afastei-me para a deixar passar, voltei-me e segui-lhe no
encalço... E mais nada!
— E eu que nem sequer dei por ti! — notou ela em tom pesaroso. Examinava
atentamente Vessovtchikov; achava-o mudado, mas para melhor.
— Os companheiros estão em cuidado, com certeza, sem saberem onde
paro! — prosseguiu ele, coçando a cabeça.
— E dos guardas da cadeia, não tens saudades? Olha que eles também devem
estar num cuidado!... — observou Iegor.
Em seguida abriu a boca e, movendo muito os beiços, como se quisesse
absorver todo o ar, exclamou:
— Basta de brincadeiras! É preciso tratar de te esconder, o que é coisa
agradável de fazer, mas não muito fácil de conseguir... Se eu pudesse levantar-
me!...
Teve uma crise de sufocação e pôs-se a esfregar o peito, em débeis
movimentos.
— Estas bem doente, Iegor! — disse o fugitivo.
Pelagueia, a esta observação, suspirou e relanceou um olhar de inquietação
pelo modesto quarto.
— Isso é comigo! — declarou Iegor. — Ó mãezinha, não esteja com
cerimonias, peça-lhe notícias do seu Pavel.
A cara do bexigoso abriu-se outra vez em franco sorriso.
— O Pavel? Está bom, está de saúde. Ele é uma espécie de presidente lá da
rapaziada. É sempre ele que fala com as autoridades, em nome da gente; é ele
quem manda!... Nós temos-lhe respeito... E com razão!
A mãe bebia as palavras do rapaz; por vezes, lançava um olhar furtivo para o
rosto macerado e entumecido de Iegor. Este, com a fisionomia estática, qual
máscara desprovida de expressão, e com uma aparência singular de nulidade, só
pelos olhos vivia, em cintilações de espírito.
— Se me dessem alguma coisa de comer... Palavra que tenho muita fome!
— exclamou de súbito o bexigoso.
— Ó mãezinha — disse Iegor, — naquela prateleira está um pedaço de pão;
dê-lho. Vá depois ao corredor e bata à sua esquerda, na segunda porta. Há de vir
abrir-lhe uma mulher; diga-lhe que venha cá e que traga tudo o que possuir comrespeito a comestíveis.
— Para que há de ela trazer tudo!? — protestou Vessovtchikov.
— Ah, não se assuste, que não há de ser grande coisa... talvez até não seja
nada!
Pelagueia obedeceu, bateu à porta indicada e, apurando o ouvido, pensava
com tristeza: «Está mesmo a morrer...»
— Quem está aí? — perguntaram de dentro.
— Venho da parte do senhor Iegor — respondeu baixo. — Pede-lhe que vá a
casa dele.
— Lá vou! — responderam.
Pelagueia esperou um instante e tornou a bater.
A porta abriu-se de brusco e apareceu uma mulher ainda nova, muito alta e
que usava óculos. Vinha a alisar a manga do vestido, amarrotada. Secamente
perguntou:
— Que deseja?
— Foi o senhor Iegor que me mandou...
— Ah! Vamos lá!... Mas eu conheço a senhora! — exclamou. — Como
passou?... É que faz aqui muito escuro...
Pelagueia fitou-a e lembrou-se de tê-la visto uma vez ou duas, em casa de
Nicolau.
«Por toda a parte há gente nossa!» pensou.
A mulher deixava livre o caminho, por forma que Pelagueia fosse adiante.
— Está então muito mal? — inquiriu.
— Muito mal; está deitado. Pede-lhe que lhe leve alguma coisa de comer...
— Ora! É inútil...
Ao penetrarem as duas mulheres no quarto de Iegor, este debatia-se em
doloroso estertor.
— Ludmila — disse por fim. — Esse rapaz saiu agora da cadeia sem licença
da autoridade. Já é ser descortês! Antes de mais nada, dá-lhe de comer e
esconde-o em qualquer parte, por um dia ou dois.
Ludmila fez um sinal de assentimento e, ao passo que fitava atentamente o
rosto do enfermo, dizia com certa severidade:
— Iegor, porque não me chamou logo que chegaram as suas visitas? E já
vejo que por duas vezes se esqueceu de tomar o remédio! É um desmazelo!...
Pois se é o primeiro a dizer que se sente respirar melhor quando o toma!... Venha
para minha casa, camarada!... Não tarda que venham buscar o Iegor para o
levarem para o hospital.— É então forçoso ir para o hospital? — perguntou o enfermo.
— De certo. Lá irei ter consigo.
— O quê? Lá, também?...
— Não diga tolices!
E enquanto falava, compusera no peito do doente a manta que o cobria,
observara fixamente Vessovtchikov e medira com o olhar a altura do remédio no
frasco. A voz dela era monótona e grave, mas sonora; os movimentos amplos, o
rosto branco, com umas sobrancelhas muito pretas, que quase se reuniam na
base do nariz. Tal fisionomia não agradou a Pelagueia, que a ficou julgando
arrogante; os olhos não tinham brilho e nunca sorriam; o tom da voz era
imperioso.
— Vamo-nos daqui! — continuou ela. — Eu já volto. A senhora dê ao Iegor
uma colher de sopa deste remédio... Não consinta que fale.
E saiu levando consigo o bexigoso.
— Que mulher extraordinária! — disse Iegor com um suspiro. — Que
admirável criatura!... Para casa dela é que você devia ter ido, mãezinha. Ela
trabalha muito... Até anda esfalfada!
— Não fales! Olha, bebe antes isto! — suplicou Pelagueia com meiguice.
Ele ingeriu o remédio e continuou, fechando um dos olhos:
— Que me importa! Que fale ou que não fale, sempre tenho de morrer.
Olhou para a velha, ao mesmo tempo que os lábios se lhe entreabriam
lentamente num sorriso. Ela tinha curvado a cabeça; agudo sentimento de dó lhe
fazia derramar lágrimas.
— Não chore, mãezinha; é natural... O prazer da vida traz consigo a
necessidade da morte...
Ela pousou-lhe a mão na cabeça e, em voz baixa:
— Cala-te, sim?
O doente fechou os olhos como se estivesse a escutar o estertor dentro do
peito. Teimosamente, objetou:
— Estúpida coisa o estar calado, mãezinha!... Que ganho eu com isso? Uns
minutos mais desta agonia e o ficar sem o prazer de palrar um bocado com uma
santa mulher como você... Não creio que no outro mundo haja tão boa gente
como neste...
Ela interrompeu-o, agitada:
— Olha que vem aí já aquela senhora, e depois ralha comigo se te ouve
falar...
— Não é senhora nenhuma; é uma revolucionária, uma companheira, umcoração admirável!... De toda a maneira, há de ralhar consigo, mãezinha! Está
sempre a ralhar com toda a gente!
E Iegor pôs-se a contar a história da sua vizinha, lentamente, com um
articular custoso dos lábios. Só os olhos sorriam. Inquieta, Pelagueia dizia consigo,
notando a maceração daquele rosto banhado de suor:
— Vai-me morrer aqui!
Voltou Ludmila. Fechou cuidadosamente a porta e disse para a velha:
— É absolutamente necessário que aquele seu amigo se disfarce e se vá
embora; vá já arranjar-lhe outro fato e traga-lho aqui! Que pena que a Sofia
esteja ausente! É a sua especialidade, dar esconderijo a quem foge!
— Ela chega amanhã, anunciou a outra, deitando o seu lenço para os ombros.
Sempre que a encarregavam de qualquer missão, era ideia fixa sua
desempenhar-se dela bem e depressa. Solícita e preocupada, franzindo as
sobrancelhas, perguntou ainda:
— Como o havemos de vestir? Que lhe parece?
— Pouco importa: como ele sai de noite...
— É muito pior que de dia: anda menos gente pelas ruas, é-se mais
facilmente notado, e como o Vessovtchikov não é muito esperto...
Iegor soltou uma gargalhada rouca:
— Como você é fina, mãezinha!
— Posso ir ver-te ao hospital? — perguntou ela.
O doente acenou com a cabeça, tossindo muito. Ludmila fitava na velha os
seus grandes olhos pretos.
— Quer que lhe fiquemos de guarda, cada uma por sua vez? — propôs. —
Sim? Está bem!... Mas agora, vá, vá depressa.
Agarrou Pelagueia por um braço em gesto amigável mas autoritário, fê-la
sair para o corredor e ali disse-lhe baixinho:
— Não se zangue por eu a despedir assim... Não é bonito, bem sei; mas faz-
lhe tanto mal falar!... E eu tenho esperança...
Esta explicação comoveu Pelagueia. Murmurou:
— Não diga isso!... Não é bonito! Mas a senhora é um anjo!... Até mais ver;
eu cá me vou.
— Cuidado com os espiões! — recomendou a outra em segredo. E levando as
mãos ao rosto, passando-as depois pelas fontes, com uma tremulência nos lábios,
tomou uns ares de maior bondade.
— Sim, esteja descansada — respondeu Pelagueia com uma pontinha de
orgulho.Ao chegar à grade da entrada, parou um instante como a arranjar a mantilha
e lançou em torno um olhar vigilante, mas que passaria despercebido de
qualquer. Sabia bem distinguir, e sem se enganar, os espiões de entre o povo. O
andar propositadamente descuidado, a placidez afetada dos movimentos, a
expressão de cansaço e de tédio que fazia transparecer, o brilhar tímido, confuso
e mal dissimulado dos olhos, movediços e desagradavelmente esquadrinhadores,
eram outros tantos disfarces que se lhe haviam tornado familiares.
Desta vez, porém, não enxergou cara alguma conhecida. Então, sem pressa,
tomou pela rua adiante, e subiu para um carro de praça, que mandou seguir para
o mercado. Ali comprou o fato para o fugitivo, não sem regatear ferozmente,
desfazendo-se em pragas contra o bêbedo do marido, a quem tinha de vestir de
novo quase todos os meses. Esta mentira não fez impressão alguma ao adelo,
mas causou-lhe muita satisfação por a ter inventado; tinha ido a pensar pelo
caminho que a polícia havia de suspeitar que o fugitivo se disfarçaria e não
deixaria de proceder a um inquérito no mercado. Feito isto, Pelagueia voltou a
casa de Iegor e foi acompanhar o bexigoso ao termo da cidade. Cada um tomou
por passeio oposto e a velha, satisfeita, divertia-se imenso a ver o rapagão a
andar no seu passo pesado, cabeça baixa, atrapalhado com a comprida roda dum
sobretudo amarelo e atirando para trás o chapéu, que lhe ia sempre a escorregar
para os olhos. Numa rua deserta veio-lhes Sachenka ao encontro, e Pelagueia
voltou para casa depois de se despedir de Vessovtchikov com um aceno de
cabeça.
Mas pensava com tristeza:
— Pois sim, mas o Pavel está na cadeia... e o André também. X
Foi recebida por Nicolau com um grito de mal contida inquietação.
— Sabe? O Iegor está muito mal! Levaram-no para o hospital; a Ludmila veio
cá pedir que fosse ter com ela.
— Ao hospital?
Nicolau, depois de ter ajustado os óculos, em movimento nervoso, ajudou-a a
vestir um casaco, apertou-lhe a mão entre as suas, secas e febris, e, em voz
trémula:
— Sim! Leve este embrulho consigo. O Vessovtchikov ficou em segurança?
— Sim, tudo vai pelo melhor...
— Também hei de ir ver o Iegor...
Pelagueia estava tão cansada, que sentia a cabeça a andar-lhe à roda; a
inquietação de Nicolau dava-lhe a pressentir um drama.
— Vai morrer!... Vai morrer! — dizia consigo; e esta sombria ideia
martelava-lhe no cérebro.
Mas quando entrou no quartozinho alegre e muito asseado do hospital e viu o
Iegor a rir de manso, sentado em meio dum montão de almofadas brancas,
sossegou de pronto. Parou à porta a sorrir-lhe e ouviu o doente dizer ao médico:
— O remédio, é uma reforma!
— Não diga tolices, Iegor! — obtemperou o doutor em tom apreensivo.
— E eu, que sou revolucionário, detesto as reformas!...
Certamente, o médico tomou a mão do doente e colocou-lha sobre o joelho;
em seguida, levantou-se, pôs-se a puxar pelas barbas, enquanto ia apalpando com
um dedo os entumecimentos do rosto de Iegor.
Pelagueia conhecia bem o doutor por ser um dos melhores camaradas de
Nicolau. Aproximou-se de Iegor, que, ao vê-lo, lhe deitou a língua de fora. O
médico voltou-se.
— Ah, é vossemecê?... Viva!... Sente-se. Que traz aí?
— Livros, parece-me.
— Não pode ler — declarou o médico.
— Quer que eu fique parvo de todo! — choramingou Iegor.
— Cala-te! — ordenou. E pôs-se a escrever qualquer coisa na carteira.
Do peito do doente exalavam-se breves suspiros forçados, de mistura com
saliva, num estertor, violento; tinha o rosto coberto de camarinhas de suor, que
ele enxugava de vez em quando, erguendo muito devagar as pesadas mãos,
quase inconscientes. A singular imobilidade das faces inchadíssimas
descompunha a expressão de bonomia da sua ampla cara, onde as feiçõeshaviam desaparecido sob uma máscara cadavérica; e só os olhos,
profundamente cavados entre os inchaços, conservavam um olhar puro e
sorriam com condescendência.
— Hã?! Esta ciência!... Já não posso mais... Deito-me, doutor? — perguntou
ele.
— Não! — respondeu com brevidade o médico.
— Então deito-me quando tu te fores embora!
— Não lho consinta, mulherzinha. Arranje-lhe as almofadas. E tome muito
cuidado, não o deixe falar, peço-lhe; faz-lhe muito mal.
Pelagueia fez um aceno. O médico saiu em passinhos rápidos. Iegor deitou a
cabeça para trás, fechou os olhos e ficou sem movimento; só os dedos se lhe
agitavam um pouco. Das paredes brancas da celasinha exalava-se um frio seco e
uma tristeza velada e pálida. Pela alta janela divisavam-se os cumes ondulados
das tílias; por entre a folhagem poeirenta e sombria destacavam-se vivamente
manchas amarelas: eram as frias primícias do outono, que chegava...
— Vem para mim a morte, devagar, como que sem vontade! — disse Iegor,
sem bulir e sem abrir os olhos. — Parece que tem pena de mim!... Pois se eu era
um bom rapaz, de bom génio!...
— Cala-te, Iegor! — suplicou Pelagueia, afagando-lhe a mão ternamente.
— Espere um pouco, mãezinha, eu vou-me calar...
E, ofegante, continuou com esforço imenso a articular palavras entrecortadas
de longas pausas:
— Gosto muito que vossemecê esteja connosco, mãezinha... É-me muito
agradável ver a sua fisionomia, os seus olhos tão vivos, a sua candura... Quando a
vejo, pergunto a mim mesmo: «Como irá ela acabar?» E fico triste, a pensar
que a espera a cadeia, ou o degredo, toda a espécie de abominações... como os
outros... Não tem medo da prisão?
— Não! — respondeu ela com simplicidade.
— Está claro!... E, contudo, a prisão... é nojenta coisa... foi ela que me
matou... Porque, para falar com franqueza, eu não tenho vontade de morrer.
Ela sentiu desejo de responder: «Talvez não morras ainda», mas calou-se e
ficou a olhar para ele.
— Podia ainda fazer alguma coisa pelo bem do povo... Mas quando a gente já
não pode trabalhar, é impossível viver, é uma estupidez!
À memória da velha acudiram então estas palavras de André: «Isso é
verdade, mas não é consolador!» Suspirou. Sentia-se fatigadíssima e com fome.
O murmurar monótono e rouco do doente ressoava triste pelo quarto, como que
rastejando, impotente, por sobre a lisura das paredes. A folhagem das tílias faziapensar em nuvens que tivessem descido à terra, e impressionava pelo seus tons
carregados e melancólicos. Tudo, em volta, se congelava singularmente em
tristonha imobilidade, naquela desconfortante expetativa da morte.
— Como me sinto mal! — disse Iegor. E calou-se, fechando os olhos.
— Dorme! — aconselhou ela. — Talvez te faça bem.
Apurou por alguns instantes o ouvido para a respiração do doente e relanceou
o olhar em torno de si. Invadida por glacial tristeza, entrou a dormitar.
Despertou-a um ruído de vestidos roçagantes. Estremeceu ao ver Iegor
acordado, com os olhos muito abertos.
— Deixei-me dormir... desculpa! — disse em voz baixa.
— E tu, também, perdoa-me! — replicou ele igualmente num murmúrio.
Pela janela, entrava o crepúsculo; um frio nevoento oprimia a vista; tudo se
fundia em singular opacidade; o rosto do doente tomava tons mais sombrios.
De novo se ouviu um roçagar de saias e logo depois a voz de Ludmila,
dizendo:
— Então, aqui às escuras, a tagarelar?... Onde fica o botão da luz?
E de súbito, uma claridade branca e desagradável inundou o quarto. Ludmila
estava de pé, alta, toda vestida de negro.
Iegor teve um grande estremecimento por todo o corpo e levou a mão ao
peito.
— O que é? — exclamou Ludmila, correndo para ele.
Fixou na velha um olhar demorado; parecia ter os olhos enormes, com um
brilho estranho.
— Espera... — balbuciou o enfermo.
Abriu muito a boca, ergueu a cabeça e estendeu o braço para diante.
Pelagueia tomou-lhe a mão com cuidado extremo e fitou-o, contendo a própria
respiração. Em movimento convulso e vigoroso, ele projetou a cabeça para trás
e disse em alta voz:
— Deixei de existir... está acabado...
Percorreu-lhe o corpo ligeira contração, a cabeça rolou-lhe lentamente no
ombro, e, nos seus olhos esgazeados, a luz da lâmpada colocada por sobre o leito,
espelhou-se com um reflexo frio...
— Meu amigo!... Murmurou Pelagueia.
Lentamente, Ludmila afastou-se do leito; parou junto da janela a olhar para
fora e disse numa voz singular e sonora, que Pelagueia nunca lhe tinha ouvido:
— Morreu...
Ela inclinou-se, apoiou-se à mesinha de cabeceira e entrou de balbuciar coma voz a tremer:
— Morreu... sossegadamente... corajosamente... sem um queixume...
E de repente, como se lhe tivessem dado uma pancada na cabeça, deixou-se
cair de joelhos, sem forças tapou o rosto com as mãos, e desatou em soluços
abafados.
Depois de ter cruzado os braços pesados do morto, sobre o peito e de lhe
ajeitar nas almofadas a cabeça, extraordinariamente quente, Pelagueia
avizinhou-se de Ludmila, curvou-se para ela e afagou-lhe docemente os espessos
cabelos, ao mesmo tempo que enxugava as próprias lágrimas. Esta última voltou
com lentidão para ela os olhos dilatados, febris e balbuciou por entre os lábios
trémulos:
— Havia muito que o conhecia... Estivemos juntos no degredo, estivemos nas
mesmas prisões... Às vezes, aquela tortura era insuportável, horrorosa; muitos de
entre nós perdiam o ânimo e alguns endoideciam...
Comprimiu-lhe a garganta um espasmo violento; dominou-se com esforço, e
em seguida, avizinhando do rosto da velha o seu rosto, a que uma névoa de
ternura dolorida dava desconhecida suavidade que o rejuvenescia, prosseguiu em
rápido murmúrio, com um soluçar sem lágrimas:
— E ele, ele sempre, sempre, andava alegre; nunca se cansava de gracejar,
de rir, ocultando corajosamente o seu sofrer, esforçando-se por reanimar os
fracos... era tão bom, tão sensível, tão meigo!... Na Sibéria, a inação em que se
vive, deprava o espírito e faz nascer maus instintos. Como ele os sabia
combater!... Que companheiro aquele era; se soubesse! A sua vida particular foi
árdua, dolorosa... mas — sei-o bem — nunca ninguém o ouviu queixar...
ninguém, nunca! Assim, eu, que era sua íntima amiga, devo muito ao seu
coração e recebi do seu espírito tudo o que podia dar-me; vivia triste, solitário e,
no entanto, nunca ele me pediu nada em paga, nem carinhos, nem desvelos...
Foi até junto do morto, curvou-se e beijou-lhe a mão.
— Companheiro, meu querido e amado companheiro — disse ela numa voz
sumida e cheia de desconsolo, — agradeço-te de toda a minha alma... Adeus!
Trabalharei, como tu fizeste... sem me cansar... sem duvidar... toda a minha
vida... pelos que sofrem... Adeus!
Todo o corpo lhe foi sacudido por violentos soluços e, ofegante, a cabeça
descaiu-lhe sobre o leito, aos pés de Iegor.
Derramava Pelagueia bastas lágrimas que lhe queimavam as faces.
Procurava retê-las, pois o seu desejo era consolar Ludmila com um afago
especial e animador, falar-lhe do morto com boas palavras repassadas de amor e
de tristeza. Por entre o pranto, distinguia o rosto entumecido do defunto, os olhos
fechados, os lábios negros, confrangidos em leve sorrisos... Reinava um silêncioprofundo em meio daquela claridade que oprimia.
O médico entrou em passinhos apressados, como sempre; parou bruscamente
a meio do quarto, enterrou em rápido gesto as mãos pelas algibeiras e perguntou
com voz nervosa e sonora:
— Há muito tempo?
Ninguém lhe respondeu. Bamboleou-se nas pernas e aproximou-se de Iegor,
enxugando o suor da testa; apertou a mão do morto e afastou-se novamente.
— Não é para admirar... em vista do estado do coração... Isto já devia ter
acontecido há seis meses... pelo menos... Sim, com certeza!...
Mas aquele tom agudo da voz em que a placidez era forçada e a sonoridade
fora de propósito, logo se lhe velou. Encostou-se à parede e pôs-se a passar os
dedos rapidamente pela barba, olhando alternadamente para as duas mulheres e
para o morto, com os olhinhos piscos.
— Mais um!... — concluiu brandamente.
Ludmila ergueu-se e foi abrir a janela. Pelagueia como que acordou àquele
ruído e olhou em torno, com um gemido. E um instante depois, o doutor, ela e
Ludmila encontravam-se reunidos no vão da janela, apertados uns contra os
outros, a contemplarem o aspeto sombrio daquela noite de outono. Por cima do
arvoredo, cintilavam as estrelas e pareciam recuar, perdendo-se no negro infinito
dos céus. Ludmila envolveu o braço de Pelagueia com o seu e descansou-lhe a
cabeça no ombro, sem uma palavra. O médico limpava a luneta com o lenço.
Fora, os ruídos noturnos da cidade morriam, abafados, o fresco da noite regelava
as faces e agitava os cabelos. Ludmila sentia arrepios; e as lágrimas escorriam-
lhe pelo rosto. Nos corredores do hospital, vagueavam ruídos amortecidos,
assustados, passadas pressurosas, gemidos, murmúrios desconsolados. Imóveis, à
janela, os três sondavam as trevas, em silêncio.
Pelagueia sentiu que era ali de mais e, depois de soltar com brandura o braço
do da jovem senhora, dirigiu-se para a porta, não sem que se inclinasse, ao
passar, perante o morto.
— Vai-se embora? — perguntou baixo o médico, sem se voltar.
— Vou.
Pela rua fora, ia pensando em Ludmila. «Nem ao menos sabe chorar!» dizia
ela consigo, recordando-se da parcimónia das suas lágrimas.
E as últimas palavras de Iegor voltavam-lhe à memória; faziam-na suspirar.
Caminhando a passo vagaroso, revia em mente os olhos vivos de Iegor, os seus
gracejos, as suas opiniões sobre a vida.
— Para a gente proba, a existência é penosa e a morte leve... Como morrerei
eu?Em seguida, o pensamento representou-lhe Ludmila e o doutor de pé, junto da
janela, naquele quarto muito branco e cruamente iluminado, os olhos
embaciados de Iegor; e, invadida por um sentimento opressor, de compaixão,
suspirou profundamente e entrou a caminhar mais depressa, impelida por vago
pressentimento...
«É preciso marchar para a frente!» pensou sob o impulso de coragem
valorosa e contristada, que lhe subia do coração. XI
O dia seguinte passou-o Pelagueia a dispor tudo para o enterro de Iegor. À
noite, quando tomava o chá, com Nicolau e Sofia, apareceu Sachenka, animada e
expansiva, o que era para admirar. Vinha com as faces coradas, os olhos
brilhantes, e Pelagueia percebeu que ela trazia qualquer esperança risonha. Este
radiante estado de espírito veio fazer uma irrupção barulhenta e tumultuosa no
curso melancólico das recordações, mas sem o distrair era como uma viva
claridade que tivesse brilhado de súbito naquelas trevas e que vinha incomodar a
pequena reunião. Nicolau, pensativo, bateu na mesa:
— Acho-a mudada hoje, Sachenka!...
— Deveras! Pode ser! — respondeu com uma risadinha de contentamento.
Pelagueia lançou-lhe um mudo olhar de censura. Sofia fez notar, acentuando
as palavras:
— Estávamos falando do Iegor.
— Que belo homem! Não é verdade? — exclamou Sachenka. — Sempre
tinha prontos nos lábios um sorriso e um gracejo... Trabalhava tão bem! Era o
artista da revolução; possuía em alto grau a ideia revolucionária, como um
verdadeiro mestre! Com que simplicidade mas ao mesmo tempo com que
veemência ele sabia descrever-nos o homem — o homem falso, perverso e
violento! Muito lhe devo eu!
Dizia isto a meia voz, com um sorriso de reflexão, mas que não lhe extinguia
no olhar o brilho de alegria que era bem visível e que nenhum dos três
compreendia. É que nos acontece às vezes sentirmos prazer com um pesar,
fazermos dele um brinquedo torturante que nos rói o coração. Mas Nicolau, Sofia
e Pelagueia, esses, não queriam deixar que se dissipasse a sua tristeza, nem
abandoná-la aos sentimentos despreocupados que Sachenka viera ali trazer; sem
disso terem consciência, defendiam o seu melancólico direito de se acolherem à
dor, e tentavam fazer entrar a recém-chegada no círculo das suas preocupações.
— E, afinal, está morto! — insistiu Sofia, fitando-a com atenção.
Ela vagueou pelos presentes interrogador olhar e baixou a fronte.
— Está morto?... — repetiu em voz alta. — Custa-me conformar-me com
este facto.
Entrou a passear a todo o comprimento da sala, e em seguida, estacando de
súbito, prosseguiu em tom singular:
— Mas que significa isso: «Está morto?» O que foi que morreu? A minha
estima pelo Iegor, a minha afeição por esse camarada, a memória do que a sua
inteligência praticou, tudo isso morreu? A opinião que eu tinha dele — a dum
homem valente e leal — ficou porventura aniquilada? Morreu tudo isso? Para
mim, tudo isso, a melhor parte dele próprio, nunca há de morrer, sei-o bem!Parece-me que há sempre pressa de mais em se dizer que um homem morreu!
Se os seus lábios morreram, as suas palavras estão vivas no coração dos que as
escutaram.
Muito comovida, tornou a sentar-se, encostou-se à mesa e continuou com
mais brandura:
— Talvez sejam tolices o que digo, mas olhem, camaradas: creio na
imortalidade da gente de bem!
— Teve alguma novidade? Está tão alegre! — perguntou-lhe Sofia, amável.
— Tive! — respondeu Sachenka, confirmando a resposta com um aceno. —
Uma novidade muito agradável, ao que julgo. Falei toda a noite com o
Vessovtchikov. Antigamente não gostava dele; achava-o muito grosseiro, muito
ignorante, o que realmente era verdade. Havia nele um mau humor, uma
irritação indefinida e contínua para com todos; estava sempre a antepor-se a tudo
com uma insistência que chegava a aborrecer, sempre a falar de si mesmo...
Aquele homem tinha o que quer que fosse de maldade, que enervava.
Interrompeu-se para sorrir e relanceou em torno um olhar radiante:
— E agora, não: fala já dos seus «companheiros». E se ouvissem como ele
pronuncia esta palavra! Com uma veneração tão terna, com tanta meiguice, que
ninguém o pode intimar! Caiu em si, sabe a força de que dispõe, sabe o que lhe
falta... e hoje, o que sente sobre todas as coisas é o verdadeiro sentimento de
camaradagem, uma imensa dedicação, capaz de ir ao encontro das maiores
provações.
Escutava-a Pelagueia, encantada com a alegria daquela rapariga, por hábito
tão triste. Mas, ao mesmo tempo, no recôndito do seu coração brotava secreto
pensamento de inveja: «E o Pavel, que faz ele no meio de tudo isto?»
— Só pensa nos camaradas — continuava Sachenka; — e sabem o que ele me
persuadiu que fizesse? Que arranjasse uma fuga geral dos presos... É verdade!
Diz que é fácil.
Sofia ergueu a cabeça e, em tom de animação:
— E que lhe parece, Sachenka? É uma boa ideia.
A chávena de Pelagueia entrou a tremer-lhe na mão; pousou-a sobre a mesa.
Sachenka ficou-se um instante calada, de sobrolho franzido, reprimindo o
entusiasmo; depois, muito séria mas com um sorriso radiante, respondeu com
alguma hesitação:
— Certo é que se as coisas são realmente como ele diz, devemos tentar... é o
nosso dever.
Corou, deixou-se cair numa cadeira e nada mais acrescentou.
A mãe de Pavel esboçou um sorriso de muita meiguice, dizendo consigo:«Querida! Querida da minha alma!» Sofia sorriu também; Nicolau soltou uma
gargalhadinha, e atentou na rapariga, bondosamente. Então, ela ergueu a fronte,
olhou em torno com severidade, e, pálida, com os olhos a faiscar, disse
secamente:
— Riem-se... Percebo porque é. Pensam que sou pessoalmente interessada no
resultado da evasão, não é isto?
— Mas porquê, Sachenka? — interrogou Sofia hipocritamente.
E, levantando-se de onde estava, foi pôr-se ao lado dela. Pelagueia achou a
pergunta fútil e humilhante para Sachenka e assim lho fez sentir com um olhar.
— Mas, então, não quero tratar de nada! — exclamou Sachenka. — Não
quero tomar parte na discussão, desde o momento que consideram este projeto...
— Cale-se, Sachenka! — disse Nicolau sem se exaltar.
A mãe de Pavel foi para a rapariga e afagou-lhe brandamente os cabelos.
Sachenka agarrou-lhe logo a mão e voltando para ela o rosto, onde o sangue
afluíra, fitou-a, confusa. Sofia arrastou uma cadeira, sentou-se ao lado de
Sachenka, passou-lhe o braço em volta da cinta e disse-lhe, ao passo que a fitava
com curiosidade:
— Que caráter singular o seu!
— Sim, parece-me que disse tolice... mas é que eu gosto das coisas claras...
Nicolau interrompeu-a para dizer em tom sério e preocupado:
— Se a evasão é possível, trate-se disso, não temos que hesitar!... Mas antes
de mais nada, é preciso saber se os companheiros encarcerados estarão de
acordo.
Sachenka curvou a fronte.
— Como se eles pudessem recusar! — disse Pelagueia, suspirando. — O que
eu não creio é que isso se possa fazer!
Todos ficaram calados.
— Deixem-me falar com o Vessovtchikov — disse Sofia.
E Sachenka anunciou em voz baixa:
— Bem! Amanhã lhe digo onde e quando pode encontrá-lo.
Nicolau aproximou-se da velha, que estava lavando as chávenas.
— Vossemecê vai depois de amanhã à cadeia; é preciso fazer chegar um
bilhete às mãos do Pavel. Compreende? É preciso que a gente saiba...
— Compreendo, compreendo! — interrompeu ela com vivacidade. — Eu me
encarrego de lho entregar.
— Vou-me embora! — declarou Sachenka e, tendo distribuído pelos
companheiros vigorosos apertos de mão, foi-se, sem mais uma palavra.Poisou Sofia a mão no ombro de Pelagueia e a sorrir:
— Queria ter uma filha como esta, Pelagueia?
— Meu Deus! Se eu pudesse vê-los casados, ainda que não fosse senão um
dia! — exclamou a boa mulher quase a chorar.
— Sim, a felicidade de cada um consiste em ser-se um bocadinho feliz...
Quando essa felicidade é demasiada, também é de qualidade inferior.
E Sofia foi para o piano tocar uma música triste. XII
Na manhã seguinte, apinhavam-se ao portão de ferro do hospital algumas
dúzias de homens e de mulheres, à espera que saísse o enterro do companheiro.
Pelo meio deles, cautelosamente, giravam vários espiões, escutando cada
exclamação, retendo de memória rostos, gestos e palavras; no passeio fronteiro,
estava um grupo de polícias, de revólveres à cinta. A imprudência dos primeiros
e os risos irónicos dos segundos, a fazerem alarde da força, irritavam o povo.
Uns disfarçavam a ira que os possuía e gracejavam; outros, ficavam-se
cabisbaixos, olhando para o chão, para não verem aquele aparato ultrajante;
outros ainda, incapazes de conter o seu furor, zombavam dos poderes públicos e
do seu medo de gente que por armas só tinha o dom da fala. Um céu de outono,
de azul muito pálido, iluminava a rua calcetada a seixos redondos, semeada de
folhas mortas, que as lufadas erguiam em remoinhos diante dos pés dos
transeuntes.
Entre a multidão, estava Pelagueia. Ia contando as caras conhecidas e
pensava tristemente:
— Não são bastantes!... Não são bastantes!
O portão rodou nos gonzos. Trouxeram para a rua a tampa do caixão,
enfeitada com coroas de fitas encarnadas. Silenciosos, os homens tiraram a um
tempo os seus chapéus: dir-se-ia uma revoada de pássaros pretos que se tivesse
levantado das cabeças. Um oficial da polícia, de avantajada estatura, de grossos
bigodes escuros atravessados num rosto vermelhaço, cercado de polícias e
soldados, precipitou-se por entre o povo, empurrando todos sem cerimónia, e
gritou com voz roufenha e autoritária:
— Tenham a bondade de tirar as fitas!
Num pronto viu-se rodeado de homens e mulheres, em círculo compacto,
falando todos à uma, gesticulando, empurrando-se uns aos outros. Perante o olhar
turvado de Pelagueia, agitaram-se em confusão rostos lívidos e excitados, com os
beiços a tremer de ira; e pelas faces duma mulher corriam pesadas lágrimas de
humilhação.
— Abaixo a prepotência! — gritou uma voz juvenil que se sumiu,
desacompanhada, no burburinho da discussão.
Pelagueia sentia referver-lhe a amargura; voltou-se para o seu vizinho, rapaz
pobremente vestido, e disse-lhe:
— Até não nos deixam enterrar um camarada, como entendermos!...
Aumentava a hostilidade, a tampa do esquife vacilava por sobre as cabeças,
as fitas agitadas pelo vento envolviam os rostos e as cabeças; ouvia-se-lhes o
crepitar nervoso e seco da seda.
Pelagueia, tomada de terror gélido por uma desordem possível, dirigia aosque lhe ficavam próximos e a meia voz, frases rápidas:
— Que importa!... Uma vez que tem de ser... tirem-se as fitas... é melhor
ceder... Para que serve resistir?
Ressoou uma voz áspera e sonora, que dominou o tumulto:
— Queremos que nos deixem acompanhar à sua última morada um
companheiro que vocês martirizaram!
Alguém, — alguma rapariga com certeza — pôs-se a entoar numa voz aguda
e fina:
E vós caístes, vítimas, na luta...
— Façam favor de tirar as fitas! Jakovlev! Corta essas fitas!
Ouviu-se o tinido duma espada a sair duma bainha. Pelagueia fechou os olhos,
na expetativa dum grito. Mas tudo sossegou; o povo rosnava, mostrava os dentes
como os lobos perseguidos. Depois, de cabeça baixa, em silêncio, esmagados sob
o sentimento da impotência, puseram-se a caminho, fazendo ecoar pela rua o
ruído dos passos.
À frente, a tampa do caixão despojada dos seus ornatos, com as coroas
esfrangalhadas, lá ia erguida no ar; depois, vinham os agentes de polícia,
balançando-se dum e outro lado, em cima dos cavalos. Pelagueia seguia pelo
passeio; não podia enxergar o caixão, devido à muita gente que o cercava;
aumentava sem cessar o número dos manifestantes, que ocupavam já toda a
largura do calcetamento. Atrás da multidão, alteavam-se também os vultos
uniformes e cinzentos dos guardas de cavalaria; de cada lado, polícias, com a
mão nos copos das espadas; e, por toda a parte, divisava Pelagueia caras de
espiões com os agudos olhares a perscrutarem as fisionomias.
— Adeus, companheiro, adeus! — cantaram suavemente duas vozes bonitas.
— Silêncio! — gritou alguém. — Calem-se, amigos! Calem-se por enquanto!
Havia nesta exclamação uma rudeza tão sugestiva de ameaçador conselho,
que o povo calou-se. O canto fúnebre ficou interrompido, e o ruído das vozes
sossegou; só se ouviam agora passos amortecidos, num tropel que se elevava
muito alto, que se perdia na transparência do céu, agitando a atmosfera, assim
como o eco do primeiro trovão de tempestade ainda longínqua. O vento, cada vez
mais frio, atirava aos rostos, com animosidade, poeira e lama entumecia os
vestidos, entorpecia as pernas, vergastava os peitos...
Aquele funeral silencioso, sem um sacerdote, sem um cântico, aquelas
fisionomias opressas e carrancudas, aquele ruído de passos enérgicos, tudo
provocava em Pelagueia pungente angústia; o pensamento redemoinhava-lhe
indeciso, revestindo de frases tristes as suas impressões:
— Ah! Que não sois bastantes... lutadores da liberdade, não sois bastantes! Econtudo têm-vos medo!
Afigurava-se-lhe não ser aquele mesmo Iegor seu conhecido que ia a
enterrar, mas sim uma coisa habitual, que lhe fosse íntima e indispensável.
Dominava-a um sentimento de violenta revolta: não estava de acordo com
aquela gente. Pensava:
— Sei-o bem: Iegor não cria em Deus, como estes também não creem...
Mas não conseguia concluir a sua ideia e suspirava, como a querer
desembaraçar a alma de pesado fardo:
— Ó Senhor! Senhor!... Jesus!... Será possível que também eu vá a enterrar
assim?...
Chegaram ao cemitério. Depois de muitas voltas por entre os sepulcros, parou
o cortejo num vasto espaço livre, semeado de cruzinhas brancas. A multidão
agrupou-se em torno duma cova e estabeleceu-se silêncio. E este austero silêncio
dos vivos, entre túmulos, pressagiava alguma coisa terrível que sobressaltava o
coração de Pelagueia. Imobilizou-se então na expetativa. O vento uivava por
entre as cruzes; em cima do caixão adejavam tristemente flores murchas.
A gente da polícia, vigilante, tinha-se alinhado, seguindo com os olhares os
movimentes do chefe. Então, um rapaz alto, pálido, com a cabeça descoberta,
negras sobrancelhas e comprido cabelo negro, foi postar-se junto do coval. No
mesmo instante, ouvia-se a voz roufenha do oficial da polícia.
— Meus senhores!...
— Companheiros! — começou o rapaz com voz sonora.
— Perdão! — gritou o oficial. — Tenho a declarar-lhes que não consinto
discursos.
— Limitar-me-ei a dizer algumas palavras — observou sossegadamente o
orador: — «Companheiros! Juremos sobre a sepultura do nosso mestre e amigo
nunca esquecermos os seus ensinamentos, juremos trabalhar cada qual toda a
nossa vida e sem descanso, para destruir a origem de todos os infortúnios da
nossa pátria, a força daninha que a oprime, a autocracia!»
— Prendam-no! — gritou o oficial.
Mas logo teve a voz coberta por uma explosão de gritos:
— Morra a autocracia!
Afastando a multidão, às cotoveladas, os polícias atiraram-se para o orador, a
quem o povo formava estreito círculo, enquanto ele bradava:
— Viva a liberdade! É por ela que devemos viver e morrer!
Pelagueia foi arrebatada para longe. Transida de terror, agarrou-se a uma
cruz e fechou os olhos, à espera do golpe que havia de feri-la. Ensurdecia-a um
turbilhão impetuoso de sons discordantes; sentia faltar-lhe o solo debaixo dos pés;oprimiam-lhe a respiração o vento e o medo. Os apitos da polícia rasgavam o ar;
ressoavam vozes roucas, de comando; mulheres soltavam gritos nervosos;
estralejavam madeiras das divisórias de covais; no terreno, seco, ressoava
lugubremente o pesado tropel de toda aquela gente. Durou isto muito tempo.
Pelagueia não podia conservar por maior espaço os olhos fechados; era
demasiado lancinante o seu horror. Olhou em volta, e soltando uma exclamação
entrou a correr, de braços estendidos. Não longe, em estreito carreiro, entre
túmulos, estavam os polícias cercando o rapaz de cabelo preto e defendendo-se
dos ataques da populaça. Cintilavam pelo ar com brancos e frios reflexos, as
lâminas desembainhadas; elevavam-se acima das cabeças e caíam rapidamente.
Bengalas, destroços dos tapumes surgiam, para logo desaparecerem; em
selvagem torvelinho, cruzavam-se os gritos da multidão amotinada; de vez em
quando, divisava-se o rosto pálido do rapaz; com voz forte que dominava a
tempestade das iras, bradava:
— Camaradas! Para que serve sacrificarem-se inutilmente?
Acabaram por lhe obedecer. Atiraram para longe os cacetes e uns após
outros, foram-se afastando. Pelagueia continuava a caminhar, arrastada por
força invencível. Viu Nicolau, com o chapéu para a nuca, a repelir os
manifestantes, cegos de cólera; ouviu-o dirigindo-lhes censuras:
— Endoideceram?... Sosseguem!
Pareceu-lhe que trazia uma das mãos toda ensanguentada.
— Vá-se daqui Nicolau! — gritou, atirando-se-lhe ao encontro.
— Onde vai a correr? Olhe que lhe fazem mal!
Sentiu-se agarrar por um ombro. Voltou-se. Era Sofia, sem chapéu, os
cabelos em desalinho, sustendo nos braços um rapaz, quase uma criança, que
limpava à mão o rosto tumefacto e balbuciava com os beiços a tremer:
— Deixem-me... não é nada!
— Veja se trata dele. Leve-o para nossa casa. Aqui tem um lenço... amarre-
lhe a cabeça! — disse Sofia rapidamente.
E introduzindo entre as mãos de Pelagueia a mão do rapaz, deitou a correr,
com um último conselho:
— Vão-se depressa, se não são presos!
Os manifestantes precipitavam-se por todas as saídas do cemitério; atrás
deles, os polícias marchavam pesadamente por entre as sepulturas. Embaraçados
com as compridas abas das fardetas, praguejavam e brandiam as espadas. O
rapaz seguia-os de longe, com a vista.
— Vamos, depressa! — disse-lhe Pelagueia com brandura. E limpou-lhe o
rosto.O pequeno lançou um escarro de sangue e ciciou:
— Não lhe dê cuidado... não sinto nada. O polícia bateu-me com o punho da
espada, na cara e na cabeça... E eu dei-lhe com o meu pau... Sempre apanhou
uma sova!... Até uivava!
— Depressa! — instava Pelagueia, dirigindo-se rápida, para uma pequena
aberta do muro do cemitério.
Pareceu-lhe distinguir para além do muro dois polícias à espreita, disfarçados
com a verdura e que os esperavam, para lhes saltarem em cima à pancada, tão
depressa eles aparecessem. Mas depois de ter empurrado a portinha com
precaução, espraiou a vista pelo campo, todo envolvido no tecido pardacento
daquele crepúsculo outonal. O silêncio e a quietação que nele reinavam
tranquilizaram-na de súbito.
— Espere, deixe-me ligar-lhe a cabeça — propôs.
— Não senhora; não tenho que me envergonhar das minhas feridas.
Pelagueia pensou-o sumariamente.
Aquele sangue fresco e vermelho apiedou-a imenso; ao sentir-lhe com os
dedos a quente humidade, toda a percorreu um estremecimento de terror. Em
seguida, conduziu o ferido pelo braço, pelo campo fora, sem proferir uma
palavra. Ele libertou os lábios da ligadura para dizer alegremente:
— Para que vai a puxar por mim, camarada? Eu posso bem caminhar
sozinho!
Mas Pelagueia sentia-o cambalear, o andar vacilava-lhe. A voz ia-lhe
enfraquecendo enquanto falava, interrogando-a sem esperar as respostas.
— Chamo-me Ivan, sou funileiro... e a senhora quem é? Éramos três no clube
do Iegor... três funileiros; ao todo, éramos onze! Gostávamos muito dele.
Na rua mais próxima, Pelagueia tomou um trem e para ele fez subir Ivan,
segredando-lhe:
— Agora, cale-se.
E para mais segurança, puxou-lhe outra vez a ligadura para a boca. Ele levou
logo a mão à cara, mas não conseguiu libertar os lábios; o braço recaiu inerte
sobre os joelhos. Ainda assim, continuava a murmurar através do lenço:
— Nunca me esquecerei destas pancadas, amiguinhos da polícia!... Antes do
Iegor, era um estudante que nos dirigia... Ensinava-nos economia política... Era
muito rigoroso, muito aborrecido... Afinal, prenderam-no.
Ela passou-lhe o braço em volta e descansou no seio a cabeça do rapaz. De
súbito, sentiu que lhe pesava mais, ao mesmo tempo que se tinha calado.
Transida de medo, Pelagueia olhava para todos os lados; parecia-lhe ver a cada
esquina um polícia, pronto a agarrar Ivan e a matá-lo.O cocheiro voltou-se na almofada, com um sorriso:
— Bebeu, hã?
— É verdade, até cair! — respondeu ela, suspirando.
— É teu filho?
— É, sim. É sapateiro... Eu sou cozinheira...
— Ah, sim! É duro ofício!
Descarregou uma chicotada no cavalo e logo tornou a voltar-se. Baixou a voz.
— Sabes? Houve há pouco grande desordem no cemitério. Era o enterro dum
desses políticos, dessa gente que está contra a autoridade... que tem questões com
a polícia. Havia amigos do defunto no acompanhamento... Eles então puseram-se
a gritar: «Morram as autoridades, que arruínam o povo»!» A polícia bateu-lhes.
Dizem que alguns ficaram mortos... Mas a polícia também apanhou pancada.
Calou-se o cocheiro, abanou a cabeça com ares de desconsolo e prosseguiu
num tom de voz estranho:
— Assim se vão incomodar os mortos... acordar os cadáveres que dormem!
O trem ia aos solavancos pela calçada, chiando muito; a cabeça de Ivan
rolava suavemente no peito da sua enfermeira. O cocheiro, virado para eles,
continuou, pensativo:
— Anda a agitação entre o povo... As desordens parece que se levantam
debaixo dos pés... É verdade! Esta noite veio a polícia a casa duns vizinhos.
Fizeram lá não sei o quê até pela manhã e depois, quando se foram, levaram
preso um que é ferreiro. Dizem que uma noite destas vão levá-lo ali à beira no
rio e afogam-no em segredo. E todavia, era um homem inteligente, aquele
ferreiro.
— Como se chama ele? — perguntou a velha.
— O ferreiro? Chama-se Savil, mas tem um outro nome: Evetchenko. É muito
mocinho ainda, mas já compreendia muitíssimas coisas, e é proibido
compreendê-las, ao que parece...
Às vezes, aparecia lá pelas estações de carruagens e dizia-nos: «Que vida que
vocês levam cocheiros!»
— É verdade, respondíamos-lhe nós, o nosso ofício é pior que o dos cães!
— Para aí! — ordenou Pelagueia.
O sobressalto produzido fez então que Ivan voltasse a si. Entrou a gemer
devagarinho.
— Esse rapaz está muito doente — observou o cocheiro.
Vacilante, Ivan atravessou o pátio, custando-lhe colocar um pé adiante do
outro.— Não é nada — dizia. — Ando perfeitamente... XIII
Sofia já estava de volta. Atarefada e mexendo-se muito, recebeu a velha, de
cigarro na boca. Deitou o ferido num canapé e ligou-lhe com perícia a cabeça,
ao mesmo tempo que ia dando ordens. O fumo do cigarro obrigava-a a piscar os
olhos:
— Doutor, aí os tem. Sente-se fatigada, Pelagueia? Teve muito medo, não é
assim? Está bem, descanse agora um bocado... Nicolau vai-lhe já buscar o chá e
um copo de Porto.
Emocionada por tais acontecimentos, Pelagueia respirava com dificuldade e
ressentia-se de uma dolorosa sensação de picada no seio.
— Não se importem comigo — murmurou.
E toda a sua pessoa, transida de medo, suplicava um afago, um pouco de
atenção... Nicolau veio do quarto contíguo. Trazia a mão ligada. Atrás dele entrou
o médico, com os cabelos desgrenhados, como um ouriço. Correu para Ivan,
curvou-se a examiná-lo e pediu:
— Água, muita água! Panos de linho limpos! Algodão em rama!
Já Pelagueia se dirigia à cozinha, mas Nicolau travou-lhe do braço e disse-lhe
afetuosamente, levando-a para a casa de jantar:
— Não é consigo que ele fala, é com a Sofia. A minha querida amiga passou
por bastantes comoções, não é verdade?
Àquele falar apiedado respondeu ela com um soluço mal contido e exclamou:
— Ah! Que horrível coisa!... A espadeirarem o povo... a espadeirarem!
— Eu também lá estava — disse Nicolau, com um aceno confirmativo de
cabeça. E encheu um copo de vinho quente. — Dos dois lados houve igual
exaltação... Mas não tenha receio; a polícia agrediu só com a parte mais larga
das espadas; só uma pessoa ficou ferida gravemente, ao que me parece... e essa
vi-a eu cair ao pé de mim... Puxei-a até para fora da batalha.
A fisionomia e a voz com que Nicolau lhe falava, a claridade e o calor que
reinavam no aposento, sossegaram os nervos de Pelagueia. Dispensou ao seu
hospedeiro um olhar de reconhecimento e perguntou-lhe:
— Também ficou ferido?
— Sim, e creio que por culpa minha... Sem querer, rocei com a mão não sei
por quê e fiquei com a pele arrancada. Beba o seu vinho... Faz frio e vossemecê
tem um fato tão leve!...
Ela estendeu as mãos para o copo e reparou que tinha os dedos cheios de
sangue coagulado. Em gesto instintivo, deixou cair os braços sobre os joelhos.
Tinha a saia húmida. Esgazeou os olhos, com as sobrancelhas muito erguidas,
examinou furtivamente os dedos. A cabeça andava-lhe à roda, uma ideiamartelava-lhe no cérebro:
— Aí está, aí está o que espera o Pavel um dia!
Voltou o médico. Vinha em mangas de camisa e estas arregaçadas. A uma
interrogação muda de Nicolau, respondeu com a sua vozinha delgada:
— A ferida do rosto é insignificante, mas houve fratura do crânio, que
também não é muito grave... O rapazola é valente, mas ainda assim perdeu
muito sangue. Vamos levá-lo para o hospital.
— Para quê? Pode ficar aqui! — acudiu Nicolau.
— Hoje e amanhã talvez, mas depois era preferível que se tratasse no
hospital, não tenho tempo para visitas. Encarregas-te do relatório do que se
passou no cemitério?
— Bem entendido! — respondeu Nicolau.
Pelagueia levantou-se então sem fazer bulha e dirigia-se para a cozinha.
— Onde vai? — exclamou Nicolau alvoroçado. — Deixe lá a Sofia governar-
se sozinha!
Com um olhar e um sorriso involuntário, singular, respondeu a tremer:
— Estou toda suja de sangue... Estou toda suja de sangue!
E ao mudar de roupa, no seu quarto, mais uma vez ficou a meditar na
serenidade daquela gente, naquela faculdade de que dispunham de não demorar
muito tempo o pensamento no horror dos acontecimentos. Esta reflexão fê-la
cair em si, vencendo o sentimento de terror de que estava possuída. Quando
voltou ao quarto onde jazia o ferido, Sofia, curvada sobre este, dizia-lhe:
— Que tolice, camarada!
— Mas eu vou incomodá-los! — observou ele em voz débil.
— Cale-se; é o melhor que tem a fazer.
Pelagueia parou por detrás dela e pousou-lhe a mão no ombro; fitou depois,
sorrindo, o rosto muito branco do ferido e pôs-se a contar o medo que lhe tinha
causado o seu acesso de delírio, no trem. Ivan escutava-a com os olhos a arder
em febre; fazia estalar os beiços e exclamava de vez em quando, como que
envergonhado:
— Oh, que tolo que eu sou!
— Bem, agora vamos deixá-lo — declarou Sofia compondo-lhe as roupas que
o cobriam. — Descanse!
E as duas mulheres passaram para a casa de jantar, onde, com Nicolau e o
médico, por muito tempo conversaram baixinho sobre os acontecimentos desse
dia. Já o drama era tratado como coisa remota, já se falava do futuro com
tranquilidade; preparava-se a tarefa de amanhã. Se os rostos exprimiam a fadiga,
os pensamentos latejavam vivos. O doutor mexia-se nervosamente na cadeira,esforçando-se por velar a voz, que tinha aguda e esganiçada:
— Ora, a propaganda!... Não basta; os operários têm razão: é necessário
exercer a agitação em terreno mais vasto. Creiam que os operários têm razão!
Nicolau acrescentou com ar desconsolado:
— Por toda a parte se queixam da insuficiência dos livros e ainda não
conseguimos montar uma boa imprensa... A Ludmila está esgotada de forças,
vai-nos cair doente, se não lhe arranjarmos colaboradores.
— E o Vessovtchikov? — perguntou Sofia.
— Esse não pode residir na cidade. Há de entrar para o serviço da nova
imprensa... mas falta-nos ainda alguém...
— E se eu pudesse servir? — propôs a velha com brandura.
Os três fitaram-na um momento.
— É uma boa ideia! — exclamou Sofia de repente.
— Não; é muito difícil para você, creia, Pelagueia — contestou Nicolau com
secura. — Era preciso que fosse viver para fora da cidade, que não pensasse
mais em ver o Pavel, e em geral...
Ela replicou, suspirando:
— Olhe que não faria grande falta ao Pavel... e pela minha parte, também
essas visitas me partem o coração. É proibido falar seja do que for! Até pareço
uma idiota aos olhos do meu filho! Estão ali mesmo, sempre a espiar-nos!
Os recentes acontecimentos haviam-na fatigado, e agora, quando se lhe
apresentava ensejo de afastar a ideia dos dramas da cidade, era quando se
agarrava a esse assunto com todas as forças.
Mas Nicolau mudou o curso da conversa.
— Em que pensas? — perguntou ele ao doutor.
Este, mal humorado, respondeu:
— Somos poucos! Aqui tens em que penso... É absolutamente necessário
trabalhar com mais energia. É necessário decidir o André e o Pavel a evadirem-
se; são dois trabalhadores preciosos de mais para estarem na inação.
Nicolau franziu o sobrolho, meneou a cabeça em ar de dúvida e lançou um
rápido olhar para a mãe de Pavel. Percebeu que se constrangiam em falar do
filho diante dela e foi para o seu quarto, levemente irritada contra quem tão
pouco se preocupava com os seus desejos.
Deitou-se e, de olhos abertos, embalada pelo ciciar das vozes, sentiu-se
tomada de inquietação. Parecia-lhe incompreensível o dia que acabava de
decorrer, cheio de alusões ameaçadoras; mas porque este género de reflexão lhe
fosse penoso, afastou-as do cérebro e entrou de pensar no seu filho. Queria vê-lo
em liberdade e, ao mesmo tempo, tal ideia assustava-a; sentia que tudo se lheagitava em torno; a situação tornava-se cada vez mais tensa, andavam iminentes
violentas colisões. A paciência do povo dera lugar a enervada expetativa; crescia
visivelmente a irritação pública, ouviam-se com frequência frases rancorosas, de
toda a parte soprava um hálito novo, um vento de excitação. As proclamações
eram discutidas animadamente no mercado, nas lojas, entre a criadagem e os
artífices; cada prisão que na cidade se efetuasse despertava ecos tímidos, mas
inconscientemente simpáticos e as suas causas eram comentadas. Pelagueia
ouvia agora com mais frequência a gente do povo pronunciar as palavras que
outrora a amedrontavam tanto: «socialistas, política, revolta». Tais palavras
eram repetidas com ironia, mas esta ironia não chegava a disfarçar o fim
principal, que era o de se informarem das opiniões; com cólera, mas sob esta
cólera transparecia o medo, e todos andavam pensativos, entre alternativas de
esperança e de ameaça... Em vastos círculos, lentamente, ia-se propagando a
agitação na vida sombria e estagnada do povo; despertava o pensamento
adormecido; os acontecimentos diários já não eram tratados com o sossego
habitual e a antiga placidez dos fortes. Pelagueia notava tudo isto mais
distintamente do que os seus companheiros, pois que melhor do que eles conhecia
o aspeto desconsolador da vida, dela vivia mais próxima e nela divisava sintomas
de reflexão e de irritação, uma sede vaga de alguma coisa nova, o que a
regozijava e assustava a um tempo. Regozijava-se porque tudo considerava obra
de seu filho; assustava-se porque sabia que ele, mal saísse da cadeia, logo iria
colocar-se no posto mais perigoso, à frente dos companheiros... e que ali havia de
morrer.
Sentia muitas vezes Pelagueia agitarem-lhe o espírito os grandes ideais
indispensáveis à humanidade e experimentava o desejo de falar da verdade, mas
quase nunca conseguia realizar o seu desejo. Nesta mudez forçada, os seus
secretos pensamentos acabrunhavam-na. Por vezes, a imagem do filho tomava a
seus olhos as proporções gigantescas dum herói de lenda; nele resumia todas as
máximas fortes e leais que ouvira, todos os seus afetos, todas as coisas grandes e
luminosas que o seu espírito abraçava. Contemplava-o então com mudo
entusiasmo; ufana, enternecida, nadando em esperança, dizia consigo:
— Tudo há de ir bem!... Tudo!
O seu amor materno exaltava-se, comprimia-lhe o coração até fazê-lo
sangrar, mas impedia que nele o amor pela humanidade se desenvolvesse,
chegando a destruí-lo de todo; e no lugar deste grande sentimento só ficava uma
minúscula ideia fixa a palpitar timidamente nas cinzas frias da inquietação:
— Vai morrer... Vai morrer!...
Adormeceu tardíssimo em profundo sono, mas acordou logo muito cedo, com
o corpo dorido e a cabeça pesada. XIV
Ao meio-dia, já Pelagueia estava na secretaria da cadeia. Com turvo olhar,
examinava o rosto barbudo de Pavel, que se lhe sentara em frente, à espera do
momento em que poderia passar-lhe o bilhete que apertava fortemente na mão.
— Estou de saúde, e outros também — dizia Pavel a meia voz. — E tu? Como
vais?
— Muito bem. Morreu o Iegor! — respondeu maquinalmente.
— Palavra?! — exclamou Pavel; e baixou a cabeça.
— Vinha a polícia no enterro, houve uma desordem, e foi um homem preso
— continuou ela com simplicidade.
O sub-diretor da cadeia deu com a boca um estalo, aborrecido, e levantou-se
a resmungar:
— Não falem nessas coisas! É proibido, já devem sabê-lo. Não se consente
que se fale de política... Oh, Deus poderoso!
Ela ergueu-se igualmente e em voz de inocência desculpou-se:
— Eu não falava de política, falava da desordem. E o certo é que eles
bateram uns nos outros. Até um ficou com a cabeça aberta!
— Não faz mal, queira calar-se! Quer dizer: não profira uma palavra que não
lhe diga pessoalmente respeito, a si, à sua família ou à sua casa.
E para confirmar melhor as suas explicações, sentou-se à secretária e
acrescentou num tom de cansaço e de enfado, ao mesmo tempo que punha em
ordem uns documentos:
— Depois, eu é que sou responsável.
Pelagueia lançou-lhe furtivo olhar e introduziu rapidamente o bilhete na mão
de Pavel. Depois, suspirou com alívio:
— Nem eu sei de que hei de falar...
Pavel sorriu.
— Nem eu tão pouco.
— Então para que serve vir fazer visitas? — observou, irritado, o funcionário.
— Se não sabem de que hão de falar, não venham, não nos incomodem!
— Quando vais responder? — perguntou a mãe após curto silêncio.
— O procurador esteve aí um dia destes; disse que era para breve.
Trocaram ainda umas frases banais. A mãe via que o seu Pavel a fitava
amorosamente.
Não mudara; mostrava-se, como sempre, calmo e ponderado; unicamente, a
barba que lhe crescera vigorosamente, o fazia mais velho; e tinha os pulsos mais
brancos. Pelagueia quis causar-lhe prazer dando-lhe notícias de Vessovtchikov.Então, sem mudar de voz, no mesmo tom em que lhe falava de bagatelas,
continuou:
— Vi o teu afilhado...
Pavel fitou-a com o ar interrogador. E logo para evocar o rosto bexigoso do
fugitivo, ela cravou o indicador em diversos pontos da cara.
— Vai bem, o teu rapaz; é robusto, desembaraçado... Vai ter emprego daqui a
pouco... Lembras-te? Estava sempre a exigir que lhe dessem trabalho pesado.
Pavel tinha compreendido. Abanou a cabeça e respondeu com os olhos
iluminados por um alegre sorriso:
— Ora essa!... Se me lembro!...
— Pois aí tens! — disse ela com satisfação.
Sentia-se contente consigo mesma e alegre com a alegria do filho. Ao retirar-
se, apertou-lhe ele a mão vigorosamente:
— Obrigado, mamã!
Como o vapor da embriaguez, uma sensação de êxtase subiu à cabeça da
mãe; sentia o coração do filho mais perto do seu; não teve forças para lhe
responder com frases e contentou-se com apertar-lhe também a mão, sem uma
palavra mais.
Em casa, encontrou Sachenka, pois tinha esta por costume visitá-los nos dias
em que Pelagueia ia à cadeia. Nunca a interrogava acerca de Pavel; se
Pelagueia, de moto próprio, não falava do filho, Sachenka ficava-se a olhar
fixamente para ela, e era tudo. Mas nesse dia, acolheu-a com uma interrogação
de desassossego:
— E então, que faz ele?
— Está bom.
— Deu-lhe o bilhete?
— Com certeza.
— E leu-o?
— Está visto que não. Como podia ele lê-lo?
— É verdade!... Esquecia-me!... — emendou com lentidão a rapariga. —
Esperemos mais uma semana... E que lhe parece? Estará de acordo? — E olhou
fito para a mãe de Pavel.
— Sim... não sei... creio que sim! — respondeu. — Porque não havia ele de se
evadir? Perigo, não há nenhum...
Sachenka concordou com um aceno e perguntou com secura:
— Não sabe dizer-me o que é que se pode dar a comer ao doente? Diz que
tem fome...— Pode comer de tudo... de tudo! Eu mesma lá vou.
E encaminhou-se para a cozinha. Sachenka seguiu-a vagarosamente.
Pelagueia foi ao fogão buscar uma caçarola.
— Escute! — murmurou a rapariga.
Fez se pálida, os olhos dilataram-se-lhe numa angústia e com os beiços
trémulos, segredou de enfiada:
— Queria perguntar-lhe... Eu bem sei: ele não há de querer. Mas convença-o,
diga-lhe que precisamos dele, que não podemos passar sem ele, que tenho medo
que ele caia doente nessa prisão... que tenho muito medo! Bem vê: nem ainda
está fixado o dia do julgamento!...
Falava com dificuldade e tal esforço toda a inteiriçava; não se atrevia a fitar a
mãe de Pavel; a voz saía-lhe desigual como corda que se puxa de mais, e logo se
quebra. Com as pálpebras cerradas molemente, mordia os beiços e ouviam-se-
lhe estalar as articulações dos dedos, enclavinhados.
Pelagueia, ficou emocionada ao ver aquele acesso de exaltação, mas
compreendeu. Comovida, cheia de tristeza, abraçou-a e respondeu baixo:
— Minha filha: ele não dá ouvidos senão a si mesmo... A mais ninguém!
Permaneceram um instante em silêncio, estreitamente enlaçadas. Depois,
Sachenka soltou-se-lhe dos braços suavemente e disse enleada:
— Sim... tem razão! São tolices minhas... são os meus nervos!
E fazendo-se de repente muito séria, concluiu simplesmente:
— Mas agora me lembro: é preciso levar de comer ao doente!
Daí a pouco, sentada à cabeceira de Ivan, perguntava a este em tom de
amigável solicitude:
— Dói-lhe muito a cabeça?
— Não, não muito... Mas vejo e oiço tudo vagamente... sinto-me fraco! —
respondeu Ivan confuso e puxando a roupa até o queixo. Pestanejava de
contínuo, como se a luz se lhe tornasse demasiado forte. E porque notasse que o
rapaz não se resolvia a comer na presença dela, Sachenka levantou-se e saiu do
quarto.
Ivan sentou-se na cama, seguindo-a com a vista; e, piscando o olho:
— É tão bonita!...
Ivan tinha uns olhos claros e espertos, dentes pequenos e muito iguais, a voz
estava ainda na mudança da puberdade.
— Que idade tem? — perguntou-lhe Pelagueia pensativa.
— Dezassete anos.
— Onde vivem seus pais?— No campo. Há sete anos que vivo aqui; abandonei a aldeia ao sair do
colégio... E a senhora, camarada, qual é o seu nome?
O ouvir tratar-se assim divertia sempre Pelagueia, e sensibilizava-a. Muito
risonha, retorquiu:
— Que precisão tem de o saber?
Calou-se um instante o rapaz, confuso, e explicou:
— É que um estudante do nosso grémio... quer dizer do grémio que nos fazia
as leituras, falou-nos da mãe de Pavel Vlassov, sabe? Aquele que organizou a
manifestação do primeiro de maio... o revolucionário Vlassov.
Ela confirmou com a cabeça e apurou o ouvido.
— Foi ele o primeiro a desfraldar a bandeira do nosso partido! — declarou
com ênfase o rapaz, e esta exclamação de orgulho ecoou no coração da mãe. —
Eu não estava no grupo... Tínhamos tenção de fazer uma manifestação também
aqui, mas fomos mal sucedidos: éramos muito poucos! Mas este ano há de ser
outra coisa... Verá!
Ofegava, emocionado, comprazendo-se à ideia de futuros acontecimentos.
Agitando a colher, prosseguiu:
— Falava eu então da mãe de Vlassov... Ao que parece, entrou também para
o partido depois da prisão do filho... Dizem que essa velha é extraordinária!
Pelagueia teve um franco sorriso: sentia-se a um tempo lisonjeada e
constrangida. Ia dizer-lhe que a mãe de Pavel era ela; mas conteve-se e pensou
com tristeza e um pouco de ironia:
— Que velha tola que eu sou!
E de repente, dominando a sensibilidade que a dominava, curvou-se para o
rapaz:
— Vamos, coma! Coma que mais depressa se há de curar para prosseguir
nos nossos trabalhos! A causa do povo precisa de braços juvenis e robustos, de
corações puros, de espíritos leais! São essas forças que lhe dão vida; é por elas
que hão de ser vencidas toda a maldade e toda a infâmia!...
Abriu-se a porta, deixando penetrar o fresco húmido do outono. Entrou Sofia,
alegre, com as faces muito coradas.
— Os espiões andam a perseguir-me como os janotas arruinados perseguem
uma herdeira rica, palavra de honra! Tenho de me ir embora daqui.
— E então, Ivan, como vai?... Bem?... Pelagueia, que diz o Pavel?... A
Sachenka está cá?
Acendia um cigarro e ia fazendo todas estas perguntas sem esperar as
respostas. Afagava no entretanto a velha e o rapaz com a carícia do seu olhar
pardacento. Pelagueia considerava a recém-chegada, rindo interiormente epensava:
«E eis como eu também me transformei em criatura humana... e numa boa
criatura, até!»
Inclinando-se de novo para Ivan, disse-lhe:
— Cure-se depressa, rapazinho!
E passou à casa de jantar, onde estava Sofia a dizer a Sachenka:
— Ela já preparou trezentos exemplares!... Mata-se a trabalhar... Que
heroísmo o dela! Sabe Sachenka, que é uma verdadeira felicidade viver entre
gente assim, ser seu camarada, trabalhar com eles!...
— É certo! — respondeu a rapariga.
E à noite, Sofia anunciou:
— Mãe Pelagueia, precisamos que faça uma nova excursão pelo campo.
— Com muito gosto. Quando é a partida?
— Dentro de três dias... Está por isso?
— Certamente!
— Mas não há de ir a pé — aconselhou Nicolau. — Alugam-se cavalos de
posta e toma outro caminho: pelo distrito de Nikolski...
Aqui, calou-se; tomara uns modos sombrios que não condiziam com a sua
expressão habitual; as suas feições tão calmas tiveram uma contração singular de
fealdade.
— É uma volta muito grande! — fez notar a velha. — E os cavalos custam
caro.
— É preciso que saibam — prosseguiu Nicolau. — Sou geralmente contrário
a estas viagens. Há agitação lá para esses lados... há pouco, fizeram-se por lá
prisões, foi encarcerado um mestre escola... É bom ser-se prudente... Mais valia
esperar um pouco...
— Ora! — redarguiu Pelagueia a rir. — Se é certo o que dizem: que não se
tortura ninguém nessas prisões...
Sofia, que tamborilava sobre a mesa, observou:
— Mas é importantíssimo para nós que a distribuição dos folhetos e dos
manifestos se faça sem interrupção... Não tem medo de lá ir, Pelagueia? —
perguntou bruscamente.
Sentiu-se melindrada.
— Tive eu alguma vez medo? Mesmo da primeira vez não me senti nada
assustada... e a senhora...
Baixou a cabeça sem terminar a frase. É que sempre que lhe perguntavam se
ela tinha medo, se podia fazer uma coisa ou outra, se isto ou aquilo era fácil paraela, pressentia que precisavam de si para alguma coisa, que tratavam de se
descartar dela, e que a tratavam por forma diversa da que usavam entre eles.
Quando tinham vindo os dias dos acontecimentos mais consideráveis, haviam-
na ao princípio assustado um pouco a rapidez dos incidentes e a repetição das
emoções, mas logo, instigada pelo exemplo e sob o impulso das ideias que a
dominavam, o seu coração transbordara do imenso desejo de se tornar também
útil. Era este o seu estado de espírito nesse dia, e a pergunta de Sofia tornou-se-
lhe assim, pois, tanto mais desagradável.
— É inútil perguntar se tenho medo... ou outra qualquer coisa deste género —
prosseguiu ela. — Porque havia de ter medo?... Os que possuem alguma coisa é
que têm medo. E eu que tenho? O meu filho, unicamente... Tinha medo por ele...
Tinha medo que o torturassem e que me fizessem outro tanto. Mas desde o
momento que não há torturas, que me importa o resto?
— Não está zangada comigo?! — exclamou Sofia.
— Não... Somente noto que nunca pergunta aos outros se têm medo...
Nicolau tirou com vivacidade os óculos, tornou a pô-los e olhou de fito para a
irmã. O silêncio contrafeito que se estabeleceu agitou a alma de Pelagueia.
Levantou-se constrangida; ia falar, mas Sofia, pegando-lhe brandamente em
uma das mãos, disse baixinho:
— Desculpe... Nunca mais lho pergunto.
Esta promessa fez rir a anciã. E instantes depois, todos três conversavam
afetuosamente mas preocupados, sobre a nova jornada ao campo. XV
Logo ao nascer da aurora, lá ia a velha na carrinhola, em fortes solavancos
pelas estradas enlameadas pelas chuvas do outono. Soprava húmido vento; a
lama voava em mil respingos; o postilhão, sentado à beira do carro, virado para
Pelagueia, ia a lamentar-se numa voz anasalada e filosófica:
— Tinha eu dito àquele meu irmão: façamos partilhas! E começámos a fazer
partilhas...
Mas de repente fustigou o cavalo da mão com valente chicotada e gritou
furioso:
— Queres andar, ou não, estuporado animal?
Os nédios corvos de outono saltitavam com gravidade pelos campos nus; o
vento vinha-lhes ao encontro, assobiando; eles então apresentavam o flanco ao
vento, que lhes arrepiava as penas e os obrigava a cambalear, e eles cediam à
força da brisa e deitavam a voar com um palpitar indolente das asas.
— Finalmente prejudicou-me, e eu vi que não havia nada a fazer com ele —
concluiu o postilhão.
As palavras do homem ressoavam como num sonho, aos ouvidos de
Pelagueia; no seu coração germinava um pensamento muito diverso, a sua
memória fazia-lhe desfilar na frente a longa série dos acontecimentos passados
nos últimos anos. Outrora, a vida, para ela, era como uma coisa criada não se
sabia onde, muito longe, não se sabia por quem, nem porquê, e, agora, um
número considerável de coisas se faziam à sua vista e com o seu próprio auxílio.
E um vago sentimento se apoderava dela: era perplexidade e suave tristeza,
contentamento e desconfiança de si mesma...
Em torno dela, tudo se deslocava com lento movimento; no céu, vogavam
pesadamente as nuvens pardacentas, correndo para passarem umas adiante das
outras; aos dois lados do caminho, fugiam as árvores encharcadas, com os cumes
desnudados a baloiçarem; os campos estendiam-se em círculos regulares;
montículos adiantavam-se-lhe ao encontro, depois, ficavam para trás. Dir-se-ia
que aquele dia turvado ia a correr para alguma coisa longínqua, indispensável.
A voz nasal do postilhão, o tintilar dos guisos, o assobiar húmido e o perpassar
do vento, tudo se fundia em uma torrente sinuosa e palpitante, que corria por
cima dos campos com força uniforme e que sugestionava os espíritos.
— O rico até no céu acha o espaço pouco!... É sempre assim! Meu irmão
entrou a chicanar... as autoridades protegem-no! — continuava o cocheiro,
sentado sempre no rebordo do veículo.
Chegados ao termo da viagem, desatrelou os cavalos e disse à velha num tom
desesperado:
— Bem me podias dar cinco kopecks para beber uma pinga.E como ela aquiescesse ao pedido, o homem declarou no mesmo tom,
fazendo tinir as duas pequenas moedas no côncavo da mão:
— Pois vou comprar uns três kopecks de aguardente e dois de pão!...
Pela tarde, chegou Pelagueia, esfalfada e transida à importante vila de
Nikolski. Dirigiu-se à hospedaria, pediu chá e, tendo ocultado debaixo dum banco
a sua pesada mala de mão, foi sentar-se ao pé da janela, a olhar para o
largozinho, revestido dum tapete amarelado de erva calcada, e para o edifício da
administração da comuna, um casarão pardacento e triste, com os telhados a
cair. Sentado nos degraus da entrada, estava um campónio calvo, de barbas
compridas, a fumar o seu cachimbo.
Corriam as nuvens em massas sombrias; amontoavam-se umas sobre outras.
Reinava silêncio; tudo respirava um tédio de mau humor; dir-se-ia que a
existência inteira se tinha ocultado não se sabia onde, silenciosa.
De repente, apareceu um oficial inferior de cossacos, a galope; sopeou o
alazão que montava, em frente da entrada da administração e gritou o que quer
que fosse para o campónio, agitando o chicote no ar. Os seus gritos atravessavam
as vidraças, mas Pelagueia não podia distinguir as palavras. O campónio
levantou-se, estendeu a mão para o horizonte; o oficial inferior saltou para o
chão, cambaleou um pouco, atirou as rédeas ao homem; depois, firmando-se
pesadamente na balaustrada, subiu os degraus e sumiu-se no interior do edifício.
Fez-se novo silêncio. Por duas vezes o alazão bateu com o casco no solo
empapaçado. Uma rapariguinha, de olhos cariciosos e rosto muito redondo, com
uma pequena trança loira caída no ombro, entrou na sala onde Pelagueia estava.
De boca franzida, trazia sobre os dois braços estendidos uma enorme bandeja de
bordas já gastas, carregada de louça. Cumprimentou com a cabeça.
— Viva, minha lindinha! — disse-lhe Pelagueia amoravelmente.
— Viva!
Quando dispunha sobre a mesa pratos e chávenas, a pequena anunciou de
chofre, muito animada:
— Apanharam agora mesmo um ladrão... Vão trazê-lo para aqui.
— Que vem a ser esse ladrão?
— Não sei.
— Que fez ele?
— Não sei; só ouvi dizer que tinham apanhado um ladrão! Foi o guarda que
saiu a correr da administração para ir buscar o comissário. Ia a gritar: «Está
agarrado, tragam-no para cá!»
Pelagueia olhou pela janela e viu que vários camponeses se aproximavam.
Uns caminhavam devagar, com todo o sossego; outros, corriam e vinham aabotoar as suas capas de peles mesmo a andar. Pararam todos em frente do
casarão e dirigiram os olhares para a esquerda. Mas conservavam-se todos em
singular silêncio.
A rapariguinha olhou também para a rua e saiu da sala, batendo ruidosamente
com a porta. Pelagueia estremeceu. Ocultou o melhor que pôde a mala debaixo
do banco, cobriu a cabeça com um lenço e veio fora, a passo rápido, reprimindo
o incompreensível desejo de fugir que toda inteira a assaltava.
Ao chegar ao poial da entrada da estalagem, sentiu nos olhos e no peito um
friozinho agudo; sufocou, teve as pernas dormentes: a meio do largo caminhava
Ribine com as mãos amarradas nas costas, escoltado por dois guardas. Silenciosa,
a multidão dos campónios estava à espera, em volta da escadaria da
administração.
Atordoada, sem compreender bem o que via, Pelagueia não desfitava Ribine.
Este vinha a falar, pois que Pelagueia lhe ouvia o som da voz, mas as palavras
voavam indecisas, sem que tivessem eco no vácuo fremente e obscuro do seu
espírito.
Voltou a si e respirou melhor. Um campónio de barba loira estava a fitar nela
atentamente os olhos azuis. Ela tossiu, esfregou o peito com as mãos trémulas de
terror e perguntou com esforço:
— Que se passa?
— Veja vossemecê mesma — redarguiu o camponês, voltando-se de novo
para ela. Outro rústico aproximou-se do primeiro e postou-se lado a lado.
Os guardas fizeram alto em frente da populaça sem cessar crescente, mas
que permanecia muda. De súbito, a voz de Ribine ressoou com energia:
— Têm ouvido falar desses papéis em que se escreve toda a verdade a
respeito da nossa vida de campónios?... Pois bem: foi por causa desses papéis que
me prenderam! Fui eu que os distribui pelo povo!
A multidão cercou então o preso. Este aparentava voz calma, refletida, e isto
aliviou Pelagueia da opressão em que se sentia.
— Estás ouvindo? — perguntou o segundo camponês ao dos olhos azuis,
dando-lhe com o cotovelo.
Este, sem responder, ergueu a cabeça e de novo fitou a velha. O outro fez o
mesmo. Era mais novo que o primeiro e tinha uma cara chupada, coberta de
sardas, de barbinhas pretas. Os dois afastaram-se um pouco.
— Têm medo! — disse Pelagueia consigo.
E aumentou de atenção. Da soleira da estalagem distinguia perfeitamente o
rosto sujo e tumefacto de Ribine, divisava-lhe o brilho do olhar; desejava que ele
também a visse; pôs-se nos bicos dos pés, de pescoço estendido.Vários populares atentavam nela com modos frios, desconfiados, sem
proferir uma palavra. Só nas primeiras filas do ajuntamento é que se notava um
sussurro continuado de conversações.
— Camponeses, meus irmãos — prosseguiu Ribine com voz máscula e firme,
— tenham confiança nesses escritos! É para a morte talvez, que eu caminho por
causa deles! Fui espancado, torturado, quiseram obrigar-me a dizer de onde eles
provinham... Pois que continuem a espancar-me — tudo suportarei!... Porque
nesses papéis encontra-se a verdade, e a verdade é para ser por nós mais prezada
do que o pão!... Do que a própria vida!
— Para que diz ele aquilo? — perguntou um dos dois campónios.
O dos olhos azuis respondeu com lentidão:
— Que lhe importa, a ele? A gente não morre duas vezes... E agora que já
está condenado...
Os trabalhadores continuavam mudos, relanceando olhares furtivos e mal
humorados; a todos parecia acabrunhar o que quer que fosse invisível mas
esmagador.
O oficial inferior apareceu nisto na balaustrada da administração. Titubeante
e em voz avinhada, regougou:
— Que vem a ser toda esta gente? Quem está para aí a falar?
Precipitou-se para o largo, agarrou e sacudiu Ribine pelos cabelos, gritando:
— És tu que estás a falar, filho duma cadela... és tu?
Fez-se agitação entre o povo, que entrou a murmurar. Presa de violenta
angústia, a cabeça de Pelagueia descaiu sobre o peito. Um dos campónios
suspirou com ruído. E de novo ressoou a voz de Ribine:
— Pois bem, boa gente, escutem!...
— Cala-te!
E o sargento deu-lhe um murro sobre o ouvido. Ribine cambaleou, depois,
ergueu os ombros.
— Amarram as mãos a uma pessoa para a martirizarem à vontade!
— Guardas, levem-no! Olá! Toca a dispersar!
E, aos saltos na frente de Ribine, como um cão preso pela trela diante dum
naco de carne, o sargento atirava-lhe murros à cara, ao ventre e ao peito.
— Não lhe batas! — gritou uma voz entre o povo.
— Para que lhe bates? — perguntou outro.
— Vamo-nos embora! — disse o dos olhos azuis para o companheiro,
abanando a cabeça. E, de seu vagar atravessaram o largo, enquanto Pelagueia os
acompanhava com um olhar de simpatia.Suspirou então, mais aliviada. O sargento acudiu outra vez, em pesado passo,
à balaustrada e entrou a gritar, furioso, brandindo o punho:
— Tragam-no para aqui, já lhes disse.
— Não! — replicou uma voz sonora. (A velha percebeu que era a do
camponês dos olhos azuis.) — Não devemos consentir! Se o deixam entrar ali,
vai ser espancado até o matarem! E depois não faltará quem diga que a culpa foi
nossa, que fomos nós que o matámos!... Não devemos consentir!
— Camponeses! — gritou Ribine. — Não veem a vida que levam? Não veem
como são explorados, ludibriados, e que lhes tiram o sangue?... Tudo repousa em
vós; vós sois a principal força da terra... toda a sua força!... E quais são as vossas
regalias? Unicamente a de morrer à fome!
De súbito, os camponeses prorromperam em gritos, interrompendo se uns aos
outros:
— O homem tem razão!
— Chamem o comissário da polícia rural! Onde está?
— O sargento foi chamá-lo!
— Ora adeus! O sargento está bêbedo!
— Não é a nós que compete chamar as autoridades!
— Fala, que não deixamos que te batam!
— O que foi que tu fizeste, hã?
— Desamarrem-lhe os pulsos.
— Não, não, meus irmãos!
— Porque não? Que importância tem isso?
— Pensem bem no que fazem!
— Doem-me os pulsos! — disse Ribine, dominando o tumulto com a sua voz
sonora e espaçada. — Meus irmãos! Descansem que não fujo!... Eu não posso
fugir à verdade, pois que ela vive em mim!
Algumas pessoas separaram-se do ajuntamento e foram-se afastando com
meneios de cabeça; alguns riam... Mas sem cessar, gente exaltada, mal vestida
por terem envergado os fatos à pressa, vinha chegando de todos os lados.
Fervilhavam em volta de Ribine qual negra escuma. De pé, no meio deles, tal um
cruzeiro em meio da floresta, o preso ergueu os braços acima da cabeça e gritou:
— Obrigado, obrigado, boa gente! Sim! Devemos desligar as nossas mãos
mutuamente! Quem nos havia de ajudar, se nós não nos ajudássemos uns aos
outros?
Ergueu novamente uma das mãos, toda ensanguentada:
— Veem o meu sangue? É pela verdade que o derramo!Pelagueia desceu o poial. Mas do nível do largo, já Ribine lhe não era visível;
tornou pois a subir os degraus. Tinha o peito em fogo mas dentro dele sentia
palpitar alguma coisa de vaga alegria...
— Camponeses! Busquem esses folhetos, leiam-nos. Não acreditem nas
autoridades e nos padres, que andam a dizer-lhes que são ímpios e hereges
aqueles que vos trazem a verdade!... A verdade vai sempre fazendo o seu
caminho silencioso pela terra, e no seio do povo encontra abrigo. Para essas
autoridades ela é pior que o ferro e que o fogo. A verdade é a nossa melhor
amiga; para a autoridade é uma inimiga declarada. — aí têm porque ela se
esconde.
De novo ressoaram entre a multidão várias exclamações.
— Irmãos, escutem!
— Ai, pobre homem, estás perdido!
— Quem te denunciou?
— Foi o padre — respondeu um dos guardas.
Dois dos camponeses vomitaram logo uma chuva de impropérios.
— Cuidado, camaradas! — advertiu uma voz. XVI
É que vinha chegando o comissário da polícia rural.
Era um homem alto e robusto, cara redonda. Trazia o boné inclinado para a
orelha; uma das guias do bigode vinha retorcida para cima, a outra pendia-lhe do
canto da boca, o que lhe dava uma expressão contorcida à cara, já de si
desfigurada por um sorriso parado e estúpido. Na mão esquerda tinha uma
pequena espada e balançava o braço direito ao ritmo dos passos. Fazia bulha,
com o andar, pesado e firme. A populaça afastava-se na sua passagem. As
fisionomias tomavam um aspeto de triste acabrunhamento.
O tumulto sossegara, desaparecera como se se tivesse sumido pela terra.
Pelagueia sentiu estremecer-lhe em repuxões nervosos a pele da fronte;
ofuscava-lhe a vista uma como névoa de calor. Novamente teve vontade de ir
misturar-se àquela gente; inclinou-se porém, e ficou imóvel, em angustiosa
expetativa.
— Que temos? — perguntou o comissário, parando diante de Ribine e
medindo-o dos pés à cabeça. — Porque é que este homem não tem as mãos
amarradas? Porquê? Amarrem-lhas!
Tinha a voz aguda e sonora, mas sem timbre.
— Ele tinha as mãos amarradas... mas o povo desamarrou-lhas! — respondeu
um guarda.
— O quê? O povo? Que povo?
Percorreu com a vista o semicírculo que o cercava e prosseguiu na sua voz
branca e uniforme:
— Quem vem a ser aqui o povo?
Tocou com o punho da espada o peito do camponês de olhos azuis:
— És tu que és o povo, Tchumakov? E quem mais? És tu, Michine?
E deu um puxão nas barbas doutro camponês.
— Vamos a dispersar, canalha!... Senão, comigo se hão de haver...!
Não demonstrava no tom em que falava nem irritação nem ameaça, como
tão pouco na fisionomia. Exprimia-se com uma tranquilidade completa e ia
distribuindo as pancadas em gestos firmes e iguais. Diante dele, os grupos
recuavam, baixavam-se as cabeças, desviavam-se os rostos.
— Então, por que esperam? — perguntou aos guardas. — Amarrem-no!
E depois de uma chuva de insultos cínicos, virou-se de novo para Ribine:
— Olá, tu! Mãos atrás das costas!
— Não quero ser amarrado! — replicou Ribine. — Eu não fujo... não me
defendo... Para que serve amarrarem-me?— O quê?! — exclamou o comissário, indo para ele.
— Já bastante martirizastes o povo, feras! — continuou Ribine, erguendo a
voz. — Também vocês dentro em pouco hão de ter os seus dias de sangue!
O comissário parou-lhe na frente de chofre e pôs-se a mirá-lo, ao mesmo
tempo que repuxava o bigode. Depois, recuou um passo e disse em tom de
espanto e numa voz sibilante:
— Ah, filho dum cão!... Que significam essas palavras?
E bruscamente, com toda a força, descarregou uma punhada no rosto de
Ribine.
— Não se destrói a verdade a murros! — gritou este, crescendo para ele. — E
tu não tens o direito de me bater!
— Eu não tenho o direito?! — berrou o comissário, destacando muito as
palavras.
E novamente atirou o braço para atingir o rosto de Ribine. Este baixou-se, por
forma que o comissário, com o impulso, esteve a ponto de cair. De entre o
ajuntamento alguém fungou com ruído. Furioso, Ribine repetiu:
— Já te disse que não tens o direito de me bater, grande diabo!
O comissário olhou em torno. Os homens, silenciosos e de má catadura,
rodeavam-no em compacto círculo.
— Nikita! — chamou. — Olá, Nikita!
Um campónio baixote e atarracado, vestido de um curto casacão de peles,
saiu do grupo. Vinha de olhos fitos no chão, com a enorme cabeça baixa e os
cabelos desgrenhados.
— Nikita! — ordenou o comissário com a maior tranquilidade e retorcendo o
bigode. — Dá-lhe uma bofetada boa!
O homem deu um passo para diante, parou em frente de Ribine e ergueu a
cabeça. Ribine, à queima roupa, bombardeou-o com estas palavras sinceras e
duras:
— Vejam vocês, boa gente, como este bruto vos esmaga com a vossa própria
mão!... Vejam bem... e reflitam.
Lentamente, o homem ergueu o braço e contundiu Ribine na cabeça, mas
levemente.
— Assim é que eu te mandei fazer, canalha? — gritou o outro, esganiçando-
se.
— Eh, Nikita! — disse alguém próximo. — Não te esqueças de que Deus te
está vendo!
— Bate-lhe, já to disse! — gritou o comissário, empurrando o camponês.Este afastou-se um passo e respondeu com frieza, de cabeça baixa:
— Não, senhor! Não estou para mais!
— Como?
Contraiu-se o rosto da autoridade. Bateu o pé e precipitou-se sobre Ribine,
rogando pragas. A pancada ressoou em surdo choque. Ribine cambaleou, agitou
o braço; em segundo assalto, prostrou-o o comissário no solo e, aos pulos em
volta dele, entrou a dar-lhe pontapés na cabeça, pelo peito, nas ilhargas.
A multidão, soltando gritos hostis, pôs-se em movimento e cresceu para o
comissário, mas este deu um salto para o lado e desembainhou a arma.
— Ah, é assim? Revoltam-se? Ah, é isso?
Tremeu-lhe a voz, tornou-se mais aguda e passou a sair-lhe da garganta em
guinchos, como se se tivesse quebrado. E ao mesmo tempo que perdia a voz,
sentia-se perder todo o prestígio. Com a cabeça encolhida nos ombros, o dorso
recurvado e relanceando em torno o olhar amortecido, entrou a recuar, tateando
cautamente o solo atrás de si. Amedrontado, rouquejava, ao mesmo tempo que
ia cedendo:
— Muito bem... Fiquem com ele... Eu vou-me embora!... Mas, depois?
Fiquem bem sabendo: esse homem é um criminoso político, combate contra o
nosso czar, anda a fomentar revoltas! Compreendem? É contra Sua Majestade o
Imperador... e vocês defendem-no! Sabem que ficam sendo rebeldes?
Imóvel, o olhar de estátua, sem ideias nem ação, como num pesadelo,
Pelagueia sucumbia ao peso do terror e da sua piedade. Semelhantes às
vibrações dum sino enorme, sussurravam-lhe aos ouvidos os gritos irritados da
plebe. Tudo lhe remoinhava dentro da cabeça, a voz tremente do comissário, mil
ruídos confusos...
— Se é criminoso, seja julgado!
— E não massacrado!
— Tenha dó dele, excelência!
— Pois está claro! Não tem direito de bater-lhe!
— Se isto são maneiras de proceder! Dessa forma, começam todos para aí a
bater na gente! O que será então!
— Que brutos! Que carrascos!
Dividia-se o povo em dois grupos: uns rodeavam o comissário, gritavam,
exortavam-no, os outros, menos numerosos, permaneciam junto do ferido e
discorriam em voz baixa e com ares de abatimento. Ergueram-no do chão alguns
homens. Os guardas dispunham-se a ligá-lo de novo.
— Esperem aí, seus diabos! — gritaram-lhes.
Ribine limpou a lama e o sangue que lhe empastavam a cara e, silencioso,olhou em torno. Deu então com a vista no rosto de Pelagueia. Esta estremeceu,
adiantou todo o corpo para ele, fez instintivo gesto. Ele desviou os olhos. Mas,
alguns instantes mais tarde, voltava o olhar do preso a fixar-se nela. Afigurou-se
à pobre mulher que Ribine se endireitava na sua direção, que erguia a cabeça
para ela, com um movimento convulso das ensanguentadas faces.
— Reconheceu-me!... É possível que me tenha reconhecido?!...
E, vibrante de uma pungente satisfação angustiada, fez-lhe um sinal com a
cabeça. Mas logo reparou no homem dos olhos azuis, que se encontrava junto de
Ribine e que a fitava. Despertou nela a consciência do perigo.
— Que estou eu a fazer?... Podem prender-me também.
O homem segredou algumas palavras a Ribine; este abanou a cabeça e disse
nervosamente mas por forma distinta e valorosa:
— Que importa? Se eu não estou sozinho no mundo!... A verdade nunca
poderá ser encarcerada! O povo há de lembrar-se de mim por toda a parte onde
passei... Aí está! O ninho foi destruído, mas que mal vai nisso, se dentro dele já
não estavam nem amigos, nem camaradas?
— É para mim que está a falar! — pensou Pelagueia.
— O povo saberá construir outros ninhos, em prol da eterna verdade, e há de
chegar o dia em que as águias voarão livremente... em que o povo será libertado!
Trouxe uma mulher um balde de água e, desfazendo-se em lamentações,
entrou de lavar o rosto do preso. A vozinha chorosa e fina da mulher confundia-
se com a de Ribine e não deixava que Pelagueia entendesse o que ele dizia.
Precedido do comissário de polícia, avançava um grupo de camponeses. Alguém
ordenou:
— Um carro para levar o preso para a cidade! Olá, a quem toca fornecer o
carro?
Em seguida, o comissário gritou numa voz transtornada e como vexado:
— Eu posso bater-te, entendes? Mas tu não me podes fazer outro tanto, tu é
que não tens esse direito, idiota!
— Ah! E quem és tu então? Deus de misericórdia! — replicou Ribine.
Algumas exclamações abafadas cobriram a resposta.
— Não discuta, tiozinho! Olhe que é um chefe!
— Não se zangue mais, excelência!
— Cala-te daí, meu original!
— Vão-te já levar para a cidade!...
— Lá, há mais respeito pela lei!
Os gritos da populaça tornavam-se mais conciliadores, suplicantes;conjugavam-se em indistinta vozearia, lamentosa, mas sem qualquer nota em
que se traduzisse uma esperança. Os guardas agarraram Ribine pelos braços,
conduziram-no pela escadaria da administração e com ele penetraram no
edifício. Lentamente, a multidão foi-se escoando. Pelagueia notou que o homem
dos olhos azuis se dirigia para o seu lado e a observava de soslaio. Tremiam-lhe
as pernas; desconsoladora sensação de impotência e de isolamento lhe alanceava
a alma, causando-lhe náuseas.
— Não devo ir-me embora! — pensou. — Não o devo fazer!
Reteve-se vigorosamente à balaustrada e ficou esperando.
Em pé, no cimo da escadaria da administração, o comissário discursava com
grandes gestos, repreensivo, e na sua voz outra vez incaraterística de indiferença:
— Imbecis! Filhos de cães! Não compreendem nada e vão meter-se num
negócio destes!... Num negócio de Estado! Idiotas! Vocês deviam agradecer-me
a minha bondade, deviam inclinar-se diante de mim, até ao chão! Se eu quisesse,
iam todos para as galés!
Escutavam-no uns vinte campónios, de chapéu na mão.
Caía a noite; vinham descendo as brumas...
Então o homem dos olhos azuis aproximou-se de Pelagueia e comentou com
um suspiro:
— Que cantiga aquela, hã?
— É verdade! — respondeu baixo.
Ele fitou-a com um modo decidido; perguntou:
— Em que se emprega?
— Compro rendas às mulheres que as fabricam... e panos também.
O campónio afagou devagar a barba; depois, disse em tom de contrariedade e
a olhar na direção da vila:
— Não temos nada disso lá em casa...
A velha examinou-o da cabeça aos pés e ficou-se esperando instante oportuno
para voltar ao interior da hospedaria. Era belo e pensativo o rosto do homem; nos
olhos tinha uma nuvem de melancolia. Alto e espadaúdo, vestia uma blusa muito
remendada, uma camisa limpa, de chita, umas calças cor de castanha, de
grosseiro pano e trazia os pés nus numas alpercatas de cânhamo.
Sem saber porquê, soltou Pelagueia um suspiro como de alívio. E de súbito,
obedecendo a um instinto mais pronto do que o seu raciocínio, perguntou-lhe em
um impulso que a ela mesma surpreendeu:
— Posso passar a noite em tua casa?
E logo sentiu os músculos, o corpo inteiro retesarem-se num espasmo.
Atravessaram-lhe rapidamente o cérebro ideias cruciantes:— Vou perder Nicolau!... Não mais tornarei a ver o Pavel... por muito
tempo... E hão de espancar-me também!
O homem, sem precipitação alguma, olhos no chão, respondeu, enquanto
cruzava sobre o peito a gola da blusa:
— Passar a noite? Sim... porque não? O pior é que a minha cabana não é
grande coisa!
— Também, eu não estou habituada a mimos! — respondeu ela.
— Está bem! — aquiesceu o campónio, medindo-a por seu turno com olhar
perscrutador.
À claridade do crepúsculo, os olhos do homem tinham um brilho frio; o rosto
tornara-se-lhe muito pálido. E logo, Pelagueia, baixo:
— Então, vou já contigo... Hás de trazer-me a mala.
— Está dito.
Encolheu os ombros, cruzou outra vez a blusa e segredou:
— Ora, veja: lá vem a procissão!
Ribine surgira no topo da escadaria. Trazia de novo as mãos amarradas, e a
cabeça e a cara embrulhadas em qualquer coisa pardacenta. A sua voz vibrou na
frialdade do crepúsculo:
— Até mais ver, boa gente! Busquem a verdade, conservem-na; creiam
naqueles que vos trazem as boas palavras... Não poupem quantas forças tenham,
em prol da verdade!
— Cala-te, cão! — gritou o comissário. — Guarda, faz andar esses cavalos!
— Pois que têm a perder? Que existência é a vossa?
Pôs-se o carro em andamento. Sentado entre dois guardas, Ribine ainda gritou
cavamente:
— Porque morrem de fome? Trabalhem por obter a liberdade... É ela que
lhes há de dar pão e justiça!... Boa gente, adeus!
O ruído precipitado das rodas e das patas dos cavalos, as invetivas do
comissário de polícia confundiam-se com a sua voz, entrecortando-a e abafando-
lha.
Pelagueia voltou para dentro de casa; sentou-se à mesa, perto do samovar,
agarrou num pedaço de pão, examinou-o e tornou a pô-lo lentamente no prato.
Não tinha vontade de comer, bem que experimentasse na boca do estômago uma
desagradável sensação que lhe esgotava as forças, que lhe expulsava o sangue do
coração e lhe fazia andar a cabeça à roda.
— Ele deu por mim! — dizia ela consigo, tristemente, no sentimento da sua
fraqueza, para poder reagir. — Deu por mim... Adivinhou, com certeza!...E não podia ir mais longe o seu pensamento: fundia-se numa prostração
dolorosa, numa sensação viscosa de enjoo...
O silêncio tímido, como que acoitado para além das vidraças e que sucedera
ao burburinho, provava que em toda a vila os habitantes haviam voltado ao antigo
torpor medroso e subserviente, e isto mais lhe acirrava a sensação de isolamento
em que se debatia, enchendo-lhe o espírito de obscuridade pardacenta e
penetrante como cinza.
A rapariguinha abriu a porta e do limiar perguntou:
— Quer que lhe traga uma omelete?
— Não... Já não tenho vontade... Esta gritaria fez-me um mal!...
A pequenita foi até junto da mesa e pôs-se a narrar animadamente, mas em
voz baixa:
— Como ele lhe bateu com força, o comissário!... Eu estava mesmo ao pé
dele; vi tudo... Até quebrou os dentes todos do homem!... E quando o homem
escarrava, o sangue vinha muito grosso, muito grosso e escuro!... Nem se lhe
viam os olhos!... O sargento está cá. Está embriagado de todo e não faz senão
pedir vinho. Diz ele que era uma quadrilha inteira e que aquele das barbas era o
chefe. Apanharam três, mas um fugiu... E também prenderam um mestre escola
que andava com eles!... Eles não creem em Deus e aconselham o povo a roubar
todas as igrejas. Aqui está o que eles fazem! Havia homens que tinham dó do tal
das barbas, mas outros diziam que se devia dar cabo dele!... Sempre há homens
muito maus cá no nosso sítio!
Pelagueia escutava atenta esta rápida e entrecortada narrativa; esperava
distrair assim o seu desassossego e dissipar a opressora angústia da expetativa. A
pequena encantada com tão boa ouvinte, tagarelava sempre com crescente
animação, comendo as palavras:
— O papá diz que tudo isto vem da falta de géneros, tudo! Há já dois anos que
a terra não produz nada... e toda a gente anda sem saber o que há de fazer. É por
isso que aparecem agora homens como aquele. É uma desgraça! Vão para as
reuniões gritar e bater uns nos outros!... Ainda no outro dia, quando venderam as
terras do Vassiukov, porque não pagava o foro, deu uma bofetada no staroste. [5]
«Aí têm o foro!» disse-lhe o Vassiukov.
Ressoaram pesados passos para além da porta.
Pelagueia ergueu-se com as mãos apoiadas na mesa. O camponês dos olhos
azuis entrou e sem tirar o boné:
— Onde tem a sua bagagem?
Ergueu a mala sem esforço algum. E observou:
— Está vazia!... Maria, acompanha esta viajante a minha casa.E saiu sem olhar para ninguém.
— Vai passar a noite à vila? — inquiriu a pequena.
— Vou, sim! Eu negoceio em rendas e quero ir fazer as minhas compras.
— Não há de encontrá-las por cá. Em Tinekov e em Darino, aí é que as
fazem, mas cá na terra, não! — explicou Maria.
— Pois amanhã lá irei...
Pagou o chá e deu três kopecks à pequena, que ficou contentíssima. Já na rua,
propôs esta, enquanto ia chapinhando com os pés descalços pela terra húmida:
— Se a senhora quer, eu vou muito depressa a Darino, digo às mulheres que
lhe tragam cá as rendas... As mulheres vêm e a senhora não precisa fazer a
viagem... Olhe que sempre são doze quilómetros!
— Não, minha lindinha, não é preciso — respondeu, continuando a caminhar
ao lado da pequena.
Acalmara-a o ar fresco da tardinha. Lentamente, formava vaga resolução
confusa, mas que a satisfazia.
Tal ideia ia germinando com força e, para lhe abreviar a definitiva fixidez,
Pelagueia ia sem cessar perguntando a si mesma:
— Que fazer?... Proceder aberta, francamente?...
Tinha caído completamente a noite, húmida e glacial. Brilhavam as janelas
das cabanas com avermelhadas, baças, imóveis claridades. O gado fazia ouvir no
silêncio mugidos de indolência. Aqui e ali, distinguiam-se breves exclamações.
Esmagadora melancolia envolvia todo o lugar.
— É aqui! — disse a rapariguinha. — Sempre escolheu muito má casa! Este
camponês é tão pobre!...
E às apalpadelas, procurou a porta abriu-a e gritou com voz esperta:
— Tatiana, aqui está a sua hóspede!
E logo deitou a correr. A sua vozinha vibrou ainda na escuridão:
— Adeus! XVII
Pelagueia deteve-se no limiar a examinar o interior, abrigando os olhos sob a
mão em pala. Era pequena e acanhada a choupana, mas de um asseio que logo
saltava à vista. Uma mulher nova apareceu por detrás do fogão, cumprimentou
em silêncio e desapareceu de novo. A um canto, sentado a uma banca, sobre a
qual havia um candeeiro aceso, o dono da casa tamborilava com os dedos na
madeira. Fitava demoradamente a recém-chegada.
— Entre! — disse-lhe ao cabo de alguns momentos. — Tatiana, vai chamar o
Pedro, depressa!
A mulher saiu rapidamente sem mesmo dispensar um simples olhar à
viajante. Esta sentou-se num banco, em frente do aldeão e divagou a vista pelo
aposento. Não via a sua mala. Reinava grave silêncio na cabana; só o candeeiro
fazia ouvir um leve crepitar da chama. A fisionomia daquele homem,
preocupada e um tanto carrancuda, vacilava à luz mortiça, com feições mal
definidas.
— Então: Fala... Avia-te!...
— E onde está a minha mala? — perguntou logo Pelagueia em voz alta e com
severidade, sem ter bem consciência do motivo por que assim falava.
O campónio encolheu os ombros. Pensativo, respondeu:
— Deixa estar que não está perdida!
E acrescentou friamente e em voz baixa:
— Eu disse diante da pequena que a mala estava vazia. Cá tinha as minhas
razões. Ao contrário, você traz ali coisas bem pesadas...
— E então?
Levantou-se, aproximou-se dela, curvou-se e inquiriu, baixando ainda mais a
voz:
— Conhece aquele homem de há pouco?
Pelagueia estremeceu, mas declarou com firmeza:
— Conheço!
Estas simples respostas parecia-lhe que a acalentavam interiormente,
iluminando tudo em volta com a luz dum heroísmo.
Sorriu-se o campónio.
— Eu bem a vi fazer-lhe um sinal... E ele respondeu-lhe... Perguntei-lhe ao
ouvido se conhecia a mulher que estava à porta da hospedaria...
— E ele? — interrogou com ansiedade.
— Ele disse só isto: «Somos em grande número...» Sim, foi isto que ele disse:
«Somos em grande número...»Perscrutava com olhar interrogador a sua hóspede.
Sorriu outra vez e prosseguiu:
— É uma grande força, aquele homem!... Tem muita coragem; diz o que
pensa! Batem-lhe, injuriam-no, mas não cede!
Com o escutar aquele falar ingénuo, com o ver aquelas feições grosseiras e
aqueles olhos francos e claros, ia-se tranquilizando pouco a pouco Pelagueia. O
seu acabrunhamento e os seus receios dissipavam-se para dar lugar a uma
compaixão intensa e profunda para com Ribine. Foi assim que, com súbita e
amarga ira, que não pôde reprimir, ela exclamou em tom de lamento:
— Aqueles monstros! Aqueles bandidos!
E entrou a soluçar.
O campónio deu alguns passos, abanando a cabeça com pesar.
— É verdade!... O governo tem andado a arranjar temíveis inimigos!
E de repente, voltando para junto dela, segredou:
— Escute. Suponho que traz jornais na mala... É certo?
— É! — respondeu Pelagueia simplesmente.
E limpava as lágrimas.
— Era para ele que os trazia.
O dono da casa carregou os sobrolhos, juntou na mão toda a barba em
punhado e ficou-se calado, a olhar para um canto.
— Nós também recebemos um... e folhetos, livros... Eu cá não sou muito
instruído, mas tenho um amigo que o é. E minha mulher também me lê essas
coisas.
Calou-se de novo, pôs-se a pensar; depois perguntou:
— E agora que vai fazer a tudo isso, à sua mala?
A velha fitou-o, e, em tom de instigação:
— Deixo-lha cá!
O outro não pareceu surpreso, não protestou; apenas repetiu:
— Deixa-a cá?
Mas nisto estendeu o pescoço para a porta, apurou o ouvido.
— Vem aí gente, segredou.
— Quem?
— Gente nossa, provavelmente...
Entrou a mulher, seguida do campónio sardento. Este atirou o boné para um
canto, foi até junto do dono da casa e disse-lhe:
— E então?O outro meneou a cabeça afirmativamente.
— Ó, Stepane! — lembrou a mulher. — Talvez a nossa viajante tenha
vontade de comer.
— Não, muito obrigada, minha querida senhora.
Voltou-se o segundo camponês para ela e em voz rápida, um tanto quebrada
pela comoção:
— Permita que eu mesmo me apresente. Chamo-me Pedro Rabinine, por
alcunha o Sovela. Percebo alguma coisa desses negócios... Sei ler e escrever e
não sou um imbecil, para falar assim...
Apertou a mão que Pelagueia lhe estendera, sacudiu-lha, enquanto ia dizendo
a Stepane:
— Ora vê tu lá, Stepane! A esposa do nosso senhor e amo é uma boa senhora,
pois não é? E apesar disso, ela diz que todas estas coisas são tolices,
extravagancias!... Que são estudantes e garotos que se divertem a alvoroçar o
povo. Mas não vimos nós dois, ainda agora, ser preso um homem de bem? E
agora estás vendo esta mulher que já não é criança nenhuma e que também não
me parece que seja fidalga, e que está do nosso lado... Não se ofenda! Como se
chama?
Falava rápido, mas com voz distinta, quase sem tomar fôlego; o queixo
tremia-lhe nervosamente e com os olhos franzidos, perscrutava o rosto e toda a
pessoa de Pelagueia. Andrajoso, os cabelos em desalinho, dava a pensar que
acabasse de alguma luta em que tivesse vencido o seu adversário e que o
dominasse a álacre excitação duma vitória. Agradou-se dele Pelagueia por amor
de tal vivacidade e principalmente por tê-lo ouvido falar com simplicidade e
franqueza desde o começo. Correspondeu com amigável olhar às suas boas
palavras. O outro sacudiu-lhe outra vez a mão e pôs-se a rir, num risinho seco e
meigo, muito acentuado.
— É negócio de seriedade, bem vês, Stepane. É coisa que a todos dá honra!
Eu bem te dizia que o povo começava a fazer obra pelas suas mãos... A fidalga,
essa, não quer dizer a verdade, porque isso ia prejudicá-la. Mas o povo quer ir
para a frente, está decidido a isso, sem lhe importarem perdas nem prejuízos,
estás entendendo? Pois se ele leva má vida, se não tem senão prejuízos de todos
os lados, se ele não sabe para onde se há de voltar, pois que não ouve outra coisa
senão «Prende! Mata!»
— Bem vejo! — aprovou o outro, abanando a cabeça. E acrescentou:
— Está em cuidado por causa da mala.
— Não se inquiete, está tudo em ordem, tiazinha! A sua mala foi para minha
casa. Há bocado, quando o Stepane me falou a seu respeito e me disse que
também era cá dos nossos, que conhecia aquele homem, disse-lhe eu: «Tomacuidado, Stepane! Nada de dar à língua! Olha que é coisa séria!» Mas
vossemecê, ainda agora, tiazinha, logo adivinhou também que a gente estava do
seu lado. É que as caras da gente honrada conhecem-se num pronto, porque elas
não são muitas por essas ruas, ah, não!... A sua mala foi para minha casa!
Sentou-se-lhe ao lado e alvitrou com uma solicitação em cada olhar:
— E se quer despejá-la, com todo o gosto a ajudamos... Precisam-se livros
por cá.
— Quer dar-nos tudo! — declarou Stepane.
— Está muito bem, tiazinha! Deixe, que havemos de saber empregá-los bem.
E bruscamente, levantou-se, entrou a rir. Depois, passeando a passos largos
pela cabana, satisfeito:
— É o que se pode chamar um caso de pasmar... ainda que bem simples,
afinal! Parte-se a corda num sítio e concerta-se noutro. E a coisa assim não vai
mal... Olhe que é muito bom, esse periódico, tiazinha; faz efeito, abre os olhos ao
povo. Está visto que não agrada aos nossos senhores! Trabalho eu agora na casa
dum proprietário, a sete quilómetros daqui; sou marceneiro... A mulher dele é
boa criatura, forçoso é concordar; dá-nos livros... alguns bastante estúpidos.
Vamo-los lendo e vamo-nos instruindo... Ficamos-lhe em geral reconhecidos.
Mas quando eu lhe mostrei o tal jornal, zangou-se e disse: «Deixe isso, Pedro. Os
que o escrevem não passam duns garotos e duns tolos, e com isso vossemecê não
arranja senão desgostos... a cadeia e a Sibéria. Aqui tem o que lhe pode
acontecer se continuar a ler esses papéis.»
Após um instante de reflexão, perguntou:
— Diga-me: aquele outro... o homem... é da sua família?
— Não — respondeu Pelagueia.
Pedro pôs-se a rir só consigo, muito satisfeito, sem que os outros soubessem
porquê. Afigurou-se a Pelagueia uma injustiça falar de Ribine como de qualquer
estranho.
— Não é da minha família — explicou; — mas há muito que o conhecia...
Respeito-o como se fosse meu irmão...
Mas não achava a expressão que buscara. Tal deficiência tornava-se-lhe
dolorosa; e não pôde conter o pranto. Na choupana reinava melancólico silêncio.
Pedro inclinou a cabeça sobre o ombro; dir-se-ia que escutava o que quer que
fosse. Reclinado sobre um dos cotovelos, Stepane tamborilava. A mulher deste,
encostada ao fogão, conservava-se na sombra. Pelagueia sentia-lhe o olhar fito e,
por vezes, olhava também para ela, entrevia-lhe o rosto redondo, de pele escura,
nariz direito, o mento talhado em ângulo e com uma expressão de atenta
vigilância nos olhos esverdinhados.
— É portanto, um amigo! — concluiu Pedro. — É um homem de valor, porcerto! Tem-se em grande conta e assim devem todos fazer. Aquilo é que é um
homem! Não é assim, Tatiana?... Que dizes?
— É casado? — interrompeu Tatiana. E franziu com força os lábios delgados
da sua boca miúda.
— É viúvo — respondeu a velha com tristeza.
— Por isso tem tanta coragem! — declarou Tatiana em tom profundo e
grave. — Um homem casado não se portava assim; tinha medo!
— E então eu, não sou casado? E no entretanto... — observou Pedro.
— Basta! — disse a mulher sem o fitar e com uma contorção de altivez nos
lábios. — Que fazes tu? Falas muito e lês um livro de tempos a tempos! Não é por
andares aos segredinhos com o Stepane, pelos cantos, que o povo é mais feliz.
— Mas é que há muito boa gente que me dá atenção! — contestou, ofendido,
o campónio. — Fazes mal em falar-me dessa maneira! Eu sou como uma
espécie de fermento...
Stepane olhava para sua mulher, sem uma palavra. Por fim, baixou a cabeça.
— Para que se casa a gente do campo? — perguntou ela. — Porque precisam
de quem trabalhe, dizem eles. Para trabalhar em quê?
— Então tu não tens bastante em que te entretenhas? — interrompeu Stepane,
já zangado.
— E para que serve esse trabalho? O povo continua a viver na miséria!
Nascem os filhos e nem sequer há tempo para tratar deles, porque o trabalho
urge, o trabalho, que nem nos dá o pão!
E dito isto, foi sentar-se ao lado de Pelagueia. Numa obstinação que não lhe
dava à voz nem tristeza nem lágrimas, prosseguiu:
— Eu tive dois... Um morreu escaldado pelo samovar, tinha dois anos; o outro
nasceu morto... sempre por causa do maldito trabalho! Que felicidade me trouxe
então o casamento? O que acho é que a gente do campo faz mal em casar: ficam
de mãos amarradas, e aí está! Se se conservassem livres, haviam de combater
abertamente em prol da verdade, como esse homem que tu conheces... Não
tenho razão, mãezinha?
— Tens! — declarou. — Sim, minha querida; de outra forma não se podem
vencer as contrariedades da vida.
— E a senhora, tem marido?
— Já morreu. Tenho um filho...
— Onde está ele? Vive consigo?
— Está na cadeia!
E no seu coração, um pacífico orgulho temperava a tristeza de que tais
palavras vinham sempre acompanhadas.— É já a segunda vez que o encarceram por ter compreendido a verdade
divina e por andar a semeá-la, abertamente, sem se poupar a fadigas!... O meu
filho é moço, é belo rapaz e é inteligente! Foi dele a ideia de fundar um jornal;
foi graças a ele que o Ribine se prestou a distribuí-lo, havendo a notar que o
Ribine tem duas vezes a idade dele! Vão julgá-lo dentro em pouco, por tudo isso.
Mas depois, quando o meu filho estiver na Sibéria, fugirá e voltará a continuar na
campanha.
— Temos já muita gente e o número aumenta sempre! Todos estão decididos
a lutar até à morte, pela liberdade, pela verdade!
Então, pôs de lado toda a prudência. Não citou nomes, mas contou tudo o que
sabia do trabalho minaz a que se andava procedendo em favor do povo. E ao
entrar neste assunto tão caro ao seu espírito, punha nas palavras toda a energia,
todo o excesso do amor que tão tarde brotara nela sob os repetidos golpes da
adversidade.
A voz afluía-lhe igual; acudiam-lhe agora as palavras com tranquila
facilidade, e quais pérolas multicolores e irisadas, enfiava-as com rapidez no
sólido fio do seu desejo de purificar a alma de toda a lama e de todo o sangue
daquele dia. Os aldeões como que tinham criado raízes nos sítios em que as suas
primeiras palavras os haviam encontrado. Imobilizados, fitavam-na em grave
compostura. Chegava a ouvir a respiração arquejante da mulher que se lhe
sentava ao lado; e a atenção do auditório fortificava-lhe a crença nas coisas que
dizia e prometia.
— Todos os que se sentem esmagar pela injustiça e pela miséria, o povo
inteiro, devem correr ao encontro dos que por ele morrem nas prisões ou nos
cadafalsos. Não têm esses nenhum interesse pessoal em jogo. Explicam qual é o
caminho que conduz à felicidade de todos, mas dizem abertamente quão difícil é
esse caminho! Não constrangem ninguém, mas quando tomamos lugar nas suas
fileiras, nunca mais os abandonamos, pois vemos que têm razão, que esse
caminho é o verdadeiro, e que não há outro.
Era grato ao coração da anciã realizar finalmente o seu desejo: ela própria
falava agora ao povo, acerca da verdade!
— Com tais amigos, pode o povo marchar sem receio: eles não cruzarão os
braços sem que o povo se tenha conjugado numa só alma, sem que tenha
bradado com uma voz única: «Sou eu o supremo senhor; eu mesmo farei as leis,
iguais para todos!»
Fatigada por fim, calou-se Pelagueia. Tinha a serena certeza de que as suas
palavras não se extinguiriam sem deixar vestígios. Os camponeses continuavam
a fitá-la, como se ainda a escutassem. Pedro cruzara os braços no peito e cerrara
as pálpebras, com um sorriso a brincar-lhe nas faces sardentas. Com o cotovelo
na mesa, Stepane inclinara-se, adiantando todo o corpo, de pescoço estendido.Velava-lhe o rosto uma névoa, um aspeto de maior sisudez. Sentada junto dela,
com os cotovelos firmados nos joelhos, Tatiana fitava os bicos dos sapatos.
— Ah! Aí está! — balbuciou Pedro.
E sentou-se num banco, com precaução, a abanar a cabeça.
Stepane endireitou lentamente o tronco, lançou rápido olhar a sua mulher e
estendeu o braço, como se quisesse alcançar alguma coisa.
— Com efeito — começou ele, meditativo, — quem quiser meter ombros à
empresa, é para se lhe entregar de toda a alma!
Pedro interveio aqui, timidamente:
— Está claro... e sem olhar para trás!
— O negócio vai a bom caminho! — continuou Stepane.
— E em todo o mundo!... — disse ainda Pedro. XVIII
Recostada e com a cabeça reclinada na parede, escutava Pelagueia as
reflexões dos dois homens.
Tatiana levantou-se, olhou em roda, tornou a sentar-se. Com um brilho
metálico nas pupilas verdes, lançou olhares de desprezo aos dois.
— Vê-se que tem sido muito infeliz! — disse de súbito, voltando-se para
Pelagueia.
— É verdade!
— A senhora fala bem... As suas palavras vão direitas ao coração. Quando a
gente a escuta, pensa: «Meu Deus! Quem pudesse ver, ainda que não fosse
senão uma vez, gente tão boa, viver vida tão bela!» Como vivemos nós, aqui?
Como uns carneiros! Eu sei ler e escrever... e leio livros... reflito muito; às vezes,
tenho ideias que nem me deixam dormir de noite. E qual é o resultado de tudo
isto? Se não reflito, sofro, e sofro em vão; se reflito, é a mesma coisa! Demais,
tudo é baldado! Assim, esta gente do campo: trabalham, esfalfavam-se por amor
dum pedaço de pão... e nunca possuem nada!... E é isso o que os irrita; entram a
beber, a bater uns nos outros... e lá vão outra vez para o trabalho. E o que se
apura daí? Nada.
Falava assim, deixando transparecer a ironia no olhar e na voz grave e ampla,
detendo-se por vezes, como para cortar as frases, tal a linha com que estivesse
costurando. Os homens nada objetaram.
O vento rufava nas vidraças, sussurrava no colmo do teto, e por momentos,
soprava em brandas lufadas pela chaminé. Uivava um cão. Raras gotas de chuva
vinham, como a custo, fustigar a janela. Oscilava a luz do candeeiro,
empalidecia e recomeçava de súbito a brilhar, viva e igual.
— E aqui está para que vivem os homens! E é curioso: persuado-me de que
já sabia tudo isto! Todavia, nunca tinha ouvido nada parecido; nunca tinha tido
ideias deste género... nunca!
— Tratemos de cear, Tatiana, e de apagar o lume! — interrompeu Stepane
com voz abatida e vagarosa. — Essa gente há de pensar: «Os Tchumakov
tiveram o lume aceso até muito tarde!» Para nós, isso não teria importância,
mas é por causa da nossa visita. Talvez seja imprudente...
A mulher logo se levantou, dando-se pressa em obedecer.
— É certo! — confirmou Pedro, com um sorriso. — É preciso ter cuidado,
agora! Quando se tiver feito nova distribuição do jornal...
— Não é por mim que falo — declarou Stepane, — mesmo se me
prenderem, a desgraça não será grande! A vida dum campónio nenhum valor
tem.
Experimentou Pelagueia súbita compaixão por aquele homem. E era maisviva do que pouco antes a sua simpatia por ele. Agora, que já tinha falado, sentia-
se desajoujada do peso ignóbil dos acontecimentos desse dia; sentia-se contente
consigo mesma e cheia dum sentimento de benevolência.
— Não deve falar assim! — disse ela. — O homem nunca deve medir-se
pelo valor que lhe atribuem aqueles que só o julgam por aparências e dele só
pretendem o sangue. Aprecie-se a si mesmo, na sua consciência, não para os
seus inimigos, mas para os seus amigos!
— E onde estão esses amigos?! — exclamou o camponês. — Nunca os vi!
— Mas se eu te digo que há amigos do povo!
— Haverá, mas não aqui; e essa é que é a desgraça! — contestou Stepane,
pensativo.
— Pois bem! Nesse caso, é preciso que os criem.
Refletiu o outro e respondeu em voz baixa:
— Sim... era o que se precisava.
— Vamos para a mesa! — propôs Tatiana.
Durante a ceia, Pedro, a quem as exortações de Pelagueia pareciam ter
preocupado, voltou a falar com animação:
— Sabe, tiazinha? Olhe que é bom que se vá daqui cedo, para não ser notada.
Vá à aldeia próxima; não vá à cidade; e tome uma carruagem.
— Para quê? — objetou o outro homem. — Se eu próprio a levo comigo!
— Nada disso! Se acontecesse alguma coisa, não faltaria quem indagasse se
tinha passado a noite em tua casa... «E para onde foi ela?» «Levei-a à aldeia
próxima.» «Ah, foste tu? Pois vais para a cadeia!...» Percebeste? E para que há
de a gente ter pressa de ir para a cadeia? Cada coisa a seu tempo!... Mas se tu
declarares que ela dormiu cá em casa, que alugou carro e que tornou a ir-se
embora, não te podem fazer nada. Ninguém é responsável pelo que fazem os
viajantes. Se passam tantos cá pelo sítio!...
— Já aprendeste a ter medo, Pedro? — perguntou Tatiana, irónica.
— É bom aprender de tudo! — respondeu, dando uma punhada no joelho. —
É bom saber ter coragem e é bom também saber ter medo! Lembras-te como o
escrivão lá do tribunal andou a incomodar e a perseguir o Baguanov por causa
daquele periódico? Pois agora, o Baguanov nem por todo o dinheiro do mundo
tocaria sequer num desses papéis! Creia, boa mulher: para mim, é coisa fácil
imaginar boas artimanhas; todos o sabem cá no sítio. Sou capaz de distribuir livros
e folhetos como ninguém... tantos quantos quiser! A nossa gente é pouco instruída
e muito medrosa, é certo; todavia, a vida vai tão dura, que o homem sempre se
vê obrigado a abrir os olhos e a informar-se do que se passa. E o livro responde-
lhe francamente: «Muitas vezes, mais percebe o ignorante do que o homeminstruído...» principalmente se o instruído for um desses que abarrotam de
fartura. Conheço bem o sítio e sei ver com olhos de ver! Pode uma pessoa ir
arranjando a vida, mas com esperteza e muita habilidade, para não ir à forca
logo duma assentada! As autoridades também percebem que as coisas vão
mudadas, que o camponês anda sorumbático, pouco ri e é de poucas
amabilidades... É que, em geral, passava-se bem sem as tais autoridades!...
Ainda ultimamente, em Smoliakovo — um lugarejozito perto daqui — vieram os
homens para cobrar uns impostos. Os camponeses então foram a correr buscar
cacetes. «Ah, bestas! Vocês revoltam-se contra o czar!» gritou o comissário. E
estava lá um rústico, um chamado Spivakine, que respondeu: «Vá você para o
diabo com o seu czar! Que vem a ser esse czar que nos leva até à última camisa
do corpo?» Ora aqui tem em que as coisas param, tiazinha. Escusado é dizer que
o Spivakine foi preso e atirado para uma enxovia. Mas ficaram as palavras dele,
e até as crianças já as repetem. Ficaram vivas, a bradar, essas palavras!
Nem comia: falava, falava sempre, em murmúrio rápido; os olhos, pretos e
astuciosos, brilhavam-lhe, muito vivos. E importunava largamente Pelagueia
com mil observaçõezinhas sobre a vida do sítio, como se estivesse a despejar um
saco de moedas de cobre.
Por duas vezes lhe disse Stepane:
— Anda, come!
Ele agarrava num pedaço de pão, numa colher, e espraiava-se de novo em
considerações, falando, falando, como um pintassilgo a cantar. Terminada a
ceia, finalmente, levantou-se de brusco, declarando:
— É tempo de voltar para casa!
Aproximou-se de Pelagueia e sacudiu-lhe a mão:
— Adeus, tiazinha! Talvez nunca mais nos tornemos a ver... Sempre lhe quero
dizer que tive muito prazer em travar relações consigo e em ouvi-la falar... sim,
senhora, muito prazer! Tem mais alguma coisa na mala além dos livros? Um
xaile de lã? Está muito bem... um xaile de lã, ouves, Stepane? Ele já lhe traz outra
vez a sua mala. Vamos, Stepane! Adeus! Passe bem!
Assim que os dois saíram, Tatiana tratou de preparar cama para a velha; foi
acima do fogão e ao sótão buscar umas roupas e dispô-las sobre o banco.
— É um rapaz desembaraçado! — observou Pelagueia.
A outra respondeu, interrompendo a tarefa para lhe lançar um olhar furtivo:
— É muito leviano! Faz muita bulha, muita bulha, mas não passa dali!
— E seu marido? — perguntou Pelagueia.
— É um bom homem. Não bebe, e damo-nos muito bem. O único defeito
dele é ser de caráter fraco.Soergueu-se e prosseguiu após um silêncio:
— De que se precisa agora? De sublevar o povo, é claro! Todos pensam
nisso... mas cada um para seu lado! E o que é necessário é que se fale nisso bem
alto; é forçoso que apareça alguém decidido a fazê-lo.
Sentou-se e perguntou sem transição:
— A senhora disse que até já há meninas finas e ricas a tratarem deste
negócio, e que vão fazer leituras políticas aos operários... E elas não têm medo?
Não sentem repugnância?
E depois de ouvir atentamente a resposta de Pelagueia, soltou profundo
suspiro e continuou, com as pálpebras cerradas e movendo devagarinho a
cabeça:
— Já li uma vez num livro que a vida não faz sentido. O que isto queria dizer
percebi eu logo à primeira! Como se eu não soubesse o que é essa vida: a gente
tem umas ideias, mas umas ideias desapegadas umas das outras, e que andam a
vaguear como carneiros estúpidos sem pastor... Vagueiam, vagueiam... E não há
nada, não há ninguém que as reúna... porque a gente não sabe o que há de fazer
para isso! Ora aqui está o que é uma vida que não faz sentido! A minha vontade
era fugir para longe dela, sem mesmo olhar para trás!... Muito infeliz é a gente
quando começa a perceber um poucochinho!...
Esta mágoa, via-a Pelagueia bem no brilho verde dos olhos da mulher,
naquele rosto magro; ouvia-a vibrar naquela voz. Pretendeu consolá-la, acalmá-
la:
— Mas a minha querida amiga compreende o que é necessário fazer-se....
Tatiana interrompeu-a brandamente:
— Mas se o que se precisa é saber-se como fazê-lo!... Tem a sua cama
pronta... deite-se!
E dirigiu-se para o fogão, grave e concentrada. Pelagueia deitou-se sem se
despir. Tinha dores nos ossos, quebrados de fadiga. Soltou um gemido débil.
Tatiana apagou o candeeiro. E assim que as trevas reinaram dentro da choupana,
ressoou novamente a sua voz grave e igual:
— A senhora não reza... Eu também não acredito em Deus nem em milagres.
Tudo isso foi inventado para nos meter medo, porque sabem que somos
estúpidos!
Pelagueia, no seu leito improvisado, agitou-se, inquieta. Fitavam-na pela
janela as trevas infinitas e, por entre o silêncio, atritos, ruídos furtivos mal
percetíveis, perpassavam em torno. Com voz tímida, murmurou:
— Pelo que respeita a Deus, não sei que dizer... Mas creio em Jesus Cristo e
creio nas suas palavras:«Amar o próximo como a nós mesmos...» sim, eu creio nisto!
E de súbito, exclamou, perplexa:
— Mas se Deus existe, porque nos abandonou? Porque não nos protege com o
seu poder misericordioso? Porque consente que a humanidade se divida em duas
castas? Porque consente o sofrimento humano, as torturas, as humilhações, a
maldade e as ferocidades de toda a espécie?
Tatiana não respondeu. No escuro, Pelagueia podia divisar-lhe o contorno
vago do perfil ereto, que se desenhava em cinzento, no fundo negro do fogão. E
assim se conservava, imóvel. Muito angustiada, Pelagueia cerrou as pálpebras.
De súbito, vibrou uma voz fria e dolorida:
— Nunca perdoarei a morte dos meus filhos! Nem a Deus nem aos homens!
Nunca!
A anciã sentou-se no leito, condoída da intensidade daquela paixão. Lembrou
com meiguice:
— A senhora é nova; ainda há de ter filhos...
Após um silêncio, a outra segredou:
— Não! O médico disse que nunca mais poderia tê-los.
Passou um rato a correr pelo chão. Um estalido seco e forte rasgou a
imobilidade do silêncio, e de novo se ficaram ouvindo distintamente os mesmos
atritos e o murmúrio da chuva sobre o colmo, que, dir-se-ia, dedos finos e
trémulos acariciavam. As bátegas caíam tristemente sobre a terra e ritmavam o
curso da longa noite de outono.
Mergulhada em pesada sonolência, Pelagueia ouviu uns passos ecoarem
surdamente da parte de fora e em seguida, no corredor. Abriu-se devagarinho a
porta, e ouviu-se uma exclamação abafada:
— Estás já deitada, Tatiana?
— Não.
— «Ela» está a dormir?
— Sim, parece-me que sim...
Brilhou uma claridade, que tremeluziu e logo se afogou nas trevas. O
campónio aproximou-se do leito da velha e compôs a capa de peles que lhe
cobria as pernas. Esta atenção impressionou profundamente Pelagueia. Fechou
de novo os olhos e sorriu. Stepane, sem fazer bulha, despiu-se e trepou para o
sótão.
Pelagueia, imóvel, prestava atento ouvido às variantes preguiçosas do silêncio
sonolento.
Na sua frente, nas trevas, via desenhar-se o rosto ensanguentado de Ribine.Chegou-lhe então aos ouvidos um leve murmúrio que vinha do sótão:
— Tu bem vês. Atenta nessa gente que anda a trabalhar pelo bem de todos!
Gente idosa, até, e que passou por mil desgostos e depois de mourejar toda uma
vida! Chegou-lhes a sua ocasião de descansar, mas bem vês como se aproveitam
dela!... E tu, Stepane, estás ainda novo, és inteligente... e nada fazes!
Respondeu a voz grossa do homem:
— A gente não pode meter-se numa coisa dessas sem pensar! Espera um
pouco, que aquela canção já eu conheço há muito!
Sumiram se as vozes, mas depois recomeçaram. Dizia Stepane:
— Aqui está o que deve fazer-se: primeiro, é preciso falar com cada homem
em particular. Assim, por exemplo: com o Alecha Makov. É instruído, valente e
anda há muito, zangado contra as autoridades. Com o Sérgio Chorine, também...
É homem de juízo. Com o Kniazev, que é honrado e homem decidido! E para
começar é bastante!... Depois, quando já tivermos um partidozinho, veremos... É
preciso saber a direção desta mulher, para chegarmos à fala com a gente a
quem ela se referiu... Agarro no machado e vou-me de passeio até à cidade. Se
te perguntarem, dizes que fui ganhar uns cobres como rachador de lenha. É bom
tomarmos as nossas precauções. Tem a velha razão quando diz que cada qual é
que dá a si o seu próprio valor... E quando se trata duma coisa destas, bom é que
a gente dê a si grande preço, se se quiser meter na coisa!... Olha aquele
campónio, aquele Ribine! Não era capaz de dobrar nem diante de Deus, quanto
mais diante dum comissário!... Aguenta-se firme, como se estivesse enterrado no
chão até aos joelhos! E aquele Nikita, hã? Teve vergonha o homem!... E foi
milagre que tal sucedesse... Ah! Se o povo entra no movimento à uma, muita
gente há de ir atrás dele!
— Pois sim! Veem espancar um homem e ficam para ali, de braços
cruzados!
— Não te exaltes, mulher! Olha, diz antes assim: «Deus seja louvado, que
não foram vocês mesmos que o tosaram!» Pois se eles tanta vez obrigam o povo
a bater nos presos! E o povo obedece! Lá no íntimo, talvez chore de compaixão,
mas vai batendo!... Não se atrevem a recusar-se àquela barbaridade, com medo
de também apanharem para baixo! Há ordem para um homem ser o que quiser:
um porco, um lobo... mas não um homem — é proibido! E quem desobedecer,
livram-se logo dele com a maior facilidade! Nada!... É preciso arranjar as coisas
de forma a reunir muita gente e revoltar-se tudo ao mesmo tempo!
Discorreu ainda por largo espaço. Umas vezes, falava tão baixinho, que
Pelagueia quase não compreendia; outras, erguia a voz, grossa e sonora. A
mulher então recomendava:
— Devagar! Vais acordá-la!Adormeceu profundamente a anciã. Foi como uma nuvem de opressão que o
sono se precipitou sobre ela, a envolveu e a arrebatou.
Despertou-a Tatiana quando a aurora, pardacenta, entrava a mirar com
gélidas pupilas as janelas da choupana. Por sobre a aldeia, no silêncio frio, a voz
brônzea do sino planara e ia a morrer.
— Fiz-lhe uma gota de chá; beba-o, se não logo no carro, vai ter frio.
Enquanto alisava as barbas desgrenhadas, Stepane, todo alvoraçado,
informava-se onde havia de procurar a sua hóspede, na cidade. E parecia a
Pelagueia o rosto do campónio mais definido, mais simpático do que na véspera.
Ao tomar o chá, exclamou ele alegremente:
— Como tudo isto é singular!
— O quê? — perguntou Tatiana.
— Este nosso encontro. É coisa tão simples, afinal!...
— Na causa do povo tudo é duma simplicidade extraordinária! — disse
Pelagueia pensativa e em tom de grande convicção.
Despediram-se então marido e mulher, sem gastar muitas palavras, antes
manifestando com mil cuidados e atenções, sincera solicitude.
Já no carro, Pelagueia pensava naquele campónio e na sua maneira de
trabalhar com prudência, como uma toupeira, sem ruído e sem descanso. E
continuava a ouvir a voz da mulher, descontente; revia o brilho seco e febril dos
seus grandes olhos verdes. Quantos anos vivesse, tantos aquela paixão vingativa e
feroz de mãe que chora os seus filhos, havia de viver-lhe na memória.
Lembrou-se depois de Ribine, do seu rosto, do seu sangue, daquele ardente
olhar, das frases que lhe ouvira e, de novo, o coração confrangeu-se-lhe no
amargo sentimento da sua impotência contra as feras. E em todo o percurso até à
cidade, viu de contínuo, desenhado no fundo tristonho daquele dia pardacento, o
perfil robusto de Ribine, com a sua barba preta, a camisa em farrapos, mãos
amarradas nas costas, os cabelos desgrenhados, a fisionomia iluminada pela
cólera e pela fé na sua missão. Pensava também nas inumeráveis aldeias e
lugarejos onde o povo esperava em segredo a vinda da propaganda de verdade;
nos milhares de criaturas que trabalhavam silenciosas toda a sua vida sem saber
porquê, sem uma esperança...
Quando refletia no resultado da sua viagem, sentia no íntimo um
contentamento meigo e irrequieto e decidia não mais pensar em Stepane nem na
mulher.
Avistou de longe os campanários e telhados da cidade, e grata sensação lhe
reanimou o espírito inquieto, e lho tranquilizou: desfilavam-lhe pela memória as
fisionomias cheias de preocupação de todos os que dia a dia iam ateando o fogo
sagrado do pensamento e o espalhavam em centelhas pelo mundo. E a almadaquela mãe transbordava da serena ambição de dar a todas aquelas criaturas
toda a energia e todo o seu amor de mãe. XIX
Veio abrir-lhe Nicolau, despenteado, com um livro na mão.
— Já?! — exclamou alegremente. — Está bem!... Estou mais contente agora!
Piscava os olhos, amigavelmente, por detrás dos óculos. Ajudou Pelagueia a
tirar a capa e disse-lhe, fitando-a afetuosamente:
— Sabe? Vieram cá fazer uma busca esta noite. Eu perguntava a mim próprio
porquê. Receei que lhe tivesse acontecido alguma coisa... Mas deixaram-me em
paz, e logo sosseguei: se a tivessem prendido, não me deixavam assim com
certeza!
Levou-a para a casa de jantar. Pelo caminho, ia contando animadamente:
— Ainda assim, fui despedido da repartição. Pouco desgosto me dá... Estava
já farto da estatística do gado cavalar que não existe nas herdades!... Tenho mais
que fazer!
Atentando-se no aspeto da sala, dir-se-ia que mãos vigorosas, em estúpido
acesso de fúria, haviam sacudido pela parte de fora as paredes da casa, até tudo
ficar em completa desordem. Os retratos jaziam pelo chão, os reposteiros e
sanefas arrancados, pendiam em farrapos; em determinado sítio uma tábua do
sobrado fora levantada, o peitoril da janela, arrombado; ao pé do fogão, cinzas
espalhadas.
Na mesa, ao lado do samovar sem lume, estava loiça suja, presunto e queijo
em cima dum pedaço de papel, nacos de pão, livros e carvão, Pelagueia sorriu.
Nicolau mostrou-se confundido.
— Fui eu que completei a desordem... mas não faz mal. Parece-me que
voltam cá hoje, e tanto que nem ainda comi nada. E então fez boa viagem?
Esta pergunta como que a magoou pesadamente em pleno peito: de novo a
imagem de Ribine se ergueu na sua memória; sentiu-se culpada por não ter
falado dele logo ao chegar. Aproximou-se de Nicolau e entrou a contar-lhe tudo,
diligenciando permanecer calma e não omitir pormenor algum.
— Foi preso!
Nicolau teve um sobressalto.
— Preso! Mas como?
Ela com um gesto, fê-lo calar e prosseguiu, como se, face a face, o rosto da
própria justiça se encontrasse na sua frente e a ela estivesse reclamando contra o
suplício a que assistira. Nicolau, reclinado na cadeira escutava-a, fazia-se pálido
e mordia os beiços. A certa altura, lentamente, tirou os óculos, pousou-os na
mesa, passou a mão pela cara, como se estivesse a limpá-la duma invisível teia
de aranha. As feições acentuaram-se-lhe, as maçãs do rosto tornaram-se-lhe
singularmente salientes, palpitaram-lhe as narinas. Era a primeira vez quePelagueia o via naquela excitação, o que não deixou de a assustar.
Quando acabou a narrativa, viu-o levantar-se em silêncio e pôr-se a caminhar
em grandes passadas, de punhos cerrados nas algibeiras. Por fim, murmurou,
comprimindo os dentes:
— Deve ser um homem extraordinário!... Que heroísmo! E vai sofrer numa
prisão como sofrem todos os que a ele se assemelham!
Depois, parou em frente da sua narradora; ajuntou com voz vibrante:
— Evidentemente todos esses comissários, esses oficiais, não passam duns
instrumentos, duns cacetes de que sabe servir-se um patife inteligente, um
domesticador de animais! Mas urge dar cabo do animal, para o castigar de se ter
deixado transformar em fera! Eu cá, matava-o logo, esse cão danado!
Enterrava mais profundamente os punhos nas algibeiras, tentando, mas
debalde, reprimir aquela comoção de que Pelagueia também se ressentia. Tinha
os olhos contraídos como lâminas de facas. Entrou de novo a passear e ao
mesmo tempo ia dizendo com frio rancor:
— Ora vejam que coisa horrível! Uma meia dúzia de homens espancam,
sufocam e oprimem toda a gente, para defenderem o funesto poderio de que
gozam sobre o povo! A ferocidade recrudesce, a crueldade torna-se lei
universal! É para meditar!... Uns batem e procedem como bestas, porque estão
certos da impunidade, porque os morde o desejo voluptuoso de torturar, como a
repugnante volúpia dos escravos a quem se permitia que manifestassem os
instintos servis e os hábitos bestiais, em toda a sua hediondez! Os outros
envenena-os a vingança, e ainda os terceiros, bestificados sob os maus tratados,
tornam-se cegos, tornam-se mudos!... E assim pervertem o povo, um povo
inteiro!
Deteve-se novamente, agarrou a cabeça entre as mãos.
— É para bestializar, mesmo sem se querer, essa vida feroz! — concluiu em
voz baixa.
Depois, dominou-se. Brilhava-lhe agora no olhar uma expressão decidida. E
foi quase com tranquilidade que fitou a velha, cujo rosto as lágrimas inundavam.
— Não temos tempo a perder, Pelagueia. Onde está a sua mala?
— Na cozinha.
— Está a casa cercada de espiões, não é possível passar para fora tal
quantidade de impressos, sob pena de sermos vistos... Não sei onde os hei de
ocultar... Parece-me que a polícia há de voltar esta noite... Não quero que seja
presa. Ainda que muito nos custe, vamos queimar tudo isso.
— O quê? — perguntou ela.
— O que está dentro da mala.Foi então que ela compreendeu e, por grande que fosse a sua tristeza, a ufania
do bom êxito da sua viagem fez-lhe aflorar ao rosto um sorriso.
— Mas a mala não tem nada! Nem uma folha de papel! — declarou,
animando-se gradualmente.
E, narrou a continuação das suas aventuras. Nicolau ouviu-a primeiro com
inquietação, depois com surpresa. Por fim, interrompeu-a para exclamar:
— É simplesmente maravilhoso! Tem uma sorte espantosa!
Entrou a mover-se dum lado para o outro, pasmado, e foi apertar-lhe a mão.
— Chega a comover-me pela confiança que tem no povo! Que bela alma a
sua!... Amo-a como nunca amei minha própria mãe!
Ela tomou-o nos braços e por entre soluços de contentamento, aproximou dos
seus lábios a cabeça de Nicolau.
— Talvez me tivesse exprimido nesciamente, há pouco! — murmurou,
comovido e desconcertado pela novidade do sentimento que experimentava.
Pelagueia, convencida de que Nicolau se sentia profundamente feliz, seguia-o
com um olhar em que transparecia afetuosa curiosidade; queria compreender
porque se mostrara tão apaixonadamente vibrante.
— Em geral, tudo corre às mil maravilhas! — declarou ele, a esfregar as
mãos, com um risinho caricioso. — Sabe? Passei singularmente bem estes
últimos dias. Estive sempre com operários; fiz-lhes umas leituras, conversámos,
deram-me ensejo a que os observasse... Juntei no meu coração sensações
admiráveis, tão puras e sãs!... Que bela gente! Tão francos, tão claros como os
dias de maio! Falo dos operários mais novos; são robustos, são sensíveis, têm sede
de compreender tudo!...
Ao vê-los, adquire-se a certeza de que a Rússia há de vir a ser a mais
brilhante democracia do mundo!
Erguera o braço como para firmar um juramento. Passado um instante,
continuou:
— Como sabe, eu era funcionário numa repartição do estado. Foi ali que o
meu feitio se azedou: no meio de algarismos e de papelada. Um ano daquela vida
bastou para me deturpar o caráter. Porque eu estava habituado a viver entre o
povo e quando me separo dele, sinto-me pouco à vontade. Sempre propendi com
todas as minhas forças para a vida popular. E agora já posso viver de novo em
liberdade, confraternizar com os operários, ensinar-lhes o que sei! Compreende?
Assim, estarei junto do próprio berço do ideal que vem surgindo, junto da própria
energia criadora nascente. É o que me parece admiravelmente simples e belo e
também terrivelmente excitante! Torna-se um homem mais novo, mais
decidido, mais calmo, e desfruta de uma existência íntegra!
Aqui, riu, expansivo. E daquele contentamento partilhava Pelagueia.— E depois, que criatura excessivamente boa a senhora é! — declarou ele
ainda. — Tem em si uma força tão poderosa e tão sedutora! Atrai a si as almas
com tal persuasão! Sabe descrever tão completamente as pessoas! Sabe vê-las
tão bem!
— Vejo a sua existência e compreendo-o, meu amigo!
— Todos a estimam... E que maravilhosa coisa é estimar uma criatura
humana!... É tão bom! Se soubesse!
— É o meu amigo que sabe ressuscitar os entes humanos de entre os mortos!
— murmurou a anciã com calor, acariciando-lhe a mão. — Meu amigo, quanto
mais penso, mais vejo quanto há a fazer e de quanta paciência precisamos! E o
que eu quero é que não perca a coragem. Oiça o resto... A mulher, ia eu dizendo,
a mulher do tal camponês...
Nicolau sentara-se ao lado dela. Tinha desviado o rosto prazenteiro, e passava
a mão devagar pelos cabelos. Mas daí a pouco tornava a dirigir o olhar para
Pelagueia, escutando avidamente a narrativa.
— Que sorte admirável! — exclamou. — Com efeito, era muito possível que
fosse presa... Mas não! O que parece é que essa gente do campo também se vai
mexendo. Não é para admirar, afinal! E essa tal mulher, parece que a estou
vendo daqui. Sim, compreendo esse coração aceso em ira. E tem razão em dizer
que uma dor tão profunda jamais se extinguirá!... Precisávamos de quem se
ocupasse especialmente de animar essa gente do campo!... Gente! Muita gente!
É o que nos falta e por toda a parte! A vida exige milhares de braços!
— Para isso era necessário que o Pavel estivesse em liberdade... e o André
também — aventou ela em voz baixa.
Ele lançou-lhe rápido olhar e curvou a cabeça.
— Olhe, sabe? Vou dizer-lhe a verdade, ainda que lhe custe: conheço bem o
Pavel e estou certo de que vai recusar-se a fugir. O que ele pretende é ser
julgado, quer exibir-se em todo o seu prestígio... e não renuncia a isso. É trabalho
escusado!... Depois, fugirá da Sibéria...
A mãe de Pavel murmurou:
— Que se há de fazer?... Ele sabe melhor do que eu o que deve decidir.
Nicolau ergueu-se de chofre, novamente tomado de contentamento. Inclinou-
se para ela e disse:
— Graças a si, passei hoje instantes melhores... os melhores da minha vida,
talvez!... Obrigado! Dê-me um abraço!
E apertaram-se, silenciosos.
— Como isto é bom! — exclamou ele baixo.
Pelagueia deixara cair os braços e sorria em estos de felicidade.— Hum! — murmurou Nicolau, fitando-a muito por detrás dos seus óculos.
— Ainda se esse tal camponês não tardasse em vir!... Porque é absolutamente
preciso escrever um artigozinho acerca do Ribine e distribuí-lo pelas aldeias, o
que não pode prejudicar o Ribine, visto que ele trabalha abertamente, por si
mesmo, e que a causa do povo tem tudo a ganhar. Vou escrevê-lo agora mesmo.
A Ludmila imprime-o amanhã... Sim, mas como se hão de expedir os fascículos?
— Irei eu levá-los.
— Não, obrigado! — exclamou Nicolau com vivacidade. — Não crê que o
Vessovtchikov pudesse tomar esse encargo?
— Quer que lhe fale nisso?
— Experimente e ensine-lhe como ele se há de haver nesse negócio.
— E eu então, que faço?
— Não lhe dê isso cuidado!
E pôs-se a escrever. Enquanto desembaraçava a mesa das loiças e dos outros
objetos, Pelagueia não tirava a vista dele, seguindo a pena, que lhe tremia na
mão e traçava no papel longas séries de palavras. Por vezes, um arrepio
perpassava pela nuca do mancebo; outras vezes, projetava ele a cabeça para trás
e ficava-se de olhos fechados. Pelagueia sentiu-se emocionada.
— Castigue-os! — murmurou. — Não os poupe, àqueles assassinos!
— Aqui está! Está pronto! — disse ele, levantando-se. — Esconda este papel
consigo. Mas olhe que se a polícia vem, hão de também querer revistá-la...
— Leve-os o diabo! — respondeu com o maior sossego.
À noite, veio o doutor.
— Porque anda a autoridade tão agitada? — inquiriu ele, passeando pelo
quarto. — A noite passada fizeram-se sete buscas!... Onde está o doente?
— Foi-se embora ontem! — respondeu Nicolau. — É sábado hoje e não podia
faltar à sessão de leitura, compreendes?
— É uma estupidez ir para uma conferência quando se tem a cabeça aberta!
— Foi o que eu tentei demonstrar-lhe; mas nada consegui!
— Era a vontade de ir fazer-se valente diante dos camaradas — disse
Pelagueia; — de lhes mostrar que também já derramou o seu sangue pela
grande causa!
O doutor lançou-lhe um olhar, tomou uns ares de ferocidade e exclamou com
os dentes cerrados:
— Que sanguinárias criaturas vocês são!
— Pois então, meu amigo, já nada tens a fazer aqui, e nós esperamos umas
visitas. Vai-te embora! Pelagueia, dê-lhe o papel.— Outra vez! — exclamou o médico.
— Vá! Toma e leva isto à imprensa.
— Está dito; lá o levarei. Mais nada?
— Sim... Está ali um espião defronte da casa.
— Já o vi. E em minha casa também. Bem, até mais ver! Até à vista, mulher
cruel! Sabem, meus amigos? A desordem do cemitério veio mesmo a calhar,
positivamente! Não se fala noutra coisa em toda a cidade. Isto impressiona o
povo e obriga-o a refletir. O teu artigo a esse respeito estava muito bom e foi
publicado em bela ocasião. Eu sempre fui de opinião que uma boa desordem era
mais útil do que uma má concórdia...
— Está bom, vai-te!
— Estás hoje pouco amável, homem! A sua mão, tiazinha! O pequeno andou
como um pateta. Não sabes onde ele mora?
Nicolau deu-lhe o endereço.
— É preciso ir a casa dele amanhã... É um belo rapaz, não é verdade?
— É verdade!... Excelente coração!
— É preciso não o perder de vista, que ele não é tolo! — disse o médico, ao
sair. — É justamente essa rapaziada que há de formar o verdadeiro proletariado
instruído, e ocupar os nossos lugares, quando nós nos formos para o sítio onde não
há, segundo creio, diferenças de castas...
— Sempre estás um tagarela!
— Sinto-me contente; por isso dou à língua!... Cá vou, cá vou... Então, sempre
contas ir para a cadeia? Desejo que descanses bem por lá.
— Obrigado, mas não me sinto cansado.
Pelagueia escutava-os satisfeita por ver os cuidados, em que ambos estavam,
no ferido.
Logo que saiu o médico, Nicolau e Pelagueia sentaram-se à mesa e ficaram
esperando as suas visitas noturnas. Por muito tempo, em voz baixa, Nicolau
esteve falando dos companheiros que viviam no exílio, dos que tinham fugido e
continuavam trabalhando com nomes supostos. As paredes nuas do aposento
refletiam-lhe o som abafado da voz, como se duvidassem daquelas singulares
histórias de heróis modestos e desinteressados, que haviam sacrificado todas as
suas forças à grande obra do rejuvenescimento humano. Pelagueia, mergulhada
numa sombra de agradável tepidez, sentia o coração encher-se-lhe de amor por
aqueles desconhecidos, que à sua imaginação se resumiam num ser único e
imenso, dotado de máscula e inesgotável força. Lentamente, mas sem nunca
parar, tal ser extraordinário caminhava pela terra, arrancando o bolor secular da
mentira, descobrindo aos olhos do homem a verdade simples e positiva da vida, aqual a todos prometia libertar da avidez, do ódio e da falsidade, três monstros que
haviam subjugado pelo horror o mundo inteiro. Esta visualidade gerava no íntimo
de Pelagueia impressão idêntica à ressentida noutros tempos, quando ela,
ajoelhada perante as imagens pias, terminava com uma oração de
reconhecimento o seu dia, que lhe ficava assim parecendo menos árduo do que
os outros. Agora, que o seu passado ia longe, este sentimento ampliava-se, fazia-
se mais luminoso e mais jovial, penetrava mais fundo na sua alma, robustecia-se
e exaltava-se mais e mais.
— A polícia não vem! — exclamou Nicolau, interrompendo o fio das suas
narrativas.
Ela fitou-o um instante e após curto silêncio:
— Que vão para o inferno!
— Está claro!... Vossemecê deve estar fatigada a valer, precisa de deitar-se.
É robusta, ainda assim todos estes cuidados, todas estas inquietações... suporta-as
admiravelmente. Só os cabelos é que lhe embranqueceram muito depressa... Vá
descansar, vá...
Apertaram-se as mãos e separaram-se. XX
Adormecera Pelagueia, rápida e sossegadamente, quando, de manhãzinha, a
despertaram umas pancadas violentas na porta da cozinha. E sucediam-se com
teimosia. Ainda fazia escuro. Vestiu-se à pressa, correu a perguntar, através da
porta:
— Quem está aí?
— Eu! — respondeu voz desconhecida.
— Quem?
— Abra! Abra! — murmurou a mesma voz, agora sumida e suplicante.
Pelagueia puxou o ferrolho e empurrou a porta: E entrou Ignati, a exclamar
alegremente:
— Ah! Não me enganei! Cheguei a bom porto!
Vinha coberto de lama até à cintura, o rosto desfigurado, fundas olheiras, e do
boné saíam-lhe em desordem os cabelos anelados.
— Grande desgraça lá por casa! — segredou logo ao fechar a porta.
— Já sei...
Ficou espantado e perguntou com um pestanejar de curiosidade:
— Como assim?... Por quem?
Contou-lhe Pelagueia em breves palavras o encontro que tivera.
— E os outros dois teus camaradas, também os prenderam?
— Não estavam lá: tinham ido à junta de inspeção. Prenderam cinco,
contando com o Ribine.
Fungou, num acesso de riso, e explicou:
— Eu, como vê, escapei. Provavelmente andam em minha busca... Pois que
procurem! Não volto para lá nem por todo o oiro do mundo! Ainda assim, ainda
lá ficaram seis ou sete rapazes e uma rapariga, com quem se pode contar!
— Mas como pudeste escapar?
— Eu? — exclamou Ignati, sentando-se num banco e olhando em roda. — Os
polícias vieram de noite, direitinhos à fábrica, mas um minuto antes já o guarda
campestre tinha vindo a correr bater-nos na janela: «Atenção, rapaziada, vêm
prendê-los!»
Pôs-se a rir e a limpar a cara com a aba da blusa. E prosseguiu:
— O tio Ribine não é homem para perder a cabeça... E olhe que o provou!...
Disse-me logo: «Ignati, corre à cidade! Lembras-te das duas mulheres que aqui
estiveram?» E escreveu qualquer coisa num papel, muito depressa... «Toma,
vai, adeus, meu irmão!» disse-me ele. E deu-me um empurrão nas costas. Eu
atirei-me para fora da cabana, escondi-me entre umas moitas, pus-me a andarde gatas e ouvi chegar os guardas! Eram muitos, apareciam por todos os lados!
Cercaram a fábrica. Eu estava por detrás duma sebe... passaram-me mesmo na
frente. Depois, levantei-me e entrei a andar, a andar... Andei um dia e duas
noites, sem parar. Estou estafado para uma semana; nem sinto as pernas!
Mostrava-se satisfeito de si mesmo; iluminava-lhe um sorriso os grandes olhos
escuros; tinha um tremor nos beiços grossos e vermelhos.
— Vou-te fazer uma gota de chá num pronto! — disse Pelagueia solícita,
agarrando no samovar. — Mas enquanto esperas, vai-te lavando. Ficas melhor
depois!
— O que eu queria era dar-lhe o bilhete.
Levantou com dificuldade uma das pernas, dobrou-a, colocou o pé sobre o
banco, isto com inúmeras caretas e gemidos, e começou a desenrolar uma das
ligaduras, que lhe envolviam ambos os pés.
Nicolau apareceu à porta. Ignati, confuso, tornou a pôr o pé no chão; tentou
levantar-se, mas cambaleou e caiu desamparadamente em cima do banco, ao
qual se agarrou às mãos ambas.
— Ai, que cansado que eu estou!
— Bom dia, camarada! — disse-lhe Nicolau em tom amigável e com um
sinal de cabeça. — Espere, que eu o ajudo.
Ajoelhou-se diante do operário e desenrolou rapidamente a ligadura,
emporcalhada e húmida.
— É necessário esfregar-lhe os pés com álcool. Há de fazer-lhe bem — disse
Pelagueia.
— Isso mesmo! — aprovou Nicolau.
Ignati fungou de novo, muito atrapalhado.
Finalmente, achou Nicolau o bilhete; alisou-o, mirou-o um instante e
apresentou-o à velha.
— Aqui tem! É para si.
— Leia.
Ele aproximou dos olhos o pedaço de papel sujo e amarrotado e leu:
«Mãezinha: não deixes que se perca o nosso negócio. Diz a essa senhora que
não se esqueça de fazer que se escreva sempre e muito, a respeito das nossas
coisas. Peço-te. Adeus. Ribine.»
— Belo rapaz! — disse Pelagueia com melancolia. — Estavam a esganá-lo e
ainda ele se lembrava dos outros!
Lentamente, Nicolau deixou descair o braço em que tinha o bilhete, e a meia
voz:— É espantoso!
Ignati olhava para um e outro, vermiculando devagar com os dedos
emporcalhados do pé descalço. Pelagueia, procurando ocultar o rosto inundado
de lágrimas, foi para ele com uma celha com água. Sentou-se no chão e
estendeu a mão para tomar a perna do homem.
— Que quer fazer?... Não é preciso...
— Deixa ver o pé, depressa.
— Eu vou buscar o álcool — disse Nicolau.
O rapaz metia sempre mais a perna debaixo do banco, murmurando:
— Não quero!... Então isso é coisa que se faça?
Sem lhe responder, ela tratou de lhe desembaraçar das ligaduras o outro pé. O
rosto redondo de Ignati distendeu-se de espanto. Pelagueia entrou a lavar o rapaz.
— Sabes? — disse ela com voz chorosa. — O Ribine foi espancado!...
— Palavra? — exclamou Ignati assustado.
— É verdade. Quando chegou a Nikolski, já ele vinha moído de pancada, e
ainda ali, o sargento e o comissário lhe deram murros, pontapés... Estava todo
coberto de sangue!
— Ah, lá quanto a isso, é o ofício deles, e conhecem-no a valer! — exclamou
o operário, sentindo um calafrio percorrer-lhe as espáduas. — Tenho medo deles
como do diabo! E os camponeses não lhe bateram?
— Um só, à ordem do comissário. Os outros fizeram o seu dever; até não
consentiram que continuassem a maltratá-lo.
— Sim... O campónio começa a compreender...
— Também lá os há muito inteligentes, nessa vila...
— E onde é que os não há? Há-os por toda a parte! Sim, sempre é forçoso que
os haja; o difícil é descobri-los. Metem-se aí pelos cantos e ficam a remoer
aquilo lá por dentro, cada um para seu lado. Não têm a coragem de se reunir!
Nicolau trouxe uma garrafa de álcool, deitou uns pedaços de carvão no
samovar e saiu sem dizer palavra. Ignati, que o seguira com a vista, curioso,
perguntou em voz baixa:
— É nosso mestre?
— Na causa do povo não há mestres, só há camaradas!
— É caso para pasmar! — disse o operário, sorrindo entre perplexo e
incrédulo.
— O quê?
— Tudo isto!... Dum lado, dão bofetadas na gente, do outro, lavam-nos os
pés... Haverá um meio-termo?A porta do aposento abriu-se de par em par e Nicolau respondeu:
— Há, sim, senhor! E esse meio-termo são os que lambem as mãos daqueles
que os maltratam e sugam o sangue dos maltratados. Aqui tem o que é esse
meio-termo!
Ignati fitou-o com deferência e disse, após reflexão:
— Isso agora é verdade!
— Pelagueia! — instou Nicolau. — Deve estar cansada... Deixe isso, que eu
continuo.
O rapaz encolheu as pernas com inquieto acanhamento.
— Está pronto! — respondeu ela, erguendo-se. — Vá, Ignati: levanta-te
agora!
O outro obedeceu, conservou-se um bocado num pé, ora no outro, firmando-
se fortemente no sobrado, e declarou:
— Até parece que ficaram novos! Obrigado!... Muito obrigado!
Fez uma pausa e ainda murmurou, a olhar para a celha com a água suja:
— Nem sei como hei de agradecer-lhe suficientemente...
Os três passaram para a casa de jantar e almoçaram. Ignati pôs-se a contar
em voz muito séria:
— Fui eu que distribui os periódicos. Eu gosto muito de andar. O Ribine tinha-
me dito: «Vai tu levá-los sozinho! Se fores apanhado, não suspeitam de mais
ninguém.»
— E há muita gente que os leia? — perguntou Nicolau.
— Todos os que sabem ler.
Pensativo, Nicolau refletiu:
— Mas como havemos de arranjar que o fascículo a propósito da prisão do
Ribine chegue depressa às aldeias?...
Ignati apurara logo o ouvido.
— Pois eu me encarrego disso hoje mesmo! Já há prontos esses fascículos?
— Há, sim.
— Dê-mos, que eu os levo! — propôs Ignati com os olhos cintilantes, e a
esfregar as mãos. — Eu sei bem onde e como os hei de levar!... Dê-os cá!
Pelagueia sorria, ouvindo-o falar assim.
— Mas tu estás cansado e tens medo; foste tu mesmo que disseste não querer
voltar lá!...
Ele produziu com os beiços um estalido, e, ao mesmo tempo que alisava com
a alentada mão os caracóis do cabelo, declarou em tom de seriedade e sangue-
frio:— Estou cansado... Melhor, depois descansarei!... Quanto a ter medo, isso é
verdade!... Pois se vossemecê acabou de contar que eles batem na gente até nos
porem a escorrer sangue!... Quem é que tem vontade de ficar estropiado? Eu me
arranjarei: Vou de noite... Sempre hei de achar maneira de fazer o recado! Dê
cá... Parto esta noite mesmo.
Ficou um momento calado, de sobrolho franzido, e logo:
— Vou daqui esconder-me na floresta. Depois, aviso os companheiros e digo-
lhes: «Vão lá ter comigo e sirvam-se.» É o melhor que há a fazer! Se eu mesmo
distribuísse os jornais e fosse apanhado, era uma pena por causa dos jornais... Já
há tão poucos, que é preciso ter muita cautela com eles.
— E o medo? Que fazes tu a ele? — Inquiriu de novo Pelagueia.
Divertia-a deveras aquele alentado rapagão de caracóis, pela sinceridade que
vibrava na menor das suas palavras, pela sua fisionomia franca e pelas suas
maneiras teimosas.
— O medo é o medo e negócios são negócios! — replicou ele, mostrando
muito os dentes. — Para que está a mangar comigo? Então, já viram?... Talvez
não seja coisa de meter medo a uma pessoa?... Mas já que é preciso, atira-se a
gente ao lume! Quando se trata dum negócio destes...
— Ah! Meu filho! — exclamou involuntariamente Pelagueia, vencida pelo
entusiasmo e o contentamento que ele lhe inspirava.
Ele sorriu acanhado:
— Ainda mais esta: eu, seu filho! Alguma criancinha, talvez?...
Nicolau, que não deixara de observar o rapaz, com olhar amigo, interveio
então:
— Você não vai, homem!
— Então, que devo fazer? Onde é preciso que vá? — interrogou ele com
inquietação.
— Outro irá em seu lugar e você há de explicar-lhe miudamente como ele
deve proceder. Quer fazer isto?
— Está bem! — respondeu Ignati de má vontade, após um instante de
hesitação.
— Nós nos encarregamos de lhe fornecer documentos, para lhe arranjarmos
um lugar de guarda-mato.
— E se for lá gente do campo apanhar lenha ou caçar clandestinamente, de
os prender? Para isso não sirvo eu!...
Os dois puseram-se a rir, o que acabou por de todo atrapalhar o campónio,
muito desgostoso.
— Não tenha medo! — disse-lhe Nicolau. — Não há de ter ocasião para tal,creia!
— Isso agora é diferente! — comentou Ignati.
E já mais tranquilo, sorriu-se para Nicolau, confiado e alegremente.
— Eu sempre gostava mais de ir à fábrica; dizem que há por lá camaradas
bastante inteligentes...
Parecia que no vasto peito lhe ardia um fogo, intermitente ainda e que se
extinguia por alternativas, não deixando ver mais que o fumo da perplexidade e
de inquietação.
Pelagueia levantou-se da mesa e foi à janela, dizendo, pensativa:
— Como a vida é singular!... Por cada cinco vezes que rimos, choramos
outras tantas!... Que coisa pouco agradável!... Já acabaste, Ignati? Vai dormir.
— Não, senhora, não quero.
— Vai dormir, já te disse.
— Vossemecê é muito severa! Está bem, lá vou! E muito obrigado pelo seu
chá, pelo açúcar... e pela sua amizade!
Deitou-se na cama de Pelagueia. Resmungava coçando a cabeça:
— Agora fica tudo a cheirar a alcatrão cá em casa... Olhe que faz mal em
me amimar tanto, creia!... Eu não tenho sono... São ambos boas pessoas... Já não
percebo nada... parece que estou a cem mil quilómetros da aldeia... E como ele
falou bem a propósito no meio-termo... No meio-termo estão os que lambem as
mãos dos que maltratam os outros... Demónio!
E subitamente, com um ronco sonoro, arqueando muito as sobrancelhas e de
boca entreaberta, adormeceu. XXI
Nessa noite, já muito tarde, encontrava-se Ignati num subterrâneo, sentado
em frente de Vessovtchikov e segredava a este:
— Quatro vezes, na janela do meio...
— Quatro? — repetia o bexigoso, com ares de grande concentração.
— Sim; primeiro três, assim...
E bateu na mesa com o dedo dobrado, enquanto contava:
— Uma, duas, três; e depois, mais uma vez, passado um instantinho...
— Estou percebendo.
— Há de vir à porta um campónio de cabelos vermelhos, e há de perguntar-
lhe: «Vem por causa da parteira?» E você responde-lhe: «Sim, senhor, venho
da parte do senhorio!» E não precisa mais, ele logo percebe do que se trata!
Neste colóquio, aproximavam as cabeças; ambos altos e alentados, falavam
baixinho, abafando muito a voz. De pé, junto duma mesa, com os braços
cruzados sobre o peito, Pelagueia observava-os. Todos aqueles sinais cabalísticos,
aquelas perguntas e respostas convencionadas de antemão, lhe davam imensa
vontade de rir. E pensava:
«Não passam ainda dumas crianças!»
Um candeeiro seguro na parede iluminava as sombrias manchas do bolor e as
gravuras recortadas de jornais. Pelo chão jaziam baldes amolgados, fragmentos
de zinco; e divisava-se pela janela, no céu muito escuro, uma grande estrela
cintilante. Reinava em toda a quadra um forte cheiro a ferrugem, tintas de óleo e
humidade.
Ignati ostentava grosso sobretudo peludo em que muito se comprazia;
Pelagueia via-o, volta e meia, acariciar com volúpia a manga do espesso
casacão e inclinar com custo o largo pescoço, para melhor se admirar. E um
pensamento cantava no coração de Pelagueia:
«Filhos!... Meus queridos filhos!...»
— Ora aqui está! — disse Ignati, levantando-se. — Então não se esqueça!
Primeiro, ir a casa do Muratov, perguntar pelo avô...
— Cá estou lembrado! — respondia Vessovtchikov.
Mas Ignati não se dava por crente, repetia-lhe outra vez todos os sinais
combinados e todas as palavras de passe. Por fim, estendeu-lhe a mão.
— Agora não falta mais nada! Adeus, camarada! Dê-lhes recomendações
minhas! Olhe, diga-lhes assim: «O Ignati está vivo e passa bem.» É boa gente,
verá!...
Mirou-se satisfeito, passou a mão pelo casacão e perguntou a Pelagueia:— Posso ir-me embora?
— E hás de atinar com o caminho?
— Está claro que sim!... Até mais ver, camaradas!
E lá se foi, aprumado, arqueando o peito, de chapéu novo à banda e as mãos
enterradas nos bolsos. Na testa e nas fontes, os anéis dos cabelos, loiros e infantis,
dançavam-lhe jovialmente.
— Ora até que enfim já tenho também trabalho! — exclamou Vessovtchikov,
aproximando-se da velha. — Andava aborrecido; perguntava a mim mesmo
para que tinha saído da cadeia. Não faço senão andar escondido!... Ao menos, na
cadeia, sempre aprendia! O Pavel recheava-nos a cabeça que era um gosto! E o
André também nos limpava as ideias, sim senhora!... E então, sempre se decidiu
a fuga? Arranja-se isso?
— Hei de sabê-lo depois de amanhã! — respondeu.
E repetiu, suspirando, mau grado seu.
— Depois de amanhã...
O bexigoso aproximou-se-lhe, descansou-lhe no ombro a alentada mão e
opinou:
— Podes dizer aos chefes que é coisa fácil. Eles hão de dar-te ouvidos! Ora
vê tu mesma: aqui está a muralha da cadeia, ao pé dum lampião. Em frente,
ficam umas terras sem cultivo; à esquerda, o cemitério; à direita, uma rua e o
resto da cidade. Vem um acendedor de candeeiros mesmo de dia, dia claro, para
limpar o lampião; encosta a escada ao muro, sobe, engata ao espigão da muralha
os ganchos duma escada de corda que há de ficar para o lado do pátio, e está
pronto! Eles, na cadeia, já hão de saber a hora combinada, pedem aos presos de
crimes comuns que armem qualquer desordem, ou armam-na eles mesmos, e
entretanto, os que estiverem na combinação marinham pela escada e está tudo
feito! E dali vem de passeio até à cidade, enquanto eles lá ficam a procurá-los
pelo cemitério e nas tais terras de baldio!
Gesticulava com vivacidade, expondo este plano, aos olhos dele simples, claro
e de extrema habilidade. Pelagueia, que nunca conhecera nele mais que um
rapagão tosco e desajeitado, admirava-se de ver aquele rosto bexiguento tão
cheio de vivacidade e inteligência. Dantes, os minguados olhos de Vessovtchikov
tudo fitavam com irritação e desconfiança; agora, era para crer que outros os
haviam substituído, rasgados e brilhantes de cintilações uniformes e severas que
convenciam e emocionavam Pelagueia.
— Pensa bem: de dia é que há de ser!... Sim, de dia! Quem há de imaginar
que um preso se atreva a fugir de dia, à vista de todo o pessoal da prisão?
— E se os fuzilassem? — lembrou a mãe, horrorizada.
— Quem? Se não há soldados, e os carcereiros servem-se dos revólveres parapregar pregos!
— Quase que estou achando tudo isso simples de mais!...
— Pois é como te digo; tu verás! Fala nisso aos outros. Eu já arranjei tudo: a
escada de corda, os ganchos... Já falei cá com o meu hospedeiro; é ele que há de
fazer de limpa-candeeiros.
Para além da porta, mexia-se alguém entre acessos de tosse; ouvia-se um
ruído de ferros velhos.
— Aí está ele, o hospedeiro! — anunciou o bexigoso.
Pela abertura da porta apareceu uma banheira de zinco, e uma voz
encatarroada praguejou:
— Entra, diabo!
Depois, surgiu uma cara redonda e barbuda, de cabelos grisalhos, sem
chapéu, de expressão bonacheirona e grandes olhos esbugalhados.
Vessovtchikov foi ajudar o homem a fazer passar a banheira pela porta;
depois, o recém-chegado, grande latagão corcovado, pôs-se a tossir com um
grande entumecimento nas faces imberbes, escarrou e disse na mesma voz
rouca:
— Boa noite!
— Pois agora, pergunta-lhe! — convidou o rapaz.
— O quê? Que querem perguntar-me?
— É a respeito da fuga da cadeia.
— Ah, sim! — disse o velho, limpando o bigode com os dedos sujos.
— Quer saber, Jacob? Ela não acredita que seja fácil arranjar!
— Ah, não acredita? Pois se não acredita, é porque não quer a coisa. Mas nós
dois, que queremos que isso se faça, acreditamos que seja fácil! — respondeu
serenamente o homem.
Foi tomado dum acesso de tosse que o dobrou em ângulo reto, e em seguida
esteve muito tempo no meio da quadra a aspirar com força o ar e a esfregar o
peito. Fitava Pelagueia com olhos de espanto.
— Mas não sou eu quem decide esta questão! — observou ela.
— Mas fala lá com os outros; diz-lhes que está tudo arranjado! Ah! Se eu
pudesse falar com eles, eu os convenceria! — exclamou o bexigoso.
Estendeu os braços em largo gesto e depois apertou-os como para abraçar
qualquer coisa. Vibrava-lhe na voz um sentimento cuja energia assombrava
Pelagueia.
— Vejam que mudança fez! — pensou ela.
E contestou em voz alta:— O Pavel e os companheiros é que hão de decidir.
Meditativo, o outro ficou-se de cabeça baixa.
— Quem é esse Pavel? — interrogou o velho, tomando lugar num banco.
— É o meu filho.
— Qual é o nome da família?
— Vlassov.
Ele abanou a cabeça, puxou pela bolsa do tabaco e, enquanto enchia o
cachimbo:
— Tenho ouvido falar. O meu sobrinho conhece-o. O meu sobrinho também
está na cadeia; chama-se Evetchenko. Conhece? Eu chamo-me Gadune. Daqui a
pouco, está na cadeia! Então é que a gente há de viver feliz e sossegada, nós, os
velhos! Um, da polícia, prometeu que me havia de pregar com o sobrinho na
Sibéria... E há de cumprir a promessa, o excomungado!
Entrou de fumar, escarrando para o chão de vez em quando.
— Ah! Ela não quer? — continuou, virado para o rapaz. — Isso é com ela!...
O homem é livre! Quem está cansado, que se sente; quem estiver cansado de
estar sentado, passeie!... Quem for roubado, que se cale; quem for tosado, sofra
com resignação! E se o matarem, que se deixe cair!... Sempre é certo isto. Mas
eu cá hei de fazer sair o meu sobrinho da cadeia. Olá, se hei de!...
Estas expressões incisivas, parecidas com latidos, tornaram Pelagueia
perplexa. As últimas palavras do velho haviam até excitado nela uma tal ou qual
inveja.
Pela rua fora, ao vento gélido e à chuva, ia pensando no Vessovtchikov.
— Como ele está mudado!... Vejam aquilo!
E ao lembrar-se de Gadune, meditou com um sentimento quase de religiosa
piedade:
— Ao que parece, não sou só eu que ando nesta vida de promissão!
Depois, a imagem de seu filho acudiu-lhe ao espírito:
— Se ele consentisse, ao menos!... XXII
No domingo seguinte, ao despedir-se de Pavel, na secretaria da cadeia, sentiu
que ele lhe deixava na mão uma bolinha de papel, o que a fez estremecer de
alvoroço. Lançou ao filho olhar interrogador e suplicante, mas Pavel não lhe deu
resposta alguma. Nos olhos azuis do filho nada viu além do sorriso sereno e
decidido que conhecia bem.
— Adeus! — disse, suspirando.
De novo, Pavel, ao estender-lhe a mão, deu ao rosto carinhosa expressão.
— Adeus, mamã!
Reteve ainda a mão do filho, à espera.
— Não te inquietes... Não te zangues... — suplicou ele.
Estas palavras e o vinco de obstinação daquela fronte deram à mãe a resposta
esperada.
— Porque dizes isso? — murmurou, baixando a cabeça. — Que há nessas tuas
palavras?
E saiu rápida, sem o fitar para não trair com as lágrimas o seu estado de
espírito. Pelo caminho, chegava-lhe a parecer que lhe doía a mão em que trazia
o bilhete de seu filho; sentia o braço pesado como se lhe tivessem dado uma
pancada no ombro. E, ao entrar em casa, entregou a Nicolau a bolinha de papel.
Enquanto esperava que ele desdobrasse o papel, fortemente comprimido, ainda
teve um novo vislumbre de esperança. Mas Nicolau disse-lhe:
— Já o sabia! Aqui tem o que escreve:«Companheiros: não fugiremos; não
devemos fazê-lo; nenhum de nós se presta a isso. Perderíamos assim o respeito
por nós mesmos. Tratem antes do camponês ultimamente preso. Merece a vossa
solicitude. É digno das vossas diligências. Está sofrendo horrores, aqui. Todos os
dias tem desaguisados com as autoridades. Já passou vinte e quatro horas no
segredo. É torturado sem descanso. Todos nós intercederemos por ele. Consolem
minha mãe; tratem dela com carinho. Contem-lhe tudo isto; ela há de
compreender. Pavel.»
Pelagueia ergueu a cabeça e com voz firme:
— Contar-me, o quê? Já compreendi tudo!
Nicolau virou de súbito as costas, puxou pelo lenço e assoou-se com ruído.
Murmurou:
— Sempre apanhei um defluxo!...
Ocultou os olhos com a mão, sob pretexto de compor os óculos, e continuou,
passeando pelo quarto:
— Olhe, sabe que mais?... Assim como assim, havíamos de nos sair mal da
empresa!— Que importa! Pois que seja julgado! — disse a mãe de Pavel com o peito
a estalar de indefinida angústia.
— Recebi há pouco carta dum colega de São Petersburgo.
— Também da Sibéria se pode fugir, não é assim?
— Com certeza... O meu colega diz-me que o processo cedo será julgado. O
veredito já é conhecido: o degredo para todos. Ora veja a senhora: aqueles
patifes fazem da justiça uma comédia infame!... Está compreendendo? A
sentença é lavrada em São Petersburgo, antes mesmo da decisão do júri!
— Não pense mais nisso, Nicolau! — disse Pelagueia resoluta. — É inútil
pretender consolar-me ou explicar-me seja o que for!... O Pavel nunca há de
fazer nada que não seja bem feito! E não se há de apoquentar senão pelo que o
mereça!...
Aqui, deteve-se para tomar fôlego.
— Assim como também nunca apoquenta os outros... E ele estima-me!
Estima-me, sim! Não vê como se lembrou de mim? «Consolem-na», escreveu
ele, hã?
Batia-lhe forte o coração; a violência do seu sentir fazia-lhe um tanto andar a
cabeça à roda.
— Seu filho é uma bela alma! — exclamou Nicolau com voz singularmente
vibrante. — Estimo-o e venero-o profundamente!
— E se nós tratássemos do Ribine! — alvitrou ela.
O seu desejo era entrar imediatamente em ação, partir, caminhar até cair de
fadiga, para depois adormecer satisfeita com o seu dia de trabalho.
— Sim, com efeito! — respondeu Nicolau, prosseguindo no passeio pelo
quarto. — Que fazer neste caso?... Eu preciso que a Sachenka...
— Ela não tarda. Vem sempre que sabe que eu estive com o Pavel.
De cabeça baixa, meditativo, sentou-se Nicolau no canapé, ao lado dela.
Mordia os beiços e cofiava a barbicha.
— Que pena minha irmã não estar por aí!... Ela é que havia de tratar da fuga
do Ribine.
— Se fosse possível dar-lhe já fuga, enquanto o Pavel ainda aí está... Havia de
ficar tão contente! — disse ela.
Esteve um instante calada e, de repente, baixinho e com dolência:
— Não compreendo... Porque se recusa ele?... Uma vez que tem possibilidade
de o fazer?...
Ressoou forte campainhada. Nicolau levantou-se de chofre. Olharam um
para o outro.— É a Sachenka! — disse Nicolau com voz débil.
— Nem sei como lho hei de dizer! — exclamou ela no mesmo tom.
— É verdade... é difícil!
— Tenho pena dela!
A campainha vibrou outra vez, mas com menos força, como se a pessoa que
se encontrava para além da porta hesitasse também. Dirigiam-se os dois a abrir,
mas, chegados à cozinha, deteve-se Nicolau e segredou-lhe:
— É melhor ir a senhora só.
— Recusa-se a fugir? — perguntou a rapariga com decisão, tão depressa
Pelagueia lhe abriu a porta.
— Recusa!
— Bem o sabia! — disse Sachenka simplesmente.
Faz vento, chove... que abominável tempo!... E ele está bom?
— Está.
— Contente e de saúde... como sempre! — disse Sachenka a meia voz, ao
mesmo tempo que examinava uma das mãos.
— Manda-nos dizer que devemos dar fuga ao Ribine — anunciou a mãe de
Pavel, sem se atrever a fitá-la.
— Ah, sim? Pois é preciso levar esse plano a bom caminho! — respondeu a
rapariga com vagar.
— Sou da mesma opinião! — declarou Nicolau, aparecendo à porta. — Boa
noite, Sachenka!
Ela estendeu-lhe a mão e perguntou:
— E que obstáculo há? Todos reconhecem que o projeto é engenhoso, não é
assim? Eu sei que é este o parecer de todos.
— Mas quem há de encarregar-se de o organizar? Andam todos tão
ocupados!...
— Eu! — disse com vivacidade a rapariga, pondo-se de pé. — Eu tenho
tempo.
— Pois seja! Mas são precisos outros colaboradores...
— Bem, eu os encontrarei! Vou tratar disso imediatamente.
— Porque não descansa um pouco? — propôs Pelagueia.
Ela sorriu e respondeu, diligenciando dar meiguice à voz:
— Não se apoquente por minha causa... Não estou cansada...
Apertou as mãos a ambos, silenciosa, e foi-se como viera, fria e de semblante
carregado.Pelagueia e Nicolau foram à janela para a ver.
Atravessou o pátio e sumiu-se para além da grade. Nicolau pôs-se a assobiar
baixinho; em seguida, sentou-se à mesa e pegou na pena.
— Ela quer tratar deste negócio para distrair o seu desgosto! — disse
Pelagueia, baixo.
— É evidente! — confirmou Nicolau.
E, voltando-se para Pelagueia, com o rosto bondosamente iluminado de um
sorriso:
— Este fel é que os seus lábios não provaram, não é verdade?... Nunca andou
a suspirar por um homem amado!
— Que ideia! — exclamou ela, agitando negativamente a mão. — Eu, a
suspirar? O que eu tinha era medo de que me obrigassem a casar com um ou
com o outro.
— Ninguém lhe agradava então?...
Refletiu e depois respondeu:
— Não me lembro, meu amigo. É provável que houvesse um que me
agradasse mais do que os outros... E como não havia de ser assim?... Mas não me
lembro.
Fitou o seu interlocutor e resumiu com dolorosa melancolia:
— Fui tão maltratada pelo meu marido, que tudo o que se passou antes dele é
como se me tivesse apagado da lembrança.
E ausentou-se por um instante. Quando voltou, disse-lhe Nicolau com afetuoso
olhar, como para lhe suavizar as penosas recordações, com palavras repassadas
de ternura e amor:
— Quer saber? Também eu tive uma... história... parecida com a da
Sachenka. Amava uma menina, uma criatura deliciosa! Era ela a estrela da
minha vida... Há vinte anos que a conheço e a amo... porque a amo ainda hoje,
para dizer a verdade; amo-a tanto como sempre a amei... de toda a minha alma,
com gratidão!
Pelagueia via-lhe no olhar uma chama viva e apaixonada. Ele descansara a
cabeça nos braços apoiados ao espaldar da poltrona e olhava para longe, nem ele
mesmo sabia para onde. Todo o seu corpo magro e delgado, mas robusto,
parecia tender para um ponto fixo, tal a haste da planta virada para a luz do sol.
— Mas então, case-se! — aconselhou ela.
— Oh! Há cinco anos que está casada!
— Porque não casou com ela? Não o amava?
Teve um momento de reflexão e respondeu:— Creio que me amava... Tenho mesmo a certeza! Porém, veja a senhora!
Fomos sempre infelizes: quando ela estava em liberdade, era eu que estava
preso, e quando eu estava solto, era ela que estava na cadeia. Vivíamos na
mesma situação da Sachenka e do Pavel! Finalmente, mandaram-na por dez
anos para a Sibéria... Tão longe!... Eu quis segui-la... Mas tivemos ambos
vergonha, pelo nosso amor... E fiquei. No degredo, travou conhecimento com um
dos meus camaradas, excelente rapaz. Evadiram-se juntos... e agora vivem no
estrangeiro...
Tirou os óculos e limpou-os; depois, examinou as lentes contra a luz e entrou
de novo a esfregá-las.
— Ah, meu caro amigo! — disse afetuosamente Pelagueia, abanando a
cabeça.
Lastimava-o Pelagueia sinceramente, mas ao mesmo tempo, havia nele o
que quer que era que a forçara a sorrir, com bondoso e maternal sorriso. Nicolau
mudou logo de expressão, retomou a pena e batendo com ela, ao ritmo das
frases, declarou:
— Afinal, a vida de família diminui a energia do revolucionário; é certo,
diminui-a sempre! Vêm os filhos, o dinheiro rareia, é preciso trabalhar para
ganhar o pão... E o verdadeiro revolucionário deve desenvolver a sua energia
sem desfalecimentos. E é preciso ganhar tempo para isso! Se nos deixamos ficar
para trás, vencidos pelo cansaço, ou seduzidos pela possibilidade duma
conquistazinha amorosa, traímos a bem dizer, a causa do povo!
Falava com voz firme e, bem que o rosto se lhe conservasse pálido, mostrava
no olhar uma decisão sem transigências, inabalável.
De novo, violenta campainhada interrompeu as considerações de Nicolau.
Era Ludmila. Vinha com as faces muito vermelhas do frio. Enquanto tirava a
capa de borracha, anunciou em tom de irritação:
— Está marcado o dia do julgamento: é dentro duma semana!
— Tem a certeza? — gritou Nicolau do quarto, onde fora.
Pelagueia correra para ele sem saber se era contentamento ou receio o que a
impelia. Seguira-a Ludmila. Esta continuava, com a sua voz grave, repassada de
ironia:
— Tenho, sim! O procurador substituto Chostak já lavrou o libelo de acusação.
No tribunal, diz-se abertamente que o veredito já está pronunciado. Que
significará isto? O governo terá medo de que os magistrados tratem os seus
inimigos com excessiva benevolência? Depois de ter pervertido os seus
servidores com tanta perseverança e paciência, ainda não estará seguro do seu
servilismo?
E dito isto, sentou-se no canapé e pôs-se a esfregar as cavadas faces; despediado olhar sem brilho, infinito desprezo e a voz alteava-se-lhe cada vez mais irada.
— Não gaste a sua pólvora inutilmente, Ludmila! — aconselhou Nicolau. —
O governo não a ouve!
As olheiras que assombreavam o rosto da mulher cavaram-se mais,
cobrindo-lhe as feições duma névoa de ameaça. Mordendo os lábios, prosseguiu:
— Eu luto contra o governo. Que ele me mate, bem vai: está no seu direito,
pois que sou sua inimiga! Mas que não ande a corromper as criaturas para
defender o poder; que não me obrigue a votar-lhe profundo desprezo; que não
me envenene a alma com tal cinismo!
Nicolau, por detrás dos seus óculos, fitou-a muito, com um franzir de
pálpebras e sinais aprovativos.
A outra continuou a discorrer, como se aqueles a quem odiava estivessem na
sua presença. Pelagueia escutava atentamente aquelas frases, mas sem as
compreender. Maquinalmente, a si mesma repetia as mesmas palavras:
— O julgamento... dentro duma semana... O julgamento!...
Não podia conjeturar o que ia passar-se, nem como os juízes tratariam seu
filho. Mas sentia a iminência de alguma coisa implacável, cuja crueza e cuja
ferocidade deixavam de ser humanas.
Os pensamentos baralhavam-lhe o cérebro, velavam-lhe a vista dum vapor
azulado e mergulhavam-na no que quer que fosse frio, viscoso, que lhe causava
arrepios, náuseas e, que, infiltrando-se-lhe no sangue, lhe chegava ao coração e
sufocava nela todo o valor. XXIII
Dois dias passou neste nevoeiro de perplexidades e angústias. Ao terceiro,
veio Sachenka dizer a Nicolau:
— Está tudo pronto. É para hoje, à uma hora.
— Já?! — exclamou admirado.
— Não era coisa muito complicada! Bastava que arranjasse fato para o
Ribine e sítio para o esconder. Do resto encarregou-se o Gadune. O Ribine não
terá de andar mais que uns cem passos. O Vessovtchikov, disfarçado, está claro,
irá ao encontro dele, fornecer-lhe-á um casacão e um boné e dir-lhe à onde deve
ir. Eu espero o Ribine e guiá-lo-ei.
— Está muito bem... Quem é esse Gadune? — disse Nicolau.
— Deve conhecê-lo. É na loja dele que temos feito as leituras aos
serralheiros...
— Ah, já me lembro!... Um velhote esquisito...
— Sim; é um retelhador, por ofício; antigo soldado. De inteligência pouco
desenvolvida, nutre um ódio inesgotável contra todas as violências, contra toda a
opressão. É um tanto ou quanto filósofo, rematou Sachenka, pensativa, a olhar
pela janela.
Ouvia-se Pelagueia em silêncio. Pouco a pouco, ia amadurecendo nela uma
ideia vaga.
— O Gadune quer dar fuga ao sobrinho, o Evtchenko, aquele ferreiro de
quem tanto se agradavam todos pelo seu asseio e donaire, lembram-se?
Nicolau afirmou com um gesto.
— Pois tem tudo preparado na perfeição — continuou Sachenka; — mas
ainda assim, começo a duvidar do bom êxito... Os presos passeiam todos à
mesma hora. Quando virem a escada, há de haver logo muitos a quererem
fugir...
Fechou os olhos e calou-se por instantes. Pelagueia aproximara-se dela.
— E hão de estorvar-se uns aos outros.
Estavam agora os três junto da janela, Nicolau e Sachenka à frente, Pelagueia
mais atrás. A conversação rápida dos dois primeiros despertava cada vez mais
em Pelagueia um vago sentimento...
— Pois hei de lá ir! — anunciou de súbito.
— Para quê? — perguntou Sachenka.
E Nicolau aconselhou:
— Não, não, querida amiga! Podia acontecer-lhe alguma coisa. Não!
Ela fitou-os a ambos e repetiu, mais baixo, com insistência:— Sim, hei de ir!
Os dois trocaram rápido olhar. Sachenka encolheu os ombros e comentou:
— Compreende-se...
Depois, voltando-se para ela e tomando-lhe do braço, inclinando-se-lhe ao
ouvido, declarou com singeleza e cordialidade:
— Mas olhe que eu previno-a: nada tem a esperar...
— Minha querida! — exclamou a mãe de Pavel, puxando-a para si, a tremer,
— leve-me consigo!... Eu não a estorvo... É que eu queria ver... Não creio, não
julgo que seja possível... uma evasão!
— Há de vir connosco por força! — limitou-se a dizer a rapariga para
Nicolau.
— Isso é com vocês as duas! — respondeu ele, baixando a cabeça.
— Mas olhe que não podemos ficar juntas. Vossemecê tem de andar pelos
campos, pelos jardins. Veem-se de lá os muros da cadeia, muito bem... De outra
forma, arrisca-se a que lhe perguntem o que anda ali a fazer.
Com serenidade, Pelagueia exclamou:
— Sempre hei de achar uma resposta!
— Não se esqueça de que os vigias da cadeia conhecem-na! — lembrou
Sachenka. — Se a veem por ali...
— Não hão de ver-me! — respondeu ela.
E logo a seguir, a esperança que ela sempre acalentara sem mesmo dar por
tal, incendiou-se em viva chama que toda a animou:
— Quem sabe?... Talvez que ele também... — pensava, enquanto se vestia
apressadamente.
Uma hora depois, encontrava-se ela em meio duns campos, perto da prisão.
Soprava vento agreste, que lhe enfunava as saias, enrijecia o solo gelado, fazia
oscilar o tapume velho dum jardim, fustigava com violência o muro da cadeia e
penetrava no pátio interior, de onde a vozearia subia, arrastada para o
firmamento no seu irresistível sopro. Corriam velozes as nuvens, deixando por
vezes entrever a imensa profundidade do azul.
A cidade estendia-se por detrás de Pelagueia; e na sua frente, o cemitério. A
uns vinte passos para a direita, elevava-se a cadeia. Perto do cemitério, dois
soldados andavam a dar passeio a um cavalo. Caminhavam com pesado passo,
assobiavam e riam.
Obedecendo a instintivo impulso, acercou-se dos dois homens e gritou-lhes:
— Camaradas, viram a minha sobrinha? Não fugiu para aqui?
— Não, não vimos — respondeu-lhe um.Afastou-se devagar, passou-lhes adiante e dirigiu-se para o muro do
cemitério, olhando sempre de soslaio. De súbito, sentiu vergarem-se-lhe as
pernas e tornarem-se-lhe pesadas, como se o gelo lhas tivesse pregado ao solo: à
esquina da cadeia tinha aparecido um acendedor de candeeiros, corcovado sob
pequena escada, a correr, como todos eles costumam fazer. Toda a tremer de
susto, olhou Pelagueia para o lado dos soldados. Tinham ficado parados em certo
sítio; o cavalo brincava, pulando-lhes à roda. Viu depois que o homem já tinha
encostado a escada ao muro e por ela trepava sem pressa alguma. Viu-o fazer
um sinal com a mão, descer rápido, e sumir-se na esquina da cadeia. Pulsava
violentamente o coração de Pelagueia; os segundos decorriam com lentidão. A
escada mal era visível entre as grandes manchas da lama e da caliça
escalavrada, que deixava a descoberto os tijolos. Nisto, surgiu na crista do muro a
cabeça de Ribine, e logo o corpo apareceu, passou para o outro lado e deslizou.
Segunda cabeça coberta de boné de pelo surgiu; rolou para o chão uma
espécie de novelo preto que logo se sumiu na esquina do edifício. Ribine
aprumara-se e olhava em torno. Fez um sinal com a cabeça.
— Foge! Foge! — segredou Pelagueia, batendo o pé.
Tinha zumbidos nos ouvidos, parecia-lhe ouvir gritos, quando terceira cabeça,
esta loira, emergiu do espigão do muro. Comprimindo o peito às mãos ambas,
Pelagueia olhava, petrificada.
A cara loira e imberbe teve um impulso para cima, como para se separar do
corpo, e depois, desapareceu por detrás do muro. Os gritos de há pouco faziam-
se mais ruidosos e traduziam maior alvoroço; o vento levava-os pelo espaço, de
mistura com trilos agudos de apitos.
Ribine caminhou ao longo do muro e depois transpôs um terreno que separava
a prisão dos prédios da cidade. A Pelagueia afigurava-se que ele ia muito
devagar e de cabeça alta demais; com certeza as pessoas que com ele se
cruzavam não lhe esqueceriam as feições.
— Depressa!... Mais depressa! — murmurou ela.
No pátio da cadeia, houve qualquer coisa que se quebrou com ruído seco,
ouviu-se um tinido agudo de vidros partidos. Firmando os pés no chão com toda a
sua força, um dos soldados puxava pelo cavalo; o outro, de mão ao lado da boca,
gritava o que quer que fosse na direção do presídio, depois apurava o ouvido com
a cabeça inclinada nesse sentido.
Em crispações de incerteza, a mãe de Pavel olhava para tudo aquilo; os seus
olhos, que tudo haviam visto, em nada queriam crer. A evasão, que ela
imaginara coisa terrível e complicada, efetuara-se tão rápida e simplesmente,
que dela mal lhe restava consciência. Em baixo, na rua, já não se divisava
Ribine. Os únicos transeuntes eram agora um homem de elevada estatura,
vestido de comprido sobretudo, e uma rapariguinha. Apareceram três vigias àesquina.
Corriam, apertando-se uns contra os outros, com o braço direito estendido
para a frente. Um dos soldados precipitou-se ao encontro deles, o outro mal podia
acompanhar o cavalo, que, caprichoso e rebelde, tentava recomeçar o
brinquedo, esquivando-se e pulando. Pelagueia julgava ver tudo em volta dela
oscilar. Os apitos rasgavam a atmosfera em trilos incessantes e desesperados.
Compreendeu então o perigo que corria. Toda trémula, foi andando ao longo do
tapume do cemitério, sem perder de vista os guardas. Estes deitaram a correr
para a outra esquina da cadeia e desapareceram, assim como os soldados.
Logo depois viu o sub-diretor da prisão, que ela conhecia bem, tomar a
mesma direção. Trazia a farda desabotoada. Acudiam polícias; formava-se um
ajuntamento...
O vento soprava, deslocando-se em redemoinhos, como se quisesse mostrar-
se satisfeito; com ele chegavam aos ouvidos de Pelagueia fragmentos de
exclamações confusas:
— Ela ainda lá está!
— A escada?
— Vá para o diabo! Porque espera!...
De novo retiniram apitos estridentes. Todo este tumulto era do agrado de
Pelagueia. Apressou o passo, ao mesmo tempo que ia pensando:
— Logo, era possível!... E se ele quisesse, também o tinha podido fazer!
De repente, ao voltar uma esquina do tapume, embateu em dois guardas,
acompanhados dum polícia.
— Para! — gritou-lhe este, ofegante. — Não viste um homem de barba a
correr? Não veio para aqui?
Ela apontou para os campos e respondeu com todo o sangue frio:
— Vi, sim, senhor. Foi para ali!...
— Jegurov! — berrou o polícia. — Vá! Corre! Apita! E há muito tempo?
— Há de haver um minuto...
Mas teve a voz dominada pelo estridor do apito. Sem esperar a resposta, o
polícia desatou a correr por entre os montões de lama gelada, agitando as mãos
na direção dos jardins. De cabeça baixa e apito na boca, os outros precipitaram-
se-lhe nas peugadas.
Ficou um momento a segui-los com a vista e voltou para casa. Sem que um
pensamento particular predominasse nela, sentia, não obstante, o pesar por
alguma coisa; havia no seu coração amargura e despeito. Ao chegar próximo da
cidade, fê-la parar um trem que ia passando. Ergueu a cabeça e viu na
carruagem um rapaz de bigode loiro, rosto pálido e que revelava cansaço. Elefitou-a também. Ia sentado de esguelha; era talvez por isso que parecia ter o
ombro direito mais alto que o esquerdo.
Nicolau recebeu Pelagueia com um suspiro de alívio.
— Chegou sã e salva? Então como se passou isso?
— Parece que conseguiram o que queriam.
E diligenciando rememorar os mais insignificantes pormenores, contou o que
tinha visto, como se estivesse a repetir inverosímil história.
— Ora veja que temos sorte! — disse Nicolau, esfregando as mãos. — Mas
que susto em que estive por sua causa! Nem pode imaginar! Nada receei com
respeito ao julgamento. Quanto mais cedo for, tanto mais breve chegará o dia da
libertação do seu Pavel, creia! Talvez até possa evadir-se quando for a caminho
da Sibéria... Quanto ao julgamento, aqui tem pouco mais ou menos o que é.
Entrou a descrever-lhe o tribunal. A mãe de Pavel escutava-o, mas pressentia
que ele receava alguma coisa e diligenciava tranquilizá-la.
— Está imaginando talvez que eu quero dirigir-me aos juízes, entregar-lhes
algum memorial! — disse ela.
Nicolau levantou-se bruscamente, agitou a mão e exclamou em tom de
melindre:
— Que está dizendo? Nunca pensei nisso!
— Tenho medo, isso é certo! Tenho medo e não sei de quê!
Calou-se. O olhar vagueava-lhe pelo aposento, ao acaso.
— Em certas ocasiões, quer-me parecer que hão de mofá-lo, que hão de
injuriá-lo e dizer-lhe: «Oh, campónio, filho de campónio! Que descoberta foi
essa agora?» E o Pavel é orgulhoso; há de querer responder-lhes... Ou então é o
André que vai para lá zombar deles. São todos tão entusiastas, tão francos e leais,
os nossos!... É por isso que eu digo comigo mesmo: «Se acontecesse alguma
coisa, se um deles perdesse a paciência, os outros haviam de apoiá-lo e lá os
tínhamos todos condenados... por maneira que nunca mais aparecessem!»
Nicolau, sombrio, atormentando a barba, permanecia silencioso.
— Não posso expulsar tais ideias desta cabeça! Continuou ela mais baixo. É
terrível, uma audiência! Vão para ali pôr-se a examinar tudo, a avaliar tudo... a
procurar onde está a verdade! É deveras um horror!... Não é o castigo que
amedronta, é o julgamento... a avaliação da verdade... Não sei como hei de
dizer...
Sentia que Nicolau não compreendia o seu terror, e isto ainda mais a
embrulhava na demonstração. XXIV
Este terror de Pelagueia não fez senão aumentar durante os três dias que a
separavam da audiência e, quando esta chegou finalmente, levava ela sobre si,
para o tribunal, um fardo que toda a avergava.
Cá fora, reconheceu vários dos seus antigos vizinhos do arrabalde, inclinou-se
em silêncio para corresponder aos seus cumprimentos e abriu à pressa caminho
por entre a multidão tristonha. Nos corredores e depois, na sala, topou com as
famílias dos seus. Falava-se abafando a voz; trocavam-se frases que ela não
compreendia. Daquela turba brotava pungente sentimento que se comunicava a
Pelagueia e a oprimia ainda mais.
— Senta-te! — convidou Sizov, arranjando-lhe lugar no banco, a seu lado.
Obedeceu, compôs as dobras do vestido e olhou em torno. Divisava
vagamente umas faixas verdes e encarnadas, umas manchas, uns fios amarelos
e delgados, que brilhavam.
— Foi o teu filho que levou o meu à perdição! — murmurou uma mulher que
lhe ficava perto.
— Cala-te daí, Natália! — interrompeu Sizov com o semblante carregado.
Pelagueia ergueu a vista para aquela mulher: era a mãe de Samoilov. Um
pouco mais adiante, estava o pai, calvo, de belo rosto ornado de espessa barba
ruiva talhada em leque. Semicerrava as pálpebras e olhava direito para diante de
si, com um estremecimento involuntário de vez em quando.
Pelas altas janelas entrava uma claridade uniforme e turva; escorregavam
flocos de neve pelas vidraças. Entre as janelas, havia um imenso retrato do czar
em grossa moldura doirada, e com reflexos oleosos na pintura; e a um e outro
lado do quadro, ocultavam a parede as pregas hirtas dos pesadíssimos reposteiros
que revestiam as janelas. Frente ao retrato, uma mesa coberta de pano verde,
ocupava quase toda a largura da sala; à direita, por detrás duma espécie de
gelosia gradeada, dois bancos de pau; à esquerda, duas filas de poltronas forradas
de vermelho. Os oficiais de diligências, de golas verdes e botões doirados iam e
vinham pela sala, nos bicos dos pés.
Na atmosfera, de equívoca pureza, perpassavam ruídos de vozes,
cochichando baixinho; pairava, vindo ninguém saberia de onde, um vago cheiro
de farmácia. Todas aquelas cores vivas e aquelas cintilações ofuscavam a vista;
penetravam no peito os odores do ambiente de envolta com a respiração; o
espírito sentia-se submerso numa espécie de temor inexprimível.
De súbito, alguém começou a falar em voz alta. Toda a assistência se pôs de
pé. Pelagueia teve um sobressalto e ergueu-se também, agarrada ao braço de
Sizov.
No canto esquerdo da sala, tinha-se aberto uma porta alta, dando passagem aum velhinho de óculos, muito alcachinado e de andar incerto. Umas escassas
suíças tremiam-lhe dos lados da carinha de cor terrosa, o lábio superior,
barbeado, quase se lhe sumia na cavidade da boca. As maçãs do rosto e o queixo
comprimiam-se-lhe sobre a altíssima gola da farda, dando a julgar que por baixo
nada existia de pescoço. O velho caminhava sustido por um rapaz alto, de cara de
porcelana, muito redonda e rosada. Atrás deles, vinham três personagens
revestidos de uniformes recamados de bordados e mais três sujeitos à paisana.
Por muito tempo, estiveram a deliberar entre si, em volta da mesa; depois,
sentaram-se. Logo que todos tomaram os seus lugares, um deles, rosto imberbe e
com a farda desabotoada, entrou a falar ao velho, com uns modos de indiferente
indolência e movendo com custo os beiços entumecidos. O velho ia-o escutando.
Conservava-se hirto e imóvel, e Pelagueia distinguia-lhe duas manchazinhas
esbranquiçadas por detrás dos vidros dos óculos.
Junto de estreita secretária, na extremidade da mesa, um homem alto e calvo
folheava papéis, com uma tossinha seca.
O velho fez um movimento para diante e começou a falar. A primeira
palavra pronunciou-a ele distintamente, mas as outras parecia que se sumiam ao
sair-lhe dos lábios delgados e sem cor.
— Declaro...
— Olha! — segredou Sizov à sua vizinha com uma leve cotovelada. E pôs-se
de pé.
Por detrás do gradeamento abrira-se uma porta que dera passagem a um
soldado de espada desembainhada, ao ombro, e logo depois a Pavel, André,
Fédia Mazine, os irmãos Gussev, Bukine, Samoilov e mais cinco rapazes
desconhecidos de Pelagueia. Pavel vinha a sorrir; André cumprimentou
Pelagueia com um aceno de cabeça.
Aqueles rostos, aqueles sorrisos e gestos de animação fizeram parecer menos
frio o silêncio e tornaram a sala mais luminosa; suavizaram-se os reflexos
opulentos de oiro dos uniformes; um alento de confiança, uma aragem de força
viril penetraram o coração da mãe de Pavel, arrancando-a ao seu torpor. Por
detrás dela, pelas bancadas onde até ali a turba se conservava acabrunhada, à
espera, murmúrios surdos e reprimidos iam respondendo às saudações dos réus.
— E é que não têm medo! — ouviu ela Sizov segredar-lhe, ao passo que à sua
direita a mãe de Samoilov se desatava em soluços.
— Silêncio! — gritou uma voz severa.
— Tenho a preveni-los... — disse o velho.
Pavel e André tinham ficado lado a lado; a seguir, estavam Mazine, Samoilov
e os irmãos Gussev, todos na primeira bancada. André cortara a barba; mas o
bigode crescera-lhe tanto, que as guias pendiam e reuniam-se, assemelhando-lhea redonda cabeça à dum gato. Trazia impressa na fisionomia uma expressão
nova: nos vincos aos cantos da boca, havia alguma coisa penetrante, irónica, e o
olhar tornara-se-lhe sombrio. Mazine tinha agora o lábio superior sombreado por
dois traços escuros, e o seu rosto engordara; o Samoilov tinha os mesmos cabelos,
tão encaracolados como dantes.
O Ivan Gussev continuava a mostrar o mesmo amplo sorriso.
— Fédia! Fédia! — suspirou Sizov, baixando a cabeça.
Pelagueia respirava agora melhor. Apurava como podia, o ouvido às
perguntas indistintas do velho, o qual interrogava os réus sem olhar para eles,
com a cabeça entalada entre a gola da farda. Escutava as respostas breves e
calmas que seu filho ia dando. Queria-lhe parecer que aquele presidente e
aqueles juízes não podiam ser más e cruéis pessoas. Examinava-lhes
pormenorizadamente as fisionomias, tentando perscrutar-lhes os sentimentos, e
assomava-lhe ao coração uma nova alvorada de esperança.
Indiferente, o homem da cara de porcelana estava lendo um documento; a
sua voz circunspecta enchia a sala dum tédio que causava sonolências no público.
Em voz baixa e animadamente, quatro advogados conversavam com os réus;
tinham todos uma gesticulação sacudida e veemente e faziam pensar em grandes
passarolos negros.
À direita do velho, um juiz ventrudo, de olhinhos sumidos entre as papadas da
gordura, enchia completamente toda a capacidade da poltrona; à esquerda,
estava um homem alquebrado, de bigode vermelho, de rosto esmaecido.
Reclinava com lassidão a cabeça no espaldar, de pálpebras semicerradas,
meditando. O procurador também aparentava cansaço, enfado e indiferença.
Por detrás dos juízes, ocupavam poltronas vários indivíduos: um robusto e esbelto
homem estava acariciando uma das faces, com ares de grande concentração; o
marechal da nobreza, já grisalho, de rosto rubicundo e comprida barba, divagava
o olhar dos seus grandes olhos simplórios; o síndico do bailiado, a quem o enorme
abdómen visivelmente incomodava, diligenciava disfarçá-lo sob uma aba da
blusa, que escorregava de contínuo.
— Aqui não há criminosos nem juízes! — proclamou Pavel com voz firme.
— Aqui só há cativos e vencedores!
Fez-se silêncio. Durante alguns segundos, o ouvido de Pelagueia nada
distinguiu além do ranger precipitado e estridente das penas sobre o papel e das
palpitações do seu próprio coração.
O presidente do tribunal parecia que estava escutando ou esperando alguma
coisa. Os juízes seus colegas agitaram-se nas poltronas. Ele então disse:
— Sim!... André Nakodka!... Reconhece...
Ouviram-se vozes segredar:— Levanta-te!... Levante-se!
André pôs-se de pé com lentidão e ficou a olhar para o velho, de soslaio,
enquanto frisava e desfrisava o bigode.
— De que posso eu reconhecer-me culpado? — disse, com um encolher de
ombros, o pequeno-russo, na sua voz cantante e arrastada. — Eu não matei, nem
roubei: simplesmente protesto contra esta organização da sociedade, que obriga
os homens a explorarem-se e a assassinarem-se uns aos outros.
— Limite-se a responder sim ou não! — disse o velho com esforço mas
percetivelmente.
Pelagueia sentia que por detrás dela sussurrava certa agitação; todos falavam
baixinho e mexiam-se muito nas bancadas, como para desanuviarem os espíritos
da teia de aranha tecida pelo discurso enfadonho do homem de porcelana.
— Vês como eles respondem? — segredou Sizov para a mãe de Pavel.
— Sim!
— Fédia Mazine, responda!
— Não quero! — declarou Fédia perentoriamente, pondo-se de pé.
Estava muito corado pela comoção e com os olhos brilhantes. Sizov soltou um
«Ah!» de mal contido espanto.
— Não quis defensor, portanto nada direi. Considero o julgamento deste
tribunal como ilegítimo!... Quem são os senhores? Foi o povo quem lhes deu o
direito de julgar-nos? Não, não foi o povo! Logo, não os conheço!
Tornou a sentar-se e ocultou o rosto rubro, por detrás do ombro de André.
O juiz gordo curvou-se para o presidente, cochichando. O juiz de rosto
esmaecido lançou uma olhadela oblíqua para os réus e, com o lápis, passou um
traço por cima do que quer que fosse, escrito no papel que tinha em frente. O
síndico do bailiado abanou a cabeça e removeu os pés do sítio em que os tinha,
com precaução. O marechal da nobreza conversava com o procurador; o
administrador da comuna prestava atento ouvido ao que diziam e sorria,
esfregando sempre uma das faces.
De novo se ouviu a voz triste e sumida do presidente.
Os quatro advogados escutavam atentos; os réus conversavam em segredo
uns com os outros; Fédia continuava a ocultar-se às vistas, sorrindo, muito
comprometido.
— Então, não viste aquilo?... Falou melhor que todos os outros! — murmurou
Sizov ao ouvido da sua vizinha. — Ah, aquele brejeiro!
Pelagueia sorriu sem o compreender. Tudo o que se estava passando não era
para ela mais do que o prologo inútil e forçado de alguma coisa terrível, que, ao
surgir, havia de esmagar todo o auditório sob gélido terror. Contudo, as calmasrespostas de Pavel e André manifestavam tanta firmeza e decisão, como se as
tivessem pronunciado na modesta casinha do arrabalde e não perante juízes. A
réplica entusiasta e juvenil de Fédia tinha-a divertido imenso. Pairava na sala
uma atmosfera de audácia e de mocidade, e, pela agitação de todo o auditório,
Pelagueia sentia que não era ela só que lhe sentia os eflúvios.
— A sua opinião? — perguntou o velho.
O procurador calvo ergueu-se com a mão apoiada na carteira e discursou
com verbosidade, citando números. Nada havia naquela voz que infundisse
terror. No entanto, ao ouvi-lo, Pelagueia sentiu logo como uma punhalada no
coração: era um vago pressentimento de alguma coisa hostil e que se lhe
afigurava ir desenvolvendo-se lentamente em uma forma indefinível.
Examinava também os juízes, mas não os compreendia: ao contrário do que ela
esperava, não os via zangar-se com Pavel e Fédia, nem proferir palavras
injuriosas contra os réus; queria-lhe parecer que todas as perguntas que faziam
não tinham para eles importância alguma; dir-se-ia que era de má vontade que
as formulavam e que lhes custava esperar as respostas; nada os interessava tudo
sabiam já de antemão.
Agora estava um polícia postado na frente deles e falava com uma voz de
baixo profundo.
— Toda a gente apontava Pavel Vlassov como o principal cabeça de motim.
— E André Nakodka? — perguntou com indolência o júri gordo.
— Esse também.
Levantou se um dos advogados e disse:
— Dá-me licença?...
O velho perguntou a alguém:
— Não tem objeção a apresentar?
Pelagueia chegava a julgar que os juízes se achavam todos doentes. Traduzia-
se um cansaço mórbido na menor das suas atitudes, nas vozes e nas fisionomias.
Via-se que tudo os enjoava: os uniformes, a sala, os polícias, os advogados, a
obrigação de estarem ali sentados naquelas poltronas, de interrogarem e de
ouvirem. Raras vezes Pelagueia se encontrara na presença de gente de posição
elevada e havia alguns anos que nem sequer a tinha visto, e assim, as feições dos
juízes eram para ela como uma coisa inteiramente desconhecida,
incompreensível, mas mais compassiva do que severa.
Estava agora a falar o oficial de cara amarelada que ela conhecia bem;
referia-se a André e a Pavel, arrastando muito as palavras, enfaticamente. E
enquanto o ouvia, Pelagueia comentava consigo mesma:
— Não sabes nada disto, meu pateta!Deixara de sentir compaixão ou receio pelos que se sentavam por detrás do
gradeamento; não temia pela sua sorte, e achava que lhes era inútil a sua
piedade, mas todos eles lhe inspiravam admiração e um sentimento de amor que
lhe acalentava docemente o coração.
Jovens e robustos como eram, estavam sentados à parte, junto da parede e
quase nem intervinham na conversação monótona entre testemunhas e juízes,
nas discussões dos advogados e do procurador. De vez em quando, um deles tinha
um sorriso de desprezo e dizia baixo algumas palavras aos seus companheiros.
André e Pavel, esses, falavam quase continuadamente com um dos defensores, a
quem Pelagueia conhecia de o ter visto na véspera em casa de Nicolau e que por
este era tratado de «camarada». Mazine, mais animado e irrequieto que os
outros, prestava atento ouvido a esta conversa. De vez em quando, Samoilov
segredava meia dúzia de palavras ao ouvido de Ivan Gusev. E Pelagueia, olhando
para tudo, comparava, refletia, sem que pudesse compreender aquela sensação
de hostilidade que a invadia, nem achar termos para exprimi-la.
Sizov chamou-lhe a atenção com ligeira cotovelada; virou-se para ele: estava
com uns ares ao mesmo tempo satisfeitos e um tanto preocupados. Segredava:
— Olha para a presença de espírito com que eles estão, aqueles garotos, hã?
Parecem verdadeiros fidalgos, não é verdade? E no entretanto estão a ser
julgados... para os ensinar a não se meterem no que não é da sua conta.
Ela repetiu involuntariamente a si mesma:
— Estão sendo julgados...
Na sala, depunham testemunhas, com vozes incaraterísticas e atabalhoadas;
os juízes iam sempre interrogando, indiferentes e mal humorados. O juiz gordo
bocejava, dissimulando a boca sob a mão inchada de cieiro; o seu colega dos
bigodes ruivos tornara-se ainda mais lívido; por vezes, erguia o braço, premia
fortemente uma das fontes com um dedo, e ficava-se a fitar o teto com o olhar
morto.
De vez em quando, escrevia o procurador algumas linhas a lápis e depois
recomeçava a cochichar com o marechal da nobreza. O administrador cruzara
as pernas e tamborilava numa delas, com o olhar fixado com gravidade no
movimento dos dedos.
Com o ventre descansando-lhe nos joelhos e sustentando-o prudentemente
entre as duas mãos, o síndico do bailiado quedara-se de cabeça pendida; parecia
ser ele o único a escutar o murmúrio monótono das vozes, além do velho,
enterrado na poltrona e imóvel como um catavento quando não sopra a brisa.
Durou isto muito tempo e de novo o aborrecimento se apoderava do auditório.
Pelagueia sentia que a justiça, a justiça implacável que põe friamente as
almas a descoberto, que as examina, que tudo vê e tudo aprecia com os olhosincorruptíveis e tudo pesa com mão leal, não tinha ainda dado entrada naquela
sala. Nada via por enquanto que a amedrontasse com uma manifestação de
força ou de majestade. Rostos descoloridos, olhos sem brilho, vozes fatigadas, o
indiferentismo tristonho duma tarde de outono, eis tudo o que presenciava.
— Declaro... — disse o velho com clareza; e em seguida, depois de ter
abafado o resto da frase entre os delgados lábios, ergueu-se.
Logo a sala se encheu de rumores, suspiros, exclamações sufocadas, acessos
de tosse e arrastar de pés. Os réus foram conduzidos para fora do pretório; ao
saírem, faziam sinais com a cabeça e sorriam-se para parentes e amigos. Ivan
Gussev chegou mesmo a gritar com afabilidade para quem quer que fosse:
— Não te deixes intimidar, camarada!
Pelagueia e Sizov saíram para o corredor.
— Queres vir ao bufete, tomar chá? — perguntou solícito o velho operário. —
Temos hora e meia para esperar.
— Não, obrigada.
— Bem, então também eu não vou. Viste os rapazes, hã? Falam como se eles
fossem os verdadeiros homens e os outros coisa nenhuma! Ouviste o Fédia, hã?
De boné na mão, vinha chegando neste momento o pai de Samoilov. Com um
sorriso triste, perguntou:
— Que dizem do meu filho? Não quis advogado e recusa-se a responder... Foi
ele que teve a ideia.
O teu filho era pelos advogados, Pelagueia; o meu disse que não os queria. E
houve quatro que lhe seguiram o exemplo.
A mulher esteve ao lado dele. Piscava de contínuo os olhos e limpava o nariz
com a ponta do lenço. Samoilov reuniu na mão toda a barba, num punhado, e
continuou:
— Outra coisa que me dá que pensar: quando a gente olha para aqueles
demónios, parece que eles fizeram tudo aquilo inutilmente, que comprometeram
a sua vida sem necessidade e, de repente, fica-se a cismar se eles não terão
razão...
E é bom não esquecer que lá na fábrica, o partido deles aumenta
continuadamente. De vez em quando, prendem-nos; mas nunca os apanham a
todos, assim como nunca se apanham os peixes todos dum rio! E a gente fica
sempre a perguntar com os seus botões: «Quem sabe se eles dizem a verdade!»
— Para nós, é difícil compreender esta questão! — declarou Sizov.
— Sim, é certo! — aquiesceu o outro.
A mulher interveio então, depois de ter respirado com ruído:
— Parece que estão todos de perfeita saúde, estes malditos juízes!...E continuou, com um sorriso no seu rosto emurchecido:
— Não estejas zangada, Pelagueia, por eu te dizer há bocado que o Pavel era
o culpado de tudo!... Para falar com franqueza, nem a gente sabe qual é o mais
culpado! Ouviste o que os espiões e os polícias contaram do nosso filho?...
Claramente se via que tinha orgulho daquele filho, embora ela própria talvez
nem desse por isso; mas Pelagueia, que avaliava bem tal sentimento, abriu-se em
bondoso sorriso.
— Os corações moços andam sempre mais próximos da verdade do que os
velhos! — disse ela em voz baixa.
Passeava-se pelo corredor; formavam-se grupos em que se discutia
concentradamente, todos pensativos e animados. Ninguém se conservava
afastado, toda a gente sentia a necessidade de falar, de interrogar e de escutar o
que se dizia. No estreito recinto da passagem, entre as duas paredes brancas, os
grupos iam e vinham, como se, impelidos por violenta rajada, procurassem apoio
nalguma coisa firme e segura.
O irmão mais velho de Bukine, um grande latagão de cara envelhecida
prematuramente, gesticulava, virando-se com vivacidade para todos os lados.
Protestava ele:
— O síndico do bailiado nada tem a ver para o caso; não está aqui no seu
lugar!
— Cala-te, Constantino! — exortava o pai, um velhinho, sempre a olhar em
volta, assustado.
— Não, senhor, eu quero falar! Dizem que o ano passado matou um
empregado... por causa da mulher deste! Ora que espécie de juiz vem a ser
aquilo, fazem favor de me dizer? A viúva do empregado vive agora com ele!...
Que havemos de concluir?... Além disso, toda a gente sabe que é ladrão...
— Ai, meu Deus!... Constantino!...
— Tens razão, sim senhor! — apoiou Samoilov. — Tens razão! Não é um juiz
sério!...
Bukine, que tudo ouvira, aproximou-se rápido, levando atrás de si numeroso
grupo. Muito vermelho, de excitado, entrou de falar, com grandes gestos:
— Quando se trata de assassinatos ou de roubos, são os jurados que julgam,
quer dizer: a gente habitual, trabalhadores, burgueses... Agora, quando se trata
dos que são contra o governo, quem os julga é o próprio governo!... Isto pode
ser?...
— Constantino!
— Mas escuta, estão eles realmente contra o governo? Vê lá, que dizes?
Não, espera! O Fédia Mazine tem razão. Se tu me ofenderes e eu te der umabofetada e se tu tiveres de me julgar, com certeza é a mim que chamarás
culpado; e contudo, quem insultou? Tu! Tu!
Um guarda já idoso, de nariz adunco e peito ornado de medalhas, atravessou
por entre o ajuntamento e foi dizer a Bukine, ameaçando-o com o dedo:
— Olá! Não grites! Onde imaginas que estás? É alguma taberna, aqui?
— Queira perdoar, cavalheiro... Eu percebo bem. Ora escutem: se eu bater
em alguém e esse alguém me retribuir as pancadas e se eu tiver de julgá-lo
depois, como é que podem imaginar...
— Olha que te faço sair! — disse o guarda severamente.
— Sair? Para onde? Porquê?
— Para a rua! Que é para não berrares!
Bukine circunvagou o olhar pelo auditório e comentou a meia voz:
— Para eles, o essencial é que estejamos calados.
— Ainda não o sabias? — replicou o velho com rudeza.
O outro baixou a voz.
— E depois, porque é que o público não pode assistir às audiências, mas tão
somente os parentes?
— Se há justiça nos julgamentos, é para serem presenciados por todos! De
que têm medo?
E Samoilov apoiou, mas com mais veemência:
— Isso é verdade! Estes tribunais não satisfazem a consciência pública.
Pelagueia desejava também repetir o que Nicolau lhe dissera acerca da
ilegalidade do julgamento; mas não o havia compreendido bem e esquecera em
parte as expressões empregadas por Nicolau. Para tentar rememorá-las, afastou-
se da multidão e viu um rapaz de bigode loiro a observá-la. Trazia a mão direita
metida na algibeira das calças, o que fazia com que parecesse ter o ombro
esquerdo mais baixo do que outro. Esta particularidade lembrou-se Pelagueia que
já era sua conhecida.
Mas o homem virou-lhe as costas e, cansada do seu esforço de memória,
Pelagueia logo se esqueceu dele.
Instantes depois, distinguia um fragmento de conversa em segredo:
— Aquela? À esquerda?
E alguém respondeu mais alto, com expansão:
— Essa mesma.
Olhou. O homem dos ombros de desigual altura estava ao lado dela e
conversava com o seu vizinho, um homem corpulento de barba preta, com umas
enormes botas e casaco curto.Estremeceu. Ao mesmo tempo, sentia o desejo de falar nas crenças de seu
filho, para ouvir as objeções que lhe pudessem apresentar e calcular a decisão do
tribunal pelas opiniões dos que a rodeavam.
— É isto por ventura forma de julgar? — começou ela a meia voz,
prudentemente, dirigindo-se a Sizov. — Não compreendo isto. Os juízes só tratam
de averiguar o que fez cada um deles, mas não perguntam porque o fez. Será isto
justo? Diga lá! E são todos eles velhos! Para julgar gente nova são precisos
homens novos!
— Sim! — disse Sizov. — Torna-se-nos difícil compreender todo este
negócio... muito difícil!
E abanava a cabeça, pensativo.
Nisto, o guarda abriu a porta da sala e gritou:
— Entrem os parentes! Mostrem os seus bilhetes.
Uma voz de mau humor comentou:
— Os bilhetes... como no circo!...
Sentia-se agora uma irritação geral e mal contida, uma cólera vaga. Os
curiosos manifestavam maior sem-cerimónia do que pouco antes, faziam
barulho, discutiam com os guardas. XXV
Sizov retomou o seu lugar resmungando.
— Que tens? — perguntou lhe Pelagueia.
— Não tenho nada! O povo é estúpido... Não sabe nada, vive às apalpadelas.
Ressoou uma campainhada. Alguém anunciou com indiferença:
— O tribunal!
Todos se puseram novamente de pé, como da primeira vez. Os juízes
entraram pela mesma ordem e sentaram-se. Foram introduzidos os acusados.
— Atenção agora! — segredou Sizov. — Vai falar o procurador.
Pelagueia estendeu o pescoço e toda se inclinou para a frente, imobilizada na
expetativa do terrível acontecimento iminente.
De pé, virando a cabeça para o lado dos juízes, o procurador soltara um
suspiro e entrara a falar, agitando a mão direita. Pelagueia não percebeu as suas
primeiras palavras. A voz do orador era fácil e grossa, mas, tão depressa lhe
afluía com rapidez, como afrouxava. As palavras iam-se seguindo primeiro
como em larga fita uniforme, depois, voavam, remoinhavam, tal um enxame de
negras moscas sobre um torrão de açúcar. Mas nessas palavras não via
Pelagueia coisa alguma ameaçadora ou terrificante. Frias como neve, indecisas
como cinza, iam-se sucedendo e enchiam a sala de aborrecimento, de alguma
coisa horripilante como uma poeira fina e seca. O discurso, abundante em
palavras e falho de ideias, não chegava provavelmente aos ouvidos de Pavel e
dos seus companheiros, os quais, sem mostrarem a menor preocupação,
continuavam sossegadamente a conversar entre si. Umas vezes, sorriam, outras,
faziam-se muito sérios para conterem o sorriso.
— Está mentindo! — declarou Sizov baixinho.
Pelagueia não saberia dizer ao certo se assim era.
Escutava o que ele dizia e compreendia que estava acusando toda a gente,
sem se referir diretamente a ninguém. Quando citava o nome de Pavel, punha-se
a falar de Fédia; em seguida, depois de ter reunido estes, juntava-lhes Bukine.
Dir-se-ia que metia todos os acusados no mesmo saco, apertados uns contra os
outros. Mas o sentido externo das suas palavras não satisfazia Pelagueia, como
também não a perturbava nem mesmo impressionava. Contudo, continuava
esperando o pormenor terrível, e procurava-o obstinadamente sob aquele fluxo
de palavras, no rosto do procurador, nos olhos, na voz, na mão muito branca que
ele balanceava com lentidão. E sentia que estava ali, naquele homem, a coisa
assustadora, indefinível e incompreensível. De novo se lhe confrangeu o coração.
Olhou para os jurados: o discurso estava-os claramente enfadando. Os seus
rostos macilentos, terrosos, inanimados, não aparentavam expressão alguma;
eram quais manchas cadavéricas e imóveis. E aquelas faces, umas de nutriçãoenfermiça, outras, demasiado magras, sumiam-se cada vez mais em meio do
cansaço que invadia a sala. O presidente não fazia um só movimento, estático e
hirto; por vezes, as manchazinhas pardacentas que lhe apareciam por detrás dos
vidros dos óculos, sumiam-se-lhe na palidez do rosto. Perante esta indiferença
glacial, esta frieza tíbia, Pelagueia a si própria perguntava com desassossego:
— Estarão eles verdadeiramente a julgar?
De repente, como de improviso, terminou o procurador o seu libelo. O
magistrado inclinou-se perante os juízes, a esfregar as mãos. O marechal da
nobreza fez-lhe com a cabeça um sinal, ao mesmo tempo que rebolava as
pupilas. O administrador da comuna estendeu-lhe a mão e o síndico contemplou
o seu abdómen, risonho.
Mas via-se que os juízes não haviam ficado satisfeitos com o procurador: não
tinham feito um só movimento.
— Cão tinhoso! — resmungou Sizov.
— Tem a palavra... — disse o velhinho, erguendo um papel até junto do rosto.
— Tem a palavra o defensor de... Fedossiev, Markov, Zagarov.
Levantou-se então o advogado que Pelagueia vira em casa de Nicolau. Tinha
uma cara cheia e aspeto bonacheirão; os olhinhos irradiavam, parecia ter nas
orbitas dois pontos acerados, a cortarem no ar qualquer coisa, como lâminas de
tesoura. Entrou a falar sem pressa, em voz nítida e sonora; mas Pelagueia não
pôde escutar o que dizia. Sizov segredava-lhe de lado:
— Percebeste o que ele disse? Diz que são uns doidos, uns garotos de génio
brigão. É do Fédia que ele quer falar!
Acabrunhada pela sua cruel deceção, Pelagueia não respondeu.
Sentia-se mais e mais humilhada, e esta humilhação oprimia-lhe a alma.
Compreendia agora porque esperava em vão a justiça, porque se enganara
pensando assistir a uma discussão leal e séria entre a verdade que seu filho
proclamava e a dos juízes.
Imaginara que os juízes iam interrogar Pavel, demoradamente e com
atenção, sobre a sua vida; que examinariam com olhos perspicazes todas as
ideias, todos os atos de seu filho, e o emprego de todos os seus dias, e que,
reconhecendo a sua hombridade, haviam de declarar convictamente: «Este
homem tem razão.»
Mas nada disso sucedia. Era para crer que os acusados e os juízes estivessem
a cem léguas uns dos outros e ignorassem mutuamente as suas existências.
Fatigada pela tensão da expetativa, Pelagueia deixara de acompanhar o debate.
Pensava de si para consigo, melindrada:
— É então assim que se julga? O julgamento...
E pareceu-lhe vazia e sem sentido esta palavra; soava como um vaso debarro, quebrado.
— É bem feito! — murmurou Sizov, aprovando com a cabeça.
— Parece que estão mortos, aqueles juízes! — disse ela.
— Eles já voltam a si!
E com efeito, tornando a olhar para eles, viu-lhes nos rostos uma expressão de
desassossego. Era outro advogado que falava, um homenzinho de cara de fuinha,
lívido e irónico. Os juízes interromperam-no logo.
O procurador levantou-se de chofre e em voz rápida e zangada, ameaçou-o
com uma autuação; depois, conferenciou com o velhinho. O advogado ficou-os
escutando, com a cabeça respeitosamente inclinada; em seguida, prosseguiu no
uso da palavra.
— Vai catando! Vai catando! — aconselhou Sizov. — Vê se descobres onde
está a alma!...
Na sala crescia a animação; começava a nascer uma exaltação batalhadora.
O advogado atacava os juízes por todas as formas, aguilhoava-lhes as
carcomidas epidermes com ditos cáusticos. Os juízes parecia apertarem-se mais
uns contra os outros, incharem e fazerem-se mais corpulentos, para resistirem
àquele chuveiro de piparotes, com toda a massa dos seus corpos amolentados e
nulos. Pelagueia examinava-os; pareciam entumecer cada vez mais, como se
receassem que os botes do advogado lhes fizessem vibrar dentro do peito um eco
capaz de lhes perturbar a soberana indiferença.
Pavel pôs-se de pé. Estabeleceu-se súbito silêncio.
A mãe inclinou para a frente todo o corpo.
Tranquilamente, Pavel declarou:
— Pertencendo eu a um partido, só reconheço o tribunal desse partido. Não
falo para defender-me, mas para satisfazer o desejo daqueles dos meus
companheiros que também não quiseram ser defendidos. Vou tentar explicar-
lhes o que os senhores não compreenderam. O procurador qualificou a nossa
demonstração, sob o estandarte da democracia socialista, de revolta contra as
autoridades supremas e falou constantemente de nós como de revoltados contra o
czar. Devo declarar, contudo, que, para nós, não é só o czar a grilheta a que anda
amarrado o corpo da nação; o czar não é mais do que o primeiro elo dessa
cadeia, de que jurámos libertar o povo.
Fizera-se mais profundo ainda o silêncio, sob o império daquela voz varonil. A
sala parecia tornar-se mais vasta e Pavel afastar-se para longe do auditório, mais
luminoso e inspirado. Pelagueia foi tomada de uma sensação de frio.
Os juízes agitavam-se pesadamente nas cadeiras, cheios de inquietação. O
marechal da nobreza segredou algumas palavras ao juiz de modos indolentes;
este abanou a cabeça e falou com o velhinho, a quem o juiz de aspeto doenteestava também falando ao ouvido, do lado oposto.
O presidente, vacilante na sua poltrona, para a direita e para a esquerda,
dirigiu algumas palavras a Pavel, mas a voz sumiu-se-lhe no curso amplo e igual
da exposição que o mancebo ia proferindo.
— Somos socialistas. Significa isto que somos inimigos da propriedade
particular, que promove a desunião entre os homens, os leva a armar-se uns
contra os outros e cria uma rivalidade de interesses irreconciliáveis, que mente
quando pretende dissimular ou justificar esta hostilidade e perverte os homens
pela mentira, a hipocrisia e o ódio. Somos de opinião que a sociedade,
considerando o homem unicamente como um meio de auferir riquezas, é anti-
humana e torna-se-nos declaradamente hostil; não podemos aceitar a sua moral
com duas caras, o seu cinismo sem vergonha e a crueldade com que trata as
individualidades que lhe são adversas; queremos lutar, e havemos de lutar, contra
todas as formas de subserviência física e moral do homem, em uso nesta
sociedade, contra todos os métodos de fracionar a coletividade em proveito da
cobiça! Nós, os operários, somos quem pelo nosso trabalho tudo cria, desde as
máquinas gigantescas até aos brinquedos das crianças. E vemo-nos privados do
direito de lutar pela nossa dignidade de homens; Cada qual arroga-se o direito de
nos transformar em instrumentos para atingir o seu fim! Queremos que nos
deem liberdade bastante para que se nos torne possível, com o tempo, conquistar
o poder. Quer-se o poder para o povo!...
Aqui, sorriu Pavel e passou devagar a mão pelos cabelos; a luz dos seus olhos
azuis brilhou com fulgor mais intenso.
— Tenha a bondade... Não saia do assunto! — disse-lhe o presidente em voz
nítida e forte.
Virava-se agora todo para Pavel e fitava-o. Pareceu a Pelagueia distinguir-
lhe nos olhos, até ali pálidos e sem expressão, um brilho cúpido e de maldade.
Todos os juízes tinham as atenções voltadas para o orador; os seus olhos
pareciam colar-se-lhe, aderir-lhe fortemente ao corpo, para lhe sugarem o
sangue e com ele reanimarem os seus membros exaustos. Pavel, firme e
resoluto, estendeu para eles o braço e prosseguiu com voz distinta:
— Somos revolucionários e sê-lo-emos enquanto uns só tratarem de oprimir
os outros. Havemos de lutar contra a sociedade, cujos interesses os senhores
foram mandados que defendessem; a reconciliação só entre nós será possível
quando nós formos vencedores. Porque havemos de ser nós os vencedores, nós,
os oprimidos! Os mandatários de todos vós, senhores, não são tão fortes como se
julgam. Essas riquezas que acumularam e na defesa das quais sacrificam
milhões de infelizes criaturas, essa força que lhes dá o poder sobre nós, criam
entre eles alternativas de hostilidade e arruínam-nos, a eles, física e moralmente.
A defesa do vosso poderio, senhores, exige uma constante tensão de espírito; e,na realidade, vós, nossos senhores, sois todos mais escravos do que nós, porque
são os vossos espíritos que jazem na opressão, ao passo que nós só fisicamente
somos oprimidos. Não podeis libertar-vos do jugo dos preconceitos e dos hábitos,
e isto mata-vos moralmente; enquanto a nós, nada nos impede que sejamos
intimamente livres! E a nossa consciência vai tomando vida, vai desenvolvendo-
se sem cessar; inflama-se dia a dia e arrasta consigo os melhores elementos,
moralmente sãos, mesmo do próprio meio que é o vosso... E, se não, vede: já não
possuís ninguém que possa lutar em nome do vosso poderio contra a corrente das
ideias; esgotastes já todos os argumentos capazes de vos protegerem dos ataques
da justiça da história; nada mais podeis criar novo, no domínio da
intelectualidade: sois uns estéreis de espírito. As nossas ideias, pelo contrário,
desenvolvem-se com força crescente, penetram nas massas populares e vão-nas
dispondo para a luta pela liberdade, luta encarniçada, luta implacável! Não
podereis travar este movimento, senão usando de crueldade e de cinismo. Mas o
cinismo é evidente demais e a crueldade não faz senão irritar o povo. As mãos
que hoje empregais para nos sufocar, hão de amanhã apertar as nossas mãos em
fraterno amplexo. A vossa energia é a energia mecânica produzida pelo
açambarcamento do oiro, e é essa energia que vos desune em grupos rivais,
destinados a aniquilarem-se mutuamente. Enquanto que a nossa energia é a força
viva e sem cessar crescente do sentimento de solidariedade que liga todos os
oprimidos. Tudo o que praticais é criminoso, porque só pensais em escravizar o
homem; o nosso empreendimento, esse, liberta o mundo dos monstros e
fantasmas criados pelas vossas mentiras, pela vossa cupidez, pelo vosso ódio!
Mas, em breve, a grande massa dos nossos artífices e camponeses há de ser
liberta e há de criar um mundo livre, harmonioso e imenso. E assim há de ser!
Calou-se Pavel um instante e depois repetiu ainda com mais força:
— E assim há de ser!
Os juízes cochichavam, com caretas estranhas, sem desviarem os olhos de
Pavel. A mãe pensava de si para consigo, que aqueles olhares infamavam o
corpo vigoroso de seu filho, cuja saúde e fresca mocidade invejavam. Os réus
tinham escutado atentos as palavras do seu companheiro. Pálidos ao princípio,
tinham agora nos olhares uma chama de álacre contentamento. Pelagueia
devorara as frases de seu filho; gravavam-se lhe todas profundamente na
memória.
O velhinho por diversas vezes interrompeu Pavel, para lhe explicar ninguém
saberia dizer o quê, duma das ocasiões, esboçou até, um sorriso triste. Pavel
escutava-o em silêncio e logo retomava a palavra com voz severa mas serena.
Todas as atenções convergiam para ele. Durou isto muito tempo. Por fim, o
presidente gritou algumas palavras, ao mesmo tempo que estendia o braço na
direção do mancebo. Este respondeu em tom levemente irónico:— Eu vou concluir. Não foi ideia minha ofender pessoalmente os membros
deste tribunal, bem ao contrário: forçado a assistir a esta comédia a que chamais
uma audiência, chego a sentir compaixão pelos senhores. A despeito de tudo, os
senhores são homens e é sempre para nós uma humilhação ver homens,
curvarem-se de tão vil maneira ao serviço da violência e perderem a tal ponto a
consciência da sua dignidade humana... mesmo quando esses homens se
mostram hostis aos nossos intentos...
E sentou-se sem olhar para os juízes.
A mãe conteve a respiração, fitando, anelante, aqueles de quem dependia a
sorte de seu filho, e esperou.
André, radiante, apertou vigorosamente a mão de Pavel. Samoilov, Mazine e
todos os outros voltaram-se para ele. Pavel sorriu, um tanto constrangido pelo
entusiasmo dos seus companheiros e olhando para a bancada em que se
encontrava Pelagueia, fez-lhe um sinal de cabeça, como para perguntar:
— Foi bem, assim?
Ela respondeu-lhe com profundo suspiro de contentamento, fremente,
inundada por uma ardente vaga de amor.
— Aí está! Vai começar o julgamento! — segredou-lhe Sizov. — O teu filho
deixou-os em bonito estado, hã?
Ela abanou a cabeça sem responder, satisfeita de ter ouvido o filho falar com
tal desassombro e talvez mais satisfeita ainda por ele ter terminado o discurso.
Martelava-lhe no cérebro uma ideia fixa:
— Meus filhos! Que vai ser de vocês?
O que seu filho dissera não era novo para ela; conhecia bem as suas opiniões;
mas, fora ali, perante aquele tribunal, que pela primeira vez sentira a força
convincente e extraordinária das suas teorias. Impressionava-a a serenidade do
mancebo, e no seu íntimo, o discurso de Pavel aliava-se à firme convicção da
vitória e dos justos direitos de seu filho, que lhe punham na alma a irradiação
duma estrela. XXVI
Julgava ela que os juízes iam discutir severamente com ele, replicar-lhe
coléricos, e expor os seus argumentos.
Mas nisto, levantou-se André, lançou um olhar de soslaio para o tribunal e
começou:
— Senhores defensores.
— Quem o senhor tem na sua presença é o tribunal e não a defesa! — gritou-
lhe o juiz doente, com força, muito irritado.
Pelagueia percebia pela fisionomia de André que o que ele queria era
gracejar; o bigode tremia-lhe de riso mal contido, e nos olhos, tinha uma
expressão ao mesmo tempo felina e meiga, bem conhecida dela. Esfregou
vigorosamente a cabeça com as compridas mãos e suspirou.
— Pois é possível? — perguntou, ao mesmo tempo que sacudia a cabeça. —
Eu julgava que não era assim, que os senhores eram, não juízes, mas unicamente
defensores!...
— Queira fazer favor de se referir somente ao assunto principal! — intimou o
velhinho com secura.
— O assunto principal? Está bem. Quero pois crer que os senhores são
realmente juízes, isto é: pessoas independentes, leais...
— O tribunal não precisa da sua opinião!
— Como? Não precisa dum elogio destes!... Hum!... Todavia, eu continuo. Os
senhores são homens que não estabelecem diferença alguma entre amigos e
inimigos, os senhores são inteiramente livres no seu juízo. Assim, têm agora na
sua frente dois partidos: um queixa-se de que o roubam e o maltratam; o outro
responde que tem o direito de roubar e de maltratar porque traz na mão uma
espingarda.
— Tem alguma coisa a dizer concernente ao processo? — perguntou o
velhinho, alteando a voz e com as mãos a tremer.
Esta irritação satisfazia imenso Pelagueia. Mas a forma de proceder de André
não lhe agradava; achava-a discordante do discurso de Pavel. Preferia ouvir
travar-se uma discussão séria e ponderada.
O pequeno-russo fitou o velho, sem responder; em seguida, disse com
gravidade:
— O processo?... Para que lhe havia eu de falar do processo? O meu
companheiro disse-lhes o que os senhores deviam saber já! O resto, outros lho
dirão quando chegar o momento oportuno...
O velhinho sobre-ergueu-se da poltrona e declarou:
— Retiro-lhe a palavra!... Gregório Samoilov!O russo menor apertou com força os dentes e deixou-se cair pesadamente no
banco. Ao lado dele, Samoilov pôs-se de pé, sacudindo os anéis do cabelo.
— O procurador disse que nós éramos uns selvagens, inimigos do progresso...
— Fale só do que diz respeito à sua acusação!
— Mas é justamente o que estou fazendo!... Não deve haver coisa alguma
que não interesse à gente honesta... E peço-lhe o obséquio de não me
interromper. Assim, pergunto eu aos senhores: qual vem a ser o grau das suas
culturas intelectuais?
— Não estamos aqui para discutir consigo! Voltemos ao assunto! — disse o
velho, mostrando rancorosamente os dentes.
Os gracejos de André haviam manifestamente irritado os juízes e como que
lhes tinham suprimido o que quer que fosse das fisionomias. Agora, nos rostos
terrosos, apareciam-lhes manchas sanguíneas, brilhavam-lhes os olhares com
cintilações frias e implacáveis. O discurso de Pavel também os havia
encolerizado, mas o tom de energia em que fora dito, reprimira-lhes o rancor e
forçara-lhes o respeito. O pequeno-russo, porém, conseguira quebrar esta
contenção e pusera a descoberto o que sob ela se ocultava. Com crispações nas
fisionomias, os juízes segredavam entre si, tinham gestos mais sacudidos,
denunciadores da raiva que lhes ia no íntimo.
— Os senhores educam espiões, pervertem mulheres e donzelas, colocam o
homem sério na situação dum gatuno, dum assassino, envenenam-no com a
aguardente, deixam-no apodrecer nas masmorras!... As guerras internacionais, a
mentira, o deboche, o embrutecimento de todo o país — aqui está a vossa
civilização! Sim, somos inimigos de tal civilização!
— Tenha a bondade!... — gritou o velhinho, sacudindo ameaçador o queixo.
Samoilov, rubro, o olhar em fogo, entrou a gritar ainda mais alto do que ele.
— Mas a civilização que nós amamos e respeitamos é a outra, a que foi
criada pelos que vós atirastes para as masmorras ou para os hospitais de doidos...
— Retiro-lhe a palavra!... Fédia Mazine!
O rapazinho levantou-se de chofre, como uma sovela a sair dum furo e
exclamou com voz sacudida:
— Eu... juro!... Eu bem sei, os senhores vão condenar-nos!
Sufocou; fez-se branco, só se lhe viam os olhos, muito brilhantes. Estendeu o
braço e prosseguiu:
— Dou-lhes a minha palavra de honra! Mandem-me para onde quiserem,
que eu hei de fugir, hei de voltar, hei de dedicar-me sempre pela causa do povo...
pela liberdade da nação... toda a minha vida! Dou-lhes a minha palavra de
honra!Sizov soltou um gritinho. Toda a assistência, revolucionada por vaga
excitação, se mexia com um ruído surdo e singular. Chorava uma mulher;
alguém tossia, sufocando. Os guardas, alternadamente olhavam para os réus com
um espanto estúpido e para a multidão do público, furiosos. Os juízes agitaram-
se; o velho gritou:
— Gussev Ivan!
— Não falo!
— Gussev Vassili!
— Não quero responder!
— Bukine Fédor!
Loiro e meio descorado, ergueu-se pesadamente e disse com lentidão,
meneando a fronte:
— Os senhores deviam envergonhar-se!... Eu, que não passo dum ignorante,
compreendo ainda assim o que deve ser a justiça!
Levantou o braço acima da cabeça e calou-se, com as pálpebras
semicerradas, como se estivesse vendo qualquer coisa muito ao longe.
— Que diz? — gritou o velho com atónito exaspero, reclinando-se na poltrona.
— Olhe que você!...
Bukine deixou-se cair no banco tristemente. Havia nas suas palavras
desacompanhadas de significação, alguma coisa imensa e importante, e ao
mesmo tempo uma censura ingénua e penalizada. Foi esta a impressão que todos
receberam. Os próprios juízes apuraram o ouvido, como para distinguirem um
eco mais nítido de tal discurso. Nas bancadas reservadas ao público, tudo se
calou; apenas ficou ressoando um leve ruído de choro. Depois sorriu-se o
procurador e encolheu os ombros; o marechal da nobreza tossiu; de novo se
elevaram sussurros que serpenteavam vagamente pela sala.
Pelagueia inclinou-se para Sizov e perguntou-lhe:
— Os juízes falarão?
— Não; está tudo terminado. Só falta pronunciar o veredito.
— E não há mais nada?
— Não!
Pelagueia não podia acreditar. A mãe de Samoilov agitava-se ansiosamente,
tocando em Pelagueia com o cotovelo e com o ombro, e perguntando em voz
baixa ao marido:
— Mas, como? É possível?
— Bem vês!
— E o que é que vão fazer ao nosso filho?— Cala-te! Deixa-me!
— Percebia-se que no público alguma coisa se havia perdido, aniquilado ou
transformado. Os olhos desvairados, pestanejavam como se ardente lareira se
lhes tivesse incendiado na frente. Embora não compreendessem o grande
sentimento que acabava de despontar neles tão bruscamente, os curiosos iam,
sem dar por isso, fragmentando-o em sensações evidentes, acessíveis e fúteis. O
irmão de Bukine dizia a meia voz, sem constrangimento algum:
— Perdão! Porque não os deixam falar? O procurador disse tudo o que quis e
durante todo o tempo que quis!
Perto da bancada estava uma sentinela. O soldado murmurava, agitando o
braço:
— Silêncio! Silêncio!
O pai de Samoilov inclinou-se para trás, e, disfarçado com as costas da
mulher, continuou a pronunciar em voz surda frases entrecortadas:
— Evidentemente!... Admitindo que eles sejam culpados, o dever do tribunal
era deixá-los explicar-se... Contra quem se revoltaram eles? Contra tudo! Eu
gostava de compreender, afinal! Porque isto também me interessa... De que lado
está a verdade? Sim, eu queria compreender... É preciso que os deixem explicar-
se!
— Silêncio! — gritou de novo a sentinela, ameaçando-o com um dedo.
Sizov abanava a cabeça, apoquentado.
Pelagueia não perdia de vista os juízes. Notava-lhes a crescente excitação,
via-os falar uns com os outros, mas não podia compreender o que diziam. O
sussurro frio e escorregadio das suas vozes perpassava-lhe pelo rosto, fazia-lhe
tremer nervosamente as faces e provocava-lhe na boca uma sensação
desagradável. Afigurava-se-lhe que estavam falando todos eles do corpo de seu
filho e do dos seus companheiros, daqueles corpos robustos, dos seus músculos e
dos seus membros cheios de vermelho sangue e de força vivente. Estes corpos
deviam excitar neles uma inveja impotente e malvada, uma avidez ardente de
esgotados e doentes. Falavam com estalidos secos dos lábios, com o pesar de não
possuírem aqueles músculos, capazes de trabalhar e de enriquecer, de gozar e de
criar. Agora, iam aqueles corpos sair da circulação ativa da vida, renunciavam a
ela, ninguém poderia mais chamar-lhes seus, aproveitar a sua força, nem
absorvê-los. E era por isso que inspiravam aos velhos magistrados a animosidade
vingativa e desconsolada das feras já sem forças que têm diante de si a carne
fresca, mas já não dispõem da energia suficiente para dela se apoderarem.
E quanto mais Pelagueia olhava para eles, mais esta ideia grosseira e singular
se acentuava no seu espírito. Parecia-lhe que estavam patenteando claramente a
sua rapacidade e a sua sanha de esfomeados, capazes, em tempos idos, de comermuito. Ela, a mulher e mãe, para a qual o corpo do filho tinha sido sempre e a
despeito de tudo, mais querido do que a própria alma, sentia-se horrorizada com
os olhares sem viço que perpassavam pelo rosto dele, tateando o peito, os
ombros, os braços, roçando-se pela ardente pele, como em busca de uma
possibilidade de se reanimarem, de requentarem o sangue das suas veias
endurecidas, dos seus músculos gastos de homens semimortos. Parecia a
Pelagueia que o seu filho sentia aqueles contactos frios e que estremecia quando
para ela olhava.
O mancebo fixava em sua mãe os olhos um tanto fatigados, mas calmos e
afetuosos. Por momentos, sorria-lhe e fazia-lhe um sinal de cabeça.
— Em breve estarei em liberdade! — dizia este sorriso, que era uma carícia
para o coração de Pelagueia.
Neste comenos, levantaram-se os juízes todos ao mesmo tempo. Pelagueia
seguiu-lhes instintivamente os movimentos.
— Vão-se embora! — disse Sizov.
— Para os condenar? — perguntou ela.
— Sim...
Dissipara-se de súbito a tensão de espírito em que até ali estivera; pesado
cansaço lhe invadiu o corpo; aljofraram-lhe a fronte gotas de suor. Um
sentimento de cruel deceção e de humilhação impotente brotou no seu coração e
depressa se transformou em profundo desprezo pelos juízes e pelo seu
julgamento. Assaltou-a violenta dor nas fontes; esfregou a testa com a palma da
mão e olhou em torno: os parentes dos réus tinham-se aproximado do
gradeamento, a sala enchia-se de um ruído surdo de conversações. Ela caminhou
também para o filho, apertou-lhe a mão e entrou a chorar, tomada a um tempo,
de desgosto e de contentamento. Pavel dirigiu-lhe algumas palavras de conforto.
André ria e gracejava.
Mais por hábito do que por desgosto, todas as mulheres choravam. O que se
sentia não era aquela dor que atordoa como estúpido golpe descarregado
bruscamente na cabeça: tinha-se a consciência da triste necessidade de
abandonar os filhos, mas esta mágoa confundia-se, sumia-se nas impressões que
eram filhas da oportunidade. Os pais olhavam para os filhos com uma expressão
em que a desconfiança que lhes era inspirada pela mocidade e pela consciência
da própria superioridade, se confundia singularmente com uma espécie de
respeito por eles. Ao mesmo tempo que a si próprios perguntavam com tristeza
como passariam eles agora a viver, os velhos olhavam com curiosidade para
aquela nova geração que discutia audaciosamente a possibilidade duma
existência diferente daquela e melhor. Não sabiam exprimir o que sentiam, pois
faltava-lhes para tanto o hábito; as palavras corriam abundantes, das bocas, mas
não se falava mais do que de coisas vulgares, de fatos e roupas, de cuidadosnecessários; aconselhavam até os condenados a não irritarem inutilmente os
superiores.
— Todos andamos cansados disto! — disse Samoilov ao filho. — Nós tanto
como eles!
O mais velho dos Bukine agitava a mãe e exortava o mais novo:
— Aí está a justiça dessa gente! Custa aceitá-la!
O rapaz respondeu:
— Hás de tratar bem do estorninho, sim?... Gostava tanto dele!
— Ainda há de ser vivo quando voltares!
Sizov tomara pela mão o sobrinho e dizia com vagar:
— Então foi assim que tu fizeste, Fédia? Foi assim?
Fédia curvou-se para ele e segredou-lhe o que quer que fosse ao ouvido, com
um riso de esperteza. O soldado que lhes estava próximo sorriu também, mas
logo retomou os seus ares de gravidade e resmungou.
Pelagueia limitava-se, como os outros, a conversar acerca de arranjos de
roupas e cuidados de saúde, mas no coração reprimia mil interrogações relativas
a Pavel, a Sachenka e a si própria. E sob as suas palavras banais, lentamente se
desenvolvia o sentimento de imenso amor que dedicava ao filho, o ardente
desejo de o cativar, de viver no seu coração. A expetativa do acontecimento
terrível desaparecera, deixando unicamente, após si, um arrepio desagradável,
quando se lembrava dos juízes, agora ausentes.
Sentia nascer em si uma intensa alegria luminosa, mas não a compreendia e
isto trazia-a perturbada.
Viu que o pequeno-russo falava muito com todos os que o rodeavam, e
entendendo que ele, mais do que Pavel, precisava de conforto, disse-lhe:
— Não me agradou a audiência!
— Porquê, mãezinha?! — exclamou André. — É um moinho velho, mas vai
sempre moendo!
— É uma coisa, afinal, que não mete medo algum, e é incompreensível!
Nem ao menos se procura averiguar a verdade! — disse ela hesitante.
— Oh! Era isso o que queria? — exclamou André. — Mas então imagina que
alguém se importa aqui com a verdade?
Pelagueia suspirou.
— Eu imaginava que isto fosse coisa muito séria... mais séria ainda do que na
igreja!... Que se celebrava o culto da verdade!...
— Querida mãe: onde a verdade é respeitada sabemo-lo nós! — disse Pavel
em voz baixa e no tom de quem perguntasse sem afirmar.— E a mãezinha também o sabe! — acrescentou o pequeno-russo.
— O tribunal!
Correram todos para os seus lugares.
Com uma das mãos apoiada na mesa, o presidente ocultou a cara por detrás
dum papel e pôs-se a ler com uma voz débil qual zumbido:
«O Tribunal... depois de ter deliberado...»
— É a condenação! — disse Sizov, apurando o ouvido.
Fez-se silêncio. Todos se haviam posto de pé, com os olhos fitos no velhinho.
Seco e hirto, assemelhava-se este a um cacete sobre o qual mão invisível se
apoiasse. Os juízes estavam também de pé; o síndico do bailiado, com a cabeça
pendente no ombro, dirigia o olhar para o teto; o administrador da comuna
cruzava os braços no peito; o marechal da nobreza afagava a barba. O juiz com
cara de doente, o seu colega barrigudo e o procurador, olhavam todos na direção
dos acusados. E por detrás dos juízes, por cima das suas cabeças, aparecia o czar,
de uniforme encarnado.
Um inseto ia-lhe marinhando pela cara, pálida e indiferente; uma teia de
aranha balouçava ao vento.
«São condenados a deportação para a Sibéria...»
— O degredo! — disse Sizov com um suspiro de alívio. — Finalmente, já
passou, Deus louvado! Muita gente esperava os trabalhos forçados. Isto assim, já
não é tão mau, tiazinha; não vale mesmo nada!
— Eu já o adivinhava — disse Pelagueia baixinho.
— Assim como assim, agora é certo!... Mas vá lá a gente saber, com uns
juízes destes!
Voltou-se para os condenados, a quem faziam já abandonar o pretório, e disse
alto:
— Até à vista, Fédia!... Até à vista, vocês todos! Que Deus os proteja!
Pelagueia fez um sinal de cabeça a Pavel e aos seus companheiros. A sua
vontade era chorar, mas conteve-a uma espécie de vergonha. XXVII
Ao sair do tribunal, ficou Pelagueia admiradíssima com ver que já a noite
caíra sobre a cidade, os candeeiros das ruas acesos; as estrelas cintilando no céu.
Nas circunvizinhanças do palácio da justiça, formavam-se pequenos
agrupamentos; na gélida atmosfera, ouvia-se o ruído da neve rangendo sob o
andar; vozes de gente nova interpelavam-se mutuamente. Aproximou-se de Sizov
um homem coberto com um capuz cinzento e perguntou em voz rápida:
— Qual foi a sentença?
— O degredo.
— Para todos eles?
— Para todos...
— Obrigado!
O homem afastou-se.
— Bem vês! — disse Sizov à mãe de Pavel. — Bem vês como isto os
interessa.
De súbito, encontraram-se cercados por uma dúzia de rapazes e raparigas.
Entraram a chover as exclamações, que atraíam ainda mais gente para o grupo.
Sizov e Pelagueia tiveram de parar. Todos queriam conhecer a sentença, saber
como se tinham comportado os réus, quem tinha pronunciado discursos e sobre
que assunto. E em todas estas perguntas vibrava a mesma nota de curiosidade
ávida e sincera.
— É a mãe do Pavel Vlassov! — gritou uma voz.
Calaram-se todos à uma.
— Permita que lhe aperte a mão!
E logo uma mão sólida se lhe apoderou da sua, com vigor. A mesma voz
continuou, trémula de entusiasmo:
— O seu filho será para nós todos um nobre exemplo!
— Viva o operariado russo! — gritou uma voz vibrante.
— Viva a revolução!
— Morra a autocracia!
Multiplicavam-se os brados, cada vez mais violentos; rebentavam pelo ar,
cruzando-se; acudia gente de todos os lados e apinhava-se em torno de Sizov e
Pelagueia. Os apitos dos polícias rasgavam o ar, mas sem conseguirem dominar
o burburinho. O velho ria. Quanto a Pelagueia, parecia-lhe tudo aquilo um belo
sonho. Sorria, apertava centenas de mãos, cumprimentava. Comprimiam-lhe a
garganta lágrimas de felicidade; vergavam-lhe as pernas de cansadas, mas o seu
coração, transbordando de triunfante alegria, refletia as suas impressões como o
claro espelho da água dum lago.Perto dela, uma voz clara exclamou em tom enervado:
— Companheiros! Amigos! O monstro que devora o povo russo, satisfez hoje
mais uma vez os seus apetites!...
— Vamo-nos embora! — disse Sizov.
Nesse mesmo instante, apareceu Sachenka. Agarrou Pelagueia por um braço
e puxou-a para o passeio oposto, aconselhando:
— Venha... A polícia pode atirar-se para cima de nós e bater-nos... Ou vão
prender-nos... E então? Foi o degredo, não foi? Para a Sibéria?
— Sim, é verdade!...
— E ele que fez? Falou? Eu já sei tudo, afinal... É ele o mais valoroso
também, é certo! É sensível e terno, mas sempre se acanha quando tem de
manifestar os seus sentimentos. É firme e resoluto como a própria verdade!... É
um grande homem, e tudo reside nele... tudo! Mas a maior parte das vezes, ele
próprio se constrange... com o receio de não se entregar todo ele, de alma e
coração, à causa do povo... Eu sei-o bem!
Estas palavras de amor, segredadas em um desabafo de paixão, acalmaram
Pelagueia, reanimando-lhe as desfalecidas forças.
— Quando vai encontrar-se com ele? — perguntou à rapariga, em voz baixa e
afetuosa, puxando-a muito para si.
Sachenka respondeu, com o olhar fito na sua frente, e com tranquila decisão:
— Tão depressa encontre quem se encarregue do meu trabalho! Porque em
breve me tocará a vez de responder em juízo... Hão de mandar-me também
para a Sibéria. Direi então que desejo ser deportada para o sítio em que ele
estiver...
Por detrás das duas mulheres ouviu-se então a voz de Sizov:
— Faça-lhe os meus cumprimentos!... Chamo-me Sizov. Ele conhece-me:
sou tio do Fédia Mazine.
Sachenka parou para se voltar e estender-lhe a mão:
— Eu conheço o Fédia. O meu nome é Sachenka.
— E o seu nome de família?
Ela lançou-lhe um breve olhar, e respondeu:
— Não tenho família. Já não tenho pai.
— Morreu?
— Não, está vivo! — declarou já excitada.
E alguma coisa obstinada, teimosa, lhe vibrou na voz e transpareceu nas
feições. É um proprietário rural, e é chefe do distrito. Agora, rouba a gente do
campo... e maltrata-a!— Ah! — proferiu Sizov arrastadamente.
E após silêncio, ajuntou, ao mesmo tempo que examinava a rapariga de
soslaio:
— Bem, então, adeus, tiazinha! Eu vou por aqui!... Aparece para tomar chá e
cavaquear um pedaço... quando quiseres!... Até mais ver, minha menina!... A
menina é muito severa para com o seu pai!... Está claro que isso é lá consigo!...
— Se seu filho fosse um homem inútil, prejudicial aos outros, o senhor dizia-
o? — exclamou Sachenka, com paixão.
— Dizia, sim, senhora! — respondeu o velho, depois de hesitar um momento.
— Por consequência, a verdade merecer-lhe-ia mais apreço do que o seu
filho. Pois a mim merece-me mais apreço do que o meu pai...
O outro abanou a cabeça, e em seguida, suspirando:
— Ah! É astucioso, sim, senhora! Se tem assim resposta para tudo, os velhos
não podem resistir-lhe! Sabe atacar pela certa! Até mais ver! Desejo-lhe todas
as felicidades possíveis... Mas seja mais condescendente com as pessoas sim?
Que Deus vá consigo! Adeus, Pelagueia! Se falares com o Pavel, diz-lhe que
ouvi o seu discurso... Não percebi tudo... Até me meteu medo em certas
ocasiões, mas o que ele disse é a verdade!
Ergueu o boné e desapareceu, sem se apressar, na volta da esquina.
— Deve ser um bom homem! — observou Sachenka, seguindo-o com olhar
risonho.
Parecia a Pelagueia ver no rosto da sua companheira expressão mais meiga e
melhor do que de costume...
Chegadas a casa, sentaram-se no canapé, muito uma à outra. Pelagueia
referiu-se de novo aos planos de Sachenka. Com as espessas sobrancelhas muito
erguidas, pensativa, a outra olhava para distante com os seus grandes olhos de
sonho. Lia-se-lhe no pálido rosto uma pacífica concentração de espírito.
— Mais tarde, quando tiverem filhos, também eu para lá irei, para tratar
deles. E não havemos de viver pior lá do que vivemos aqui... O Pavel há de
encontrar trabalho; é muito habilidoso.
Sachenka olhava agora para ela, perscrutando-lhe os pensamentos.
Interrogou:
— Não deseja então ir juntar-se a ele desde já?
Respondeu, com um suspiro:
— Para quê? Nada mais iria fazer-lhe do que causar-lhe incómodo, caso ele
quisesse fugir. E depois, ele não mo consentia...
Murmurou Sachenka:
— Não, com efeito...— Além disso eu tenho que fazer aqui — acrescentou a mãe de Pavel com
um tanto de ufania.
— Sim, é verdade! — secundou, pensativa, a outra. — E sabe trabalhar muito
bem...
Mas de repente estremeceu, como se acabasse de libertar-se de um peso
qualquer, e logo anunciou com simplicidade, a meia voz:
— Decididamente, ele não se demora na Sibéria... Há de fugir... É certo!
— Mas, então, que há de ser feito de si? E a criança, se a tiverem?
— Não sei; veremos. O que eu não quero é que ele viva em cuidados por
minha causa. Dou-lhe plena liberdade para fazer o que quiser, em qualquer
ocasião que seja. Não sou mais do que uma simples correligionária. Bem sei que
me há de ser terrivelmente custoso deixá-lo... mas hei de saber conformar-me...
Não quero importuná-lo em coisa alguma, isso não!
Sentia Pelagueia que Sachenka era capaz de executar o que dizia. Cheia de
comiseração por ela, tomou-a nos braços:
— Minha querida... Muito tem que sofrer!...
Sachenka sorriu com meiguice; comprimiu-se toda contra o corpo de
Pelagueia; subiu-lhe o rubor às faces.
— Isso ainda vem longe... Mas não julgue que seja um sacrifício penoso para
mim. Sei o que faço, sei com o que posso contar, serei feliz se ele se considerar
feliz comigo... O meu desejo, o meu dever, é aumentar a sua energia, dar-lhe
toda a felicidade que esteja em meu poder, muita felicidade! Amo-o muito... e
ele ama-me, que sei eu! Retribuir-nos-emos dos nossos sentimentos, enriquecer-
nos-emos mutuamente, tanto quanto pudermos; e, se assim for necessário,
separar-nos-emos como bons amigos...
Por entre um sorriso de felicidade, a mãe disse lentamente:
— Eu irei juntar-me a vocês ambos... Talvez eu também seja exilada...
E por muito tempo as duas mulheres permaneceram estreitamente
abraçadas, sem uma palavra, pensando naquele que amavam. O silêncio, a
tristeza, uma tépida suavidade, as envolviam.
Nicolau chegou neste comenos, fatigadíssimo. Rapidamente, enquanto se
despia, foi dizendo:
— Sachenka, vá-se depressa, se não depois talvez já não tenha tempo! Desde
esta manhã andam dois espiões a seguir-me tão às claras que me cheira a
mandado de prisão... Tenho um pressentimento... Deve-nos ter acontecido
alguma infelicidade, onde, ainda não sei... A propósito: aí tem o discurso do
Pavel; foi decidido imprimi-lo. Leve-o à Ludmila, suplique-lhe que o
componham o mais breve possível. O seu Pavel falou muito bem, Pelagueia!...Sachenka, tome cuidado com os espiões! Espere, leve também estes papéis; dê-
os ao doutor, por exemplo.
E ao dizer isto, esfregava vigorosamente uma contra a outra as mãos, que
trazia regeladas. Em seguida, foi à mesa, abriu as gavetas, de onde extraiu vários
documentos. Preocupadíssimo e com os cabelos em desalinho, entrou a folheá-
los à pressa, rasgou uns, emaçou outros.
— Olhem que não há ainda muito tempo que eu pus tudo isto em ordem, e
vejam que montão enorme cá tenho outra vez! Demónio!... Talvez fosse melhor
não dormir cá esta noite, Pelagueia! Que lhe parece? Não é das melhores coisas
ter de assistir a essa comédia, os guardas são capazes de a levar também... e é
absolutamente necessário que vá por esses campos distribuir o discurso do
Pavel...
— Ora adeus! Porque é que me haviam de prender? — contestou ela. — E
daí, talvez se engane, talvez não venha ninguém...
Nicolau redarguiu em tom de confiança e agitando a mão:
— O meu faro nunca me enganou!... Além disso, vossemecê podia auxiliar a
Ludmila! Vá-se enquanto é tempo ainda...
Na satisfação de ir cooperar na impressão do discurso de seu filho, ela
respondeu:
— Pois se assim é, cá me vou. Mas olhe que não é porque tenha medo...
E com admiração de si própria, proferiu estas palavras em voz baixa mas
decidida:
— Agora, já não tenho medo de nada!... Deus louvado! Já sei tudo o que
queria...
— Às mil maravilhas! — exclamou Nicolau, sem a fitar. — Ah! Diga-me
onde está a minha roupa branca e a minha mala. A senhora de tudo tem cuidado
com tal carinho, que me vejo de todo incapaz de descobrir o que é minha
propriedade pessoal! Eu vou preparar-me. Os polícias é que vão ter uma
desagradável surpresa!
Sachenka ia queimando no fogão os papéis rasgados. Quando os viu de todo
consumidos, teve o cuidado de misturar as cinzas com as do combustível.
— Vá, Sachenka, vá! — disse-lhe Nicolau com um aperto de mão. — Até à
vista! Não se esqueça de me mandar livros, se for publicada qualquer coisa de
novidade e intensa. Até à vista, cara correligionária! E trate sobretudo de ter
prudência...
— Julga estar muito tempo na prisão? — perguntou Sachenka.
— O demónio que o julgue! Bastante tempo, com certeza... Têm diversos
pecadinhos a censurar-me... Pelagueia, saia ao mesmo tempo com Sachenka. Émais difícil seguir duas pessoas.
— Bem! — concordou ela. — Eu já me visto.
Observara Nicolau atentamente, e nada anormal descobrira nele, a não ser a
preocupação que lhe velava o olhar bondoso e complacente. Não lhe vira
aparentar emoção alguma.
Igualmente atencioso para com todos, afetuoso e metódico, sempre sossegado
e solitário, levava a mesma existência, misteriosa no seu foro íntimo e como que
antepondo-se a todas as diligências alheias. Pelagueia estimava-o tal qual ele era,
com um amor prudente, que parecia duvidar de si mesmo. E agora
experimentava por Nicolau uma compaixão indizível; mas dominava-a porque
sabia que se ele lha notasse, havia de comover-se e tornar-se um pouco ridículo,
como habitualmente. Não era sob este aspeto que Pelagueia o queria ver.
Já vestida, voltou ao gabinete. Nicolau estava apertando a mão de Sachenka.
Dizia-lhe:
— Otimamente! Estou certo de que há de ser bom para ele, como para si...
Um poucochinho de felicidade pessoal nunca causa dano... Mas olhe que não é
bom que seja demasiada, para não perder o valor. Está pronta, mãezinha!
Acercou-se dela, compondo os óculos.
— Bem! Então, até à vista!... Daqui a três, quatro ou seis meses. É muito
tempo!... Que de coisas se podem fazer em seis meses! Poupe-se, sim? Peço-lho.
Vá lá! Venha um abraço!
Passou os robustos braços em torno do pescoço de Pelagueia e fitando-lhe
muito os olhos, disse com um riso muito franco:
— Parece-me que estou apaixonado por si... Não faço senão abraçá-la!
Sem lhe responder, ela beijou-o na testa e nas faces. As mãos tremiam-lhe:
deixou-as pender para que ele não o notasse.
— Então, vai partir?... Às mil maravilhas!... Mas tome cautela, seja prudente!
Olhe: mande um rapazito aqui amanhã pela manhã; a Ludmila tem um lá em
casa. Por ele ficará sabendo o que se tiver passado. Bem, até mais ver,
camaradas! Tudo vai bem!... Que tudo continue bem, é o que se quer!
Pela rua, comentava Sachenka em voz baixa:
— Com aquela mesma simplicidade é capaz de ir para a morte, se for
preciso... Só com um pouco de pressa, como ainda agora. Quando lhe chegasse a
sua hora final, ajustava os óculos, dizia assim: «Às mil maravilhas!» e morria!
— Amo-o deveras! — segredou Pelagueia.
— Pois a mim, causa-me espanto! Quanto a amá-lo, não! Estimo-o,
simplesmente. Acho-o muito seco, ainda que lhe encontre certa bondade e às
vezes até alguma ternura. Mas não possui em si bastante humanidade... Parece-me que vamos sendo seguidas. Separemo-nos. Não vá a casa da Ludmila, se
desconfiar que a vigiam...
— Bem sei! — respondeu ela.
Mas Sachenka insistiu ainda:
— Não vá para casa dela... Se tal suceder, venha antes para a minha. Até
mais ver!
Virou-se rápida e voltou pelo mesmo caminho.
A outra gritou-lhe:
— Até à vista! XXVIII
Minutos depois, aquecia-se Pelagueia junto do fogão, no quarto de Ludmila.
Vestida de preto, esta última passeava devagar pelo estreito aposento, que enchia
com o rugir das suas saias e com a soberania da sua voz autoritária. No fogão, a
lenha estralejava e assobiava, aspirando o ar do quarto. Vibrava a voz igual e
monótona da dona da casa:
— Os homens são infinitamente mais tolos do que maus. Não sabem ver
senão o que lhes fica perto, o que têm ao seu alcance imediato!... Ora tudo o que
nos fica próximo é mesquinho; só o que se encontra afastado tem valor. Na
realidade, seria vantajoso para todos que a vida se tornasse mais fácil e as
criaturas mais inteligentes... Mas para chegarmos a isso, forçoso é renunciar por
enquanto a viver com tranquilidade.
Aqui, estacou de súbito em frente de Pelagueia e acrescentou mais baixo,
como para desculpar-se:
— Dou-me com tão pouca gente!... Quando alguém vem a minha casa,
ponho-me logo a discursar!... É ridículo, não é?
— Ora essa! Porquê?
Diligenciava Pelagueia descobrir onde era que Ludmila imprimia os folhetos,
mas não via em torno de si nada extraordinário. No quarto, com três janelas para
a rua, havia um canapé, um armário com livros, uma mesa, cadeiras, uma cama
encostada a uma das paredes; num dos cantos, o lavatório, noutro, o fogão; pelas
paredes fotografias. Tudo isto com aparência de novo, sólido e asseado. E neste
conjunto, a figura quase monástica da dona do aposento era principalmente o que
impunha severo aspeto. Pressentia-se haver naquele quarto o que quer que fosse
misterioso e oculto.
Olhou depois para as portas: penetrara no quarto por uma delas — a que abria
para uma exígua casa de entrada; perto do fogão, havia outra, alta e estreita.
— Vim para tratar de certo negócio... — disse ela um tanto confusa, ao ver
que Ludmila a estava observando.
— Já sei. Ninguém vem a minha casa com outro motivo.
Pareceu a Pelagueia vibrar na voz da sua interlocutora uma intenção singular;
via-lhe um sorrisinho nas delgadas comissuras dos lábios, e as pupilas, baças
habitualmente, brilhavam-lhe por detrás dos vidros da luneta. Desviou portanto o
olhar e apresentou-lhe o manuscrito com o discurso de Pavel.
— Aqui está. Pedem-lhe que o imprima o mais depressa que possa.
E narrou os preparativos a que Nicolau procedera, prevendo a sua captura.
Sem dizer uma palavra, Ludmila entalou o papel no cinto e sentou-se numa
cadeira. Agitavam-se-lhe pelo rosto impassível os reflexos do lume.— Quando os polícias vierem a minha casa, faço fogo para cima deles! —
declarou. — Tenho o direito de defender-me contra a violência e o dever de lutar
contra ela, visto que instigo também os outros a fazê-lo!
A vermelhidão das chamas desapareceu-lhe do rosto, o qual voltou a mostrar-
se severo e um pouco altivo.
«Deve ser bem trabalhosa a vida que levas» — foi o súbito pensamento que
acudiu ao espírito de Pelagueia, acompanhado dum sentimento de afeição.
Ela pôs-se a ler o discurso de Pavel, primeiro, sem vontade, depois, curvando-
se cada vez mais sobre o papel. Ia atirando rapidamente para o chão as folhas já
lidas. Finda a leitura, levantou-se, endireitou o tronco e foi para a outra:
— Está muito bom! Aí está do que eu gosto! É nítido e claro!
Inclinou a cabeça e refletiu um instante.
— Não quis falar-lhe do seu filho: nunca o vi e não me agradam as conversas
tristes. Eu sei o que se sente quando vemos um dos nossos ir para o degredo!...
Diga-me: é agradável ter-se um filho como ele?
— Sim, muito agradável!
— E deve ser coisa terrível também?...
Com um sereno sorriso, Pelagueia respondeu:
— Não; agora já não...
Ludmila alisou com a mão, muito morena, os cabelos penteados em bandós;
depois, voltou-se para a janela: palpitava-lhe nas faces uma leve sombra
apaixonada.
— Vamos imprimir isso... Quer ajudar-me?
— Certamente!
— Vou compor o mais depressa possível. Deite-se; o dia deve-lhe ter sido
fatigante. Vê-se que está cansada. Deite-se naquela cama, que eu não durmo
hoje. Talvez tenha de a acordar de noite, para me auxiliar. Antes de adormecer,
apague o candeeiro.
Acrescentou duas achas ao lume e saiu pela porta estreita, praticada ao lado
do fogão, que tornou a fechar cuidadosamente após si.
Pelagueia seguira-a com o olhar. E enquanto se despia, pensava
maquinalmente na sua hospedeira:
«É um caráter severo... E vê-se que sofre, a pobre senhora!»
O cansaço esvaía-lhe a cabeça; no entretanto, sentia o coração singularmente
calmo; no seu espírito, tudo se iluminava com suave e cariciosa luz. Pelagueia
conhecia já aquela tranquilidade, que segue sempre às grandes comoções;
antigamente, inquietava-a, mas agora, fazia que a sua alma se expandisse,
revigorada em forte e puro sentimento. Apagou o candeeiro, deitou-se na camamuito fria, encolheu-se, aconchegando a si os cobertores e adormeceu logo em
profundo sono.
Quando descerrou os olhos, estava o quarto banhado da claridade gélida e
branca dum desanuviado dia de inverno. Estendida no canapé, com um livro na
mão, Ludmila fitava-a com uma expressão de ternura que a transfigurava.
— Deus meu! — exclamou Pelagueia, confundida. — Quanto tempo eu
dormi! É muito tarde, pois não é?
— Bom dia! — respondeu-lhe Ludmila. — Vão dar as dez horas. Levante-se
para irmos almoçar.
— Porque não me acordou?
— Tive ideia disso; mas a senhora mostrava um sorriso tão bonito, enquanto
dormia...
Num movimento ágil do seu corpo robusto e flexível, Ludmila levantou-se,
aproximou-se do leito, curvou-se sobre o rosto dela; e Pelagueia pôde distinguir
nos olhos sem brilho da sua hospedeira alguma coisa familiar, amigável,
compreensível.
— ... que não quis despertá-la... Era um belo sonho que estava tendo, com
certeza...
— Não, senhora; não sonhei com coisa alguma.
— Pois é pena... Mas gostei de ver aquele seu sorriso: achei-o tão meigo, tão
santo!
E Ludmila pôs-se a rir, um rir aveludado e discreto.
— Entrei a pensar em si, na sua vida... Porque a sua existência deve ser
árdua!
Pelagueia contraiu os sobrolhos, pensativa.
— Não sei! — respondeu, hesitante. — Há momentos em que me parece que
sim... mas não é verdade! Há tantas coisas... coisas espantosas e graves, que se
seguem com tanta rapidez umas às outras!...
Subia-lhe ao peito a onda de excitação que ela conhecia bem, enchendo-lho
de imagens e de pensamentos. Sentou-se na cama e deu-se pressa em revestir de
palavras as suas ideias.
— Tudo o que estamos presenciando caminha para o mesmo fim, como o
fogo, quando arde uma casa, tende sempre a subir! Aqui, abre caminho, mais
além, brilha intensamente, sempre mais violento, sempre mais luminoso... Há
tanta coisa que custa ver! Se soubesse!... Essa pobre gente sofre, é incomodada,
espiada... Batem-lhes, batem-lhes com crueldade... Eles, então, ocultam-se a
todas as vistas, passam a viver como frades. Quantas alegrias há que lhe são
defesas!... E é triste assim, a vida!Ludmila ergueu com vivacidade a cabeça e fitou Pelagueia com profundo
olhar.
— Não é de si que está falando! — observou em voz baixa.
— De mim!... — repetiu ela, enquanto se ia vestindo. — E pode alguém
colocar-se à parte, quando o nosso coração ama alguma coisa, quando este ou
aquele nos é querido, quando se sente medo e compaixão por todos?... Tudo isto
se nos entrechoca na alma, atraída assim para cada um desses infelizes... Como
podemos colocar-nos à parte? Para nos refugiarmos onde?
Já meia vestida, permaneceu um instante pensativa no meio do quarto. E
subitamente, afigurou-se-lhe que já não era ela a mesma criatura que tanto se
inquietara e alarmara pela sorte de seu filho; tal personalidade já não existia,
tinha-se desapegado e afastado dela. Escutou-se então a si própria, no desejo de
saber o que se passava no seu íntimo, embora receasse despertar outra vez o seu
velho sentimento de ansiedade.
— Em que está pensando? — perguntou-lhe Ludmila afetuosamente.
— Nem eu sei!
Calaram-se as duas, olharam uma para a outra e sorriram. Depois, Ludmila
abalou do quarto, murmurando:
— Que estará fazendo o meu samovar?
Pelagueia olhou então pela janela. Lá fora, reinava a frialdade dum luminoso
dia de inverno. Ela, no âmago do coração, sentia também uma claridade igual
àquela, mas quente. O seu desejo seria falar de tudo; demorada e jovialmente,
num vago sentimento de gratidão por tudo o que baixara à sua alma, tornando-lha
assim bem formada. Sentiu, o que havia muito não lhe sucedia, um desejo de
rezar. Veio-lhe então à lembrança um rosto moço e imberbe; na sua memória
ecoou uma voz delgada: «É a mãe do Pavel Vlassov...» Cintilavam os meigos
olhos joviais de Sachenka; desenhava-se o negro perfil de Ribine; sorria o rosto
valoroso e bronzeado de Pavel; Nicolau piscava os olhos, acanhado. E de repente,
todos aqueles rostos amigos foram eclipsados em meio dum suspiro ligeiro mas
de significação profunda; baralharam-se, confundiram-se em uma nuvem
transparente e multicolor, que envolvia o coração em um sentimento de paz.
— O Nicolau tinha razão! — disse Ludmila ao regressar ao quarto. — Foi
preso, não há dúvida possível! Conforme me recomendou, mandei um rapazito a
casa dele. Já voltou. Diz que estão lá agentes de polícia escondidos no pátio; que
viu um por detrás da porta da rua. Os espiões vigiam ao de redor da casa; o
pequeno conhece-os.
— Ah! — limitou-se Pelagueia a dizer, com um meneio de cabeça. — Pobre
Nicolau!
— Nestes últimos tempos, ele fazia muitas preleções aos operários da cidade;estava desmascarado; era tempo e mais que tempo que desaparecesse! —
prosseguiu Ludmila em tom sombrio mas sereno. — Os companheiros andavam
sempre a dizer-lhe que saísse da cidade; ele não quis dar-lhes ouvidos!... A minha
opinião é que, em tais casos, o que se deve não é aconselhar as pessoas, mas
obrigá-las!
À porta apareceu um rapazito de cabelo preto, pele rosada, nariz aquilino e
bonitos olhos azuis.
— Quer que traga o samovar? — perguntou com voz sonora.
— Traz, sim, Sérgio, se fazes favor. É meu discípulo... Não o conhecia?
— Não.
— Tenho-o mandado algumas vezes a casa do Nicolau.
Pelagueia, entretanto, achava Ludmila muito mudada, parecia-lhe mais
singela de maneiras, mais compreensível. Havia nos movimentos graciosos do
seu esbelto corpo, beleza e força, a atenuarem o que no rosto pálido tinha de
severidade. Com a noite perdida as olheiras haviam-se-lhe cavado mais. Sentia-
se-lhe nos modos um esforço continuado, como se na sua alma vibrasse uma
corda em demasiada tensão.
O rapaz trouxe o samovar.
— Sérgio, olha a senhora Pelagueia Vlassov, a mãe do operário que foi ontem
condenado.
A criança inclinou-se em silêncio, apertou a mão de Pelagueia, tornou a sair e
voltou trazendo pão.
Sentou-se também à mesa. Enquanto ia servindo o chá, Ludmila aconselhou
Pelagueia a não voltar para casa sem que se soubesse quem era a pessoa
alvejada pelas diligências policiais.
— Talvez seja a senhora mesma... Hão de querer interrogá-la.
— Que me importa! — redarguiu ela. — Se for presa, a desgraça não será
grande! Só o que desejava era que o discurso do Pavel estivesse já distribuído...
— Já está composto. Amanhã teremos exemplares bastantes para a cidade e
para os arrabaldes... e também para o resto do distrito. Conhece a Natacha?
— Ora se conheço!
— Pois é preciso que lhe leve os folhetos.
A criança estava lendo um jornal. Parecia não ouvir o que diziam, mas de
quando em quando, erguia os olhos para Pelagueia. Esta, quando lhe surpreendia
aquele olhar tão vivo, sentia-se agradavelmente comovida. A jovem senhora
falou novamente de Nicolau, sem lamentar sequer a sua captura, o que de toda a
maneira pareceu a Pelagueia naturalíssimo. O tempo dir-se-ia passar mais veloz;
era perto do meio-dia quando terminaram o almoço.De repente ouviu-se bater na porta, rapidamente. Levantou-se a criança e
dirigiu interrogador olhar à dona da casa.
— Abre, Sérgio! Quem poderá ser?
Com o maior sossego, introduziu a mão na algibeira do vestido e disse à sua
hóspede:
— Se for a polícia, coloque-se ali naquele canto. E tu, Sérgio...
— Bem sei! — respondeu a criança, baixando a voz. E saiu.
Pelagueia sorria. Não a impressionavam tais preparativos; não tinha o
pressentimento duma desgraça.
Quem entrou afinal foi o doutor. Anunciou logo com precipitação:
— O Nicolau foi preso!... Ah, está por cá, tiazinha?... Não estava em casa
quando o levaram?
— Não, senhor; foi ele que me mandou para aqui.
— Hum!... Não me parece que isso lhe seja de grande utilidade... Esta noite,
uns rapazes imprimiram com gelatina quinhentos exemplares do discurso do
Pavel. O trabalho ficou bom, está bem impresso, lê-se bem. Tencionam distribui-
los pela cidade, esta noite. Não sou dessa opinião: para a cidade são preferíveis os
folhetos impressos; os outros é que devem ser expedidos para toda a parte.
— Eu os vou levar à Natacha! Dê-mos! — exclamou Pelagueia com
vivacidade.
O seu grande desejo era fazer circular o mais depressa possível o discurso de
Pavel; inundar a terra com as palavras de seu filho. E fitava o médico
atentamente, com olhar quase suplicante.
— Não sei se será prudente que a senhora se meta agora nessa empresa! —
disse, indeciso. E puxou pelo relógio. — São onze horas e quarenta e três
minutos... O comboio parte às duas e cinco; pode chegar ao seu destino às cinco e
quinze.. Ia chegar de noite, mas não era muito tarde... Além do que, não é isto o
essencial...
— Não, não é isso o essencial! — repetiu Ludmila, franzindo o sobrolho.
— Então o que é? — perguntou Pelagueia, aproximando-se deles. — O
essencial é que a distribuição seja bem feita... e eu sei como me hei de haver!
A dona da casa atentou nela fixamente e declarou, passando a mão pela testa:
— É perigoso...
— Porquê? — exclamou a outra.
— Aqui tem porquê! — expôs o doutor com voz precipitada e desigual. —
Vossemecê desapareceu de casa uma hora antes da prisão do Nicolau. Daqui a
pouco, vai ser vista lá na fábrica, onde é tão conhecida. Logo depois de lá chegar,
entram a aparecer os folhetos revolucionários... Tudo isso são indícios que se lhevão apertar na garganta como um laço corredio...
— Mas é que não hão de dar por mim! — objetou ela com animação
crescente. — Se for presa quando de lá voltar, e me perguntarem onde estive...
Interrompeu-se um momento e prosseguiu:
— Sempre hei de achar resposta! Por exemplo: posso ir da fábrica
diretamente ao arrabalde. Conheço lá um sujeito chamado Sizov. Pois digo que
logo em seguida ao julgamento fui para casa do Sizov, por me achar incomodada
com o desgosto sofrido... Também ele está muito pesaroso: o sobrinho foi
condenado juntamente com o Pavel!... Digo que estive todo este tempo em casa
dele, e ele há de confirmar o que eu disser... Bem veem!
E porque os sentisse cederem aos seus argumentos, esforçava-se por
convencê-los e falava com crescente calor. Por fim, aquiesceram.
— Que se há de fazer? Pois vá! — concordou o doutor, mas de má vontade.
Ludmila conservava-se em silêncio; passeava pelo quarto, meditativa. O rosto
assombreara-se-lhe, as faces haviam-se-lhe cavado; os músculos do pescoço
pareciam ter-se distendido, como se a cabeça se tivesse bruscamente tornado
mais pesada e tombasse irresistivelmente para o peito.
O forçado consentimento do doutor arrancara a Pelagueia profundo suspiro.
— Andam todos a animar-me! — disse, sorrindo. — Mas os senhores são os
primeiros que não se poupam!
— Isso não é assim! — replicou o doutor. — Poupamo-nos todos; temos o
dever de nos poupar. E as nossas censuras nunca serão demasiadas para aqueles
que se expõem inutilmente! Por consequência lá se lhe irão levar os folhetos à
estação.
Explicou-lhe o que tinha a fazer e em seguida acrescentou, fitando-a bem de
frente:
— O que desejo é que se saia bem! Está satisfeita, não é assim?
E foi-se descontente. Logo que ouviu fechar-se a porta, Ludmila aproximou-
se de Pelagueia.
— A senhora é uma excelente mulher!... Eu compreendo-a...
Travou-lhe depois do braço, e ambas entraram a passear pelo aposento.
— Também eu tenho um filho. Tem já doze anos. Mas vive com o pai. Meu
marido é procurador substituto; talvez seja já procurador efetivo, não sei... E
aquela criança está na sua companhia... Quantas vezes pergunto a mim mesma
qual será o seu futuro!...
Teve na voz, desfalecida, uma comoção, e depois prosseguiu baixinho, de
novo meditativa:
— Se ele está sendo educado por um inimigo figadal daqueles que me sãoqueridos, daqueles que eu considero como as melhores criaturas da terra!... E
assim, meu filho pode vir a ser meu inimigo também... Não me é lícito trazê-lo
para a minha companhia, pois que vivo com nome suposto. E há oito anos já que
o vi pela última vez!... Quanto tempo! Oito anos!
Ao pé da janela, parou e ficou a olhar para o pálido e desolado céu.
— Se ele vivesse comigo, sentir-me-ia mais forte. Mesmo se morresse,
ficaria mais aliviada...
Após um instante de silêncio, ergueu a voz para explicar:
— Porque então, ficaria sabendo que só estava morto; porque não poderia
tornar-se num inimigo de aquilo que é superior ao próprio amor materno, de tudo
o que na vida há mais precioso!...
— Minha querida amiga! — murmurou brandamente Pelagueia, sentindo o
coração confranger-se-lhe de dó.
— A senhora é feliz! — prosseguiu Ludmila com um sorriso. — É admirável
ver uma mãe e um filho caminharem lado a lado... É raro!
— Sim, é certo; é delicioso! — exclamou Pelagueia.
E explicou, baixando a voz, como para confiar um segredo:
— É como se tivéssemos uma segunda vida! A senhora, Nicolau, todos,
enfim, os que lutam pela verdade, estão connosco!... E assim, tornamo-nos mais
íntimos uns dos outros... E eu compreendo-os... não o que dizem, mas tudo o
mais, sim, compreendo-o!... Tudo!
— Ah, é assim? — exclamou a jovem senhora. — É assim!...
E logo Pelagueia, pousando-lhe a mão no ombro:
— Os nossos filhos vão em marcha pela terra! Eis o que eu compreendo! Vão
em marcha pela terra, por toda a terra e em toda a parte caminham para o
mesmo fim! Arremessam-se ao assalto os melhores corações e os espíritos mais
leais, sem olharem para trás de si, para tudo o que é mau e sinistro. E avançam,
avançam... Débeis ou robustos todos dedicam as suas inteiras forças à mesma
causa: a justiça! Juraram triunfar da desgraça; armaram-se para aniquilar o
infortúnio da humanidade: querem vencer o horror e hão de vencê-lo!
«Havemos de acender um novo sol» disse-me um deles. E hão de acendê-lo!
«Havemos de reunir num só todos os corações despedaçados!» disse outro. E
hão de fazê-lo!
Ergueu o braço para o céu:
— Além há um sol!
E, batendo no peito, concluiu:
— E aqui, outro se há de acender, mais brilhante que o do céu, o sol da
felicidade humana, que eternamente iluminará a terra inteira e aqueles que ahabitam, com a luz do amor de cada criatura por todos e por tudo!
E Pelagueia evocava as palavras das orações esquecidas para entusiasmar a
sua nova fé e lançava-as do coração como centelhas:
— Os nossos filhos, caminhando pela senda da razão e da verdade, levam o
amor a todas as coisas, criam um novo céu, acendem o lume sagrado e
incorruptível que brota da alma, do âmago do coração. E é assim que nos é
oferecida uma vida nova no apaixonado amor dos nossos filhos pelo mundo
inteiro. E quem poderia extinguir este amor? Quem? Existe força superior a esta?
Quem poderia vencê-la? Foi a própria terra que a gerou e a vida inteira exige a
sua vitória... a vida inteira!
Pelagueia afastou-se de Ludmila e sentou-se, ofegante, quebrada pela sua
comoção. A jovem senhora afastou-se também de mansinho, com precaução,
como se receasse quebrar alguma coisa. No seu passo ágil, atravessou o quarto,
fixando para longe dali o olhar profundo dos seus olhos sem brilho. Parecia ainda
mais delgada, mais hirta e mais alta. Tinha na cara chupada e severa uma
expressão concentrada, comprimia nervosamente os lábios. O silêncio acabara
por apaziguar a exaltação de Pelagueia. A meia voz, num tom de receio,
perguntou:
— Talvez eu dissesse coisas que não deveria ter dito.
Ludmila voltou-se com vivacidade, lançou-lhe um olhar assustado e
exclamou:
— Não! É assim mesmo! É assim mesmo!... Mas não falemos mais nisso!
Fiquem as suas palavras tais quais as pronunciou, sim!
E prosseguiu depois, já mais calma:
— É forçoso partir... A estação fica longe daqui.
— Sim, vou já partir! Como me sinto contente! Se soubesse!... Levo comigo
as palavras do meu filho, as palavras do meu sangue! É como se levasse a minha
alma!
Sorria. Mas este sorriso não produziu mais que um pálido reflexo na
fisionomia de Ludmila. Pelagueia sentia aquela frieza regelar-lhe a sua própria
alegria. Assim, sentiu o desejo súbito de comunicar àquela alma severa o seu
ardor, abraçar-se com ela, afim de a fazer sentir em uníssono com o seu coração
de mãe. Tomou a mão de Ludmila e disse, apertando-lha com força:
— Minha querida! Como é bom saber que há na vida luz para todos os
homens e que, com o tempo, eles hão de acabar por vê-la, por fundirem nela as
suas almas e por arderem todos da mesma chama inextinguível!
O seu rosto bondoso tremia de entusiasmo; os seus olhos radiantes e as suas
sobrancelhas agitavam-se, como para dar asas ao brilho das pupilas. Sentia-se
inebriada pela sublimidade dos seus ideais, em que punha toda a ardência docoração, tudo o que experimentara, e encerrava nos rijos e límpidos cristais das
palavras iluminadas as ideias que floresciam e desabrochavam mais e mais no
seu coração outonal, iluminado pelo sol da força criadora.
— É como se para nós tivesse nascido um novo Deus! Tudo para todos, todos
para tudo, a vida inteira em um só, em cada um a vida inteira! E cada um para a
vida inteira! É assim que eu compreendo; é para isso que vós todos andais pela
terra, eu bem o vejo! Em verdade, todos sois camaradas, todos sois da mesma
família, porque todos sois os filhos da mesma mãe: a verdade! Foi a verdade que
vos gerou e é pela sua força que viveis!
Pelagueia retomou alento e continuou, com um gesto largo que parecia
abarcar tudo!
— E quando a mim própria pronuncio esta palavra «camaradas» parece-me
ouvi-los caminhar. De toda a parte vêm em multidão. Oiço um ruído atroador e
alegre, como se os sinos de todas as igrejas da terra entrassem a tocar!
Conseguira o que desejava: animara-se o rosto de Ludmila; os lábios
tremeram-lhe; uma após outra, rolaram-lhe dos olhos pesados lágrimas
cristalinas.
Então, Pelagueia tomou-a entre os braços; teve um riso silencioso,
meigamente ufana da vitória obtida pelo seu coração.
Ao afastarem-se as duas mulheres, Ludmila fitou Pelagueia e perguntou em
voz baixa:
— Sabe que é muito agradável estar na sua companhia?
E a si própria respondeu, rematando:
— Sim, parece que se está no cimo de uma alta montanha, ao nascer da
aurora... XXIX
Lá fora, o ar seco e glacial fustigava o corpo, irritava a garganta e o nariz;
sufocava a respiração. Pelagueia parou a certa altura, olhando em torno: perto
dali, à esquina duma rua, estava um cocheiro com um boné de pelo; mais longe,
caminhava um homem, todo corcovado, com a cabeça encolhida entre os
ombros. Um soldado corria, aos pulos, esfregando as orelhas.
«Provavelmente mandaram-no à loja, a comprar alguma coisa!» pensou
ela. Escutava com satisfação o ruído da neve que se lhe quebrava sob os passos.
Em breve chegou à estação; o comboio ainda não estava formado; no entretanto,
havia já muita gente na sala de espera da terceira classe, enfumaçada e suja. O
frio para lá escorraçara os trabalhadores do caminho de ferro; e também vinham
aquentar-se ali, cocheiros e indivíduos mal vestidos, sem eira nem leira.
Também ali se encontravam viajantes: alguns campónios, um negociante gordo,
vestido de espessa capa de peles, um padre com a sua filha, uma rapariguita de
rosto pálido, cinco ou seis soldados e alguns burgueses com ares de atarefados.
Fumava-se, conversava-se, bebia-se aguardente ou chá. Junto ao bufete, ouviam-
se grandes gargalhadas; pairava por cima das cabeças o fumo do tabaco em
densas nuvens. Ao abrir-se, a porta chiava, e quando a tornavam a fechar, batia
com estrondo e as vidraças ressoavam e tremiam. Assaltava violentamente as
narinas um cheiro a tabaco e a peixe salgado.
Pelagueia sentou-se perto da porta, bem em evidência, e esperou. Quando
entrava alguém, envolvia-a uma lufada de ar frio; a sensação era agradável:
respirava nesses momentos a plenos pulmões. Aparecia gente em pesados trajos,
carregada de embrulhos; prendiam-se desastradamente na porta, praguejavam,
atiravam os seus fardos para o chão; depois limpavam da geada a gola e as
mangas dos casacões, limpavam as barbas ou os bigodes, resmungando.
Um rapaz, que trazia uma mala amarela, entrou, e depois de olhar
rapidamente em torno, foi direito a Pelagueia.
— A Moscovo? — perguntou ele a meia voz.
— Sim! A casa de Tânia.
— Aí tem!
E dito isto, colocou a mala sobre o banco, ao lado dela, tirou um cigarro da
algibeira, acendeu-o rapidamente e tornou a sair por outra porta, depois de ter
erguido levemente o boné. Pelagueia passou a mão pelo coiro frio da mala e
encostou-se a ela. Satisfeita, enfim, pôs-se a examinar quem estava. Instantes
depois, levantou-se e foi sentar-se noutro banco, mais próximo da saída. Levava
a mala numa das mãos com a maior serenidade, de cabeça levantada e fitando
as caras que lhe passavam ao alcance da vista.
Um homem vestido dum casaco curto e com a cabeça enterrada na gola,erguida, deu-lhe um encontrão e afastou-se sem dizer uma palavra, levando
simplesmente a mão ao boné. Pareceu-lhe tê-lo já visto. Voltou-se e viu que ele
a estava observando. Sentiu-se como trespassada por aquele olhar claro; a mala
entrou a tremer-lhe na mão, como se tivesse repentinamente aumentado de peso.
— Onde vi eu aquele homem? — perguntava a si mesma, como para repelir
a sensação desagradável que lhe subia do peito até à garganta e lhe enchia a boca
de amargo travor. Apoderou-se dela um desejo irresistível de se voltar e de olhar
mais uma vez para ele: o homem continuava no mesmo lugar, firmando-se ora
num pé, ora no outro e parecia indeciso. Introduzira a mão direita entre os botões
do casaco e conservava a outra na algibeira, o que fazia parecer que tinha o
ombro direito mais alto do que o esquerdo.
Devagar, Pelagueia caminhou até um banco, sentou-se lentamente, com
precaução, como se receasse quebrar alguma parte do corpo. A sua memória,
despertada por um agudo pressentimento de desgraça, evocava dois aspetos deste
homem: o primeiro datava do dia da evasão de Ribine; o outro, da véspera.
Lembrava-se ter visto no tribunal, ao lado daquele individuo o agente de polícia a
quem fornecera a errada indicação sobre o caminho que Ribine tomara na sua
fuga. Tornara-se pois conhecida, andava vigiada, era certo!
— Estarei eu apanhada? — perguntou a si mesma. E respondeu, sentindo-se
estremecer: — Talvez ainda haja meio... Não, decididamente estou apanhada,
não há nada a fazer...
Olhou em roda, mas não viu nada suspeito. Uma após outra, como centelhas,
surgiam-lhe e apagavam-se-lhe várias ideias dentro do cérebro.
— Deixar a onda?... Ir-me embora?
Mas logo outra centelha mais viva brilhou: «As palavras do meu filho... atirá-
las assim fora! Deixá-las em semelhantes mãos!»
E chegou a mala mais para si.
«E se eu agarrasse nela e deitasse a fugir!...»
Chegava-lhe a parecer não serem seus os próprios pensamentos, que alguém
lhos introduzia no cérebro, à força. Eram como queimaduras a corroerem-lhe
dolorosamente a cabeça e o coração, levando-a para longe de si mesma, para
longe de Pavel, de tudo o que já fazia parte integrante do seu coração. Sentia que
uma força hostil a oprimia obstinadamente, lhe pesava nos ombros e no peito, a
aviltava, mergulhando-a em frio terror. Incharam-se-lhe as veias das fontes,
subiu-lhe à cabeça intenso calor.
Então, dum só impulso vigoroso que a ergueu de chofre, sufocou em si todos
estes lampejos de tibieza, covardes e astuciosos, ordenando a si própria com
autoridade: «Não sejas a vergonha do teu filho!»
Aos seus olhos apareceu então um olhar tímido e desconsolado. Passou-lhepela memória a imagem de Ribine. Estes poucos segundos de hesitação bastaram
para fortalecer nela todas as crenças. O coração pulsou-lhe com mais
regularidade.
— Que irá acontecer? — perguntou a si mesma, olhando em torno.
O espião acabava de chamar um guarda; segredava a este o que quer que
fosse, designando-a com o olhar. O guarda observou Pelagueia e recuou.
Aproximou-se outro guarda e pôs-se a escutar o que diziam. Era um velho
robusto, grisalho e de comprida barba. Fez um sinal com a cabeça ao espião e
adiantou-se para o banco em que Pelagueia se sentava. O espião desapareceu
como por encanto.
O velho caminhava sem pressa alguma, perscrutando atentamente com olhar
irritado a fisionomia de Pelagueia. Ela encolheu-se toda no fundo do banco.
«Contanto que não me batam!... Deus permita que não me batam!»
O guarda parou junto dela e, após silêncio, perguntou com severidade:
— Que estás tu a olhar?
— Nada...
— Está bem... Ladra! Então és velha e andas nessa vida?!
Com estas palavras julgou Pelagueia que recebia uma bofetada. Irritadas e
roucas, faziam doer, como se lhe rasgassem as faces e arrancassem os olhos.
— Ladra, eu?! Mentes! — gritou com toda a força dos pulmões.
Tudo o que a rodeava lhe parecia mover-se descompassadamente entre o
redemoinho da sua indignação; sentia o coração atordoado pela amargura da
injúria. Agarrou na mala, que logo se abriu por si.
— Olha! Olhem todos! — exclamou, pondo-se em pé e agitando acima da
cabeça um maço de proclamações. Através dos zumbidos de que tinha cheios os
ouvidos, ouvia as exclamações das pessoas que acudiam de todos os lados.
— Que se passa?
— É um agente da polícia secreta...
— Mas que aconteceu?
— Dizem que roubou, aquela mulher...
— Aquela mulher?
— Mas ela protesta.
— Ora adeus! Com aquele todo tão respeitável!
— Quem foi que prenderam?
— Eu não sou ladra! — repetia ela com voz forte e serenando pouco a pouco
com o ver a atitude dos curiosos que a rodeavam em compacto círculo.
— Ontem foram condenados alguns presos políticos e entre eles o meu filho...O meu filho chama-se Vlassov. Pronunciou um discurso: aqui o têm! Ia levá-lo à
gente do povo, para que o leia e reflita nas verdades que ele encerra!
E porque um dos circunstantes, com precaução, tomasse um dos fascículos
que ela tinha na mão, agitou os outros e atirou-os por sobre o ajuntamento.
— Estás livre de receber felicitações pela maneira por que os distribuíste! —
comentou a medo uma voz.
— Cuidado, que vai acontecer alguma! — aconselhou outra voz.
Pelagueia via que cada qual tratava de se apoderar dos papéis e de escondê-
los nas algibeiras ou no peito. Mais animosa, entrou a tomar maços e maços de
dentro da mala e a atirá-los à direita e à esquerda, nas mãos ávidas e ligeiras que
se lhe estendiam.
— Sabem porque condenaram o meu filho e os que com ele estavam? Vou
dizer-vo-lo! Creiam neste coração de mãe! Condenaram-nos porque vos traziam
a todos a santa verdade! E ontem mesmo eu vi como essa verdade triunfou!...
Ninguém pode lutar contra ela, ninguém!
A multidão, que se conservava muda de assombro, engrossava cada vez mais,
cercando Pelagueia duma cadeia de seres viventes.
— A pobreza, a fome, a doença: eis o que o trabalho nos rende! Tudo é contra
nós. De dia para dia, morremos sob o trabalho, sofremos fome e frio, prostrados
sempre no lodo e no ludíbrio; e são outros que se fartam e se divertem à custa do
nosso labor!... Como cães presos pela trela, imobilizam-nos na ignorância; nós
nada sabemos e, na nossa covardia, de tudo temos medo! A nossa vida é uma
noite, uma noite escura! É um pesadelo horrendo!... Pois não é verdade?
— Sim! — responderam algumas vozes surdas.
— Fecha-lhe a boca!
Por detrás do ajuntamento, Pelagueia avistou o espião acompanhado por dois
guardas. Deu-se pressa em distribuir os últimos maços, mas quando a sua mão
chegava mais uma vez à mala, sentiu o contacto de outra mão.
— Levem tudo! Levem tudo! — disse ela, curvando-se. — Para transformar
esta vida, para libertar todos os homens, para os ressuscitar de entre os mortos,
como eu ressuscitei, nasceram criaturas filhas de Deus que andam a semear pelo
mundo a verdade santa. Operam em segredo, pois, como bem sabem, ninguém
pode dizer a verdade, sem que seja logo perseguido, sufocado, atirado para uma
enxovia, mutilado! A verdade da existência e a liberdade são inimigas para todo
o sempre irreconciliáveis daqueles que nos governam, daqueles que nos
oprimem. E são crianças, são criaturas puríssimas e luminosas que vos anunciam
a verdade. Graças a elas, ela há de chegar enfim às nossas miseráveis
existências, ela há de vir acalentar-nos e confortar-nos; há de libertar-nos da
opressão das autoridades e de todos os que lhes venderam a alma! Creiam!— Bravo, velha! — gritou um.
Outro entrou a rir.
— Vamos, dispersem! — regougaram os guardas, afastando brutalmente a
multidão.
O agrupamento recuou, resmungando, impedindo os guardas entre a massa
da gente e tolhendo-lhes os movimentos, mesmo sem querer. Sentiam-se
dominados por aquela mulher de cabelos grisalhos, olhar de franqueza e modos
bondosos. Indiferentes uns aos outros, isolados pela vida, confundiam-se agora
em um todo, acalentados pelo ardor daquela palavra que muitos esperavam, sem
dúvida, há muito tempo. Os que ficavam mais perto de Pelagueia permaneciam
em silêncio. Pelagueia sentia-lhes os olhares atentos fitos sobre si e o bafo das
respirações.
— Sobe para o banco! — gritou-lhe um.
— Vai-te daqui, velha!
— Vais ser sufocada!
— Que insolente!
— Fala depressa, que eles aí vem!
— Deixem o caminho livre! Vamos, a andar! — gritavam outros guardas,
chegados neste comenos.
Já em número crescido, estes desviavam a multidão com mais violência
ainda; toda aquela gente molestada, agarrava-se a quem lhe ficava próximo.
Parecia a Pelagueia ter na frente como que um férvido cachão e que todos
estavam prontos a compreendê-la e a acreditá-la. O seu desejo era dizer ali,
depressa, tudo o que sabia, todos os poderosos pensamentos que lhe subiam
harmoniosamente, sem esforço, do âmago do coração; mas faltava-lhe a voz,
não lhe saíam do peito mais que sons roucos, entrecortados e trémulos.
— A palavra do meu filho é a palavra pura dum filho do povo, duma alma
íntegra! Pela audácia se reconhecem os que são íntegros; pela verdade, quando
ela o exija, sacrificam-se intrepidamente!
Entre o ajuntamento, olhos juvenis fitavam-na, a um tempo com entusiasmo
e terror.
Recebeu uma pancada no peito, cambaleou e caiu para cima do banco. Por
sobre as cabeças agitavam-se as mãos dos guardas, os quais agarravam
brutalmente os circunstantes pela nuca ou pelos ombros e atiravam-nos para o
lado, arrancavam das cabeças os bonés e arremessavam-nos ao longe. Pelagueia
sentiu confundirem-se e vacilarem as coisas em frente dos olhos, mas dominou a
fadiga e serviu-se ainda da pouca voz que lhe restava.
— Povo, reúne as tuas forças em uma só força!Caiu-lhe no pescoço e sacudiu-a a mão enorme e encarniçada dum guarda.
— Cala-te!
Foi bater com a nuca de encontro à parede. Durante um instante, teve o
coração envolvido numa névoa de ardente terror, mas este vapor logo se dissipou
ao entusiasmo que a aquecia.
— Anda para a frente! — disse o guarda.
— ... Não há sofrimento mais amargo que o que dia a dia devora o coração e
exaure o peito...
O espião precipitou-se ao encontro dela e brandindo o punho em frente da
cara da presa, gritou com voz aguda:
— Cala-te, canalha!
Os olhos de Pelagueia abriram-se desmedidamente e cintilaram; as maxilas
tremiam-lhe. Firmou os pés no lajedo escorregadio e gritou:
— Não se mata uma alma ressuscitada!
— Cadela!
Com pequeno impulso, o capitão bateu-lhe no rosto.
— É bem feito para essa velha porca! — gritou uma voz.
Uma coisa negra e vermelha cegou por instantes Pelagueia; encheu-lhe a
boca o sabor salgado do sangue.
Reanimou a uma explosão de exclamações:
— Você não tem direito de bater!
— Camaradas!
— Que vem a ser isso?
— Ah, patife!
— Dá-lhe!
— ... Não é com sangue que se há de sufocar a razão!
Empurravam-na pelas costas, pelo pescoço, batiam-lhe na cabeça e no peito;
tudo oscilava e se sumia no sombrio turbilhão dos gritos, dos lamentos e dos silvos
dos apitos. Alguma coisa espessa e que a ensurdecia lhe penetrava nos ouvidos e
lhe enchia a garganta até à sufocação. O solo fugia-lhe debaixo das pernas, que
vergavam, o corpo tiritava-lhe sob o aguilhão dos ferimentos; trôpega e exausta,
Pelagueia cambaleava. Mas continuava a distinguir em volta de si numerosos
olhares onde brilhava o entusiasmo decidido que ela conhecia bem e que tão
querido era ao seu coração. Levaram-na aos encontrões para uma das portas.
Ela pôde desembaraçar uma das mãos e agarrou-se ao batente.
— ... Nem mesmo sob um mar de sangue a verdade desaparecerá...
Descarregaram-lhe logo uma pancada na mão.— Só conseguis congregar os ódios, insensatos que sois! E este ódio, este
rancor, há de subverter-vos!...
O guarda agarrou-a pela garganta e entrou a apertar-lha cada vez com mais
violenta pressão.
Num estertor, balbuciou:
— Os desgraçados...
Respondeu-lhe alguém com prolongado soluço.
FIM Notas
[1] A designação de Pequena Rússia, ou Pequena Rus, aplicava-se a uma
região do império russo que corresponde a partes da atual Ucrânia. N. do E.
[2] Gorki apenas regressou à Rússia em 1913, depois de o regime o ter
amnistiado na sequência da celebração dos 300 anos da dinastia Romanov. N. do
E.
[3] Kopeck, moeda de cobre, a centésima parte do rublo.
[4] Bebida em uso entre o povo da Rússia, obtida pela fermentação de um
cozimento de farinha de cevada. — N. do T.
[5] O staroste é o chefe dum mir, ou comuna rural autónoma. — N. do T.
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