"La dificultad no debe ser un motivo para desistir sino un estímulo para continuar"

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A Mae - Maxim Gorki

 A Mãe ROMANCE DE Maxim Gorki [++++++++++++++++++++] (zero papel) EDIÇÕES DIGITAIS 2013 Ficha técnica Título: A Mãe. Autor: Maxim Gorki. Tradução: Sérge Persky e Augusto de Lacerda. Capa: © 2013, (zero papel). Edição digital: © (zero papel), janeiro de 2013, a partir da tradução de 1907. Texto em conformidade com o acordo ortográfico da língua portuguesa de 16 de dezembro de 1990. PREFÁCIO A Mãe não é uma obra de pura imaginação. É, antes de tudo, uma pintura exata — poderia até dizer-se uma vista cinematográfica — do movimento revolucionário na Rússia. Este belo livro introduz na literatura russa tipos que faltavam nela quase por completo: os revolucionários operários e camponeses, cujo papel tem sido tão importante nas últimas tempestades políticas do país dos czares. Graças aos escritores que se têm sucedido de Turgueniev a Lev Tolstoi, o revoltado saído da classe intelectualmente cultivada é mais ou menos conhecido. Por que motivo não havia ainda um retrato completo do seu irmão oriundo das obscuras camadas do povo? Principalmente porque os revolucionários desta categoria são de recente data. Prepararam-se durante muito tempo nas misteriosas profundezas das massas, recrutando-se em silêncio, multiplicando-se pouco a pouco, até ao dia em que, na sequência dos acontecimentos de que a Rússia acaba de ser o teatro, os viram surgir de chofre por toda a parte, tanto nas aldeias as mais recônditas da província, como nas grandes cidades. O povo desperta do seu sono secular, como de sobressalto, e este despertar abre uma era nova na história do movimento da libertação russa. Entre os intelectuais e os iletrados, até hoje distanciados uns dos outros, forma-se um laço sólido, e um mesmo ideal inflama o exército dos que marcham à conquista da liberdade. Descrever esta nova fase da revolução russa, evocar os heróis obscuros que se votaram à grande tarefa da emancipação, analisar nas suas manifestações as mais variadas, e até as mais inesperadas, esta ressurreição da consciência popular, — eis o que Máximo Gorki se propôs nas páginas que ides ler. Tarefa árdua como poucas, mas de molde a tentar a alma ardente do autor. Raras vezes Gorki atingiu tal acuidade de observação, uma variedade mais completa no descritivo, uma tão perfeita certeza de análise psicológica. Mais do que nunca, foi o homem identificado com a sua obra. Filho do povo, ascendendo das mais sórdidas camadas sociais, revolucionário unicamente dedicado ao seu puro ideal de justiça (sempre protestou contra a violência, viesse ela de onde viesse) Gorki tinha, mais do que outrem, os requisitos para escrever esta página trágica da história contemporânea. No personagem tão profundamente humano da mãe, Gorki mostra como uma mulher cheia de doçura e de timidez, espancada pelo pai, pelo marido, esmagada impiedosamente pela sorte, imersa na ignorância e no desbragamento, vai adquirindo pouco a pouco a consciência da sua mísera situação, se alevanta sob a influência do seu filho, até tornar-se como ele revolucionária entusiástica, sacrificando por fim as suas mais queridas afeições, a própria vida mesmo, àcausa do povo. Em torno da mãe e do filho — os dois heróis principais — agita-se um amontoado de outros personagens. De uma parte, os amigos: um pequeno- russo [1] — alma de abnegação e de comovente simplicidade, — raparigas sacrificando felicidade e riqueza para sofrerem a prisão e as provações de toda a espécie; operários robustos e safados reclamando, com o direito à vida, algumas liberdades; camponeses que, depois de séculos de cega submissão, se recusam finalmente a considerar os representantes das autoridades como enviados do céu. De outra parte, os inimigos: oficiais de polícia, guardas e espiões, instrumentos dóceis do poder. Toda esta gente, tão estranha e tão viva, estas lutas, estes julgamentos, estes martírios, episódios duma guerra cruel e sem clemência movida contra os apóstolos do ideal novo, tudo isto é a realidade, a realidade de ontem, de hoje, de amanhã, tudo isto existe e existirá, enquanto na Rússia durar a luta libertadora. De muitas páginas deste livro emana uma emoção profunda. No decurso de uma conversa com os seus companheiros, André, o pequeno- russo, exclama: — Que importam os meus sofrimentos, as minhas desgraças! Quando penso em que um dia a pátria será livre, o meu coração dilata-se de júbilo... tenho vontade de chorar, tão feliz me sinto! E quando Pavel diz, falando de um seu amigo desgraçado mas sempre bem disposto de espírito: — Sabes? Aqueles que mais riem são aqueles cujo coração sofre incessantemente. Um companheiro responde: — Qual história! Se assim fosse, toda a Rússia morreria de riso! * * * O príncipe Urussov, antigo ministro adjunto do interior, na Rússia, conta nas suas Memórias que a rainha da Roménia, falando-lhe dos escritores russos contemporâneos, colocava a muito alto a obra de Gorki, que ela conhecia perfeitamente. «Sabe captar a atenção do leitor, declarava ela, e introduziu processos absolutamente novos na literatura moderna.» Carmen Sylva aludia provavelmente ao dom que Gorki possui de fascinar o leitor com o poder das cenas que descreve. Tais são, neste romance, a morte do revolucionário Iegor, a prisão do camponês Ribine, a audiência do tribunal a que comparecem Pavel e os seus amigos, a cena final em que as mãos dos guardas espancam a pobre mãe. Quantas passagens poderíamos citar ainda! Por exemplo, aquela em que Sofia toca uma sinfonia de Grieg. O autor não diz o nome daquele trecho, mas qualquer músico o reconhecerá imediatamente pelarápida e flagrante descrição que dele faz Gorki. * * * O governo russo entendeu dever apreender A Mãe em todo o império. Poucos dias depois da aparição da obra, a polícia fazia buscas em todas as livrarias tanto de S. Petersburgo como da província. Chegou muito tarde e só pôde apreender poucos exemplares, por estar já vendida a parte máxima de uma larga edição. Ao mesmo tempo, as autoridades entregavam aos tribunais Gorki e o seu editor, sob a acusação de «excitação à revolta» e de «achincalhamento das coisas santas», crimes que elas dizem existirem neste romance. Segundo a lei russa, sob os culpados impende a pena de três a cinco anos de prisão ou de exílio na Sibéria. Há três anos somente, Gorki foi encarcerado na fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, por motivos análogos. A opinião pública sentiu-se abalada em todo o mundo: de todos os países civilizados afluíram petições colossais, reclamando a libertação do mestre. Gorki foi posto em liberdade. Sofrendo do peito, o autor da Mãe está desde há muitos meses em Capri. Regressará em breve ao seu país. [2] A prisão estará esperando novamente um dos melhores filhos da Rússia? Paris, novembro, 1907. S. PERSKY PRIMEIRA PARTE I Todos os dias, na atmosfera esfumaçada e grave do bairro operário, o apito da fábrica lançava aos ares o seu grito estrídulo. Então, criaturas toscas, com os músculos ainda fatigados, saíam rapidamente das pequenas casas pardacentas e corriam como baratas assustadas. Na fria meia-luz, iam pela rua estreita em direção aos altos muros da fábrica que os esperava implacável e cujos inúmeros olhos quadrados, amarelos e viscosos iluminavam a calçada lamacenta. A lama estalava sob os seus pés. Vozes estremunhadas ressoavam com roucas exclamações; pragas cortavam o ar; e uma onda de ruídos vagos acolhia os operários: a pesada traquinada das máquinas, o regougar do vapor. Sombrias e mal encaradas como sentinelas, as altas chaminés negras perfilavam-se acima do bairro, semelhantes a grossos bastões. À tarde, quando o Sol ia no poente, os seus raios vermelhos iluminavam as vidraças das casarias, a oficina vomitava das suas entranhas de pedra todas as escórias humanas, e os operários enegrecidos pelo fumo, espalhavam-se novamente pelas ruas, deixando atrás de si exalações lentas da gordura das máquinas; os seus dentes esfaimados reluziam. Então havia na sua voz animação e até alegria: os trabalhos forçados tinham concluído por algumas horas; em casa aguardava-os a refeição e o descanso. A fábrica absorvia o dia, as máquinas sugavam nos músculos dos homens todas as forças de que elas precisavam. O dia fora riscado do cômputo da vida, sem deixar vestígios; o homem tinha dado mais um passo para o túmulo, sem disso se aperceber; mas podia entregar-se ao gozo do descanso, aos prazeres da sórdida taverna, e estava satisfeito. Nos dias santificados, dormia-se até quase às dez horas da manhã; depois a gente séria e casada vestia o seu melhor fato e ia à missa, censurando aos novos a sua indiferença em matéria religiosa. Ao regressarem da igreja, comiam tortas de massa, e deitavam-se de novo até à tarde. A fadiga acumulada durante longos anos tirava o apetite; para poderem comer, era preciso beberem muito, excitarem o estômago preguiçoso com a ardência do álcool. Pela tarde, passeavam indolentemente pelas ruas; os que possuíam capas de borracha punham-nas, ainda que o tempo estivesse seco; os que tinham um guarda-chuva, com ele saíam, ainda que fizesse sol. Não é dado a toda a gente possuir um impermeável ou um guarda-chuva, mas cada qual ambiciona superiorizar-se ao seu vizinho, seja de que maneira for. Quando se formavam grupos, conversava-se acerca da fábrica, das máquinas, dizia-se mal dos contra-mestres. As palavras e os pensamentos não se referiam a mais do que a coisas relacionadas ao trabalho. A inteligênciadesastrada e impotente lançava apenas umas centelhas isoladas, um ténue clarão na monotonia dos dias. Ao voltarem para casa os maridos buscavam questões para discutirem com as mulheres, batendo-lhes muitas vezes, sem pouparem as suas forças. Os novos ficavam na taverna ou organizavam pequenas reuniões em casa dum ou doutro, tocavam harmónio, cantavam canções estúpidas e ignóbeis, dançavam, contavam histórias obscenas e bebiam em excesso. Extenuados pelo trabalho, estes homens embriagavam-se facilmente, e em cada peito desenvolvia-se uma excitação doentia, incompreensível que precisava de encontrar saída. Então, pelo mais fútil pretexto, atiravam-se uns aos outros como animais selvagens. Havia contendas sangrentas. Nas relações dos operários entre si, dominava este mesmo sentimento de animosidade encubada; inveterara-se neles, tanto como a fadiga dos músculos. Estes seres nasciam com a doença da alma, herança de seus pais; e como uma sombra negra acompanhava-os até ao túmulo, impelindo-os à realização de atos repelentes pela sua inútil crueldade. Nos dias santificados, os novos regressavam tarde a casa, com os fatos esfarrapados, cobertos de lama e de poeira; com as caras esmurradas, gabavam- se dos murros que tinham dado nos companheiros; as injúrias sofridas encolerizavam-nos ou faziam-nos chorar; eram lastimáveis na sua embriaguez, desgraçados e repugnantes. Por vezes, os pais levavam para casa os filhos que haviam encontrado a cair de bêbedos na rua ou na taverna; as injúrias e os murros choviam nos rapazes embrutecidos ou excitados pela aguardente; depois metiam-nos na cama com tal ou qual precaução, e pela manhã acordavam-nos, apenas o silvo do apito da fábrica cortava os ares. Embora repreendessem os rapazes e lhes batessem, a sua embriaguez e as suas contendas eram coisas naturais para a família; quando os pais eram ainda novos tinham bebido também e entrado em desordens, sendo igualmente castigados pelos pais e pelas mães. A vida decorria sempre assim; continuava a decorrer, não se sabia até onde, regular e lenta como um rio lodoso. Apareciam por vezes no bairro criaturas estranhas, que a princípio despertavam a atenção, simplesmente porque eram desconhecidas; mas dentro em pouco habituavam-se a elas, e acabavam por passar despercebidas. Das suas conversas concluía-se que a vida do operário era em toda a parte a mesma coisa. E desde que era assim, para quê falar sobre tal assunto? Havia porém alguns que diziam coisas novas para o bairro. Não discutiam com eles, não prestavam mais do que uma atenção incrédula às suas palavras extravagantes, que excitavam nuns uma irritação cega, noutros uma espécie de inquietação, ao passo que outros ainda sentiam-se perturbados por uma vaga esperança, e desatavam a beber ainda mais que de costume para afastarem tal impressão.Se o recém-chegado apresentava algum traço caraterístico extraordinário, os moradores do bairro punham-no em rigorosa quarentena, tratavam-no com instintiva repulsão, como se receassem vê-lo trazer para a existência de todos o que quer que fosse perturbador do ramerrão penoso, mas tranquilo. Acostumados a serem oprimidos pela vida, aquela gente considerava todas as transformações possíveis como próprias somente a tornarem o seu jugo ainda mais pesado. Resignados, faziam o vácuo em torno daqueles que pronunciavam palavras estranhas. Então estes desapareciam não se sabe para onde; se ficavam na fábrica, viviam à parte, não conseguindo confundir-se na multidão uniforme dos operários. Depois de ter vivido assim uns cinquenta anos, o homem morria. II Desta maneira vivia o serralheiro Mikhail Vlassov, homem sombrio, de pequeninos olhos desconfiados e maus, protegidos por espessas sobrancelhas. Era o melhor serralheiro da fábrica e o hércules do bairro. Tinha porém modos grosseiros para o chefe; por isto ganhava pouco; todos os domingos sovava algum; todos o temiam e ninguém o estimava. Por várias vezes, haviam tentado dar-lhe uma tareia, mas nunca conseguiram. Quando Vlassov previa uma agressão, agarrava numa pedra, numa tábua, num bocado de ferro, e, solidamente firme nas pernas abertas, esperava em silêncio o inimigo. Com a cara coberta, desde as orelhas até ao pescoço duma barba negra, as suas mãos peludas despertavam um terror geral. Principalmente tinham medo dos seus olhos penetrantes que atravessavam o próximo como pontas de aço; quando lhe encontravam o olhar, sentiam-se em presença duma força selvagem, inacessível ao terror, prestes ao ataque impiedoso. — Eh lá! Vá daqui, canalha! — dizia ele roucamente. Na espessa tez do seu rosto, os dentes amarelos brilhavam ferozes. Os seus adversários recuavam, invetivando-o. — Canalha! — gritava ele ainda, e os seus olhos disparavam sarcasmos acerados como sovelas. Depois, erguendo a cabeça com ares provocadores, seguia os seus inimigos, berrando de quando em quando: — Então! Quem quer morrer? Ninguém queria. Falava pouco. A sua expressão favorita era: «canalha». Qualificava assim os chefes da fábrica, e da polícia; empregava o mesmo epíteto quando se dirigia à mulher. — Ó canalha, não vês que as minhas calças estão rotas? Quando o seu filho Pavel tinha catorze anos, Vlassov sentiu ainda uma vez o desejo de levantá-lo ao ar pelos cabelos. Mas Pavel, deitando a mão a um martelo, disse resumidamente: — Não me toques! — O quê? — perguntou o pai, encaminhando-se para o pequeno de formas esbeltas e delicadas. Dir-se-ia uma sombra caindo sobre uma bétula. — Basta! — exclamou Pavel. — Não te deixarei continuar... E agitou o martelo, abrindo desmedidamente os grandes olhos negros. O pai olhou para ele, pôs as mãos peludas atrás nas costas, e disse em ar de troça: — Está bem...Depois acrescentou com um profundo sorriso: — Ah! Canalha! Logo declarou à mulher: — Nunca me peças mais dinheiro para os sustentar, a ti e ao Pavel. — Vais gastar tudo na bebida? — ousou ela perguntar. Deu um murro na mesa, exclamando: — Que tens tu com isso, canalha? Vou arranjar uma amante! Não a arranjou; mas a partir daquele dia até à morte, durante cerca de dois anos, nunca mais olhou para o filho nem lhe dirigiu palavra. Tinha um cão tão forte e peludo como ele. Todas as manhãs o animal o acompanhava até à porta da fábrica, onde o esperava à tarde. Nos dias santificados, Vlassov ia para a taverna. Andava sem dizer palavra, e como se procurasse o que quer que fosse, lançando olhares furtivos aos que passavam. Durante todo o dia, o cão seguia-o, com a espessa cauda descaída. Quando Vlassov, bêbedo, entrava em casa, ceava e dava de comer ao cão no seu próprio prato. Nunca batia no animal, assim como não lhe ralhava nem o acariciava. Depois da refeição, se a mulher não conseguia levantar a mesa no momento oportuno, atirava com a louça ao chão, punha na sua frente uma garrafa de aguardente e, com as costas contra a parede, com a boca muito aberta e os olhos fechados, cantava em voz roufenha uma canção melancólica. Os sons discordantes baralhavam-se-lhe no bigode, do qual caíam migalhas de pão; os seus dedos grossos alisavam os pelos da barba. As palavras da canção eram incompreensíveis, arrastadas, a melodia recordava os urros dos lobos no inverno. Cantava enquanto durava a aguardente; depois estirava-se no banco ou encostava a cabeça à mesa e dormia assim até que o apito da fábrica o chamava. O cão deitava-se ao seu lado. Morreu duma hérnia, após longa agonia. Durante cinco dias, enegrecido pelo sofrimento, agitou-se incessantemente no leito, com as pálpebras cerradas, com a boca em contorções. De quando em quando, dizia para a mulher: — Dá-me arsénico. Envenena-me! Ela chamou o médico, que receitou cataplasmas, informando de que seria indispensável uma operação, e de que era preciso levar o doente para o hospital imediatamente. — Vai para o diabo, canalha! Morro bem, sozinho! — respondeu ele. Quando o médico saiu, a mulher lavada em lágrimas, quis resolvê-lo a submeter-se à operação; Mikhail declarou-lhe ameaçando-a de punho cerrado: — Não experimento. Se eu ficasse bom, haverias de pagá-lo caro! Uma manhã, morreu, enquanto o apito da fábrica chamava os operários aotrabalho. Deitaram-no no caixão; tinha o sobrolho franzido e a boca aberta. Foi levado à última morada pela mulher, pelo filho, pelo cão, e por Danilo Vessovtchikov, velho ladrão e bêbedo expulso da fábrica, e por alguns miseráveis do bairro. A mulher chorou um pouco. Pavel tinha os olhos secos. Os que encontraram o préstito fúnebre pararam e persignaram-se, dizendo: — Com certeza que Pelagueia está satisfeita com a morte do marido. Alguém emendou: — Não morreu: rebentou. Depois do caixão descer à terra, os que o acompanharam voltaram para casa; o cão ficou deitado na terra húmida, farejando por muito tempo. Decorridos alguns dias, mataram-no; não se soube quem. III Certo domingo, uns quinze dias depois da morte do pai, Pavel entrou em casa embriagado. Parou cambaleando na primeira divisão, e gritou para a mãe, dando um murro na mesa, como fazia Mikhail: — A ceia! Pelagueia aproximou-se, assentou-se ao seu lado; enlaçando-o com os braços, puxou para o peito a cabeça do filho. Ele repeliu-a, pondo-lhe o braço no ombro, e disse: — Depressa, mamã! — Patetinha! — respondeu ela com voz triste e carinhosa. — Também quero fumar! Dá-me o cachimbo do pai... — rosnou, movendo a custo a língua rebelde. Era a primeira vez que se embriagava. O álcool tinha enfraquecido o seu corpo, mas não lhe extinguira a consciência; perguntava a si próprio: — Estou bêbedo?... Estarei bêbedo? As carícias da mãe vexavam-no; estava comovido pela tristeza do olhar dela. Tinha vontade de chorar; e para vencer este desejo fingiu-se ainda mais embriagado. E a mãe acariciava-lhe os cabelos em desordem e cobertos de suor, dizendo suavemente: — Não devias ter feito isso... Pavel começava a sentir náuseas. A seguir aos vómitos, foi levado para a cama pela mãe, que lhe colocou uma toalha húmida na fronte pálida. Repôs-se um pouco; mas tudo lhe andava à roda; as pálpebras pesavam-lhe; tinha na boca um gosto repugnante e amargo; olhava para o rosto da mãe e tinha pensamentos sem nexo. — É ainda cedo para mim... Os outros bebem sem ficarem doentes; eu tenho náuseas. A doce voz da mãe chegava-lhe aos ouvidos como se viesse de muito longe: — Como poderás sustentar-me, se te entregas à bebida? Respondeu, fechando os olhos: — Todos bebem... Pelagueia suspirou profundamente. O filho tinha razão. Ela bem sabia que os homens não encontrariam outro sítio senão a taverna para se divertirem, que não tinham outro prazer senão o álcool. No entretanto, retorquiu: — Tu não precisas de beber! O teu pai bebeu à farta por ti; e bastante meatormentou... Deves ter piedade da tua mãe. Ouvindo estas palavras melancólicas e resignadas, Pavel pensou na existência silenciosa e apagada daquela mulher, esperando sempre os espancamentos do marido. Nos últimos tempos, Pavel pouco se demorava em casa, para não ver o pai; desprezava um tanto a mãe; regressando ao seu estado normal, examinava- a. Era alta e levemente corcovada; o seu corpo pesado, abatido por incessante trabalho e por maus tratos, movia-se sem ruído, obliquamente, como se ela receasse topar nalguma cousa. O largo rosto oval, sulcado de rugas e ligeiramente empapuçado, tinha a dar-lhe brilho uns olhos negros, de uma expressão triste e inquieta como o de quase todas as mulheres do bairro. Na testa uma cicatriz profunda fazia-lhe subir um pouco o sobrolho direito; parecia também que a orelha direita estava mais acima do que a outra, o que dava ao rosto um ar receoso. Tinha no cabelo espesso e negro madeixas grisalhas semelhantes a nódoas resultantes de violentas pancadas. Toda ela transpirava suavidade, uma resignação dolorosa. E ao longo das faces corriam-lhe lentamente as lágrimas. — Olha! Não chores! — suplicou Pavel em voz baixa. — Dá-me de beber! — Vou buscar água gelada... Quando voltou, ele dormia. Ficou imóvel por um instante, retendo a respiração; a bilha tremia-lhe nas mãos, os pedaços de gelo tilintavam dentro. Depois de colocá-la na mesa, Pelagueia ajoelhou diante das imagens santas e orou silenciosamente. Os vidros das janelas tremiam sob as ondas sonoras da vida obscura e alcoólica do exterior. Nas trevas e na humidade daquela noite de outono, ouviam-se os rangidos de um harmónio; alguém cantava de goela aberta; passavam nas ruas palavras abjetas e obscenas; vozes de mulheres vibravam, assustadiças ou irritadas. Na pequena habitação de Vlassov, a vida decorria uniforme, mas mais tranquila e em paz do que outrora, distinguindo-se assim da existência geral do bairro. A casa era situada na extremidade da rua direita, no cimo dum pequeno alto, nos baixos do qual havia um pântano. A cozinha ocupava o terço da habitação; um delgado tabique, que não chegava ao teto, separava-a de um pequeno quarto onde dormia a mãe. O resto formava uma casa quadrada, com duas janelas; a um canto, a cama de Pavel, no outro, dois bancos e uma mesa. Algumas cadeiras, uma cómoda onde guardavam a roupa, um pequenino espelho, uma mala para o fato, um relógio e duas imagens de santos, era tudo. Pavel tentava viver como os outros. Fazia quanto era próprio a um rapaz;comprou um harmónio, uma camisa de peitilho engomado, uma gravata vistosa, galochas e capa de borracha, e uma bengala. Na aparência assemelhava-se a todos os adolescentes da sua idade. Ia às reuniões, aprendia a dançar a quadrilha e a polca; ao domingo entrava em casa embriagado. Nas manhãs seguintes, doía- lhe a cabeça, a febre consumia-o, o seu rosto estava pálido e desfigurado. Um dia, a mãe perguntou-lhe: — E então, divertiste-te ontem à noite? Respondeu com sombria irritação: — Aborreci-me atrozmente! Os meus companheiros são umas máquinas!... Prefiro ir à pesca ou comprar uma espingarda. Trabalhava com zelo; nunca era multado, nem gazeteava. Andava taciturno. Os seus olhos azuis, grandes como os da mãe, tinham uma expressão de descontentamento. Não comprou a espingarda nem foi à pesca; mas abandonou o caminho que seguiam os companheiros, frequentava cada vez menos as reuniões, e, embora continuasse a sair ao domingo, voltava para casa em seu juízo. Pelagueia observava-o sem dizer palavra e via o rosto moreno de Pavel tornar-se dia a dia mais magro, o olhar sempre mais grave e os lábios cerrarem- se com áspera severidade. Parecia sofrer de qualquer doença ou de qualquer cólera misteriosa. Antigamente, os companheiros visitavam-no, mas como ele deixara de permanecer em casa, não voltavam. A mãe via com prazer que o filho não imitava os rapazes da fábrica; mas quando notou aquela obstinação em afastar-se da torrente obscura da vida monótona, a sua alma foi invadida por vaga inquietação. Pavel trazia livros para casa; a princípio, tentava lê-los a ocultas. Por vezes, copiava alguns trechos num pedaço de papel. — Não andas bem, meu filho? — perguntou-lhe uma vez Pelagueia. — Vou bem, vou! — respondeu. — Estás tão magro! — suspirou ela. Ficou silencioso. Falavam pouco, e apenas se viam. Pela manhã, o rapaz tomava em silêncio o chá e ia para o trabalho; ao meio-dia vinha jantar; à mesa não trocavam mais do que palavras insignificantes; depois desaparecia até à tarde. Findo o dia, lavava- se cuidadosamente, ceava e lia os seus livros. Ao domingo, saía de manhãzinha e só voltava à noite. A mãe sabia que ele passeava na cidade, que ia ao teatro; mas da cidade ninguém vinha vê-lo. Parecia-lhe que, quantos mais dias passavam, menos o seu filho lhe dirigia a palavra; e ao mesmo tempo notava que dia a dia maior era o número de termos novos, incompreensíveis para ela, e que Pavel empregava em substituição das expressões grosseiras, outrora habituais no seu falar.Passara a ligar mais cuidado ao asseio do seu corpo e do seu fato; movia-se com mais ligeireza e facilidade; tornou-se mais simples na aparência, mais dócil; preocupava-se de sua mãe. Tratava-a de uma maneira nova; às vezes, varria o sobrado do quarto, fazia ele mesmo a sua cama, ao domingo; em geral, sem frases, sem ostentação, diligenciava auxiliar a mãe no trabalho caseiro. Ninguém fazia isto lá no bairro... Um dia, trouxe consigo um quadro que pendurou na parede e que representava três personagens tendo impressas nas feições a resolução, a coragem. — É o Cristo ressuscitado dirigindo-se a Emaús! — explicou. O quadro agradou a Pelagueia; ela pensou porém: — Respeitas o Cristo e não vais à igreja... Depois vieram mais quadros adornar as paredes, o número de livros aumentou na prateleira ali colocada por um marceneiro, companheiro de Pavel. O quarto ia tomando um aspeto agradável. O rapaz dizia amiúde «a sra.» quando se dirigia à mãe, a quem também chamava «mamã». Era até mais pródigo em palavras, embora breves. — Mãe, não fique em cuidado, peço-lhe; esta noite venho tarde. E ao ouvi-lo assim, ela sentia que se passava o que quer que fosse forte e sério, que lhe agradava. Mas a sua ansiedade aumentava dia a dia, e como não entrava em explicações com Pavel, adquiria o pressentimento de alguma coisa extraordinária que lhe apertava o coração. Pensava até: — Os outros vivem como criaturas humanas, mas ele é como um frade... Tão grave!... Não é próprio da sua idade... Perguntava a si mesma: — Terá uma amiga? Mas para ser amado pelas pequenas, é preciso dinheiro, e ele entregava-lhe quase toda a féria. Assim se passaram semanas, meses, quase dois anos, numa vida extravagante, cheia de pesares, de vagos receios cada vez maiores. IV Uma noite, à ceia, Pavel, tendo fechado as cortinas das janelas, assentou-se a um canto e pôs-se a ler, depois de ter pendurado na parede, por cima da cabeça, uma lâmpada de metal. A mãe tinha acabado o serviço da cozinha; aproximou-se dele. Pavel ergueu a fronte e fixou-a com olhar interrogador. — Não é nada... mesmo nada! — disse ela rapidamente. E afastou-se, pestanejando, a modos confusa. Mas depois de ter ficado imóvel por um instante, no meio da cozinha, lavou as mãos e voltou, pensativa, preocupada. — Olha: queria perguntar-te o que andas sempre a ler... — declarou com simpleza. Ele pôs o livro nos joelhos. — Assenta-te, mamã. Pelagueia sentou-se pesadamente ao seu lado, apurou o ouvido, na expetativa de alguma coisa grave. Sem olhar para ela, a meia voz, muito rudemente, Pavel falou. — Leio livros proibidos. Proíbem a sua leitura porque dizem a verdade da nossa vida, da vida do povo. São impressos às escondidas, e se os encontrassem em minha casa, eu seria preso... preso por ter querido saber a verdade. Percebeste? Ela sentiu de súbito a respiração opressa, e fixou o olhar esgazeado no filho, que lhe pareceu outro, um estranho. Tinha outra voz, mais grossa, mais cava, mais sonora. Com os dedos adelgaçados torcia as sedosas guias do bigode e para ela descia o olhar enigmático. Pelagueia teve medo, por ele. — Para que é isso, Pavel? Ele ergueu a cabeça, observou-a e respondeu tranquilamente: — Quero saber a verdade. A sua voz era em tom baixo, mas firme; brilhava-lhe no olhar um desejo obstinado. Pelagueia compreendeu que o filho se consagrara para sempre ao que quer que fosse misterioso e terrível. Tudo lhe parecera sempre inevitável; estava acostumada a submeter-se sem refletir; por isto começou de chorar baixinho, sem encontrar palavras no seu coração confrangido pela angústia e pela dor. — Não chores! — disse-lhe Pavel, carinhosamente; e à mãe parecia que ele lhe dizia um adeus — reflete! Que vida a nossa! Tu tens quarenta anos, e, francamente, podes dizer que tenhas vivido? O pai batia-te... compreendo agora que era o seu pesar da vida o que ele desabafava assim nas pancadas que te dava... o pesar da vida que o oprimia, e que ele nem mesmo sabia de onde lhevinha. Trabalhou durante trinta anos; começou quando o edifício da fábrica não tinha mais do que dois prédios, e hoje tem sete! As fábricas desenvolvem-se e nós morremos trabalhando para elas... Pelagueia ouvia-o, com receio e ao mesmo tempo com avidez. Os belos olhos azuis do rapaz luziam; com o peito apoiado à mesa, aproximou-se da mãe, e tocando quase no seu rosto banhado de lágrimas, dizia-lhe o seu primeiro discurso sobre a verdade, tal como ele a compreendia. Com a ingenuidade da juventude e com o ardor dum colegial orgulhoso dos seus conhecimentos e sinceramente convicto da importância deles, falava de tudo que lhe parecia tão evidente, falava tanto para se avaliar a si mesmo como para convencer sua mãe. Detinha-se por vezes quando lhe faltavam as palavras, e então via o rosto inquieto no qual brilhavam aqueles bons olhos velados pelas lágrimas, cheios de terror, de perplexidade. Apiedou-se de sua mãe e novamente falou dela. — Que alegrias tens tu conhecido? — perguntou. — Que tiveste no passado que fosse bom? Ela meneou a cabeça tristemente; invadia-a um sentimento novo, desconhecido ainda, doloroso e alegre ao mesmo tempo, que lhe acariciava deliciosamente o coração dolorido. Pela primeira vez, falavam-lhe dela e da sua própria existência; vagos pensares, adormecidos havia muito, despertavam no seu ser, reanimavam os sentimentos extintos com um vago descontentamento, as recordações, as saudades da sua mocidade longínqua. Falou da sua vida, dos seus amigos, de todo o passado; mas, como os outros, não sabia mais do que lamentar-se; ninguém explicava o motivo da sua vida tão penosa e árdua. E agora, com o filho sentado a seu lado, tudo quanto os olhos de Pavel, o seu rosto, as suas palavras lhe diziam, tudo lhe falava cativantemente ao coração, enchendo-a de altivez: era o seu filho quem compreendera a vida da mãe e quem lhe apresentava a verdade sobre os sofrimentos, quem a lamentava. Em geral, não há quem lamente as mães. Ela bem o sabia. Não compreendia que Pavel não falava dela só, mas tudo o que ele dissera da vida feminina era a verdade, verdade nua e crua. Eis porque lhe parecia que no seu peito se agitava um sem-número de sensações que a aqueciam como desconhecida carícia. — O que queres tu fazer? — perguntou-lhe, interrompendo-o. — Aprender e depois ensinar aos outros. Devemos aprender, sim, devemos saber, devemos compreender a razão porque a vida nos é tão penosa. Era consolador para a mãe ver os olhos azuis do seu filho, sempre sério e severo, brilharem ternamente, iluminando nele o que quer que fosse raro. Um sorriso de satisfação pairou nos lábios de Pelagueia, embora houvesse ainda lágrimas nas rugas das suas faces.Um duplo sentimento dividiu o seu ser: era uma irmã do filho que queria a felicidade de todos os homens, que os lastimava a todos e que via a dor da vida; e ao mesmo tempo não podia esquecer que ele era um rapaz, que não falava como os seus companheiros, que resolvera entrar sozinho em luta contra a vida rotineira que ela e os outros tinham. Sentiu desejos de dizer-lhe: — Meu querido! O que podes tu fazer? Esmagar-te-ão. E morrerás! Mas temeu deixar de admirar o rapaz que de súbito se lhe revelara, tão inteligente, tão transformado... Pavel via o sorriso nos lábios da mãe, a atenção que ela lhe prestava, o amor expandindo-se-lhe no olhar; julgou ter-lhe feito compreender a verdade que ele tinha descoberto, e o juvenil orgulho da força da sua palavra exaltava a sua mesma fé. Cheio de excitação, falava sempre, ora rindo, ora franzindo o sobrolho; por momentos o ódio transparecia na sua voz, e quando Pelagueia lhe ouvia estes tons rudes, meneava timidamente a cabeça, perguntando baixinho: — E tens a certeza de que isso é assim? — Tenho! — respondia ele com a voz forte e firme. E falava-lhe dos que queriam o bem do povo, dos que semeavam a verdade e que por isto eram perseguidos como feras, metidos em prisões, exilados para o degredo pelos inimigos da vida. — Tenho visto destas criaturas! — exclamava com ardor. — São as melhores almas deste mundo! Estes seres excitavam o terror da mãe, que tinha vontade de perguntar ainda: — E tens a certeza de que isso é assim? Mas não se atrevia, preferindo ouvir exaltar criaturas que ela não compreendia e que tinham ensinado ao seu filho uma maneira de pensar e de falar tão perigosa para ele. — Pouco falta para nascer o dia. Se tu te deitasses, se dormisses... É preciso ires para o trabalho amanhã. — Vou deitar-me, vou — concordou. E abeirando-se dela, perguntou-lhe: — Compreendeste-me? — Sim! — suspirou a mãe. De novo lhe rebentaram as lágrimas, e acrescentou entre soluços: — Morrerás!... Ele ergueu-se e entrou de passear pelo quarto. — Bem! Sabes agora o que faço, aonde vou! Disse-te tudo! Suplico-te, mãe,que se me amas, não me detenhas! — Meu querido filho! — exclamou ela. — Teria sido melhor nada me haveres dito! Pavel pegou-lhe na mão, apertando-a fortemente entre as suas. Ela ficara impressionada por aquela palavra «mãe» pronunciada com ardor juvenil, e por aquele aperto de mão tão novo e raro. — Nada farei para te contrariar — disse em tom sacudido. — Recomendo-te apenas: toma cuidado! Toma cuidado! E sem bem saber em que ele devia tomar cuidado, acrescentou tristemente: — Estás cada vez mais magro. E envolvendo num olhar caricioso o corpo robusto e harmónico do filho, disse em voz baixa: — Que Deus esteja contigo! Vive como quiseres, não te impedirei! Só te peço uma coisa: não fales levianamente. É conveniente desconfiar dos mais, que mutuamente se odeiam! Vivem de avidez, vivem de inveja! Todos se sentem felizes quando fazem mal. Quando quiseres acusá-los, julgá-los, odiar-te-ão, levar-te-ão à morte! De pé, no limiar da porta, Pavel ouvia estas palavras dolorosas, às quais respondeu sorrindo: — O próximo é mau, sim. Mas quando aprendi que havia na terra uma verdade, o próximo pareceu-me melhor. Sorriu ainda e continuou: — Eu mesmo nem sei como isto me veio. Na minha infância, tinha medo de todos e de tudo... Quando cresci, comecei a odiar, a uns pela sua covardia; a outros... nem sei porquê. Mas agora já não acontece o mesmo: creio que tenho piedade deles. Não compreendo como, mas o meu coração tornou-se mais terno quando soube que havia uma verdade para os homens e que eles não são todos culpados da ignomínia da sua vida. Calou-se por um instante, como para escutar o que quer que fosse dentro dele, e depois concluiu pensativo: — É assim que a verdade transpira! Ela, tendo-lhe lançado um olhar rápido, murmurou: — Transformaste-te duma maneira perigosa! Meu Deus! Quando ele adormeceu, Pelagueia levantou-se cautelosamente e aproximou- se-lhe do leito. O rosto moreno, de feições severas e obstinadas desenhava-se distintamente sobre o travesseiro branco. Com as mãos juntas no peito, com os pés descalços, em camisa, a mãe permanecia imóvel; os seus lábios moviam-se em silêncio, e de seus olhos desciam lentamente fartas e torvas lágrimas. V A vida recomeçou para eles; novamente se encontravam próximos e afastados. Uma vez, num dia santo, no meio da semana, Pavel disse à mãe, quando ia sair: — No sábado há de vir gente cá a casa. — Que gente? — Gente daqui... e gente da cidade. — Da cidade?... — repetiu a mãe, meneando a cabeça. E desatou a chorar. — Porque choras, mamã?! — exclamou Pavel contrariado. — Porquê? Respondeu com frouxa voz, limpando as lágrimas: — Não sei... Porque sim. Ele deu alguns passos pelo quarto, e parando diante dela: — Tens medo? — Tenho! — confessou. — Essa gente da cidade... sabe-se lá quem é! Inclinou-se para ela e disse com a voz irritada, como o pai: — É por causa desse medo que todos nós morremos! E os que mandam em nós aproveitam-se desse medo e ainda mais nos amedrontam. Compreenda de uma vez para sempre: enquanto houver medo, apodreceremos como as bétulas nos pântanos. Afastou-se, exclamando: — Deixá-lo! Nós nos reuniremos cá em casa... A mãe atalhou, chorando: — Não me queiras mal! Como não hei de eu ter medo? Passei entre sustos toda a minha vida... tenho a alma cheia deles. Pavel retorquiu a meia voz, mas brandamente: — Desculpe. Não tenho outro meio ao meu alcance. — E saiu. Durante três dias, Pelagueia tremia: o coração parecia-lhe parar quando pensava em que gente estranha entraria em sua casa. Não podia fantasiá-los, mas afiguravam-se-lhe terríveis. Eram eles quem apontavam ao seu filho o caminho que ele seguia agora... No sábado à tarde, Pavel voltou da fábrica, lavou-se, mudou de fato e saiu, dizendo sem olhar para a mãe: — Se alguém vier, diz que não me demoro, que me esperem. E não tenhas medo, se fazes favor... São pessoas como as outras. Ela deixou-se cair sobre o banco. O filho contemplou-a franzindo o sobrolho,e propôs: — Talvez seja melhor saíres; hã? Ela ofendeu-se. Disse que não com a cabeça, murmurando: — Seria o mesmo. Para que sairia eu? Estava-se no fim de novembro. Durante o dia tinha caído na terra gelada um nevão fino e seco, que Pavel triturava sob seus passos. Às vidraças apegavam-se espessas trevas. A mãe, desalentada, ia esperando, com os olhos fixos na porta. Parecia-lhe que, na obscuridade, criaturas silenciosas, de trajos não vulgares, se dirigiam para a casa, vindos de pontos vários, que se adiantavam ocultando-se, corcovados, e olhando para um e outro lado. Junto da porta, encostado à parede, havia já alguém. Ouviu-se um assobio que vibrou no silêncio como um fio, melodioso e triste; errava no deserto da noite, aproximava-se... De súbito, calou-se mesmo junto à janela, como se tivesse penetrado através da parede. Soou o ruído de passos; Pelagueia ergueu-se trémula, com os olhos dilatados. Abriu-se a porta. Apareceu primeiro uma cabeçorra com um boné de peles, depois um corpo acurvado que se esgueirou lentamente, que se endireitou, que levantou o braço direito vagarosamente, arrancando do peito em suspiro ruidoso: — Boa noite. Pelagueia cumprimentou em silêncio. — O Pavel ainda não veio? O homem tirou com vagar um casaco de peles, levantou um pé, sacudiu com o boné a neve que lhe cobria as botas, atirou depois com o boné para um canto e entrou no quarto bamboleando-se nas suas altas pernas. Aproximou-se duma cadeira, examinou-a, como para certificar-se de que era sólida, assentou-se por fim e pôs-se a bocejar, tapando a boca com a mão. Tinha a cabeça redonda e o cabelo cortado à escovinha, a barba feita, e grosso bigode de guias compridas e pendentes. Depois de ter examinado o quarto com os grandes olhos bojudos e acinzentados, cruzou as pernas e perguntou balouçando-se na cadeira: — O casebre pertence-lhes ou é alugado? Pelagueia, sentada em frente dele, respondeu: — Alugámo-lo. — Não é grande coisa! — observou o homem. — O Pavel não se demora; queira esperar — disse frouxamente. — É o que estou fazendo! — replicou tranquilamente. A sua tranquilidade, a sua voz suave, a simpleza da sua fisionomia deram coragem a Pelagueia. Ele contemplava-a com olhar franco, com um ar bondoso;no fundo dos seus olhos transparentes luzia um brilho alegre, e havia um tanto de divertido e de simpático naquela criatura angulosa e acurvada como num poleiro feito das próprias pernas. Trazia vestidas calças pretas, cujas extremidades estavam metidas quase dentro das botas; em vez de casaco, blusa azul. Pelagueia tinha vontade de perguntar-lhe quem ele era, de onde vinha, se conhecia o seu filho de há muito tempo, quando, de chofre, ele moveu-se e perguntou: — Ó tiazinha, quem foi que lhe abriu essa brecha na testa? Falava meigamente e sorria com o olhar. Mas a pergunta irritou-a. Mordeu os lábios, e após curto silêncio, perguntou com fria delicadeza: — E o que tem o tiozinho com isso? Ele voltou-se de todo. — Ah! Não se zangue. Se lhe fiz esta pergunta, foi porque a minha mãe adotiva tinha também uma brecha na testa, exatamente como a sra. Uma sova que lhe deu o marido, com uma forma de botas. Era sapateiro. Ela era lavadeira. Tinha-me adotado já, quando, por sua desgraça, encontrou aquele bêbedo não sei onde. O patife batia-lhe; digo-lhe só isto! Eu tinha tanto medo dele, que a pele estalava-me. Pelagueia sentiu-se desarmada perante aquela franqueza, e pensou de si para si que talvez Pavel não ficasse contente, se ela fosse menos delicada para com aquele original. Por isso disse com um sorriso envergonhado: — Eu não me zango... O sr. é que me deixou surpresa com a pergunta. Foi um presente do meu marido, que Deus tenha! O sr. não é tártaro? O homem mexeu as pernas, e teve um sorriso tão aberto, que até as orelhas pareciam chegar-lhe à nuca. Depois disse gravemente: — Ainda não... ainda não sou tártaro. — É que não fala exatamente como um russo! — explicou ela sorrindo, porque lhe compreendera o gracejo. — A minha língua vale mais do que o russo! — exclamou com um meneio importante. — Sou pequeno-russo, da cidade de Kaniev. — E há muito tempo que está por cá? — Vivi na cidade, perto de um ano, e há um mês que vim aqui para a fábrica. Travei conhecimento com excelentes pessoas... o seu filho... e mais alguns... não muitos. Quero fixar-me por cá — acrescentou, torcendo o bigode. Estava agradando a Pelagueia que, para agradecer o elogio feito ao filho, lhe perguntou: — Quer chá? — O quê? Sozinho? — observou, encolhendo os ombros. — Faça o oferecimento quando estivermos todos juntos.Ouviram-se passos outra vez, a porta abriu-se de chofre; Pelagueia levantou- se. Com grande espanto seu, quem entrou na cozinha foi uma rapariga, de vestido leve e pobre, baixa, com cara de camponesa. A recém-chegada, cujos cabelos eram loiros e espessos, perguntou: — Ainda venho a tempo? — Ah! Vem! — respondeu o pequeno-russo, que permanecia no quarto. — Veio a pé? — Pudera! A sra. é a mãe do Pavel Mikhailovitch? Boa noite! Eu chamo-me Natacha. — E o seu pai? — perguntou Pelagueia. — Vassilievna. E a sra.? — Pelagueia Milovna. — Belo! Estamos apresentados! — Sim, estamos... — concordou Pelagueia, com um ligeiro suspiro. E sorrindo observou a rapariga. O pequeno-russo perguntou: — Faz frio? — Se faz! E muito, lá pelos campos; uma ventania!... Tinha a voz pastosa, clara; a boca era pequena e redonda; e toda ela era gorducha e cheia de frescura. Depois de tirar a capa, esfregou energicamente as faces coradas com as mãozinhas avermelhadas pelo frio; e, passeando pelo quarto com passos rápidos, batia no sobrado com os tacões. — Não tem galochas de borracha! — pensou Pelagueia. — Que frio! — E arrastando muito as palavras: — Estou entorpecida! Gelada! — Vou já, já, preparar o samovar! — disse rapidamente a dona da casa. E saiu para a cozinha. Dir-se-ia que conhecia aquela rapariga de há muito tempo e que a estimava como sua filha. Estava satisfeita por vê-la; vindo-lhe à ideia os olhos pardos e piscos do pequeno-russo, sorriu satisfeita também; prestou atenção à conversa. — Porque está triste, André? — perguntou a rapariga. — Porque sim! A viúva tem um olhar bondoso e lembra-me que talvez seja como o da minha mãe... Penso muito na minha mãe, sabe? Parece-me sempre que ela vive. — Ouvi-lhe dizer que ela tinha morrido... — Não! Falava da minha mãe adotiva, e agora falo da minha verdadeira mãe. Imagino que ela pede esmola, algures, em Kiev e que bebe aguardente...— Porquê? — Sei lá! E que quando está embriagada, os polícias a esbofeteiam. — Pobre homem! — pensou Pelagueia, suspirando. Natacha passou a falar rapidamente, a meia-voz. Depois, tornou a ouvir-se a voz sonora do pequeno-russo: — É ainda nova! Não tem experiência! Todos têm mãe, e apesar disso quantas criaturas más!... É difícil dar à luz, mas é muito mais difícil ensinar o bem ao homem. — Isso! Isso! — exclamou lá de dentro Pelagueia. Desejava poder responder que ela, por exemplo, se consideraria feliz ensinando o bem a seu filho, mas que não sabia dessas coisas; a porta porém abriu-se vagarosamente dando entrada a Vessovtchikov, filho do velho ladrão Danilo, o misantropo célebre em todo o bairro. Mantinha-se sempre afastado dos outros, que por este facto chasqueavam dele. Pelagueia perguntou admirada: — O que é que tu queres? Fitou nela os olhos pardos, limpou com a palma da mão a cara bexigosa e de maçãs salientes, e, sem responder ao cumprimento de Pelagueia, perguntou em tom cavo. — O Pavel está em casa? — Não. Relanceou a vista pelo quarto e entrou, dizendo: — Boa noite, companheiros. — Também este!... Será possível? — pensou ela hostilmente. E mais se admirou vendo Natacha estender a mão ao recém-chegado com modo alegre e amigável. Vieram em seguida dois rapazes, duas crianças quase. A dona da casa conhecia um deles: era o sobrinho de Fédor Sizov, velho operário da fábrica; tinha feições de arguto, fronte elevada e cabelos encaracolados. O outro, de cabelo corredio, era-lhe desconhecido, mas não a assustava, parecia modesto. Afinal Pavel chegou, acompanhado de dois amigos, que ela reconheceu logo: eram dois operários também da fábrica. Amavelmente, o filho disse-lhe: — Preparaste o chá? Obrigado! — Queres que vá comprar aguardente? — perguntou, não sabendo como exprimir-lhe o seu reconhecimento pelo que quer que fosse que ela ainda não compreendia. — Não. Não é preciso! — respondeu, tirando a capa, e sorrindobondosamente para a mãe. De súbito, veio-lhe à ideia de que o filho tinha exagerado propositadamente o perigo da reunião para brincar com ela. — É então esta a tal gente perigosa? — Esta mesma! — disse Pavel entrando no quarto. — Ah! — e seguiu-o com o olhar caricioso. Mas, no seu íntimo: — E ele é a mesma criança!... VI Quando a água do samovar entrou em ebulição levou-o para o quarto. As visitas estavam sentadas em de redor da mesa; Natacha tinha nas mãos um livro e ficara numa quina da mesa sob a luz da candeia. — Para compreender porque as criaturas vivem tão mal... — dizia Natacha. —... e porque são tão más... — interveio o pequeno-russo. —... é preciso ver primeiro como começaram a viver... — Então, meus filhos, então!... — murmurou Pelagueia, preparando o chá. Calaram-se todos. — O que diz, mamã? — perguntou Pavel franzindo o sobrolho. — Eu? Vendo todos os olhares cravados nela, explicou, embaraçada: — Falava comigo mesmo... Dizia: então!... Natacha desatou a rir assim como Pavel; o pequeno-russo exclamou: — Obrigado, mãezinha, obrigado pelo chá! — Ainda não o bebeu e já agradece?! — replicou ela. E, olhando para o filho: — Não os incomodo? Foi Natacha quem respondeu: — Como pode incomodar os seus hóspedes, se é a dona da casa? E num tom infantil e lamentoso: — Boa alma! Dê-me chá depressa! Estou a tremer com frio... tenho os pés gelados... — É para já! É para já! Depois de ter bebido, Natacha suspirou à larga, atirou a trança para as costas e abriu um livro volumoso, ilustrado e de capa amarela. Pelagueia enchia os copos, diligenciando não os fazer retinir, e, com toda a atenção de que era capaz o seu cérebro pouco acostumado a trabalhar, escutava a leitura que a rapariga fazia com a sua voz harmoniosa, que se misturava ao murmúrio da água a ferver no samovar, semelhante a longínqua canção. No quarto desenrolava-se tremente, como uma fita de cores magníficas, a história simples e clara dos selvagens que viviam nas cavernas e atacavam com pedras os animais. Era uma como lenda; por várias vezes, Pelagueia olhava de soslaio para o filho, desejava saber o que haveria naquela história de selvagens que a tornasse leitura proibida. Mas a breve trecho deixou de escutar e, sem que dessem por tal, começou a observar os seus hóspedes. Pavel estava sentado junto de Natacha; era belo entre todos os outros. Arapariga, inclinada sobre o livro, levantava amiúde os cabelos finos e encaracolados que lhe caíam para a testa. Por vezes, sacudia a cabeça, e, com um olhar amigo, acrescentava algumas observações, abaixando a voz. O pequeno-russo tinha encostado o peito ao canto da mesa, torcia o bigode, cujas guias diligenciava ver, metendo um olho por outro. Vessovtchikov, estava sentado numa cadeira, empertigado como um manequim, com as mãos nos joelhos; o seu rosto bexigoso, sem sobrolhos e de bigode muito raro, era imóvel como uma máscara. Sem desviar o olhar, contemplava obstinadamente a sua fisionomia refletida no cobre brilhante do samovar; dir-se-ia que nem respirava. O pequeno Fédia escutava a leitura, movendo os beiços, repetindo para si as palavras do livro; o seu companheiro, o dos cabelos encaracolados, curvava-se, com os cotovelos nos joelhos, e sorria pensativamente, tendo a cara apoiada nas mãos. Um dos rapazes vindos com Pavel era ruivo e delgado; os olhos verdes tinham expressão alegre; parecia desejoso de dizer alguma coisa e fazia gestos de impaciência; o outro, de cabelos loiros e curtos, passava a mão pela cabeça olhando para o sobrado, o que não permitia ver-se-lhe o rosto. O quarto estava quente, numa temperatura especialmente agradável naquela noite. No meio do murmúrio da voz de Natacha, misturada à canção trémula do samovar, Pelagueia recordava as noites tumultuosas da sua mocidade, as palavras grosseiras dos rapazes que cheiravam mal a álcool, os seus gracejos cínicos. Perante tais recordações, o seu coração humilhado confrangia-se compadecido dela própria. Reviveu em pensamento o dia em que o marido pedira a sua mão. Foi durante uma reunião, à noite; ele detivera-a num corredor obscuro, obrigava-a à viva força a encostar-se à parede, dizendo-lhe num tom cavo e irritado: — Queres casar comigo? Ela sentira-se ultrajada; molestavam-na aqueles dedos grosseiros apertando- lhe os seios, aquela respiração ofegante que lhe enviava ao rosto um hálito quente e húmido. Tentou libertar-se daquele abraço, fugir-lhe... — Aonde vais? — urrou ele. — Responde primeiro! Ficara silenciosa, cheia de vergonha e de cólera. — Não te finjas embaraçada, pateta! Conheço-as, a todas! No teu íntimo, estás satisfeitíssima. Porque alguém tivesse aberto uma porta, ele largara a rapariga, sem grande pressa, dizendo: — No domingo mandarei pedir a tua mão. Cumpriu. Pelagueia fechou os olhos e suspirou longamente.— Não preciso saber como os homens viveram, mas sim como se deve viver! — exclamou de súbito Vessovtchikov num tom de surdo aborrecimento. — Tem razão! — concordou o rapaz de cabelo ruivo, erguendo-se. — Não estou de acordo! — disse Fédia. — Se queremos caminhar para a frente, devemos saber tudo! — Exato! — opinou o outro, a meia voz. Veio em seguida uma discussão animada. Pelagueia não compreendia porque todos eles gritavam, com os rostos cheios de excitação. Mas ninguém estava irritado; nem mesmo se ouviam as palavras concludentes e obscenas às quais ela estava acostumada. — Não se sentem à vontade na presença da pequena... pensou. Sentia-se encantada pela fisionomia grave de Natacha, que parecia tomar conta em todos, como se fossem crianças para ela. — Basta, companheiros! Basta! — disse de súbito. E todos se calaram, volvendo para ela o olhar. — Os que afirmam que devemos saber tudo afirmam uma verdade. Devemos iluminar-nos a nós mesmos com a chama da razão, para que as criaturas obscuras nos vejam; devemos responder a tudo com honestidade, com verdade. É preciso conhecer toda a verdade e toda a mentira. O pequeno-russo meneava a cabeça ao ritmo das palavras de Natacha. Vessovtchikov, o rapaz ruivo e o operário que viera com Pavel formavam um grupo distinto; desagradavam a Pelagueia, sem que ela soubesse porquê. Quando Natacha concluiu, Pavel ergueu-se e perguntou tranquilamente: — O que queremos nós ser? Apenas criaturas que comem e bebem? Não! Queremos ser homens. Devemos mostrar aos que nos exploram e nos fecham os olhos, que vemos tudo, que não somos idiotas, nem brutos, que não queremos só comer, mas também viver como é próprio dos homens. Devemos mostrar aos inimigos que a vida de degredo que eles nos arranjaram não impede que possamos medir-nos com eles pela inteligência e excedê-los pelo espírito... Pelagueia ouvia, estremecendo de orgulho por ser o seu filho quem assim falava. — Há muita gente farta, mas ninguém entre ela que seja honesto! — disse o pequeno-russo. — Construamos uma ponte que atravesse o pântano da nossa vida infeta e que nos conduza ao reino futuro da bondade sincera, eis a nossa tarefa, companheiros! — Em tempo de guerra não se limpam armas! — replicou soturnamente Vessovtchikov. — Aliás fazem-nos os ossos num feixe, antes da batalha! — exclamoualegremente o pequeno-russo. Tinha passado meia-noite quando o grupo dispersou. O rapaz ruivo e Vessovtchikov foram os primeiros a sair, o que não agradou a Pelagueia. — Como vão apressados! — pensou, cumprimentando-os. — Acompanha-me, André? — perguntou Natacha. — Ora essa! Enquanto Natacha se vestia na cozinha, Pelagueia disse-lhe: — Tem umas meias tão finas, com um tempo destes!... Se me dá licença, hei de fazer-lhe um par, de lã. — Obrigado, mas as meias de lã arranham a pele! — respondeu, rindo. Descanse, que, feitas por mim, não arranharão. Natacha observou-a com os olhos semicerrados, e este olhar fixo embaraçou- a. — Desculpe se é tolice, mas creia ser de boa vontade! — Sim. A sra. é boa! — exclamou Natacha a meia voz, apertando-lhe a mão. — Boa noite, mãezinha! — disse o pequeno-russo encarando nela; saiu, depois de beijá-la, acompanhando Natacha. Pelagueia olhou para o filho que no limiar da porta do quarto, sorria. — Porque sorris? — perguntou, como envergonhada. — Ora! Porque estou contente. — Sou velha e tola, bem sei, mas compreendo aquilo que fica bem. — E tem razão. Vá deitar-se, vá, que são horas. — E tu também deves ir. Eu é num instante. À roda da mesa de onde retirava os copos, sentia-se feliz: tudo se tinha passado sem novidade e terminado em paz. — Tiveste uma boa ideia, meu filho: é uma bela gente. O pequeno-russo... acho-o interessante. E a rapariga... Ah! Que inteligente que é! Quem é ela? — Professora de primeiras letras — respondeu resumidamente, passeando ao comprimento do quarto. — Por isso é tão pobre! Que mal vestida!... Vai apanhar um frio!... Onde vivem os pais? — Em Moscovo. E Pavel, parando junto da mãe, disse em voz baixa e gravemente: — O pai é muito rico, negociante de ferro, e possui vários estabelecimentos. Expulsou-a porque ela entrou neste caminho... Foi educada no luxo, toda afamília a amimava, dando-lhe quanto queria... E neste momento é obrigada a andar a pé, sozinha, sete quilómetros. Estes pormenores impressionaram Pelagueia. No meio do quarto, olhava para o filho sem dizer palavra, os sobrolhos erguidos numa expressão de assombro. Depois perguntou a meia voz: — Vai para a cidade? — Vai. — Ah! E não tem medo? — Não, não tem medo! — respondeu, sorrindo. — Não tem?!... Poderia passar a noite cá em casa... Dormiria comigo. — Impossível. Vê-la-iam sair amanhã pela manhã; e devemos evitar isso... Ela primeiro ainda. Pelagueia caiu em si, e tendo olhado para a janela, passeando, disse meigamente: — Não percebo o que possa haver perigoso, e que torne proibidas estas coisas. Que mal pode haver? Ela não sentia absoluta convicção e desejava obter do filho uma resposta negativa. Ele fitou-a, sereno, e respondeu com firmeza: — Não fazemos nem faremos mal algum. Todavia, sabe que é a prisão o que nos espera. As mãos de Pelagueia tremeram. Foi com a voz enfraquecida que perguntou: — Talvez... Queira Deus que tal não suceda! Pavel, carinhoso, mas resoluto: — Não! Não quero enganar-te! O que te disse há de suceder. Acrescentou, sorrindo: — Olha: vai deitar-te! Estás fatigada! Boa noite! Sozinha, a mãe aproximou-se da janela e olhou para a rua. O vento passava, varrendo a neve dos telhados das casinhas adormecidas, batendo contra as paredes, murmurando não se sabe o quê, e baixando à terra para fazer correr ao longo das ruas nuvens brancas de flocos secos. — Jesus Cristo, tende piedade de nós! — suplicou baixinho. As lágrimas acumulavam-se-lhe, a expetativa da desgraça da qual o filho falava com tanta tranquilidade e certeza, agitava-se dentro dela como uma borboleta noturna. Perante os seus olhos desenrolou-se uma planície coberta de gelo. O vento levando os flocos de neve, redemoinhava assobiando. No meio da planície, um pequenino perfil de rapariga caminhava, solitário e vacilante. O vento enrolava-se-lhe nas pernas, enchia-lhe as saias, atirava-lhe ao rosto flocosagressivos. O caminho era difícil para aqueles pequeninos pés que se enterravam na neve. Fazia frio e as trevas eram de meter medo. A rapariga inclinava-se para a frente como débil haste sacudida pelo sopro rápido do vento do outono. À sua direita, no pântano, uma floresta erguia a sua sombra compacta onde as bétulas e os frágeis pinheiros tremiam e gemiam tristemente. Muito ao longe, na sua frente, cintilavam as luzes da cidade. — Senhor! Tende piedade de nós! — disse ainda a pobre mãe, tremendo de frio e de medo. VII Os dias sucediam-se; como as contas de um rosário, adicionavam-se em semanas e em meses. Todos os sábados, os companheiros reuniam-se em casa de Pavel; e cada sessão era como um degrau da longa escadaria em suave declive que conduzia a muito distante, não se sabia aonde, elevando lentamente os que por ela subiam, e da qual se não via o fim. Novas caras apareciam constantemente. O pequeno quarto dos Vlassov ia-se tornando apertado. Natacha continuava a comparecer, transida de frio, fatigada, mas sempre alegre e bem disposta. Pelagueia tinha-lhe feito as tais meias que ela própria lhe calçou. A princípio, Natacha tinha rido, depois calou-se, e, refletindo por um momento: — Tive uma criada — disse baixinho, — que também me era extraordinariamente dedicada! Olhe, Pelagueia Nilovna é muito para pensar este caso: o povo que tem uma vida tão árdua, tão cheia de humilhações, possui mais coração, mais bondade do que os outros! Tinha erguido o braço, designando um ponto muito afastado dali. — E a menina? — disse-lhe a mãe de Pavel — que sacrificou seus pais e o resto... Não chegou a concluir o seu pensamento, suspirou e calou-se olhando para Natacha. Sentia-se-lhe reconhecida, sem bem saber de quê, e deixara-se ficar sentada no chão, diante da rapariga, que sorria pensativa, com a cabeça descaída para o peito. — Sacrifiquei os meus pais... — tinha repetido Natacha. — Mas não é isto o pior. O meu pai é tão estúpido e ordinário, o meu irmão também, e demais costuma beber! A minha irmã mais velha é uma desgraçada, causa compaixão. Casou com um homem muito mais idoso do que ela, muito rico, mas avarento e repugnante. De quem eu tenho mais saudades é da mamã! — Coitadinha! — lamentou a mãe de Pavel, com um triste movimento de cabeça. A rapariga endireitou-se de súbito e exclamou: — Ah! Não! Há momentos em que a minha alegria, a minha felicidade não tem limites! O seu rosto empalideceu, e saíam chispas de seus olhos azuis. Pondo a mão no ombro de Pelagueia, disse em voz profunda, num tom que parecia vindo do coração: — Se soubesse... se pudesse compreender a obra brilhante e enorme que estamos realizando!... Havia de senti-la! Uma impressão, não muito afastada da inveja, apoderou-se do coração de Pelagueia, que disse tristemente, erguendo-se:— Estou muito velha para essas coisas... sou ignorante... estou muito velha... Pavel falava muito, discutia cada vez com maior ardor, e emagrecia. Pelagueia julgava notar que, quando ele conversava com Natacha ou para ela olhava demoradamente, o seu olhar severo se tornava suave, que a sua voz vibrava com mais carinho, que ele se revelava ainda mais simples. — Deus o queira!... — pensava. Sorria à ideia de que Natacha pudesse vir a ser sua nora. Quando, nas reuniões, a discussão tomava mais calor, o pequeno-russo levantava-se, e bamboleando como o badalo dum sino, soltava com a sua voz sonora palavras claras e simples que faziam voltar o sossego. O taciturno Vessovtchikov levava constantemente os companheiros a atos mal definidos; era sempre ele e Samoilov, o rapaz ruivo, quem esquentava as discussões. Tinham por partidário Ivan Bukine, o rapaz de cabeça redondinha, de sobrolhos brancos, e que parecia deslavado como o sol. Jacob Somov, sempre modesto, asseado e bem penteado, falava pouco e breve, em voz baixa e grave. Como Fédia Mazine, o adolescente de fronte alta, era sempre da opinião de Pavel e do pequeno-russo. Por vezes, em lugar de Natacha, era Nicolau Ivanovitch quem vinha da cidade. Usava óculos e tinha barbicha loira. Natural duma província distante, as inflexões da sua voz eram especiais e cantantes, falando quase sempre sobre temas simples, a vida em família, as crianças, o comércio, a polícia, o preço da carne e do pão, enfim a vida de todos os dias. E em tudo descobria erros, confusão, coisas estúpidas, divertidas às vezes, mas sempre prejudiciais para os homens. Parecia a Pelagueia que Nicolau Ivanovitch viera de longe, doutro país onde a existência era fácil e honesta, e que ali, onde ela vivia tudo lhe desagradava. Era de cor amarelenta; pequenas rugas lhe circundavam os olhos, a voz era grossa, e tinha as mãos sempre quentes. Quando cumprimentava a mãe de Pavel, agarrava-lhe a mão por completo com os dedos vigorosos, e tal aperto era como um consolo para a alma dela. Da cidade vinham ainda outras pessoas, por exemplo uma rapariga esbelta, de olhos grandes e rosto magro e pálido. Chamavam-lhe Sachenka. Havia o que quer que fosse másculo nos seus gestos e no andar; franzia os sobrolhos negros como irritada; quando falava, as delicadas narinas estremeciam. Foi ela que um dia disse primeiro que os outros: — Nós, socialistas... Quando Pelagueia ouviu esta palavra, olhou para a rapariga com mudo terror. Sabia que os socialistas tinham assassinado um czar. Fora durante a sua mocidade; dissera-se então que os proprietários rurais, indignados contra o imperador por ter libertado os servos, haviam jurado não cortar os cabelos enquanto ele não fosse morto. Por isso não podia compreender a razão por que oseu filho e a companheira se tinham feito socialistas. Quando todos se retiraram, perguntou a Pavel: — Pavlucha, é verdade que és socialista? — É! — respondeu firme e franco como sempre. Pelagueia deu um profundo suspiro e disse, baixando os olhos: — Parece-te bem, meu filho?... Eles são contra o czar... já mataram um!... Pavel entrou de passear pelo quarto, passando a mão pela cara, até que respondeu com um sorriso: — Nós não precisamos disso! Falou-lhe muito tempo a sério. Ela chorava e refletia. Depois, a terrível palavra foi repetida cada vez mais amiúde, e tornou-se tão familiar aos ouvidos de Pelagueia como um amontoado doutros termos incompreensíveis para ela. Mas Sachenka não lhe agradava; quando a via, sentia-se pouco à vontade, ansiosa... Uma noite, disse ao pequeno-russo, com um trejeito de mal-estar: — É muito ríspida a Sachenka! Está sempre a mandar: façam isto! Façam aquilo! O pequeno-russo riu ruidosamente. — É a pura verdade! Nem mais nem menos! Não é assim, Pavel? E, piscando o olho, disse em tom escarninho: — A nobreza! Pavel replicou secamente: — É uma rapariga decidida! E ficou-se com ar de mal disposto. — Não há dúvida também! — concordou o pequeno-russo. — Há apenas uma diferença: não compreende que é ela quem deve e que somos nós que queremos e podemos. Pelagueia notara também que a severidade de Sachenka caía mais em particular sobre Pavel a quem por vezes chegava a repreender. Ele sorria, ficava silencioso, e contemplava a rapariga com o olhar suave que outrora tinha para Natacha. E isto não agradava a Pelagueia. Reuniam-se duas vezes por semana; e quando a mãe de Pavel via a atenção apaixonada com que os novos escutavam as falas do filho e do pequeno-russo, as interessantes narrativas de Natacha, de Sachenka, de Nicolau Ivanovitch e dos outros que vinham da cidade, esquecia as suas inquietações, e recordando-se dos fastidiosos dias da sua mocidade, meneava tristemente a cabeça. Muitas vezes, Pelagueia ficava surpreendida dos acessos de alegria ruidosaque os atacavam de súbito. O facto dava-se geralmente quando tinham lido nos jornais notícias da classe operária estrangeira. Era uma alegria extravagante, como infantil; riam todos com um riso límpido e muito alegre, e batiam amigavelmente no ombro do companheiro mais próximo. — Têm trabalhado a valer, os nossos companheiros alemães! — anunciava qualquer deles, como embriagado de êxtase. — Vivam os nossos companheiros italianos! — gritava outra voz. E quando enviavam estas exclamações ao longe, aos amigos desconhecidos, pareciam convencidos de que eles os ouviam e participavam do seu entusiasmo. O pequeno-russo, cheio de um amor que abrangia a todos os seres, declarava: — Deveríamos escrever-lhes, não acham? Para que saibam que têm na Rússia, tão distante, amigos, operários que professam a mesma religião que eles, companheiros que têm o mesmo fim, e rejubilam com as suas vitórias... E, com o sorriso nos lábios, falava-se durante muito tempo dos franceses, dos ingleses, dos suecos, como de entes queridos, em cujas felicidades e sofrimentos se tomava parte. No pequeno quarto nascia assim o sentimento do parentesco espiritual, unindo os operários daquela terra da qual eles eram ao mesmo tempo os senhores e os escravos. Esta confraternidade, que lhes dava uma só alma, impressionava Pelagueia, e embora ela lhe fosse inacessível, fazia-a elevar se sob a influência daquela força alegre, triunfante, embriagadora e cheia de mocidade, acariciadora e cheia de esperanças. — No meio de tudo, como os srs. são! — disse ela um dia ao pequeno-russo. — Para os srs., todos são companheiros: os judeus, os arménios, os austríacos... Falam deles como se falassem de amigos, entristecem-se e alegram-se com o mundo inteiro! — Sim, mãezinha! — exclamou ele. — O mundo é nosso! O mundo é dos operários! Para nós não há nações, nem raças! Há somente companheiros e... inimigos. Todos os operários são nossos amigos; todos os ricos, todos os que têm autoridade, são nossos inimigos. Quando se olha para a terra com bons olhos, quando se vê quanto nós, os operários, somos numerosos, que poder espiritual nós representamos, sente-se o coração invadido pela alegria e pela felicidade, como na celebração de uma festa solene. O francês e o alemão têm o mesmo sentimento, e os italianos também rejubilam. Somos todos nascidos da mesma mãe, da grande, da invencível ideia da fraternidade operária, em todos os países da terra. Desenvolve-se, aquece-nos com o seu calor, é o segundo sol no céu da justiça; e este céu está no coração do operário. Qualquer que ele seja, seja qual for o seu nome, o socialista é nosso irmão em espírito, agora e para sempre, por todos os séculos dos séculos!Esta exuberância infantil, esta fé luminosa e inabalável manifestava-se de mais em mais no pequeno grupo, numa força crescente. E quando Pelagueia via esta alegria, sentia instintivamente que na verdade viera ao mundo o que quer que fosse grande e resplendente, como um sol semelhante ao que via no céu. Às vezes, cantavam, alegremente e a plenos pulmões, canções familiares; por outras, aprendiam novas canções, também melodiosas, mas com música melancólica e fora do vulgar. Então, abaixavam a voz, as fisionomias tornavam- se graves, pensativas, como ao som de um hino religioso. Os rostos tornavam-se pálidos, os que cantavam animavam-se, e sentia-se que uma grande força se ocultava sob as palavras sonoras. Uma daquelas canções principalmente perturbava e inquietava Pelagueia. Não traduzia os gemidos, as perplexidades da alma ultrajada que vagueia solitária nos atalhos obscuros das incertezas dolorosas nem dos gritos da alma incolor e informe assaltada pela miséria, embrutecida pelo medo. Não repetia os lânguidos suspiros do ser ávido de espaço, nem os gritos de provocação da audácia fogosa prestes a destruir o mal e o bem, indiferentemente. O cego sentimento da vingança e do ódio, capaz de aniquilar tudo, impotente para criar, não aparecia então; não havia em tais canções qualquer vestígio do antigo mundo, do mundo dos escravos. As palavras ríspidas, a melodia austera não agradavam a Pelagueia, mas havia naquelas canções uma como força imensa que abafava o som e as palavras, despertando no coração o pressentimento de alguma coisa grandiosa para o pensamento. Pelagueia via isto nos rostos, no olhar dos novos, e, cedendo àquele poder misterioso, escutava sempre a canção, duplamente atenta, com inquietação profunda. — Já é tempo de a cantarmos pelas ruas! — dizia o sombrio Vessovtchikov, em princípios da primavera. Quando o pai mais uma vez foi preso, declarou tranquilamente: — Agora poderíamos reunirmo-nos em minha casa... Quase todas as tardes, depois do trabalho, um ou outro dos companheiros ia a casa de Pavel; liam juntos, copiavam trechos das brochuras. Andavam preocupados e nem já tinham tempo de se lavarem. Ceavam juntos e tomavam o seu chá sem porem de lado os livros; e as suas conversas cada vez se tornavam mais incompreensíveis para Pelagueia. — Precisamos de um jornal! — repetia Pavel, amiúde. A vida tornava-se febril e agitada; dirigiam-se uns aos outros com mais celeridade, era com mais rapidez que passavam dum livro a outro, como abelhas voando de flor para flor.— Começa-se a falar de nós! — disse uma noite Vessovtchikov. — Provavelmente, acabamos por ser presos, dentro em pouco. — Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele! — observou o pequeno- russo. Cada vez agradava mais a Pelagueia. Quando ele lhe chamava mãezinha, parecia-lhe que uma suave mão de criança lhe afagava o rosto. Ao domingo, se Pavel tinha que fazer, era ele quem rachava a lenha; um dia apareceu carregado com uma grande tábua, pegou na ferramenta e substituiu com habilidade um degrau podre da porta de entrada; doutra vez, recompôs a varanda que ameaçava ruína. Enquanto trabalhava, assobiava músicas melancólicas. Pelagueia disse um dia ao filho: — Se nós fizéssemos do pequeno-russo nosso hóspede? Seria mais cómodo para ambos, que não precisaríamos de andar sempre a correr de casa dum para casa do outro. — Para que há de ir arranjar mais esse trabalho? — perguntou Pavel, encolhendo os ombros. — Ora! Durante toda a minha vida tenho sido atormentada com trabalho sem saber para quê; posso perfeitamente fazer isto hoje em favor de tão bom homem. — Faça o que quiser! Se ele aceitar, dar-me-á satisfação. E o pequeno-russo passou a viver com eles. VIII A pequena casa no extremo do bairro despertava a atenção: as suas paredes já tinham sido como que atravessadas por olhares suspeitosos. As asas do rumor público agitavam-se por cima dela; tentava-se descobrir o mistério que ali se ocultava. À noite, havia quem fosse espreitar pela janela; por vezes, alguém havia que batesse na vidraça, fugindo logo. Certo dia, na rua, o taverneiro Beguntzev fez parar a mãe de Pavel. Era um bonito velhote que tinha sempre um lenço de seda preta à roda do pescoço vermelho e enrugado. O nariz brilhante e agudo era adornado por lunetas de aro de escama de peixe, o que lhe tinha granjeado a alcunha de «Olhos de osso». Sem tomar a respiração nem esperar resposta, surpreendera Pelagueia com uma torrente de palavras secas e vivíssimas: — Como vai, Pelagueia Nilovna? E o seu filho? Ainda não acha tempo de o casar? O rapaz já está afinal na devida idade para ter uma mulher. Quando os filhos casam cedo os pais ficam mais tranquilos. O homem que vive em família tem mais saúde, tanto de corpo como de espírito, conserva-se como um cogumelo em vinagre. No seu lugar, eu já o tinha casado. Os tempos que vão correndo exigem que abramos os olhos no que respeita ao ente humano; há quem se entregue a uma vida a seu modo, deixando-se arrastar a toda a casta de ações censuráveis. Já se não veem os rapazes no templo de Deus; afastam-se dos lugares públicos, mas reúnem-se às escondidas pelos cantos, a cochichar. Porque andam eles a cochichar? Se me permite a pergunta. Porque se ocultam? O que é que um homem não pode dizer em público, na taverna, por exemplo? Mistérios! Mas o lugar dos mistérios é a nossa santa igreja apostólica! Todos os outros mistérios, realizados a ocultas, vem da desorientação do espírito. Muitos bons dias lhe desejo. E tirou o boné com um gesto pretensioso, agitou-o no ar, e foi-se, deixando Pelagueia imersa na perplexidade. De outra vez, Maria Korsunova, vizinha dos Vlassov, viúva dum ferreiro, e que vendia comestíveis na fábrica, disse a Pelagueia ao encontrá-la no mercado: — Não percas de vista o teu filho, Pelagueia! — Porquê? — Correm uns boatos a seu respeito... — segredou com ares misteriosos. — Coisas feias! Diz-se que está organizando uma espécie de corporação, no género dos flagelantes. Chama-se a isto uma seita. Fustigar-se-ão uns aos outros como os flagelantes. — Não digas mais tolices, Maria! — Vai ralhar com ele que é quem as faz, e não comigo, que te dou parte do caso! — replicou a vendedeira.Pelagueia contou a conversa ao filho, que encolheu os ombros sem responder. Quanto ao pequeno-russo, desatou a rir, com as suas gargalhadas benévolas. — As raparigas também estão zangadas! Sois todos aptos para vos tornardes bons maridos, trabalhais bem, não bebeis... e nem olhais para elas! Diz-se que da cidade vem visitar-vos pessoas de má reputação... — Já cá faltava! — exclamou Pavel, fazendo uma cara de nojo. — Num pântano tudo cheira a podre! — disse André suspirando. — Seria melhor, mãezinha, que explicasse a essas patetinhas o que é o casamento. Talvez não ficassem com a mesma pressa de cair na asneira! — Ah! — exclamou Pelagueia. — Elas bem sabem, mas como hão de passar sem casarem? — Falta-lhes a compreensão, aliás achariam outra coisa em que se ocuparem! — disse Pavel. Ela dirigiu o olhar para o rosto irritado do filho, balbuciando: — É a vós que cabe ensiná-las! Convidem para isso as mais inteligentes. — Impossível! — respondeu Pavel, secamente. — Se tu experimentasses!... — arriscou André. Depois de um silêncio, Pavel respondeu: — Começariam a passear aos pares, alguns acabariam por casar, e pronto! Pelagueia caiu em meditações. A austeridade monacal do filho atordoava-a. Via que ele era obedecido pelos companheiros, até pelos mais velhos, como o pequeno-russo, mas parecia-lhe que todos o temiam e que não gostavam da frieza dos seus modos. Uma vez que ela estava na cama e Pavel e André ainda liam, apurou o ouvido às suas palavras que lhe chegavam através do tabique. — Gosto da Natacha, sabes? — disse de repente o pequeno-russo, a meia voz. — Sim, sei. Pavel não respondera logo. Pelagueia ouviu o pequeno-russo levantar-se, vagaroso, e começar a passear pelo quarto, com os pés descalços. Assobiou uma triste canção; depois tornou a falar: — Ela terá notado?... Pavel ficou silencioso. — Que te parece? — perguntou de novo o companheiro, baixando a voz. — Tem notado! — respondeu Pavel. — E é por isso que já não vem. André voltou a passear, assobiando; até que: — E se eu lho dissesse?...— O quê? — Que... — Para quê? Pelagueia ouviu André rir. — Eu cá, sim, parece-me que quando se ama uma rapariga, devemos dizer- lho, se não é o mesmo que nada!... Pavel fechou o livro com ruído e perguntou: — E que resultado esperas? Estiveram calados durante alguns minutos. — E então? — perguntou André. — É preciso ver claramente o que se quer... — disse enfim Pavel com vagar. — Suponhamos que ela também te ama. Não creio. Mas suponhamos. Casam. É uma união interessante, na verdade, a duma rapariga com um operário!... Vem os filhos... serás obrigado a trabalhar sozinho... e muito. A vossa vida será a de toda a gente, lutareis para ter com que vos sustentardes, para terdes casa onde viver com os filhos. E afinal ambos ficareis perdidos para a obra. Houve um silêncio, até que Pavel concluiu: — Deixa-te disso, André! Cala-te. Não a perturbes. — Mas Nicolau Ivanovitch pregava a necessidade de viver a vida integral, com todas as forças da alma e do corpo... Lembras-te? — Pregava, mas não para nós. Como atingirias tu a integridade? Não existe para ti. Quando se ama o futuro, temos que renunciar a tudo no presente, a tudo, irmão! — É custoso! — replicou André em voz abafada. — E como poderia não ser assim? Reflete! Houve novo silêncio. Ouvia-se apenas a pêndula do relógio, compassadamente, dividindo o tempo em segundos. O pequeno-russo disse: — Metade do coração ama; a outra odeia... E é isto coração, hã? — E como poderia não ser assim? Seguiu-se o folhear dum livro: por certo Pavel voltava à leitura. Pelagueia permanecia deitada com os olhos fechados, sem se atrever a fazer nem um movimento. Sentia-se profundamente apiedada de André, mas ainda mais do seu filho. Dizia consigo: «Meu querido filho... meu mártir! Meu sacrificado!» De súbito, André perguntou: — Devo então calar-me, não é isso? — É o mais honesto, André...— Bem! Entrarei nesse caminho! — decidiu o outro. Mas acrescentou tristemente, decorrido um instante: — Hás de sofrer, Pavel, quando chegar a tua vez. — Chegou. Já sofro... e cruelmente. — Tu também? Lá fora o vento soprava em torno da casa. — Não tem nenhuma graça isto!... — disse André lentamente. Pelagueia meteu a cabeça debaixo da roupa para poder chorar. Na manhã seguinte, André pareceu-lhe como fisicamente amesquinhado, e sentiu-o mais próximo do seu coração. Como sempre, o filho tinha o porte seco, silencioso, rígido. Até então ela tratava o pequeno-russo por André Onissimovitch; daquele dia em diante, sem querer, sem dar por tal, disse-lhe: — Deve concertar as suas botas, meu André, senão tem frio nos pés. — Hei de comprar outras, quando receber a féria. Depois desatou a rir e perguntou-lhe de chofre, pondo-lhe no ombro a sua pesada mão: — Talvez a senhora seja a minha verdadeira mãe, mas que não queira confessá-lo, porque me ache muito feio! Será assim? Sem falar, ela deu-lhe uma pancadinha na mão. Desejaria dizer-lhe palavras carinhosas, mas o coração confrangia-se apiedado, e a sua língua recusava-se a obedecer-lhe... IX No bairro começavam a ocupar-se dos socialistas que espalhavam por toda a parte folhas de papel escritas a tinta azul. Eram papéis que falavam malevolamente dos regulamentos impostos aos operários, das greves de Petersburgo e da Rússia meridional; exortavam os trabalhadores a formarem uma liga e a lutarem na defesa dos seus interesses. As pessoas de certa idade que ocupavam bons lugares na fábrica, irritavam- se e diziam: — Seria conveniente dar uma sova mestra nestes agitadores! E levavam os papéis aos seus chefes. Os rapazes, entusiasmados com tais escritos, exclamavam ardentemente: — O que eles dizem é a verdade! A maioria dos operários, alquebrados pelo trabalho, indiferentes a tudo, pensavam indolentemente: — Aquilo não dá nada. No entanto as folhas volantes interessavam a todos e, quando não apareciam, diziam uns para os outros: — Hoje não há; deixaram de publicá-las... Mas quando, à segunda-feira, reapareciam, os operários de novo se agitavam ruidosamente. Na fábrica e na taverna eram vistas umas pessoas que ninguém conhecia. Interrogavam, examinavam, farejavam, e impressionavam a todos com a sua prudência suspeita. Pelagueia sabia que toda aquela agitação era obra do seu filho. Via-os cercarem-no, ele porém não era só, o que tornava o caso menos perigoso. E o orgulho de ter tal filho juntava-se nela à ansiedade que o futuro lhe inspirava: eram os trabalhos misteriosos do rapaz a misturarem-se como um límpido ribeiro à torrente lamacenta da vida... Uma tarde, Maria Korsunova bateu à vidraça e, quando Pelagueia a entreabriu, a vizinha cochichou: — Que te dizia eu, Pelagueia? Prepara-te! Os teus passarinhos acabaram de rir! Esta noite hão de vir fazer uma busca em tua casa, na de Mazine e na de Vessovtchikov. Não ouviu mais do que as primeiras palavras; as últimas fundiram-se num rumor vago e melancólico. Os lábios espessos de Maria vibravam com rapidez, o seu nariz carnudo dilatava-se, os olhos tornavam-se piscos, e moviam-se vagamente para um e outro lado, como em procura de alguém na rua.— E olha que eu não sei nada, nada te disse, minha querida, nem mesmo te vi ainda hoje... Percebes? Desapareceu. Pelagueia fechou a janela e deixou-se cair numa cadeira, com a cabeça como vazia, sem forças. Mas a consciência do perigo que ameaçava o seu filho fê-la erguer de súbito; vestiu-se à pressa, envolveu a cabeça num xaile e correu a casa de Fédia Mazine, que estava doente. Quando entrou, viu-o sentado junto da janela, a ler, e como que acalentando com a mão esquerda a direita, cujo polegar se mantinha afastado dos outros dedos. Ao ouvir a má nova, ele pôs-se logo de pé, empalidecendo. — Que história esta!... E eu com um abcesso neste dedo! — resmungou. — Que devemos fazer? — perguntou Pelagueia limpando tremulamente o suor do rosto. — Espere... não tenha medo! — respondeu passando pelos cabelos encaracolados a mão válida. — Mas se o senhor é o primeiro a ter medo!... — Eu? Corou de repente, e disse a sorrir, com embaraço: — Sim, é verdade, c'os demónios! Precisamos de prevenir o Pavel. Vou mandar-lhe alguém... Volte para casa... Isto não há de ser nada. Então! Ninguém há de bater-nos! Apenas chegou a casa, Pelagueia reuniu em monte os livros, meteu-os debaixo do braço e pôs-se à busca de um canto onde ocultá-los. Olhou para o fogão, para o forno, para o canudo do samovar e até para o barril cheio de água. Dizia consigo que Pavel largaria dali a pouco o trabalho e voltaria para casa; ele porém demorava-se. Por fim, vencida de cansaço, sentou-se num banco da cozinha, escondeu os livros debaixo da saia e ficou imóvel até que aparecessem o filho e André. — Já sabem?! — disse sem se levantar, apenas os viu. — Já sabemos! — respondeu Pavel com sorriso calmo. — Tens medo? — Tenho, muito! — Não deves ter medo. Não serviria de nada. Nem sequer preparaste o samovar?! Ela ergueu-se, e, mostrando os livros, explicou, embaraçadamente: — Era por causa deles... O pequeno-russo e Pavel desataram a rir, o que a tranquilizou em parte. Depois, o filho pegou em alguns dos volumes e saiu para ir escondê-los no pátio; André dispôs-se a acender o samovar, e foi dizendo:— Nada há terrível nisto; o que faz envergonhar uma pessoa é pensar que haja quem se ocupe destas coisas. Hão de vir por aí uns homens vestidos de cinzento, com um sabre à cinta, esporas nos calcanhares, e rebuscarão por toda a parte. Espreitam para debaixo das camas, e do fogão; se há adega, descem à adega; se há sótão, sobem ao sótão. As teias de aranha caem-lhes nos focinhos, e eles espinoteiam. Enfadam-se, envergonham-se, e por isto fingem-se muito maus e mostram-se furiosos contra a gente. O seu emprego é porco, e eles bem o sabem. Uma vez, foram dar busca à minha casa, não encontraram coisa alguma e... eles aí vão! De outra vez, levaram-me consigo. Meteram-me depois na cadeia, onde estive quatro meses. De tempos a tempos, iam buscar-me e faziam-me atravessar as ruas no meio de uma escolta de soldados. Perguntavam-me toda a casta de coisas. Não são criaturas inteligentes, não sabem falar com critério. Depois diziam aos soldados que me levassem outra vez para a cadeia. E aqui está como fazem de nós gato sapato. Enfim, têm que ganhar os seus ordenados!... Acabaram por pôr-me na rua. E pronto! — Que maneira de falar, meu André! — exclamou Pelagueia mal-disposta. Ajoelhado em frente do samovar, o pequeno-russo soprava com toda a força pelo canudo; levantou a cabeça, mostrando a cara avermelhada pelo esforço e perguntou alisando com as duas mãos o bigode: — Como é então que eu falo? — Como se nunca o tivessem ofendido. Ele ergueu-se, aproximou-se de Pelagueia, e, tendo abanado a cabeça, disse, sorrindo: — Há por acaso alguém neste mundo que não tenha sido ofendido? É que tanto me ultrajaram já, que me cansei de encolerizar-me. Que fazer, se os mais não podem proceder de outra maneira? Os ultrajes incomodam-me muito, impedem-me de realizar a minha obra... mas não os podemos evitar, e, se pensamos nisso, perdemos o nosso tempo. A vida é assim! Dantes zangava-me contra essa gente; depois, quando me veio a reflexão, vi que todos eles tinham o coração despedaçado. Cada qual tem medo de ser o primeiro a atacar. A vida é assim, mãezinha! As palavras soltavam-se-lhe tranquilamente e faziam extinguir-se a ansiedade de Pelagueia. Os olhos polpudos dele sorriam, luminosos e tristes; todo o seu corpo era flexível, elástico, embora como desengonçado. Ela suspirou e disse com calor: — Deus o faça feliz, meu André! O pequeno-russo voltou para o samovar, ajoelhou-se outra vez e murmurou: — Se me derem a felicidade, não a recusarei; mas não a peço e nunca irei buscá-la.E pôs-se a assobiar. Pavel voltou do pátio. — Não encontrarão coisa alguma! — afirmou, convencido. Começou a lavar-se. Depois acrescentou, limpando cuidadosamente as mãos: — Se lhes mostrar que tem medo, mamã, dirão que alguma coisa há para despertar desconfiança. E nós nada fizemos ainda... nada! Bem o sabe, nada queremos que seja mau; a verdade e a justiça estão do nosso lado, trabalharemos por elas toda a vida: eis o nosso crime! Porque havemos de tremer? — Terei coragem, Pavel! — prometeu. Mas logo disse, angustiada: — Se ao menos «eles» viessem depressa! «Eles» porém não vieram naquela noite. No dia seguinte, prevendo que Pavel e André iriam chasquear dos seus terrores, foi a primeira a rir-se de si mesma. X «Eles» chegaram quando menos os esperavam, quase um mês depois. Vessovtchikov, André e Pavel estavam reunidos e falavam do seu jornal. Era tarde, perto da meia-noite. Pelagueia já estava deitada, ia adormecendo e ouvia- lhes vagamente as vozes receosas e em tom baixo. André levantou-se de chofre, atravessou a cozinha nos bicos dos pés e fechou de mansinho a porta após ele. No corredor ouviu-se o ruído duma celha que tombara. André disse em voz alta: — Oiçam: é o ruído de esporas, na rua! Pelagueia levantou-se de salto, pegou numa saia, trémula; mas Pavel apareceu no limiar e disse-lhe tranquilamente: — Fique deitada... Não está boa... Ouviu-se depois um deslizar furtivo sob o telheiro. Pavel aproximou-se da porta, e batendo nela com a mão, perguntou: — Quem está aí? Rápido como um relâmpago, um corpo de homem alto surgiu entre os umbrais; e outro ainda. Os dois guardas repeliram o rapaz, puxando-o depois para entre eles. Uma voz grave e irritada disse: — Não é quem esperavas, hã? Quem falava era um oficial ainda novo, alto e magro, de bigode preto. Fediakine, agente da polícia do bairro, dirigiu-se para a cama de Pelagueia; levando a mão ao boné, em continência, indicou com a outra a mulher, dizendo com um olhar terrível: — A mãe é esta, meu Senhor! Depois, apontando para Pavel: — E o filho é aquele! — Pavel Vlassov? — perguntou o oficial, franzindo os olhos. O rapaz respondeu afirmativamente com a cabeça. Passando a mão pelo bigode, o oficial informou: — Venho fazer uma busca em tua casa... A velha que se levante! Quem está ali? E, tendo olhado para o quarto, entrou nele a passos largos. Ouviram-no perguntar: — O seu nome? Outros dois personagens apareceram ainda: o velho fundidor Tveriakov e o seu inquilino, o fogueiro Ribine, um homem de cabeleira negra e de bom porte. Tinham sido trazidos pela polícia como testemunhas: Ribine disse com voz grossa e possante:— Boa noite, Pelagueia! Ela vestia-se, e, para se dar coragem, murmurava: — Esta agora! Virem de noite!... Quando uma pessoa está na cama!... O quarto parecia pequeno e por ele se espalhara um cheiro ativo a graxa. Os dois guardas e o comissário de polícia do bairro, Riskine, tiravam da estante os livros com ruído, e empilhavam-nos diante do oficial. Os outros davam pancadas nas paredes, olhavam para debaixo das cadeiras; um trepou com custo ao cano do fogão. O pequeno-russo e Vessovtchikov, unidos um ao outro, conservavam-se a um canto; o rosto bexigoso do segundo estava coberto de manchas vermelhas, e os seus olhinhos pardos não podiam desfitar-se do oficial. André retorcia o bigode, e quando Pelagueia entrou no quarto, fez-lhe com a cabeça um movimento amigável. Para ocultar o terror, mexia-se não de lado, como de costume, mas com o peito deitado para a frente, o que lhe dava um aspeto de importância afetada e risível. Andava ruidosamente e as pálpebras tremiam-lhe. O oficial ia pegando rapidamente nos livros com as pontas dos dedos brancos e delgados, folheava-os, sacudia-os, e rapidamente atirava-os para o lado. Alguns volumes caíram no chão. Todos estavam calados; não se ouvia mais do que o respirar dos guardas esbofados, o tintinar das suas esporas; de quando em quando um deles perguntava: — Já viste aqui? Pelagueia colocou-se junto do filho, encostada à parede; como ele, cruzou os braços no peito e quis observar o oficial. As pernas vacilaram-lhe, um nevoeiro toldava-lhe a vista. De súbito, a voz de Vessovtchikov soltou-se concludente: — Para que serve deitar os livros ao chão? Pelagueia estremeceu. Tveriakov abanou a cabeça como lhe tivessem batido na nuca; Ribine resmungou e fitou atentamente o audacioso. O oficial franziu os olhos e cravou-os no rosto bexigoso e imóvel do rapaz... Depois os seus dedos folhearam o livro com mais rapidez. De quando em quando, os olhos pardos de Vessovtchikov abriam-se tanto que dir-se-ia ele estar sofrendo atrozmente e prestes a gritar, furioso e impotente contra a dor. — Soldado! — exclamou de súbito. — Apanha os livros! Os guardas voltaram-se para ele, e olharam depois para o oficial. Este levantou a cabeça, e olhando rapidamente de soslaio para o rapaz, ordenou por entre dentes: — Vá lá, apanhem os livros.Um dos guardas abaixou-se, e observando furtivamente Vessovtchikov pôs-se a apanhar os livros esfarrapados. — Teria feito melhor estando calado... — disse baixinho Pelagueia para o filho. Ele encolheu os ombros. O pequeno-russo estendeu o pescoço. — Que cochichar é esse? Façam favor de estar calados! Quem é que lê aqui a Bíblia? — Eu! Respondeu Pavel. — Ah!... E de quem são estes livros? — Meus. — Está bem!... Comentou o oficial apoiando-se às costas da cadeira. Fez estalar os nós dos seus dedos finos e brancos, estendeu as pernas debaixo da mesa, cofiou o bigode, e perguntou a Vessovtchikov: — És tu que te chamas André Nakodka? — Sou eu! — respondeu o bexigoso avançando. O pequeno-russo deitou-lhe a mão a um ombro e obrigou-o a recuar. — Enganou-se! O André sou eu. O oficial levantou a mão, e ameaçando Vessovtchikov com o dedo indicador erguido: — Toma cuidado!... Começou a remexer nos seus papéis. A noite luminosa e clara olhava indiferentemente pela janela. Alguém ia e vinha em frente da casa e a neve estalava sob os seus passos. — Já foste perseguido por delitos políticos, Nakodka? — perguntou o oficial. — Já: em Rostov e em Saratov... Com a diferença de que ali as autoridades não me tratavam por «tu.» O oficial franziu o olho direito, esfregou-o e disse depois, mostrando os dentitos: — Nesse caso, Nakodka, conhece talvez... Sim... deve conhecer os celerados que espalham pela fábrica folhetos e proclamações proibidas?... O pequeno-russo teve um estremecimento, ia dizer o que quer que fosse com um sorriso aberto, quando se ouviu de novo a excitante voz de Vessovtchikov: — É a primeira vez que vemos celerados! Houve um instante de silêncio. O rosto de Pelagueia tornou-se pálido até na cicatriz, enquanto o sobrolho direito lhe era repuxado para cima. A barba negra de Ribine entrou de tremer deuma maneira estupenda; baixou a cabeça e passou a mão vagarosamente pelo bigode. — Ponham fora daqui essa besta! — ordenou o oficial. Dois guardas agarraram o rapaz por debaixo dos braços e arrastaram-no para a cozinha. Quando lá chegou, conseguiu parar, e apegando-se ao chão com toda a força de que os seus pés eram suscetíveis, gritou: — Esperem! Quero pôr a minha capa! O comissário de polícia, que estivera a rebuscar no pátio, apareceu dizendo: — Nada encontrámos. Vimos todos os cantos. — Está claro! — exclamou o oficial ironicamente. — Já o esperava! Estamos a contas com homens já muito experientes. Pelagueia ouviu aquela voz fraca, trémula e imperiosa; e ao observar aquele rosto amarelento sentia estar ali um inimigo, um inimigo implacável, com o coração cheio de desprezo pelo povo. Dantes poucas pessoas assim ela tinha visto, e nos últimos anos chegara a esquecer-se de que elas existiam. — É a estes que nós causamos inquietações!... — pensava. — Senhor André Onissimov Nakodka, filho de pai incógnito, está preso! — Porquê? — perguntou tranquilo. — Depois lhe direi! — respondeu o oficial com malévola delicadeza. E voltando-se para Pelagueia, berrou-lhe: — Sabes ler e escrever? — Não! — interveio Pavel. — Não falo contigo! — disse o oficial com severidade. — Responde, velha, sabes ler e escrever? Invadida de um sentimento de instintivo ódio contra aquele homem, Pelagueia aproximou-se de súbito, muito trémula, como se tivesse caído num rio gelado; a cicatriz fez-se escarlate, e o sobrolho baixou-lhe. — Não grite! — exclamou, estendendo o braço para o oficial. — É ainda novo, não sabe o que seja o sofrimento... — Sossegue, mamã... — interrompeu Pavel. — É melhor uma pessoa abafar o coração e calar-se! — aconselhou André. — Espera, Pavel! — exclamou ainda Pelagueia, num arranco para a mesa. — Porque é que o sr. anda prendendo a gente? — Isso não é da sua conta. Cale-se! — berrou o oficial, erguendo-se. — Tragam cá o Vessovtchikov. E pôs-se a ler um papel que colocara à altura do rosto. Trouxeram o rapaz.— Tira o boné! — disse-lhe o oficial, interrompendo a leitura. Ribine aproximou-se de Pelagueia e dando-lhe um encontrão: — Não se apoquente, tiazinha! — Como hei de eu tirar o boné, se tenho as mãos agarradas? O oficial atirou com o auto para cima da mesa, dizendo simplesmente: — Assinem! Pelagueia viu os assistentes assinarem o documento, a sua excitação desaparecera, faltava-lhe a coragem; afluíam-lhe aos olhos amargas lágrimas de humilhação e de consciência da sua fraqueza. Durante os vinte anos da sua vida de casada, tinha chorado lágrimas como aquelas; mas esquecera-lhe o ardor quase por completo desde que enviuvara. O oficial olhou para ela e comentou com uma expansão desdenhosa: — Foi cedo para tanto alarde, minha prenda! Creia que é capaz de ficar sem lágrimas... para o futuro. Respondeu-lhe, outra vez irritada: — Às mães nunca faltam as lágrimas!... Se tem mãe, ela deve saber isto, com certeza! O oficial meteu rapidamente os seus papéis na carteira, que era nova e de fechos brilhantes; e dirigindo-se ao comissário de polícia: — Todos eles denotam uma independência revoltante! — Que insolência! — murmurou o comissário. — A caminho! — ordenou o oficial. — Até à vista, André! Até à vista, Nicolau! — disse Pavel apertando calorosamente a mão dos companheiros. — Está claro... até à vista! — repetiu o oficial com ironia. Sem dizer palavra, Vessovtchikov apertava a mão de Pelagueia entre os seus dedos curtos. Respirava a custo; o pescoço robusto estava congestionado, os olhos brilhavam-lhe de raiva. André sorria e meneava a cabeça; disse algumas palavras a Pelagueia, que fez o sinal da cruz sobre ele, respondendo-lhe: — Deus conhece os justos! Enfim o bando de homens de capotes cinzentos desapareceu dobrando a esquina da casa, com um tintinar de esporas. Ribine foi o último a sair; com o seu negro olhar perscrutou Pavel; em tom meio abstrato disse: — Adeus, hã?... E foi-se, sem pressas, tossindo, de cabeça baixa. Com as mãos cruzadas nas costas, Pavel entrou de passear de um para outro lado, por entre as trouxas de roupa e os livros espalhados no chão, até queperguntou em tom sombrio: — Viste como é? Sem deixar de olhar para a desordem em que ficara o quarto, ela disse baixinho, aflita: — Prender-te-ão também... também, a ti! Para que foi tão grosseiro o Vessovtchikov? — Teve medo, provavelmente!... — respondeu Pavel também em voz baixa. — Não se deve falar àquela gente... nada se consegue deles! São incapazes de compreender... — Vieram! Prenderam-no! Levaram-no! — murmurou, com os braços erguidos. Só lhe restava o filho. O coração de Pelagueia começou a pulsar mais vagaroso; o seu pensamento imobilizava-se perante um facto que ela não podia admitir como real. — Faz pouco de nós, aquele homem amarelo: ameaça-nos... e... — Basta, mãe! — disse de repente Pavel com decisão. — Anda cá, arrumemos tudo isto. Tinha dito aquele «mãe» e tratara-a por tu como era seu costume quando se tornava mais comunicativo. Ela aproximou-se, encarou-o e perguntou em voz baixa: — Humilharam-te? — Sim! Custou-me muito! Preferia ir com eles. Pareceu a Pelagueia que ele tinha os olhos lacrimosos; e para o consolar daquele desgosto que ela vagamente adivinhava, disse, suspirando: — Tem paciência... um dia virá em que também sejas preso! — Bem sei... — respondeu. Decorridos uns instantes, ela acrescentou com tristeza: — Como és cruel, meu filho! Se ao menos me tranquilizasses... Mas não! Se eu digo coisas terríveis, o que tu me respondes é pior ainda! Ele olhou de relance, aproximou-se, e baixando a voz: — Não sei que responder-lhe, mamã. Não posso mentir. Tem que acostumar- se... Pelagueia suspirou e calou-se; depois, estremecendo: — Será verdade? Dizem que eles torturam os presos, que lhes retalham o corpo em tiras, e lhes quebram os ossos... Quando penso nisto, tenho medo, Pavel, meu querido filho! — Torturam a alma e não o corpo. É ainda mais doloroso do que a torturatocarem-nos na alma com as mãos emporcalhadas! XI Soube-se na manhã seguinte que Bukine, Samoilov, Somov e mais cinco pessoas também tinham sido presos. À noite, Fédia Mazine veio de corrida: haviam feito uma busca em sua casa; estava radiante por isso, e considerava-se como um herói. — Tiveste medo, Fédia? — perguntou Pelagueia. Empalideceu, encovou-se-lhe o rosto, as narinas estremeceram-lhe. — Tive medo de que o oficial me batesse! Tinha barba negra e era forte; os dedos cabeludos; usava lunetas de vidros pretos; parecia que lhe faltavam os olhos. Gritou, batendo com o pé: «Faço-te apodrecer na cadeia!» Em mim nunca ninguém bateu, nem o meu pai, nem a minha mãe, porque eu era filho único, e eles queriam-me muito. Toda a gente tem levado pancada; eu, nunca. Fechou por um instante os olhos avermelhados e apertou os beiços; com um gesto rápido, atirou para trás com os cabelos e disse, encarando em Pavel: — Se alguém me bater, enterro-me nele como uma navalha, retalho-o com os dentes. É preferível que me estendam de vez! — Tão magrito e fraco!... — exclamou Pelagueia. — Como poderias lutar? — Pois lutarei! — respondeu em voz baixa. Quando ele saiu, ela disse para o filho: — Será esmagado primeiro do que os outros. Pavel não respondeu. Minutos depois, a porta da cozinha abriu-se devagar, e Ribine entrou. — Boa noite! — disse, sorrindo. — Sou eu outra vez. Ontem à noite, obrigaram-me a cá vir; hoje venho por minha conta. Apertou com vigor a mão de Pavel, e pondo a mão no ombro de Pelagueia: — Dás-me chá? Pavel observou em silêncio o amplo rosto atrigueirado do seu visitante, a sua espessa barba negra e os seus olhos inteligentes. Havia um tanto de gravidade no seu olhar tranquilo; todo o aspeto do recém-chegado, de atlética corpulência, inspirava simpatia pela sua decidida firmeza. A mãe foi à cozinha preparar o samovar. Ribine sentou-se, afagou o bigode, e, encostando-se à mesa, envolveu Pavel num olhar. — Com que então... — Assim começou, como se reatasse o fio de uma conversa. — Devo falar-te abertamente. Observei-te por muito tempo antes de vir à tua casa. Somos quase vizinhos, via que recebias muita gente e que ninguém se embriagava nem fazia escândalos. Isto dava nas vistas. Quando alguém seporta bem, é logo notado, vê-se logo quem é. Eu próprio chamo as atenções para a minha pessoa porque vivo à parte, sem praticar porcarias. Falava devagar, indolentemente; tinha inflexões que inspiravam confiança. — Com que então, toda a gente fala de ti. O meu senhorio chama-te «herético» porque não vais à igreja. Eu também lá não vou. Depois apareceram essas folhas, esses papéis... A ideia foi tua? — Foi! — respondeu Pavel sem desviar o olhar da fisionomia de Ribine, que também o fitava. — Ora vamos! — exclamou Pelagueia, sobressaltada, e saindo da cozinha. — Não foste só tu... Pavel sorriu. Ribine também. — Ah!... — murmurou este. A velha fungou e saiu, um tanto irritada por não terem prestado atenção às suas palavras. — Era uma boa ideia. Perturbam o povo. Quantas foram ao todo? Umas dezanove, não? — Isso mesmo. — Então li-as todas! Bem... bem... Há por lá coisas incompreensíveis, supérfluas. Quando o homem fala muito, acontece-lhe falar para nada. Sorriu; tinha os dentes brancos e sãos. — Depois, a busca que fizeram em tua casa... Foi o que me dispôs a teu favor. Tu, o pequeno-russo e Vessovtchikov mostraram-se muito... muito... Como não encontrava a palavra, calou-se, olhou pela janela, e bateu com um dedo na mesa: — Mostraram-se decididos. Foi como se dissessem: «Faça a sua obra, excelência, que nós faremos a nossa!» O pequeno-russo também é um rapaz como se quer. Às vezes, na fábrica, quando o ouvia falar, pensava: «Este não é para se deixar esborrachar, não! Só a morte poderá vencê-lo. Tem um bigode, o tipo!» Não acha, Pavel? — Acho! — respondeu, movendo a cabeça afirmativamente. — Ora bem... Tenho quarenta anos, o dobro da tua idade; tenho visto vinte vezes mais do que tu. Fui soldado durante mais de três anos; fui casado duas vezes; morreu-me a primeira mulher; deixei a segunda. Estive no Cáucaso, vi os Dukobors... Não souberam vencer a vida, irmão! Oh! Não souberam! Pelagueia escutava avidamente estas palavras; era-lhe agradável ver um homem de idade respeitável procurar o filho como para confessar-se. Achava, porém, que Pavel o tratava com demasiada secura, e para destruir esta impressão, perguntou a Ribine:— Talvez tenhas vontade de comer alguma coisa, Mikhail Ivanovitch? — Não, obrigado. Já ceei. Com que então, Pavel, pensas que a vida não vai por bom caminho? O rapaz levantou-se e passeando, com as mãos atrás nas costas: — Qual! Por magnífico caminho! E tanto assim que ele o trouxe até mim, agora que tem a sua alma francamente aberta. Neste caminho, a vida une-nos, pouco a pouco, a todos nós que trabalhamos incessantemente; e tempo virá em que há de unir-nos a todos! As coisas acham-se dispostas de uma maneira injusta e penosa para nós; mas é a própria vida que nos abre os olhos, descobrindo-nos o que encerra amargo; é ela própria que mostra ao homem como lhe deve dirigir a norma. — É verdade! Mas espera! É preciso renovar o homem. Nisto creio eu! Quando se apanha sarna, a gente toma banhos, lava-se, veste-se com asseio e fica bom, não é assim? Mas se a sarna ataca o coração, podemos por acaso arrancar-lhe a pele, ainda que ficasse sangrando? Podemos lavá-lo, vesti-lo de novo? Hã? Então, como purificar o homem por dentro? O quê? Pavel falou calorosamente de Deus, do imperador, das autoridades, da fábrica, da resistência que os trabalhadores do estrangeiro opunham àqueles que queriam limitar os seus direitos. Ribine sorria por vezes; depois batia com o dedo na mesa, como para pontuar o discurso de Pavel, sem contudo deixar de dizer de quando em quando: — É isso mesmo! Todavia, comentou a meia voz com um sorrisinho: — Ah! És ainda novo. Não conheces o próximo! Pavel, de pé diante dele, explicou gravemente: — Não falemos de novos nem de velhos! Vejamos antes qual é a melhor opinião. — Portanto, em tua opinião até se têm servido de Deus para nos enganarem? Concordo. Também creio em que a nossa religião é nociva e errónea. Pelagueia interveio. Quando o filho falava de Deus, das coisas sagradas e queridas que se ligavam à fé que ela tinha no seu Criador, tentava sempre encontrar o olhar de Pavel para pedir-lhe tacitamente que não lhe despedaçasse o coração com palavras de incredulidade, cortantes e aceradas. Ela porém sentia que, apesar de mostrar-se cético, o seu filho era crente; e isto tranquilizava-a. — Como poderia eu compreender os seus pensamentos? — dizia a si mesma. Pensava que devia ser desagradável e ultrajante para Ribine, um homem de idade, ouvir tais palavras de Pavel. Mas quando Ribine dirigira aquela pergunta perdeu, de todo a paciência.— Sede mais prudentes falando de Deus! — disse resumidamente, mas com obstinação. — Façam o que quiserem, mas... E tendo tomado a respiração, continuou com mais vigor: — Mas em que me hei de apoiar, no meio dos meus desgostos, eu que estou velha, se me tirarem o meu Deus? Os olhos encheram se-lhe de lágrimas. Com as mãos trémulas, continuou lavando a loiça. — Não nos compreendeu, mamã! — disse Pavel com suavidade. — Desculpe-nos! — acrescentou Ribine em tom vagaroso, lançando um olhar risonho a Pavel. — Esquecia-me de que estás muito velha para ser ainda tempo de te cortarem as verrugas!... — Eu não falava, de maneira alguma, do Deus bom e misericordioso no qual a mãe acredita, mas sim daquele com que os padres nos ameaçam como se fosse um flagelo, e em nome do qual exigem que a grande maioria dos homens se submeta à vontade malévola de alguns. — Exatamente! Isso é que é! — exclamou Ribine, batendo com o dedo na mesa. — Transformaram-nos até Deus. Os nossos inimigos lançam mão de tudo quanto lhes sirva para abater-nos. Recordo-te, Pelagueia, que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e portanto parece-se com o homem, visto que o homem se parece com Ele. Nós, porém, não nos assemelhamos a Deus, mas sim aos animais selvagens... Na igreja, o que nos mostram, em lugar de Deus, é um espantalho. É mister transformar Deus, purificá-lo! Revestiram-no de mentira e de calúnia, mutilaram o seu rosto para matarem a nossa alma... Falava baixo, mas com espantosa nitidez; cada uma das suas palavras era para Pelagueia um golpe doloroso. Sentiu-se assustada por aquela grande cara taciturna enquadrada numa barba negra, e o brilho sombrio dos seus olhos tornava-se-lhe insuportável. — Ah! Prefiro ir-me embora! — disse, sacudindo a cabeça. — Não tenho coragem de ouvir tais coisas... Não posso! E fugiu para a cozinha, enquanto Ribine dizia: — Vês, Pavel? Não é pela cabeça, mas sim pelo coração que se deve começar. O coração é um lugar da alma humana no qual não brota mais do que... — Do que a razão! — acabou Pavel com firmeza. — Será só a razão que libertará o homem! — A razão não dá o poder! — replicou Ribine, vibrante e obstinado. — É o coração que dá a força e não o cérebro! Pelagueia despira-se e deitara-se sem haver rezado. Tinha frio e sentia-sepouco bem. Ribine, que lhe parecera tão sensato, tão correto, ao princípio, excitava-lhe uma reservada hostilidade. — Herético! Agitador! — pensava, prestando o ouvido à voz sonora que saía com facilidade daquele peito amplo e forte. — Para que veio ele cá?!... E Ribine ia dizendo, tranquilo e firme: — Um lugar santo não pode ficar vazio. O lugar onde Deus vive dentro de nós é atacado; se Ele cair da alma, ficará uma chaga! Ora aí está! É preciso inventar uma fé nova, Pavel. É preciso criar um Deus justo para todos, um Deus que não seja nem juiz, nem guerreiro, mas sim o amigo dos homens. — E que outra coisa foi Jesus?! — exclamou Pavel. — Espera!... Jesus não era firme de espírito... «Afastem de mim este cálice...» disse ele. E reconhecia o poder do César. Deus não pode reconhecer uma autoridade humana reinando sobre os homens, porque ele é que é a omnipotência! Ele não dividiu a sua alma numa parte divina e em outra humana, e visto que confirmou a sua divindade, não carece de coisa alguma humana. Jesus reconheceu também como legítimos o comércio e o casamento. Foi injustamente que condenou a figueira. Que culpa tinha ela da sua esterilidade? Não é por sua culpa que a alma não dá bons frutos. Fui eu que semeei nela o mal? As duas vozes vibravam sem interrupção no quarto, como se se arrojassem uma à outra, combatendo-se em luta animada e apaixonada. Pavel ia e vinha, a passos largos, e o sobrado rangia sob os seus pés. Quando falava, todos os sons se fundiam no ruído da sua voz; quando Ribine replicava, calmo, tranquilo, ouvia-se o tiquetaque da pêndula do relógio e o seco estalido da neve que roçava com as suas garras agudas nas paredes da casa. — Vou falar-te como autêntico fogueiro que sou: Deus parece-se com o fogo. É isto, sim! Não consolida coisa alguma, não o pode. Queima e funde, iluminando. Ilumina as igrejas, mas não as constrói. Vive no coração. Disse-se: «Deus é o Verbo»; e o Verbo é o espírito. — A razão! — emendou Pavel, obstinado. — Isso! Portanto, Deus está no coração, e na razão, e não na igreja. E eis de onde vêm as desgraças, as dores, os infortúnios do homem: é que todos nós somos arrancados de nós mesmos! O coração é repelido pela razão, e a razão foi-se! O homem não é uno. Deus une o homem em um todo, em um globo. Deus criou sempre coisas redondas: a terra, as estrelas; tudo o que é visível, o que é agudo, foi o homem quem o fez. Quanto à igreja, é o túmulo de Deus e do homem. Pelagueia adormeceu, não tendo ouvido sair Ribine. Ele voltou a aparecer muitas vezes. Quando qualquer companheiro de Pavelestava em casa deste, o fogueiro sentava-se a um canto e continha-se em silêncio; de tempos a tempos, dizia: — Isso! Exatamente! Uma vez, espraiou o seu negro olhar pelos assistentes, e disse, nada satisfeito: — Deve-se falar do que é; o que será não sabemos nós. Quando o povo for livre, ele próprio verá o que tiver de melhor a fazer. Já lhe meteram na cabeça muitas coisas que ele não queria! Basta! Ele que se examine! Talvez ele repila tudo, toda a vida e todas as ciências; talvez veja que tudo lhe é hostil, como por exemplo: Deus e a igreja. Deem-lhe para a mão todos os livros, e ele responderá. Mas para isto, seria necessário que ele compreendesse que quanto mais apertada é a coleira, mais penoso é o trabalho. Quando Pavel e Ribine estavam a sós, punham-se logo a discutir, tranquilamente, por muito tempo. A velha escutava-os inquieta, seguia-os com o olhar silencioso, diligenciando compreender. Por vezes, parecia-lhe que ambos tinham cegado. Nas trevas, entre as paredes do pequeno quarto, os dois vagueavam dum para outro lado, como em busca duma saída ou duma luz; agarravam-se a tudo com as suas mãos vigorosas, mas inábeis; agitavam, revolviam tudo, deixando cair por terra coisas que depois espezinhavam. Esbarravam em tudo, tateavam e repeliam tudo, sem pressas, sem perderem a esperança nem a fé. Tinham-na acostumado a ouvir uma palavras terríveis pela sua simplicidade e audácia; estas palavras já não a oprimiam com a mesma violência. Ribine não era simpático à velha, mas a repulsão, que a princípio lhe inspirara, tinha desaparecido. Uma vez por semana, Pelagueia ia à cadeia levar roupa e livros a André; um dia obteve licença de vê-lo; e ao voltar para casa, contou enternecidamente: — Continua sendo o mesmo. Amável para com todos. Todos brincam com ele. Parece que tem sempre o coração em festa. Custa-lhe a vida, sofre, mas não quer dá-lo a perceber. — E é assim que devem fazer todos! — replicou Ribine. — Todos nós estamos envolvidos em desgostos como numa segunda pele... Respiramos desgostos... vestimo-nos de desgostos... Não temos de que nos gabar. Nem toda a gente tem os olhos furados, e muitos há que os fecham de moto próprio... Quando se é parvo, então sim, não há remédio senão esperar o sofrimento... XII A velha casa parda dos Vlassov atraía de mais em mais as atenções do bairro. Às vezes um operário aparecia por lá, e depois de ter olhado para todos os lados, cautelosamente, dizia a Pavel: — Irmão, tu que lês nos livros, deves conhecer as leis. Portanto, explica-me. E contava qualquer arbitrariedade da polícia ou da administração da fábrica. Nos casos complicados, Pavel remetia o consulente, com duas palavras de recomendação, a um advogado dos seus amigos, e, quando podia, ele próprio dava conselhos. Pouco a pouco, os frequentadores do bairro foram nutrindo um sentimento de respeito por aquele rapaz tão comedido, que falava de tudo com simplicidade e afoiteza, que raras vezes ria, que encarava e escutava todos os assuntos com atenção, metendo-se na embrulhada de qualquer negócio particular e descobrindo sempre o fio que ligava as criaturas umas às outras por milhares de nós tenazes. Pelagueia via ampliar-se a influência do seu filho, começava a aprender o sentido dos trabalhos de Pavel, e quando o compreendia, invadia-a uma alegria infantil. Pavel tornou-se maior na opinião pública por ocasião da história do «kopeck [3] do pântano». Um grande pântano com pinheiros e bétulas cercava a fábrica como um fosso infeto. No verão, vinham dele exalações amarelentas, opacas, de mistura com nuvens de mosquitos que se espalhavam no bairro produzindo febres. O pântano pertencia à fábrica; o novo diretor, querendo tirar partido dele, concebeu o projeto de esgotá-lo, extraindo-lhe ao mesmo tempo o nateiro. Esta operação, disse aos operários, tornaria salobras as circunvizinhanças e melhoraria as condições de vida a todos; portanto ordenou que fosse descontado um kopeck por cada rublo, nas férias, quantia que seria destinada ao saneamento do pântano. Nos operários houve uma agitação; irritava-os principalmente o facto de não reverter para os empregados o imposto. No sábado em que foi publicada a decisão do diretor, Pavel estava doente e não fora trabalhar; nada sabia. Na manhã seguinte, depois da missa, o fundidor Sizov, um bom velho, o serralheiro Markotine, homem alto, muito irascível, foram a casa dele para lhe dizer o que se passava. — Os mais velhos de entre nós reuniram-se, — disse rudemente Sizov; — discutimos; os nossos companheiros mandaram-nos cá para te perguntarmos — visto seres um homem de espírito lúcido, se há alguma lei que permita ao diretor extinguir os mosquitos à nossa custa. — Nota — acrescentou Markotine, revolvendo os olhos, — que há quatro anosaqueles ladrões nos apanharam dinheiro para construírem um estabelecimento de banhos... Que é dele? Pavel explicou que o imposto era injusto, que a fábrica tiraria uma grande vantagem do projeto. Assim, os dois operários retiraram-se com ares de poucos amigos. Depois de os haver acompanhado até à porta, Pelagueia disse sorrindo: — Vêm então os velhos a tua casa aprender contigo, Pavel!... Sem responder, o rapaz sentou-se e começou a escrever, preocupado. Decorridos instantes: — Peço-te que vás imediatamente à cidade e entregues este bilhete... — É coisa arriscada? — Sim. É para onde imprimem o nosso jornal. Esta história do kopeck deve aparecer, sem falta, no próximo número. — Está bem! Está bem! — respondeu ela, vestindo-se à pressa. — Eu vou. Era o primeiro recado importante de que o filho a encarregava. Sentia-se feliz por ver que ele lhe dizia francamente do que se tratava, e por poder ser-lhe útil na sua obra. — Compreendo, Pavel! Vou num momento. Como se chama ele? Iegor Ivanovitch, não?... Regressou de noite, já tarde, fatigada, mas satisfeita. — Vi a Sachenka. Manda-te recomendações. Como é divertido o Iegor! Sempre de brincadeira!... — Muito folgo com que ele seja do teu agrado. — Que simpleza de gente! São tão simpáticas as pessoas simples!... E olha que todos eles te estimam muito. Na segunda-feira, Pavel não pôde ir à fábrica, doía-lhe a cabeça. Mas ao meio-dia, Fédia Mazine apareceu-lhe, em grande excitação, radiante: participou esbofado: — Toda a fábrica está em revolta! Mandaram-me vir à tua procura. Sizov e Markotine dizem que tu explicarás a coisa melhor do que os outros. Se visses o que por lá vai! Pavel vestiu-se sem dizer palavra. — As mulheres estão reunidas e fazem uma gralhada!... — Vou ter com elas! — disse Pelagueia. — Tu não estás bom, talvez seja perigoso... Os outros para que servem, então? Eu irei falar com eles... — Vamos! — disse Pavel simplesmente. Saíram rapidamente, em silêncio. Pelagueia, ofegante e comovida, pressentia o que quer que fosse grave. À entrada da fábrica, uma multidão de mulheresberrava e discutia. Pelagueia via que todos os rostos estavam voltados para o mesmo lado, para a parede das forjas. Ali, Sizov, Markotine, Valov e mais cinco operários influentes e idosos tinham trepado para um montão de velha ferragem. — Aí vem o Vlassov! — gritou alguém. — Vlassov! Tragam-no cá! Levaram Pavel, de roldão. Pelagueia ficou só. — Silêncio! — ordenaram muitas vozes a um tempo. Próximo de Pelagueia ouviu-se a voz monótona de Ribine: — Não é pelo kopeck que se deve mostrar resistência, mas sim pelo princípio da justiça. Não é o kopeck o que nos custa, não é mais redondo do que os outros, mas é para nós mais pesado: há nele mais sangue humano do que em um só rublo do diretor! Estas palavras caíam sobre a multidão com energia e provocavam ardentes exclamações. — É verdade! Bravo, Ribine! — Silêncio, seus diabos! — Tens razão, fogueiro! — Olhem o Vlassov! As vozes confundiram-se num turbilhão tumultuoso, abafando o ruído surdo das máquinas e os suspiros do vapor. De toda a parte corria gente que começava a discutir, agitando os braços, excitando-se mutuamente com palavras febris e cáusticas. A irritação que dormia nos peitos fatigados, despertava; escapava dos lábios e tomava o voo, triunfante. Ao de cima da multidão pairava uma nuvem de poeira e ferrugem; os rostos cobertos de suor estavam em fogo, a pele das faces vertia lágrimas negras. No fundo sombrio das fisionomias, brilhavam os olhos e os dentes. Afinal, Pavel apareceu ao lado de Sizov e de Markotine; ouviram-no gritar: — Companheiros! Pelagueia viu que o filho estava pálido e que os seus lábios tremiam; involuntariamente, quis avançar, abrindo caminho, à força; mas disseram-lhe com mau modo: — Ó velha, deixa-te estar! Empurraram-na. Mas não desanimou, com os ombros e os cotovelos afastava toda a gente e aproximava-se do filho, pouco a pouco, impelida pelo desejo de ir ficar a seu lado. Pavel, depois de haver soltado frases a que costumava dar um sentido profundo, sentiu as goelas apertadas pelo espasmo resultante da grande alegria de combater. Invadiu-o o desejo de entregar-se à força da sua crença, de arrojaràquela gente o seu coração consumido pelo ardente sonho da justiça. — Companheiros! — repetiu, dando a esta palavra todo o entusiasmo e vigor. — Somos nós que construímos as igrejas e as fábricas, que fundimos o dinheiro, que forjamos os grilhões... Somos nós a força viva que nutre e diverte o mundo inteiro, desde que nascemos até à morte... — Isso! Isso! — exclamou Ribine. — Sempre e em toda a parte, somos os primeiros no trabalho, enquanto nos atiram para os últimos lugares na vida. Quem se preocupa de nós? Quem nos quer bem? Quem nos considera como homens? Ninguém! — Ninguém! — repetiu uma voz como se fosse um eco. Senhor de si, Pavel passou a falar com mais simplicidade e mais calmo. A multidão avançava lentamente para ele, como um corpo sombrio de mil cabeças. Olhava para o rapaz com centenas de olhos atentos, respirava as suas palavras. O ruído decrescia. — Não teremos melhor quinhão enquanto não nos sentirmos solidários, enquanto não formarmos uma única família de amigos, estreitamente ligados pelo mesmo desejo: o de lutarmos pelos nossos direitos. — Entra no assunto! — disse uma voz perto de Pelagueia. — Não o interrompam! Calem-se! — replicaram de vários pontos. Quase todas aquelas caras tinham uma expressão de incredulidade soez; poucos olhares estavam fixados em Pavel com gravidade. — É um socialista, mas não tem nada de tolo! — disse um. — É um revolucionário! — acudiu outro. — Fala com tesura! — afirmou um operário, forte e vesgo, dando um empurrão em Pelagueia. — Companheiros! Chegou o momento de resistirmos à força ávida que vive do nosso trabalho; chegou o momento de nos defendermos. Deve cada qual compreender que ninguém virá em nosso auxílio, se não nós mesmos. Um por todos, todos por um: deverá ser a nossa lei, se quisermos vencer o inimigo. — Ele diz a verdade, irmãos! — exclamou Markotine. — Escutem a verdade! E com um gesto largo, ergueu o punho cerrado. — É indispensável mandar chamar o diretor, imediatamente! — continuou Pavel. — É preciso perguntar-lhe... De súbito, dir-se-ia que um furacão caíra sobre todo o povo. Toda aquela massa de gente ondeou como o oceano sob uma rajada; dezenas de vozes berraram a um tempo: — Venha o diretor!— Ele que se explique! — Vão buscá-lo! — Mandemos-lhe delegados! — Não! Tendo conseguido chegar à frente, Pelagueia olhava para o filho, sentindo-se dominada por ele. Estava repleta de orgulho: o seu Pavel, no meio dos velhos operários mais queridos, sendo escutado e apoiado por toda a gente!... Admirava o seu sangue-frio, a sua simplicidade e o seu falar sem fastio e sem pragas, como era o dos outros. As exclamações, os gritos de revolta, as invetivas choviam como saraivada grossa em telhados de zinco. Pavel encarava na multidão, e parecia procurar o que quer que fosse entre os grupos. — Delegados! — Fale o Sizov! — O Vlassov! — O Ribine, que tem uns dentes terríveis! Afinal, escolheram Pavel, Sizov e Ribine para parlamentários, e iam mandar chamar o diretor, quando de chofre se ouviram algumas hesitantes exclamações: — Vem aí, sem ser chamado... — O diretor... — Ah!... Ah!... A multidão abriu caminho a um figurão alto, seco, de rosto comprido, e barba em bico. — Com licença! — dizia, afastando o povo com um movimento ligeiro, mas sem lhe tocar. Tinha os olhos semicerrados, e, como experiente em lidar com os homens, ia observando as fisionomias dos operários. Estes inclinavam-se, tiravam o boné, cumprimentando-o. Ele não respondia a estas demonstrações de respeito, semeava o silêncio e o constrangimento por onde ia passando; sentia-se já, sob os sorrisos contrafeitos e o tom abafado das palavras, o como arrependimento da criança, cônscia de ter feito uma tolice. O diretor passou em frente de Pelagueia, lançou-lhe um olhar severo e parou junto do montão de ferragem. De cima, alguém estendeu-lhe a mão: não a aceitou. Com um movimento vigoroso e ágil, subiu, ficou à frente e perguntou em tom frio e autoritário: — Que significa esta reunião? Porque abandonaram o trabalho? O silêncio foi completo por alguns instantes. As cabeças dos operários balouçavam como espigas. Sizov agitou o boné, encolheu os ombros e baixou acabeça. — Respondam! — berrou o diretor. Pavel abeirou-se a ele e disse-lhe em voz alta, apontando para Sizov e Ribine: — Nós três fomos encarregados pelos nossos companheiros de exigir que reconsiderasse na sua resolução relativamente ao desconto do kopeck. — Porquê? — perguntou o diretor sem olhar para Pavel. — Porque reputamos injusto este imposto! — replicou com voz sonora. — Portanto, não veem no meu projeto senão o desejo de explorar os operários, e não o cuidado de melhorar a sua existência, não é verdade? — Exato! — E o sr. também? — perguntou, dirigindo-se a Ribine. — Somos todos da mesma opinião. — E o sr.? — perguntou ainda, voltando-se para Sizov. — Eu cá... também lhe peço que não nos tire o nosso kopeck. Depois, baixando outra vez a cabeça, Sizov sorriu contrafeito. O diretor passou vagarosamente o olhar pela multidão e encolheu os ombros. Em seguida olhou perscrutadoramente para Pavel, e disse: — O sr. é, segundo creio, um homem instruído. Não compreende todas as vantagens da minha medida? Pavel respondeu distintamente: — Ninguém deixaria de compreendê-las, se a fábrica esgotasse o pântano à sua custa. — A fábrica não trata de filantropias! — replicou. — Ordeno-lhes, a todos, que voltem imediatamente para o trabalho. E preparou-se para descer, tateando cautelosamente os ferros com a ponta da bota, sem olhar para ninguém. Ouviu-se um rumor de desaprovação. — Que é isso? — perguntou o diretor, parando. Calaram-se todos; apenas, a distancia, replicou uma única voz: — Trabalha, tu! — Se dentro de um quarto de hora não voltarem para o trabalho, multá-los-ei, a todos! — declarou secamente. E seguiu o seu caminho por entre a multidão, enquanto atrás dele se ia levantando um surdo murmúrio. Quanto mais ele se afastava, mais o ruído se tornava intenso. — Vão lá falar-lhe!— São então estes os nossos direitos! Estupor de sorte! Dirigiam-se a Pavel, gritando: — Olá! Jurisconsulto! Que devemos fazer agora? — Enquanto se tratou de falar, falaste; mas ele apareceu e mudaram os ventos! — Então, Vlassov! O que fazemos? As perguntas eram cada vez mais insistentes. Pavel respondeu enfim: — Companheiros, proponho que abandoneis o trabalho até que o diretor renuncie ao injusto desconto. Ergueram-se logo frases irritadas: — Julgas que somos parvos? — É o que se deve fazer! — A greve?! — Por causa de um kopeck?! — Pois façamos greve! — Vamos todos para o olho da rua! — E quem trabalharia? — Encontrariam outros operários! — Onde? Traidores?! XIII Pavel desceu e colocou-se ao lado da mãe. Em volta deles, todos começaram a falar ruidosamente, a discutir, a agitarem-se, gritando. — Não se fará a greve! — disse Ribine aproximando-se de Pavel: — o povo embora seja sovina em se tratando de dinheiro, é muito poltrão. Não encontrarás mais de trezentos que tenham opinião igual à tua. Não se pode revolver semelhante esterco só com uma forquilha. Pavel ficou silencioso. Perante ele, a multidão com a sua enorme cara negra movia-se e observava-o como se ele lhe tivesse feito uma exigência. O seu coração pulsava violento. Parecia-lhe que as suas palavras tinham desaparecido, sem deixarem vestígios naqueles homens, tais como gotas de chuva ténue, esparsas em terreno gretado por uma longa estiagem. Uns após outros, os operários aproximaram-se dele, felicitaram-no pelo seu discurso, mas duvidavam do êxito da greve, e lamentavam que o povo não compreendesse nem a sua força nem os seus interesses. O sentimento de desilusão apoderava-se de Pavel, que também já não acreditava na sua força. Doía-lhe a cabeça, sentia-se como vazio! Dantes, nos momentos em que ele fantasiava o triunfo da verdade que tão querida lhe era, o entusiasmo de que se enchia o seu coração dava-lhe vontade de chorar. E agora, tendo exprimido a sua fé diante do povo, aparecera-lhe mais pálida, impotente, incapaz de tocar no que quer que fosse. Acusava-se, a si próprio; tinha a impressão de haver adornado o seu sonho com vestimentas informes, sombrias, e míseras, e que por isto ninguém lhe descobrira a beleza. Voltou para casa triste e fatigado. A mãe e Sizov seguiam-no. — Falas bem — dizia Ribine, — mas não chegas ao coração. É o que é! Precisa-se lançar a faísca até ao fundo dos corações. Não será pela razão que os captarás. É calçado muito fino e muito apertado para o povo; não lhe serve nos pés. E ainda que servisse, o sapato ficaria acalcanhado em pouco tempo! Sizov dizia a Pelagueia: — Chegou o momento de nós, os velhos, irmos a caminho do cemitério! Levanta-se um povo novo. Como temos vivido? Arrastando-nos de joelhos, constantemente curvados para a terra. E hoje não se sabe ao certo se há consciência do que se faz ou se o caminho novo é mais errado do que o nosso... Em todo o caso, os de hoje não se parecem connosco. Vejam lá: os novos falando ao diretor como de igual para igual!... Ah! Se o meu filho fosse vivo!... Até à vista, Pavel Mikhailovitch... És um belo rapaz, tomas a defesa do povo... Queira Deus que encontres o bom caminho, a boa saída... Deus queira! E foi-se. — Pois! Que todos morram! — resmungou Ribine. — Já agora, não soishomens, sois uma argamassa, boa apenas para tapar as fendas das paredes! Reparaste, Pavel, nos que mais gritaram para que tu fosses designado como nosso delegado? Eram os que dizem que tu és um revolucionário, um perturbador. Ora aí tens! Pensaram que serias expulso da fábrica; era isto o que eles queriam. — Sob o seu ponto de vista, têm razão. — Os lobos também têm as suas razões quando se despedaçam uns aos outros. Ribine estava rabugento, a voz tremia-lhe. — Os homens não têm confiança na palavra nua e crua... É preciso mergulhá-la no sangue... Durante o dia todo, Pavel sentiu-se desgraçado, como se tivesse perdido alguma coisa e pressentisse a sua própria perda sem compreender no que ela consistiria. De noite, quando a mãe já dormia e ele ainda estava lendo na cama, a polícia voltou para revolver raivosamente em toda a casa, no pátio e no sótão. O oficial amarelento portou-se, como da primeira vez, duma maneira impliquenta e ofensiva, sentindo prazer em melindrar Pavel e a mãe. Assentado a um canto, Pelagueia mantinha-se em silêncio, com o olhar fixo no rosto do filho. Este tentava ocultar a perturbação, mas quando o oficial ria, os dedos do rapaz tinham movimentos não vulgares; a mãe percebia quanto ele estava sofrendo por não poder responder à letra aos gracejos do oficialzito. Sentia-se menos assustada do que na primeira busca, mas era maior o seu ódio por aqueles visitantes noturnos, vestidos de cinzento, de esporas tintinantes. Pavel conseguiu dizer-lhe baixinho: — Vão levar-me. Baixando a cabeça ela respondeu: — Percebo... Compreendia: iam metê-lo na cadeia pelas frases que ele dirigira aos operários. Mas estes tinham-nas apoiado, e todos iriam tomar a defesa de Pavel, que só por pouco tempo ficaria preso. Tinha vontade de chorar, de abraçar o filho; mas ao seu lado o oficial observava-a com olhar malévolo, os lábios tremiam-lhe assim como o bigode, e Pelagueia sentiu que aquele homem esperava com alegria que ela se desfizesse em lágrimas, em súplicas, em lamentações. Reunindo todas as suas forças, falando o menos possível, apertou a mão do filho e disse em voz baixa, retendo a respiração: — Até à vista, Pavel. Levas contigo tudo que precisas?— Levo. Não te dê cuidado. — O Senhor vá contigo. Quando o levaram, a mãe deixou-se cair num banco e soluçou docemente com as pálpebras abaixadas. Encostada à parede, como seu marido fazia outrora, torturada pela angústia e pelo sentimento da sua impotência em semelhante transe, chorou durante muito tempo, fazendo passar às lágrimas a dor do seu coração ferido. Via na sua frente, como se fosse uma mancha imóvel, uma fisionomia amarela, de bigode delgado, olhos semicerrados, aspeto feliz. No seu peito contorciam-se, como em negro torvelinho, o desespero e a cólera contra quem roubava um filho a sua mãe, só porque ele procurava a verdade. Estava frio: as gotas de chuva batiam nas vidraças, ao longo das paredes deslizava o que quer que fosse; dir-se-ia que nas trevas, silhuetas pardas, de grandes caras sem olhos, e de braços compridos, rondavam, espiando. E as suas esporas tintinavam fracamente. — Seria melhor que me tivessem levado também! — pensou. O apito da fábrica vibrou, na sua ordem de começar o trabalho. Naquela manhã, foi um apito vago, e hesitante. A porta abriu-se, Ribine entrou. Aproximou-se de Pelagueia, e limpando as gotas de chuva que se lhe haviam espalhado pela barba: — Levaram-no? — Sim. Malditos! — Bonita coisa! A mim, revistaram-me, rebuscaram tudo... Injuriaram-me... mas afinal não me prenderam. Com que então, levaram o Pavel?! O diretor deu o sinal, a polícia obedeceu, e aqui está como se prende um homem! Entendem- se bem uns aos outros, como os gatunos nas feiras. Uns encarregam-se de ordenhar o povo, enquanto outros o seguram pelo focinho. — Devem tomar a defesa do Pavel! — exclamou ela, erguendo-se. — Foi por causa de todos que ele se comprometeu. — Mas quem deve tomar essa defesa? — Todos vós! — Que ideia! Não conte com isso! Foram precisos milhares de anos para reunir a sua força. Cravaram-nos um sem número de pregos no coração... Como seria possível ajuntarem-nos de súbito? Necessitamos primeiro de arrancar os nossos espinhos de ferro... São estes espinhos que impedem os nossos corações de reunirem-se numa massa compacta. E com um risinho, foi-se lentamente. As suas palavras cruéis e desesperadas tinham aumentado o desgosto de Pelagueia. — Podem matá-lo, torturá-lo...E imaginou o corpo do filho crivado de pancadas, despedaçado, ensanguentado; e, como uma camada de argila gelada, sufocava-a o medo caído no seu coração. A luz fazia-lhe mal aos olhos. Não acendeu o fogão, não preparou o jantar, não tomou o chá; só muito tarde, à noite, comeu um pouco de pão. Quando se deitou, reconheceu que nunca na sua vida se sentira tão humilhada, tão isolada, como nua. Nos últimos anos, acostumara-se a viver na constante expetativa do que quer que fosse importante, feliz. Em torno dela, a gente nova movia-se, ruidosa e decidida, dominada pelo seu filho de rosto grave, seu filho, o senhor e o criador daquela vida cheia de inquietação, mas boa. E naquele momento em que já não o via, tudo tinha desaparecido. XIV O dia decorreu lentamente, seguido de uma noite sem sono. O dia seguinte pareceu-lhe ainda mais comprido. Esperava não sabia o quê, mas ninguém veio. Caiu a tarde, depois a noite. A chuva glacial tombava roçando pelas paredes, o vento soprava pela chaminé, o madeiramento da casa rangia. Ouvia-se apenas a melodia melancólica e dolorosa das gotas de água caindo do telhado, como lágrimas. Parecia que toda a casa vacilava e que uma surda angústia gelava o ambiente. Bateram de manso à vidraça. Pelagueia estava acostumada a este sinal; não se assustou; estremeceu como se lhe tivessem despertado bondosamente, o coração. Vaga esperança fê-la levantar-se de pronto. Atirando um xaile para os ombros, abriu a porta. Samoilov entrou, seguido de outra pessoa que ocultava a cara na gola erguida da capa; tinha o boné descaído para os olhos. — Viemos acordá-la? — perguntou Samoilov sem mais cumprimentos. Fora do costume, o seu ar não era tranquilo. — Não; eu não estava a dormir. E olhou inquiridoramente para os recém-chegados. Com um suspiro abafado e profundo, o companheiro de Samoilov tirou o boné e estendeu a Pelagueia a mão forte e de dedos grossos. — Boa noite, mãezinha! Não me reconheceu? — disse-lhe amigavelmente como a um velho conhecimento. — Ora?! — exclamou ela com alegria. — Iegor Ivanovitch! O sr.?! — Eu, sim! Tinha o cabelo comprido como um menino de coro. Iluminava-lhe a fisionomia um sorriso de bondade; os seus olhitos pardos fitavam-se em Pelagueia com expressão carinhosa. Assemelhava-se a um samovar no seu corpito redondo, no pescoço grosso e nos braços curtos. A pele da cara reluzia; no seu peito parecia pesar e restolhar alguma coisa... — Vão para aquele quarto; eu vou vestir-me! — propôs ela. — Temos que dizer-lhe! — respondeu Samoilov, preocupado e olhando-a de soslaio. Iegor passou para a divisão do lado, dizendo: — Mãezinha, esta manhã um dos nossos amigos saiu da cadeia, onde esteve três meses e onze dias. Viu por lá o pequeno-russo e Pavel que lhe envia muitas recomendações; o seu filho pede-lhe que não se apoquente por causa dele, e manda-lhe dizer que no caminho que ele escolheu, a cadeia é o lugar que serve para o descanso; assim o resolveram as nossas autoridades sempre interessadas pelo nosso bem-estar... Vamos agora ao que importa: Sabe quantas pessoasforam presas ontem? — Não. Pavel não foi o único? — Foi o quadragésimo nono... — declarou Iegor tranquilamente. — E espera- se que ainda sejam presos uns dez... Entre outros este cavalheiro aqui presente. — Eu mesmo! — disse Samoilov, sombrio. Pelagueia respirava mais facilmente. — Não está então sozinho!... Quando acabou de vestir-se, passou ao outro quarto, sorrindo, bem disposta. — Não os conservarão presos por muito tempo se eles são muitos. — Diz bem! E se conseguirmos torcer o jogo dos nossos adversários, não terão adiantado mais do que dantes. Se deixarmos de propagar agora os nossos folhetos, os patifes da polícia notarão o caso, e perceberão que a propaganda era feita pelo Pavel e pelos companheiros, agora seus companheiros na cadeia. — Como? Não percebo... — Nada mais simples, mãezinha. Às vezes a gente da polícia chega a raciocinar com acerto... Repare: enquanto o Pavel era livre apareciam os folhetos; metido na cadeia, desapareceram. Logo era ele quem os espalhava. — Percebo!... — murmurou ela tristemente. — Que fazer? Ah! Deus do céu! A voz de Samoilov veio da cozinha: — Diabos me levem! Prenderam quase todos os nossos! É preciso continuar a trabalhar como dantes, não só pela nossa causa, mas também para salvar os companheiros. — E ninguém para trabalhar!... — suspirou Iegor. — Temos folhetos magníficos... Fui eu mesmo que os fiz. Mas como introduzi-los na fábrica? Eu cá não sei! — Agora, toda a gente é revistada à entrada... — explicou Samoilov. Pelagueia adivinhava que lhe queriam alguma coisa. — Então que fazer? — perguntou vivamente. Samoilov parou e perguntou: — Pelagueia Nilovna, conhece a vendedeira Korsunova? — Conheço. Porquê? — Fale-lhe. Talvez que ela se encarregue dos nossos folhetos. Ela ergueu logo o braço num movimento negativo: — Ah! Não! É uma tagarela! Não! Saber-se-ia logo que fui eu... que foi coisa vinda da nossa casa... Não! E de súbito, iluminada por uma ideia repentina, exclamou com alegria:— Deem-me os folhetos! Deem-mos! Eu acharei um meio... Deixem isso por minha conta! Pedirei à Maria que me tome ao seu serviço. Tenho que trabalhar, se quiser comer. Levarei também os jantares à fábrica, aos operários... Deixem isso por minha conta. Com as mãos unidas no peito, afirmava que saberia proceder sem que a descobrissem, e concluiu com uma exclamação triunfante: — Ah! Hão de ver que mesmo com Pavel na cadeia, a sua mão os atinge! Todos três se sentiam de novo animosos. Iegor sorria, esfregando rapidamente as mãos, dizendo: — Bravo, mãezinha! Se soubesse como isso lhe fica bem! Como é para entusiasmar! — Se for bem sucedida, sentir-me-ei tão feliz na cadeia como se estivesse sentado numa cadeira estofada! — declarou Samoilov, rindo. — É um tesouro, mãezinha! — exclamou Iegor roufenhamente. Pelagueia sorriu. Era simples: se conseguisse introduzir na fábrica os folhetos, diriam que não era Pavel quem os distribuía. Sentindo-se capaz de desempenhar- se de tal compromisso, Pelagueia estremecia jubilosa. — Quando for visitar o Pavel, diga-lhe que ele tem uma boa mãe! — Hei de vê-lo mesmo antes do dia da visita! — prometeu Samoilov, sorrindo. — Diga-lhe abertamente que hei de fazer quanto for necessário. Que ele o fique sabendo! — E se o Samoilov não for preso, como há de sabê-lo o Pavel? — perguntou Iegor. — Paciência! Temos que nos resignar! E ambos entraram de rir. Quando ela compreendeu a sua tolice, riu também, mas um tanto contrafeita. — Quando olhamos para os nossos, não vemos bem os que lhe ficam por detrás... — murmurou ela, a justificar-se. — É natural! — concordou Iegor. — A propósito de Pavel: não se inquiete nem se entristeça. Há de sair da cadeia ainda melhor do que quando para lá entrou. Por lá descansa-se, há tempo para adquirir instrução, o que não nos acontece quando estamos à solta. Estive preso três vezes, sem grande vontade, mas o meu coração e a minha razão aproveitaram sempre... — Custa-lhe respirar... — disse Pelagueia olhando para ele afetuosamente. — Por motivos especiais... — respondeu levantando um dedo para o ar. — Portanto, está combinado, mãezinha. Amanhã trazemos-lhe o que sabe, e outra vez entrará em movimento a roda que aniquila as trevas seculares. Viva aliberdade da palavra, mãezinha! E viva o coração materno! Até amanhã! — Até amanhã! — disse também Samoilov apertando com força a mão de Pelagueia. — Eu não posso dizer palavra disso tudo à minha mãe. Quando eles saíram, Pelagueia fechou a porta e ajoelhando-se no meio do quarto, pôs-se a rezar, ao ruído da chuva. Rezou sem soltar dos lábios uma só palavra; era como um pensamento muito longo e intenso; rezou por todos aqueles que Pavel associara à sua vida. Via-os passar entre ela e as imagens dos santos; eram simples, tão extraordinariamente aproximados uns dos outros, e tão isolados na vida. Logo muito cedo, foi a casa de Maria Korsunova. A ruidosa vendedeira, com o fato engordurado como sempre, acolheu-a compassivamente: — Aborreces-te? — perguntou, batendo-lhe com a mão no ombro. — Consola-te! Agarraram-no, levaram-no? Grande coisa! Que mal há nisso? Dantes metiam uma pessoa na cadeia, quando roubava; agora é quando se diz a verdade. Pavel disse naturalmente coisas que não se devem dizer. Mas foi para defender os companheiros, e isto toda a gente o percebe. Não tenhas medo. Todos sabem que ele é um belo rapaz... embora não o digam. Eu queria ir a tua casa, mas não tive tempo. Estou sempre a cozinhar, esgoto o meu artigo, e afinal estou certa de que virei a morrer pobre. Os amantes arruínam-me! Os sacripantas! Comem! Comem!... Parecem baratas a devorar um pão. Apenas tenho uns dez rublos, aparece-me um desses heréticos e rouba-mos! É isto! Má coisa ser mulher! Que estúpida vida! É difícil viver só, e ainda mais viver acompanhada! — Pois olha eu vim pedir-te que me aceites como ajudante... — disse Pelagueia, pondo um dique à catadupa das palavras. — O quê?! Mas quando a sua amiga lhe expôs todo o seu pensamento, meneou a cabeça em sinal de aprovação. — Está dito. Lembras-te quantas vezes me deste esconderijo quando o meu marido andava à minha procura? Pois serei eu agora que te furtarei à miséria. Cada qual deve correr em teu auxílio porque o teu filho está sofrendo por causa de todos. É um bom rapaz! Toda a gente o diz; e todos o lastimam. Eu, cá por mim, penso que estas prisões não trazem nenhum bem à fábrica. Se soubesses o que por lá se diz!... Os chefes imaginam que não há de ir longe o homem que eles morderam no calcanhar. Mas por cada um que eles atacam, há cem que se revoltam. Deve-se ter cuidado quando se quiser tocar no povo, porque ele vai aturando por muito tempo, mas, num belo dia, estoira! XV Os operários logo notaram a velha. Alguns dirigiram-se a ela amigavelmente: — Encontraste trabalho, Pelagueia? E consolavam-na, afirmando-lhe que Pavel seria posto em liberdade dentro em breve, pois tinha este direito. Outros comoviam o seu coração dolorido com prudentes palavras de compaixão; outros ainda invetivavam abertamente o diretor e a polícia e despertavam nela um eco sincero. Havia também quem para ela olhasse com certa satisfação malévola; Isaías Gorbov, operário apontador, disse por entre dentes: — Se eu governasse, mandava enforcar o teu filho, para lhe ensinar a não desnortear o povo. Estas palavras gelaram-na mortalmente. Não respondeu, lançou apenas um olhar àquele rosto coberto de sardas, e baixou a fronte, suspirando. Percebia que havia no ar certa agitação; os operários ajuntavam-se em pequenos grupos, discutiam a meia voz, mas animadamente; os contramestres, desconfiados, rondavam por toda a parte; de vez em quando, ouviam-se invetivas, risos irritados. Viu então dois guardas da polícia levarem Samoilov. Uns cem operários seguiram-no, injuriando ou troçando dos guardas. — Vais dar um passeio, amigo? — gritou alguém. — Honra seja ao nosso companheiro! — disse outro. — Dão-lhe uma escolta!... E ressoou uma saraivada de pragas. — Ao que parece, é menos rendoso agarrar os ladrões! — berrou muito irritado o vesgo. — Metem-se com a gente de bem! — Se ao menos, isto fosse de noite! Mas qual! Esta canalha não tem vergonha da luz do dia! Os guardas iam andando depressa e com ar carrancudo, buscando não verem nada, nem ouvirem os insultos que de toda a parte lhes atiravam. Três operários avançaram para eles, com uma barra de ferro, gritando: — Cuidado, pecadores! Quando passou diante de Pelagueia, Samoilov abanou a cabeça, rindo e dizendo: — Vão arrastando um humilde servo de Deus!... Ela ficou silenciosa e curvou-se profundamente comovida pelo espetáculo daqueles rapazes honrados, inteligentes e modestos que iam para a cadeia com o sorriso nos lábios. Sem dar por tal, começava a consagrar-lhes um compadecido amor de mãe. E era-lhe agradável ouvir as frases de censura para os diretores,porque nelas sentia a influência do filho. Quando saiu da fábrica, passou o dia em casa de Maria, ajudando-a, dando atenção à sua tagarelice. Só tarde voltou para a sua casa vazia, fria, hostil. Por muito tempo vagueou de um canto para o outro, sem saber que fazer nem onde sentar-se. Estava inquieta vendo que Iegor ainda não viera, como prometera. Lá fora, caíam pesados flocos pardos duma neve de outono. Colavam-se aos vidros, deslizavam sem ruído e derretiam-se deixando rastos húmidos. Pelagueia pensava em Pavel. Porque batessem cautelosamente à porta, acorreu logo a puxar pelo ferrolho: era Sachenka. Pelagueia não a via desde muito tempo; chamou-lhe logo a atenção a gordura da rapariga. — Boa noite! Tem estado muito longe daqui? — Não. Na cadeia! — respondeu, sorrindo. — Ao mesmo tempo com o Nicolau Ivanovitch. Lembra-se dele? — Como havia de esquecê-lo? O Iegor disse-me que o tinham posto em liberdade, mas de si não me falou, nem ele, nem ninguém. — E para que serviria isso? Deixe-me despir antes que o Iegor venha. — Está toda molhada! — Trouxe os folhetos... — Dê cá! Dê cá! — Pronto! Entreabriu a capa, sacudiu-a e logo caíram no chão pacotes de folhetos. Pelagueia apanhava-os, rindo. — E eu, que ao vê-la tão roliça, imaginei que tivesse casado e esperasse um menino! Ah! Mas que quantidade que trouxe! E veio a pé? — Vim. A rapariga estava outra vez magra e esbelta. Pelagueia notou-lhe até as faces um tanto encovadas, e que os olhos bem rasgados eram assombreados por fundas olheiras. — Puseram-na na rua, e em lugar de ir repoisar, faz uma caminhada de sete quilómetros com tudo isto em cima de si!... — Assim era preciso. Diga-me: como está o Pavel Mikhailovitch? Não lhe custou muito?... Falava sem olhar para Pelagueia, abaixando a cabeça para arranjar o cabelo com os dedos trémulos. — Não! — respondeu Pelagueia. — Oh! Aquele não se trairá! — Tem uma saúde de ferro, não é verdade? — perguntou ainda em voz baixae ligeiramente tremelicante. — Nunca esteve doente. Mas como está tremendo!... Espere; vou tratar do chá; também tenho uma compota de framboesas... — Não será mau! — disse Sachenka com um leve sorriso. — Mas para que há de ter esse trabalho? É tarde; deixe que seja eu quem faça o chá. — Mas está tão fatigada!... — replicou em tom de censura; e pôs-se a acender o samovar. Sachenka seguiu-a até à cozinha, sentou-se num banco e enclavinhando os dedos em cima da cabeça: — Estou fatigada, estou. Apesar de tudo, a prisão esgota. Que maldita inação! Não há coisa mais penosa! Fica-se para ali uma semana, um mês, sem nada que fazer... Há quem conte connosco para receber instrução, sabemos que podemos dar-lha... e vemo-nos metidos numa jaula como animais ferozes!... É de ressequir o coração! — E quem vos recompensará?... — suspirou Pelagueia. Mas logo acrescentou: — Ninguém, se não Deus! Também... a sra. não acredita nele, naturalmente... — Não! — E eu não acredito em si nem nos outros! — exclamou, animando-se de súbito. Limpando ao avental as mãos sujas de carvão, continuou com convicção profunda: — Não compreendeis a nossa crença... Como pode alguém dedicar-se a semelhante vida sem acreditar em Deus? Sob o telheiro ouviram-se passos e o resmungar de alguém. Pelagueia estremeceu; a rapariga pôs-se logo de pé e disse baixinho: — Não abra! Se for a polícia, diga que não me conhece.. que bati a esta porta por engano... que entrei aqui por acaso, que desmaiei e que a sra. me despiu para pôr-me à vontade, encontrando então em mim os folhetos. Percebe? — E para que hei de dizer isso? — perguntou enternecida. — Espere!... Parece-me que é o Iegor... Era ele, a escorrer água, estafado. — Ah! O samovar está pronto!... — exclamou. — É o que há de melhor neste mundo, mãezinha! Já cá está, Sachenka? Enchia a cozinha com os sons guturais da sua voz; tirou vagarosamente o casacão e continuou: — Ora aí tem, mãezinha, uma rapariga muito desagradável para as autoridades! Como um dos carcereiros a tivesse insultado, declarouterminantemente que se deixaria morrer de fome, se ele não lhe pedisse desculpa. E durante oito dias não comeu coisa alguma, estando em riscos de abalar desta para melhor. É bonito, não acha? E o que me diz à minha barriguinha? Sacudiu o ventre postiço, feito de maços de folhetos e passou ao quarto, fechando a porta. — O quê? Pois esteve oito dias sem comer? — perguntou Pelagueia, admirada. — Se era indispensável que ele me pedisse desculpa!... — respondeu, com uma tremura de ombros friorenta. Esta tranquilidade e esta obstinação austeras levaram ao animo de Pelagueia o que quer que fosse semelhante a uma censura. «Ah! É assim, é assim!...» pensou. E perguntou ainda: — E se tivesse morrido? — Estaria morta, naturalmente. Afinal, o homem acabou por pedir desculpa. Ninguém deve perdoar os ultrajes. — Sim... Mas nós, as mulheres, somos ultrajadas durante toda a nossa vida... — Pronto! Já larguei a carga! — informou Iegor, aparecendo. — O samovar está pronto? Se me dá licença... Pegou nele e passando-o para o quarto: — O meu papá bebia pelo menos vinte copos de chá por dia; por isso passou neste mundo setenta e três anos sossegadamente e sem nunca estar doente. Pesava mais de cem quilos e era sacristão da aldeia de Vosskressensky... — É filho do tio Ivan? — perguntou Pelagueia. — Sim, sra. Como o sabe? — É que eu também sou de Vosskressensky! — Então somos da mesma terra! Que nome era o seu, em rapariga? — Sereguine... Éramos vizinhos... — É a filha do Nile, o coxo? Não conheci eu outro figurão! Quantas vezes ele me puxou as orelhas! Estavam de pé e riam no meio das perguntas. Sachenka olhando para ele a sorrir, ia preparando o chá. O ruído da loiça chamou Pelagueia aos seus deveres. — Desculpem. Começo o tagarelar e esqueço-os. É tão agradável encontrar um patrício... — Eu é que peço desculpa de me servir primeiro... — disse Sachenka. — Mas já são onze horas e ainda tenho muito que andar.— Para ir para onde? Para a cidade?! — Sim, para a cidade. — Mas chove, é noite, está cansada. Deixe-se ficar. O Iegor dorme na cozinha, e nós, as duas, aqui. — Não! Tenho forçosamente que partir. — É verdade, patrícia: é forçoso que esta menina desapareça. Conhecem-na por cá. E se amanhã a vissem na rua, seria mau. — E vai-se embora sozinha! — Vai! — disse Iegor com um risinho. A rapariga deitou ainda mais chá, pegou num pedaço de pão de centeio, salgou-o e entrou de comê-lo, olhando pensativamente para Pelagueia. — Admira-me como é capaz de ir sozinha. E a Natacha também... Eu cá não era. Tenho um medo!... — Mas olhe que ela também tem medo. Não é verdade, Sachenka? — É. Pelagueia lançou-lhe um olhar, murmurando: — Como são corajosas! Depois de ter tomado o chá, Sachenka apertou a mão a Iegor sem dizer palavra e passou à cozinha seguida pela velha. — Se vir o Pavel, dê-lhe muitas recomendações minhas. Tinha já a mão no fecho da porta, quando, voltando-se rapidamente, perguntou: — Deixa-me beijá-la? Sem responder, Pelagueia abraçou-a efusivamente. — Obrigada! — disse a rapariga, a meia voz. E saiu, meneando a cabeça. Ao voltar ao quarto, a velha olhou com ansiedade para o lado da janela. Nas trevas espessas e húmidas caíam lentamente flocos de neve meio derretidos. Vermelho e suando, Iegor sentara-se, com as pernas afastadas e soprando ruidosamente ao chá. Sentia-se satisfeito. A velha sentou-se também, e olhando tristemente para ele: — Pobre Sachenka!... Como chegará ela ao fim do caminho?... — Cansada! A cadeia serviu-lhe de provação... Era dantes mais robusta... Depois, não foi educada como nós, à bruta... Parece-me que já tem os pulmões atacados. — Quem é ela?— Filha dum proprietário rural. O pai é riquíssimo e... canalhíssimo. Naturalmente, mãezinha, já sabe que eles se amam deveras e que querem casar. — Quem? — O Pavel e ela. É isto! Mas afinal não o conseguem. Quando ele está em liberdade, está ela na cadeia, e vice-versa. — Não sabia, não... Pavel nunca fala da sua pessoa. E ainda mais se apiedou da rapariga. — O sr. devia tê-la acompanhado! — lembrou com certa hostilidade involuntária. — Impossível! — respondeu tranquilamente. — Tenho uma caterva de coisas que fazer por cá, e para dar conta de tudo hei de andar o dia inteiro. É uma ocupação muito desagradável quando somos asmáticos. — Que bela rapariga! — exclamava, pensando vagamente no que Iegor lhe dissera. Vexava-a ter sabido aquela notícia por outrem e não pelo seu filho; mordeu os beiços fortemente e abaixou as pálpebras. — Sim! — disse Iegor. — Noto que ela lhe causa piedade. Faz mal! Se começa a ter piedade dos revoltados não lhe chega o coração para todos. Francamente, ninguém tem boa vida... Há tempos, um dos meus companheiros regressou do exílio; quando chegou a Níjni, a mulher e o filho esperavam-no em Smolensk, e quando ele chegou a Smolensk, já eles estavam presos em Moscovo. Agora é a mulher que vai exilada para a Sibéria. Eu também tive mulher, também, e era uma excelente criatura, mas cinco anos desta vida bastaram para a atirar para a cova. Bebeu dum trago o seu copo de chá e continuou a discorrer. Contou os anos e meses que passara preso, e no exílio, as suas catástrofes, a fome na Sibéria, os massacres nas prisões... A velha ouvia-o atentamente, admirando-se da simplicidade tranquila com que ele descrevia aquele viver cheio de perseguições e de torturas. — Bem! Vamos agora ao nosso negócio... A voz transformou-se-lhe, a fisionomia tornou-se grave. Perguntou como imaginava ela poder introduzir na fábrica os folhetos, e Pelagueia ficou surpreendida ao perceber que ele conhecia a fundo todos os meios para chegar ao desejado fim. Depois de combinarem tudo, voltaram a falar da sua aldeia; enquanto Iegor gracejava, a velha ia percorrendo em pensamento o passado, que lhe parecia semelhante a um pântano com monótonos montículos, e com faias, pinheirinhos e bétulas brancas balouçando mansamente ao vento nas pequeninas colinas. As bétulas cresciam muito devagar, e depois de terem vivido cinco ou seis anosnaquele solo pútrido e movediço, caíam e decompunham-se... A velha considerava este quadro com indefinível e misteriosa mágoa. Na sua frente ergueu-se uma silhueta de rapariga de feições acentuadas e cheias de obstinação. Ia, sob os flocos de neve, fatigada e solitária... E o seu filho estava encerrado numa pequena casa, cuja janela tinha grades de ferro... Talvez àquela hora ele não dormisse; pensava, por certo. Mas não estaria pensando em sua mãe, porque havia alguém que lhe era mais querido... Como uma nuvem de variegadas cores e informe, avançavam para ela os dolorosos pensamentos, invadindo-lhe a alma com violência. — Deve estar cansada, mãezinha! Vamo-nos deitar! — disse Iegor, sorrindo. Desejou-lhe uma boa noite, e passou à cozinha, caminhando de esguelha, com precaução, com o coração cheio de ardente amargura. Na manhã seguinte, ao tomar o chá, Iegor disse-lhe: — E se a apanharem, e lhe perguntarem onde adquiriu os folhetos, o que responde? — «Isso não é da sua conta!»... Aqui está o que eu respondo. — Por esse ajuste é que eles não estão! O importante para eles é isso mesmo, e sobre o assunto hão de interrogá-la demoradamente. — Não direi uma palavra! — Metem-na na cadeia! — Que me importa! Graças a Deus, terei ao menos servido para alguma coisa! A quem faço eu falta? A ninguém. E segundo dizem, já não torturam os presos... — Hum!... Não a torturarão. Mas uma boa mulher como a sra. deve ter cuidado em si. — Não me parece que seja consigo que possam aprender isso. Depois de ter dado alguns passos, em silêncio, Iegor aproximou se dela. — É custoso, patrícia! Sinto que há de custar-lhe muito! — Todos estamos sujeitos!.. Talvez seja mais fácil para os que têm uma compreensão clara... Enfim, eu não compreendo bem, mas alguma coisa sei do que quer a nossa boa gente. — E desde que o sabe, mãezinha, é útil a todos, a todos! Pelo meio-dia, Pelagueia, tranquila e importante, meteu um maço de folhetos no seio. Vendo a destreza com que ela os ocultava, Iegor deu um estalido com a língua e exclamou satisfeito: — Sehr gut! como dizem os alemães ao esvaziarem um barril de cerveja. A literatura não a transformou: continua sendo uma mulher como se quer! Os deuses protegem a sua empresa!Meia hora depois, com o mesmo sangue-frio e acurvada ao peso da comida que levava para os operários, Pelagueia chegava à porta da fábrica. Dois guardas, irritados pela troça dos operários com quem trocavam doestos, apalpavam sem cerimónias todos os que entravam no pátio. Um agente de polícia passeava não distante dali, bem como um homem de olhar vago, pernas curtas, e cara vermelhaça. A velha observou este, de soslaio, enquanto passava o fardo para o outro ombro; adivinhava que ele era um espião. Um rapagão de cabelos encaracolados, com o boné para a nunca, gritava aos guardas que o revistavam: — Procurem na cabeça e nas algibeiras, seus diabos! Um dos guardas respondeu: — Não és cara para teres na cabeça o que quer que seja... a não ser piolhos! — Pois nesse caso, catem-nos, que é trabalho digno de vós! O espião lançou-lhe um mau olhar, e escarrou para o chão. — Deixem-me passar! — pediu Pelagueia. — Não veem que a minha carga é pesada? Trago o corpo quebrado... — Vá! Vá! Pode passar mas não grite tanto! — respondeu o guarda com mau modo. Chegando ao seu lugar, Pelagueia pôs no chão as panelas da sopa e olhou em volta, limpando o suor. Dois serralheiros, os irmãos Gussev, vieram logo; o mais velho, Vassili, perguntou-lhe em voz retumbante, franzindo o sobrolho: — Temos hoje empadas? — Amanhã! — respondeu logo. Eram as palavras convencionadas. A fisionomia dos dois homens abriu-se. Incapaz de subjugar-se, Ivan exclamou: — Ah! Como tu és boa! Vassili agachou-se, observando uma das panelas, e ao mesmo tempo um maçinho de folhetos deslizou-lhe para o peito. — Ó Ivan, para que havemos de ir comer a casa? Jantemos aqui! — E meteu os folhetos nos canos das botas. — Deve-se proteger a nova vendedeira. — Dizes bem! — E desatou a rir. Pelagueia apregoava de quando em quando, continuando a olhar prudentemente em volta: — Quem quer sopa? Aletria quente! Carne assada! Pouco a pouco, ia tirando do seio mais folhetos, entregando-os cautelosamente aos dois irmãos. Sempre que isto acontecia, parecia-lhe ver desúbito na frente o rosto do oficial da guarda, como uma nódoa amarela, semelhante à luz dum fósforo num quarto escuro. E, em pensamento, ela atirava- lhe estas palavras, repassadas de satisfação: — Chucha, tiozinho! E ao passar mais folhetos, pensava ainda: — Anda! Chucha mais estes! Quando os operários se aproximavam, de prato na mão, Ivan Gussev ria com estrondo; Pelagueia suspendia a faina de passar os folhetos, deitava nos pratos sopa de ervas ou de aletria, enquanto Vassili lhe dirigia gracejos. — Olhem que é muito hábil, a tia Pelagueia! — A miséria até nos ensina a apanhar ratos... — disse em tom sorna um fogueiro. — Tiraram-lhe aquele que lhe dava o pão... Canalhas! Pois venham de lá três kopecks de aletria. Coragem, boa velha! Tudo há de acabar em bem! — Obrigado por essa consolação! — respondeu ela sorrindo. Ao que ele retorquiu afastando-se: — Não me custa nada!... — Mas não vejo a quem ela aproveite! — replicou um ferreiro, rindo. E acrescentou, encolhendo os ombros: — É isto a vida, rapazes! Ninguém a quem dirigir com proveito palavras de consolação... ninguém é digno delas... não achas? Vassili ergueu-se, abotoando cautelosamente o casacão: — A comida estava quente, e, apesar disto, estou com frio. Afastou-se, assim como o irmão, assobiando. Pelagueia continuava apregoando, sorrindo amável: — Sopa quente! Aletria! Sopa de ervas! Ia pensando em que contaria ao filho a sua primeira experiência. A cara amarelenta do oficial, irritado e estupefacto, aparecia-lhe constantemente ao espírito; o bigode negro movia-se confusamente, e sob o lábio superior, contraído por uma expressão de cólera, brilhava o marfim dos seus dentes cerrados. Como um passarinho, no coração da velha adejava e trinava uma alegria intensa. E continuava dizendo em pensamento: — Chucha! Chucha ainda mais folhetos!... XVI Durante todo o dia um sentimento novo para ela lhe ameigou a alma. À noite, concluído o seu trabalho, e quando estava tomando o chá, o tropel de um cavalo soou sob a janela, e ouviu-se uma voz conhecida. Pelagueia levantou-se, rápida, e correu à cozinha para abrir a porta: alguém avançava a passos largos. Sentiu-se perturbada, encostou-se ao umbral e empurrou a porta com o pé. — Boa noite, mãezinha! — E duas mãos magras e compridas poisaram-lhe nos ombros. Invadiu-a o desgosto da desilusão e ao mesmo tempo a alegria de tornar a ver o recém-chegado, André. E estes dois sentimentos fundiram-se em imensa onda ardente que a arrebatou, atirando-a de encontro ao peito do pequeno-russo. Este abraçou-a com força; as mãos tremiam-lhe. Pelagueia chorava brandamente, sem falar enquanto André lhe acariciava os cabelos, dizendo-lhe com a sua voz sempre cantante: — Não chore, mãezinha, não fatigue o seu coração! Dou-lhe a minha palavra de honra que em breve ele será posto em liberdade. Não têm nenhuma prova contra ele, os companheiros não deram com a língua nos dentes. E envolvendo com os seus grandes braços os ombros de Pelagueia levou-a para a maior divisão da casa; ela apertava-se contra ele com o movimento rápido e assustadiço dum esquilo; depois aspirou com sofreguidão as palavras de André. — O Pavel manda-lhe muitas recomendações. Está de saúde e satisfeito quanto é possível. Na cadeia não se vive à larga. Foram presas mais de cem pessoas, aqui e na cidade; metem aos três e aos quatro em cada cela. Nada há a dizer da direção da cadeia; não são maus; são apenas coagidos: os diabos da polícia dão-lhes tanto que fazer!... Por consequência a severidade é pouca. Dizem-nos constantemente: «Estejam mais sossegadinhos, senhores, não nos deem sensaborias!...» Assim, as coisas vão às mil maravilhas. Podíamos falar uns com os outros, trocar os nossos livros, dividir a nossa comida. Que encantadora cadeia! É velha e suja, mas suave e levezinha. Os criminosos de direito comum eram também uma boa gente; prestavam-nos muitos serviços. Deram-me a liberdade e ao Bukine e ainda a mais quatro, porque os lugares não chegavam. E dentro em breve hão de pôr na rua o Pavel. É mais do que certo. O Vessovtchikov é que há de ficar por lá mais tempo, porque estão muito irritados contra ele. Insulta toda a gente, a todo o momento. Os guardas não o podem ver. Há de acabar por ser julgado, se não lhe derem uma sova. O Pavel diligencia sossegá-lo: «Cala-te, Nicolau; para que servem os teus insultos? Não consegues que eles se façam melhores!» Ao que responde aos berros: «Hei de arrancar da terra estas chagas!» O Pavel porta-se muito bem: é firme e ao mesmo tempo comedido com todos. Afianço-lhe que dentro em pouco põem-no na rua.— Dentro em pouco!... — repetiu ela, sorrindo. Ah! Sim! Dentro em pouco! — Verá! Vamos ao chazinho! O que tem feito nestes últimos tempos? André contemplava-a risonho, muito próximo do coração dela. Na profundeza azul dos seus olhos redondos brilhava uma como estrela de amor e de tristeza. — Quero-lhe muito, André! — exclamou com um longo suspiro; e ficou-se olhando para o rosto magro dele, coberto de pelos. — Um poucochinho já me bastaria. Sei que me estima, sim. Tem uma grande alma, pode estimar a todos. — Não! Quero-lhe muito em especial. Se o André tivesse mãe, haveriam de invejar-lhe tal filho. Ele meneou a cabeça, esfregou vigorosamente as mãos, e disse a meia-voz: — Eu também tenho mãe... também... algures... — Sabe o que eu fiz hoje? E, com a voz trémula pela satisfação, contou vivamente como tinha conseguido meter os folhetos na fábrica. A princípio, ele esbugalhou os olhos, surpreso; depois bateu na testa com o dedo e exclamou, cheio de alegria: — Oh! Mas isso é sério! O Pavel vai ficar radiante! Muito bem, mãezinha! Isso é tão útil para o Pavel, como para os que foram presos com ele! Fazia estalar os nós dos dedos, satisfeitíssimo, assobiava, balouçava-se na cadeira. A sua alegria ecoava poderosamente na alma de Pelagueia. — Meu querido André, quando penso na minha vida!... Ai! Meu Deus! Para que tenho eu vivido? Para trabalhar e levar pancada! Não via mais ninguém senão o meu marido; não conhecia mais nada do que o medo. Não vi como o Pavel cresceu... nem mesmo sei se o amava enquanto o meu marido era deste mundo. Todos os meus pensamentos, todos os meus cuidados, pertenciam a uma coisa única: alimentar aquele animal selvagem, para que andasse satisfeito e cheio, para que não se zangasse e me poupasse à pancada, uma vez ao menos. Mas não me recordo de que ele compreendesse isto. Batia-me com tal violência, que parecia estar castigando não a sua mulher, mas sim aquela contra quem andava irritado. Assim vivi vinte anos. Do que fui antes de casar nem já me lembro. Quando tento recordar-me, nada vejo: é como se estivesse cega. Com o Iegor Ivanovitch — somos da mesma aldeia — conversei ultimamente e a respeito destes e daqueles... recordava-me das casas, revia as pessoas, mas não me lembrava da maneira como viviam, o que diziam, o que lhes acontecera. Lembro-me dos incêndios, de dois incêndios... O meu marido tanto me bateu, que de mim sacudiu todas as recordações. A minha alma era hermeticamente fechada; tornou-se depois cega e muda.Resfolegou demoradamente, como um peixe fora de água; curvou-se para a frente, e continuou: — Quando ele morreu, agarrei-me ao meu filho, que começou a preocupar- se com essas coisas... Foi então que tive compaixão dele. «Como hei de viver sozinha, se ele morrer?» perguntava a mim mesma. Quantos receios! Quantas angústias! O meu coração despedaçava-se, quando eu pensava na sorte do Pavel! Calou-se por instantes, meneou a cabeça, e continuou: — É impuro o nosso amor, o das mulheres! Amamos aquilo de que precisamos... Quando o vejo pensar em sua mãe... Que falta lhe faz ela? E aqueles que sofrem pelo povo, que são metidos na cadeia ou mandados para a Sibéria, que morrem ou são enforcados por lá... essas raparigas que andam sozinhas de noite por cima da neve, da lama, e à chuva, que andam sete quilómetros para virem ver-nos... o que é que as leva a isto? É o amor, mas um amor puro! Têm a fé... a fé...! Eu não sei amar assim; amo o que me diz respeito, o que me é próximo!... — Tem razão! Todos amam o que lhes fica ao alcance, mas, para uma grande alma como a sua, do longe faz-se perto. Pode amar muito, porque tem um grande amor materno. — Deus queira! Sinto que há de ser bom viver assim. Por exemplo, estimo-o, André, talvez mais do que o Pavel... Ele é tão reservado! Olhe: quer casar com a Sachenka e nunca me disse uma palavra, a mim, sua mãe! — Não é verdade! Sei que não é verdade! Ama-a, e ela também o ama. Quanto a casarem, não. Ela quereria, mas o Pavel... — Ah!... — exclamou ficando a olhar tristemente para André. — É isso! Deve-se renunciar a si mesmo. — O Pavel é um homem extraordinário! Um caráter de ferro. — E agora... preso! Mas a minha alma transformou-se, abriu os olhos, vê. Enquanto houver ricos, poderosos, o povo não obterá justiça, nem alegria, nada! Não é isto, André? Ele levantara-se pensativo. — É isso mesmo! Havia em Kertch um rapaz judeu que fazia versos, e que uma vez disse assim: Podem assassinar os inocentes, Que a força da verdade os ressuscita! Ele mesmo foi assassinado pela polícia, em Kertch, mas isso que importância teve? Conhecia a verdade e semeara-a no coração dos homens. Ah! Pelagueia! A sra. é também uma criatura condenada à morte... Ressuscitou. O poeta sabia oque dizia. — Falo, falo, e sinto-me, e não creio nos meus ouvidos. Hoje penso em todos. Não compreendo talvez muito bem isso em que andam metidos... mas todos sinto próximo de mim, e desejo a felicidade de todos, a sua principalmente, meu André! Ele aproximou-se dizendo: — Obrigado. Não falemos mais de mim. E pegando-lhe na mão, apertou-a com força e voltou o rosto para o lado. Fatigada pela comoção, Pelagueia começou de lavar a loiça vagarosamente, enquanto o pequeno-russo, passeando pelo quarto, ia falando. — Mãezinha, deve tratar de amansar o Vessovtchikov! O pai está com ele na mesma cadeia; é um velhote repelente. Quando o filho o vê, pela janela, insulta- o. Não é bonito! O rapaz é bom, gosta dos cães, dos ratos, de todos os seres, menos dos homens! Ora veja até que ponto pode ser corrompida uma alma humana! — A mãe desapareceu, sem dar novas nem mandados. O pai é um bêbedo... — disse Pelagueia, pensativa. Quando André foi deitar-se, fez-lhe no peito o sinal da cruz, sem que ele desse por isso. Meia hora depois, perguntava, baixinho: — Já dorme, André? — Não. Porquê? — Nada. Boa noite. — Obrigado, obrigado! — respondeu, reconhecido. XVII Quando no dia seguinte ela chegou à porta da fábrica, carregada com o seu fardo, os guardas detiveram-na rudemente, mandaram-na pôr no chão tudo o que trazia e examinaram-na atentamente. — Olhem que a sopa arrefece! — disse, tranquila, enquanto a apalpavam sem cerimónia. — Cala-te! O outro disse, dando levemente com o ombro no camarada. — Se eu te afirmo que os atiram cá para dentro por cima do muro!... O velho Sizov foi o primeiro a aproximar-se dela, perguntando-lhe em voz baixa: — Ouviste? — O quê? — Os folhetos tornaram a aparecer. As prisões e as buscas não serviram para nada. O meu sobrinho Mazine está preso, o teu filho também, e afinal os folhetos continuam a ser distribuídos. E concluiu, passando a mão pela barba: — O caso não está nas prisões, mas sim nos pensamentos. E os pensamentos não são coisa que se agarre como quem apanha pulgas. Porque não vens tu à nossa casa? É aborrecido tomar o chá sozinha. Agradeceu. Apregoando sempre, ia ativando o movimento cheio de animação que havia na fábrica. Os operários pareciam contentes; formavam-se grupos, as vozes eram excitadas; pairava no ar um como sopro de audácia. Ora dum canto, ora doutro, partiam exclamações aprovativas, gracejos pesados e até ameaças. A figura avantajada do Gussev aparecia aqui e ali; o irmão seguia-o, rindo. Um mestre marceneiro chamado Vavilov e o apontador Isaías passaram diante de Pelagueia sem se apressarem. Este último disse vivamente: — Olha, Ivan Ivanovitch: riem, andam satisfeitos, embora o caso possa trazer a destruição do império, como disse o sr. diretor. O necessário não é mondar, mas sim semear. Vavilov, com os braços cruzados nas costas, apertava fortemente os dedos. — Imprimam tudo o que quiserem, cães do diabo! Mas não se metam em falar da minha pessoa! Vassili Gussev aproximou-se de Pelagueia. — Dá cá de comer. O que tu vendes é bom. Depois, baixaram a voz: — Vê, mãezinha, que o nosso fim está conseguido!Ela disse que sim com a cabeça. Sentia-se feliz por lhe falar em segredo aquela criatura que tinha tão má fama no bairro; e ao notar a efervescência que ia pela fábrica, dizia a si mesma, satisfeita: — E pensar que se não fosse eu!... Três operários pararam perto dela; um disse, a meia voz: — Não encontrei... — Se conseguíssemos lê-lo!... Eu nem mesmo sei soletrar; mas percebo que ele é útil. O terceiro, olhou em volta, e depois propôs: — Vamos para o pé dos fornos de fundição; eu mesmo o leio. — Os folhetos vão fazendo o seu efeito!... — cochichou Gussev a Pelagueia. Ela voltou para casa, satisfeitíssima, pois tinha visto com os seus olhos que as proclamações atingiam o fim desejado. — Os operários lamentavam-se de serem ignorantes. Quando eu era rapariga, sabia ler, mas depois esqueci tudo. — É tornar a aprender! — disse André. — Na minha idade! Isso até dava vontade de rir! Mas André pegou num livro e perguntou, apontando para uma letra.: — Que é isto? — Um R! Respondeu, rindo. — E isto? — Um A. E depois de compreender que o sorriso dele nada tinha humilhante nem irónico: — Pensa, na verdade, eu instruir-me, André? — E porque não? Tentemos. Já que uma vez aprendeu, ser-lhe-á agora fácil. Se o conseguirmos, tanto melhor; se não, paciência. E a lição continuou. Dedicando-se com toda a boa vontade; mexendo os sobrolhos, procurava recordar-se das letras esquecidas; tanto se mergulhara no estudo, que não se lembrava de nada mais; os seus olhos fatigaram-se dentro em pouco, e neles se acumularam as lágrimas que o cansaço provocava. — Aprendo a ler! — exclamou, soluçando... — na hora em que só devia pensar na morte. — Não chore! Há milhares de criaturas que podiam instruir-se ainda mais, e todavia vegetam como brutos, embora se gabem de que vivem bem... E o que há na sua existência que seja bom? Sempre a mesma vida: trabalhar e comer. Devez em quando, fazem filhos: a princípio acham-lhes graça, mas quando eles começam também a comer, entram de embirrar com eles, e dizem-lhes: «Vejam lá se crescem depressa, seus comilões, e se começam a trabalhar!» Nunca a sua alma é animada por uma alegria, por um pensamento que dê júbilo ao coração. Uns mendigam sempre, como os pobres, os outros fazem-se ladrões. Inventaram-se leis infames, entregaram a guarda do povo a umas criaturas a quem disseram: «Obriguem a que respeitem as nossas leis, que nos permitem sugar o sangue humano.» Se o homem não cede quando o comprimem, metem- lhe à força, nos miolos, preceitos que brigam com a razão. Encostado à mesa, fitava o olhar em Pelagueia, continuando: — Mas os outros, como o seu filho, são homens que libertam o corpo e o cérebro. E a mãezinha também se consagrou a esse trabalho, dentro das suas forças. — Eu?! — Sim. É como a chuva. Cada gotinha vai alimentar um grão de trigo. E quando souber ler... Levantou-se; e a rir: — O Pavel é que há de ficar espantado, quando voltar!... — Ah! Meu André! Tudo é fácil enquanto se é novo; mas quando se é velha... À noite, o pequeno-russo saiu. Pelagueia foi fazer meia, mas, de súbito, fechando-se bem por dentro, tirou da estante um livro, encostou-se à mesa, acurvou-se sobre ele, e os seus lábios começaram a mover-se... Quando vinha da rua algum ruído, fechava o livro, a tremer, e punha o ouvido à escuta. E ficava- se a soletrar, mentalmente: — L... A... V... I... A... XVIII Bateram à porta. Foi pôr o livro na estante. — Quem é? — Eu. Ribine entrou. Tendo trocado os cumprimentos, alisou a barba demoradamente, olhou para o quarto, e disse: — Dantes deixavas entrar toda a gente, sem perguntares quem era... Estás sozinha? — Estou. — Julguei que estivesses com o André. Vi-o hoje. A cadeia não corrompe o homem. O que corrompe mais do que tudo é a estupidez. Passou ao quarto e sentou-se. — Venho dizer-te alguma coisa. Tive uma ideia... A sua gravidade e o seu ar misterioso sobressaltaram Pelagueia, que se sentara diante dele. — Tudo custa dinheiro! — começou. — Ninguém nasce nem morre gratuitamente. Ora os folhetos também custam dinheiro. Sabes de onde ele vem para pagar os folhetos? — Não sei. — Nem eu. Em segundo lugar: quem os compõe? — Sábios... — Gente que está acima de nós. Portanto são os grandes que compõem os folhetos. Ora se os folhetos são contra eles, que interesse têm eles em publicá-los, gastando para isso o seu dinheiro? Pelagueia fechou os olhos; e ao reabri-los: — O que pensas? Diz! — Ah! — exclamou, movendo-se na cadeira como um urso. — Senti também um calafrio quando me veio este pensamento!... — O que há então? Soubeste alguma coisa? — É tudo um embuste! Entendo que é um embuste! Eu compreendo a verdade, e não quero entender-me com os ricos. Quando precisam de nós, atiram-nos para a frente, para que os nossos corpos lhes sirvam de ponte. Estas palavras acerbas confrangiam o coração da pobre velha. — Ó Senhor! — exclamava angustiada. — E o Pavel que não compreendeu nada disso? Pois dar-se-á o caso de que todos aqueles, que vinham da cidade, fossem...? As fisionomias graves de Nicolau Ivanovitch, de Iegor, de Sachenka,apareceram-lhe na frente. — Não! Não!... Não posso acreditar. São criaturas animadas só pela sua consciência, sem más intenções... — Não é para esses que devemos olhar, mas para mais alto. Os que mais se nos aproximam sabem naturalmente tanto como nós. Creem que procedem bem... amam a verdade. Mas talvez que por detrás deles haja outros que não pensem da mesma maneira. O homem não trabalha contra si próprio, não tendo para isso fortes razões. E acrescentou, com a tacanha certeza do campónio, eivado de uma incredulidade secular: — Das mãos dos grandes e dos ilustrados nunca nos virá coisa boa! — O que resolves, então? — Que não devemos aliar-nos aos que estão acima de nós! Ora aqui está! Tornou a calar-se, como se se dobrasse sobre si mesmo. — Vou pôr-me a caminho. Desejava ter-me reunido aos companheiros e trabalhar com eles. Sirvo para isso; sou teimoso, e não muito parvo; sei ler e escrever. E principalmente percebo o que se deve dizer a essa gente... Vou pôr- me a caminho; é o que devo fazer, já que não posso acreditar. Vou sozinho por essas cidades e aldeias a sublevar o povo, a quem cumpre correr à conquista da sua liberdade. Se souber compreender, encontrará para isso uma saída. Tentarei fazê-lo compreender que em ninguém deve ter esperança senão nele próprio. Ela teve piedade de Ribine, a sua sorte assustava-a; parecera-lhe sempre antipático; e naquele momento sentia-o mais perto dela, mais familiar. — O Pavel vai por um caminho... e ele vai por outro. O Pavel terá menos trabalho... — murmurou involuntariamente, acrescentando: — Serás preso! Ribine olhou para ela e replicou: — Mas soltar-me-ão! — A gente do campo será a primeira a entregar-te... e poderás ficar preso por muito tempo... — Acabarei por vir para a rua, e voltarei à mesma. Quanto aos campónios, entregar-me-ão duas ou três vezes, mas hão de acabar por compreender que farão melhor escutando-me. Dir-lhes-ei: «Não acreditem em mim: oiçam-me apenas!» E se me ouvirem, acabarão por acreditar-me. — Vais morrer!.. — disse tristemente a velha, meneando a cabeça. Ele fitou-a com um olhar cheio de interrogação. O seu corpo vigoroso estava inclinado para a frente; as mãos apoiavam-se na cadeira; o seu rosto moreno empalidecera, enquadrado na barba negra. — Sabe o que Jesus disse do grão de trigo? «Não morrerá, mas ressuscitaráem uma nova espiga!» O homem é um grão de verdade... E eu ainda não estou às portas da morte... Levantou-se, vagaroso. — Vou ate à taverna. Quando o André voltar, repete-lhe o que eu te disse? — Sim. Passaram à cozinha e trocaram algumas frases curtas, sem olharem um para o outro. — Adeus... — Adeus... Quando recebes a tua féria? — Já a recebi. — E quando partes? — Amanhã de manhãzinha. Adeus! Curvou-se, e saiu um pouco assustado, como contra vontade. Durante uns momentos, a velha ficou à porta prestando o ouvido ao andar que se afastava... Depois foi até ao quarto e pôs-se a olhar pela janela. Densas trevas se apegavam às vidraças, parecendo esperar o que quer que fosse que pudesse tragar as suas fauces insondáveis. — Vivo de noite! — pensou. — Sempre de noite! André chegou dali a pouco, animado, alegre. Quando a velha lhe falou de Ribine, exclamou: — Parte?! Pois que vá! Que vá espalhar pelas aldeias a verdade, e acordar o povo. Era-lhe difícil ficar connosco. Tem na cabeça umas ideias especiais, que não lhe deixam adotar as nossas. — Falou dos ricos, dos nobres, dos ilustrados. Parece haver no caso alguma coisa torta!... — disse ela prudentemente. — Oxalá não sejamos enganados!... — Isso dá-lhe cuidado, mãezinha? Ah! O dinheiro! Não é? Vamos vivendo por conta de outrem. O Nicolau Ivanovitch ganha setenta e cinco rublos por mês, e entrega-me cinquenta. Os outros fazem o mesmo. Os estudantes, que passam privações, cotizam-se também, e conseguem mandar-nos pequenas quantias, acumuladas kopeck a kopeck. É isto! Há homens para tudo: uns enganam-nos, outros não nos deixam avançar; mas há os melhores, os que nos acompanham no caminho da vitória! E esfregando as mãos: — Mas o triunfo ainda vem longe, ainda! Enquanto não chega, vamos organizar um primeiro de maiozinho! Há de ser divertido! As suas palavras e a sua animação tranquilizaram Pelagueia. Ele, passeando a passos largos continuava:— Se soubesse que extraordinária sensação eu tenho às vezes!... Parece-me que por toda a parte por onde vou, os homens são companheiros, incendidos na mesma fé, que todos são bons. Todos se compreendem sem precisarem de falar, ninguém ofende o próximo. Vive-se em boa harmonia, cada alma canta a sua canção, e, como regatos, todas as canções se reúnem em um único rio, que vai avançando, majestoso e grave, para o mar onde brilham os clarões da vida livre. E digo com os meus botões que isto há de realizar se, que isto não pode deixar de ser, se nós quisermos que seja! E então o meu coração transborda de alegria; tenho vontade de chorar, tal é a minha felicidade! A velha nem se movia, para não o interromper. Escutara-o sempre mais atentamente do que aos seus companheiros porque ele falava com mais simplicidade, e as suas palavras iam mais fundo à alma. O Pavel também era para a frente que olhava, mas mantinha-se solitário e nunca dizia o que via. Parecia a Pelagueia que André olhava sempre para o futuro com o coração: a lenda do triunfo de todas as criaturas surgia sempre nos seus discursos. E aos olhos de Pelagueia aquela brilhante lenda iluminava-lhe a compreensão da vida e do trabalho a que o filho e os seus companheiros se tinham entregado. — É humilhante isto! — exclamou ele de súbito. — Não se pode acreditar no homem. Precisamos até de temê-lo e de odiá-lo. O homem desdobra-se, a vida parte-o em dois. Como seria possível amar somente? Como perdoar àquele que se arroja sobre vós, como um animal selvagem? Impossível! Não falo por mim. Suportaria todos os ultrajes; mas não quero ter conivência com os opressores; não quero que se sirvam dos meus costados para aprenderem a bater nos outros. Uma expressão de frieza acudiu ao seu olhar, a voz tornou se-lhe mais firme. — Não devo perdoar o que seja mau, ainda quando não me prejudique. Não sou só eu na terra. Admitamos que hoje me deixo insultar sem responder ao insulto; hei de rir talvez, porque não me senti ferido; mas amanhã o insultador, que experimentou em mim a sua força, vai tirar a pele a outro. Por isto não devemos considerar toda a gente da mesma maneira; convém reprimir o coração, ver quem são os inimigos e quem são os amigos. É justo, embora não seja divertido! Sem saber porquê, Pelagueia pensou em Sachenka e no oficial. Disse com um suspiro: — Como se há de fazer pão com trigo que não foi semeado? — Esse é o mal! No espírito da velha desenhava-se a figura de seu marido, semelhante a uma grande pedra coberta de musgo. Fantasiou André casado com Natacha, e o seu filho casado com Sachenka. O pequeno-russo e Pelagueia tiveram muitas conversas deste género. Eleconseguira meter-se outra vez na fábrica, e entregava todo o seu dinheiro a Pelagueia, que o aceitava naturalmente, como se fosse de Pavel. Às vezes, com um sorriso no olhar, André propunha-lhe: — Se nós aprendêssemos a contar?... Ela recusava; o sorriso de André acanhava-a. Pensava, um tanto vexada: «Se tu ris, para que havemos de falar nisso?» Ele notou que a velha era mais frequente em pedir-lhe a significação de certas palavras; percebia que ela ia-se instruindo às escondidas, e por isto deixou de insistir em ensiná-la. — Vai-me faltando a vista, meu André; sinto-a cansada... — disse-lhe, um dia. — Gostava muito de usar uns óculos. — Está dito! No domingo vamos ambos à cidade consultar um doutor que eu conheço, e compraremos depois os óculos. XIX Já por três vezes ela solicitara licença para ver o filho, recebendo sempre a negativa benévola do chefe dos guardas, um velho de cabelos brancos, faces escarlates e nariz comprido. — Daqui a uma semana, mulherzinha. Antes, não! Para a semana veremos. Hoje é impossível. — É muito delicado! — contava ela a André. — Sempre a sorrir!... Não me parece bem. Quando se é chefe, não se deve levar assim as coisas de brincadeira. — Sim, sim... São amáveis, sorriem muito... Se lhes dizem: «Vê aquele homem inteligente e honrado? É perigoso para nós: enforque-o!» Eles sorriem, enforcam-no, e depois continuam a sorrir. — Aquele que veio cá fazer a busca era mais simples, valia mais: via-se logo que era um canalha! — Dir-se-ia que não são homens mas sim martelos, ferramentas, para nos talharem por forma a ficarmos ao gosto do governo. Eles próprios foram acomodados à mão que nos dirige... Afinal, Pelagueia obteve a ambicionada licença. No domingo, entrou na secretaria da cadeia e sentou-se modestamente a um canto. Havia mais visitas naquela casa acanhada e suja, de teto baixo. Não era a primeira vez que se encontravam ali: conheciam-se uns aos outros. A conversa ia-se arrastando lentamente, a meia voz. — Sabe? — dizia uma mulherona já de alguma idade, e que tinha uma maleta nos joelhos. — Esta manhã, à primeira missa, o mestre-capela da catedral, esteve outra vez quase a arrancar uma orelha a um menino de coro. Um homem de meia idade, com o uniforme de soldado reformado, tossiu ruidosamente e replicou: — Os tais meninos de coro são uns garotos!... Um homenzinho calvo, de pernas curtas, braços compridos, a maxila proeminente, passeava dum lado para o outro, com ares de preocupado. Sem parar dizia: — A vida está cada vez mais cara; e é por isto que os homens nunca foram tão maus! A carne de vaca de primeira qualidade custa a catorze kopecks o arrátel, o pão dois kopecks e meio... De quando em quando, entravam prisioneiros, vestidos de cinzento, com grossos sapatos de coiro. Um deles trazia uma corrente no pé. Parecia que os visitantes estavam acostumados havia muito àquele espetáculo. O coração de Pelagueia tremia de impaciência; olhava perplexa para tudo o que a cercava.A seu lado estava uma velhinha com as faces enrugadas e com os olhos amortecidos. Prestava atenção à conversa, estendia o pescoço delgado e fugia a olhar para os assistentes, com uma expressão de irascibilidade. — Quem tem a sra. aqui? — perguntou-lhe Pelagueia com doçura. — O meu filho, que é estudante! E a sra.? — Também o meu filho, operário. — Como se chama ele? — Vlassov. — Não conheço. Está cá há muito tempo? — Há sete semanas. — E o meu há dez meses! E Pelagueia, julgou perceber-lhe no tom da voz, o que quer que fosse parecido com o orgulho. Uma senhora alta, vestida de preto, de rosto comprido e pálido, disse vagarosamente: — Daqui a pouco metem na cadeia todas as pessoas de bem. Já não as podem aturar. — Sim, sim! — replicou o velho calvo. — A paciência vai faltando. Toda a gente se zanga e clama, e tudo vai aumentando de preço. É por isto que as pessoas vão diminuindo de valor. E não aparece nenhuma voz conciliadora... A conversa generalizou-se e animou-se. Cada qual formulava a sua opinião acerca da vida, mas todos falavam a meia voz; e Pelagueia sentia naquelas palavras o que quer que fosse estranho. Em sua casa, falava-se de outra maneira, duma maneira mais compreensível, mais natural, mais aberta. Um guarda, de grande barba grisalha, gritou: — A Vlassov! Mediu-a com o olhar e disse: — Vem! E foi andando, arrastando os pés. A vontade de Pelagueia era empurrá-lo para que ele andasse mais depressa. Afinal, num pequenito quarto, encontrou-se com Pavel, que lhe estendeu a mão, sorrindo. Ela agarrou-a, rindo muito, e dizendo: — Bons dias! Bons dias! — Olá, mulher! — exclamou o guarda. — Afastem-se um pouco um do outro. É do regulamento. E bocejou. Pavel pediu à mãe notícias da sua saúde, da sua casa. Ela esperava outrasperguntas, procurava-as até, no olhar do filho, mas não as encontrou. Como sempre, ele apresentava-se tranquilo; apenas um pouco mais pálido; os seus olhos pareciam maiores. — A Sachenka manda-te recomendações. As pálpebras de Pavel estremeceram e abaixaram. O seu rosto dulcificou-se e brilhou com um sorriso. — Pôr-te-ão em breve na rua? — perguntou, irritada de súbito. — Por que foi que te prenderam? Sim porque afinal os tais folhetos voltaram a aparecer. Os olhos de Pavel tiveram um lampejo de alegria. — Sério?! — É proibido falar dessas coisas! — observou o guarda, indolente. — Só se pode falar de assuntos de família. — Ora essa! Então isto não é assunto de família? — perguntou ela. — Sei lá! O que digo é que é proibido. Falem da comida, da bebida, da roupa lavada, e de mais nada! — elucidou, continuando como indiferente. — Está bem! Falemos da nossa casa, mamã? O que é que tu fazes? — Levo comida aos operários, comida e outras coisas! — respondeu com audácia. Deteve-se e explicou melhor, depois de resfolegar: — Sopa, carne assada, tudo o que Maria costuma cozinhar, e... toda a espécie de alimento. Pavel compreendera. O rosto contraiu-se-lhe numa gargalhada abafada. Depois, carinhosamente: — Minha querida mãe... Muito bem! Muito bem! Sinto-me feliz, sabendo que tens tão bom emprego, que não te aborreces. Não é verdade que não te aborreces? — E sabes? Revistaram-me toda quando os tais folhetos tornaram a aparecer! — informou um tanto fanfarrona. — Outra vez?! — exclamou o guarda. — Já lhes disse que é proibido. Priva-se um homem da sua liberdade, para que ele não saiba do que vai lá por fora, e vens tu, mulher, e começas a tagarelar!... Compreendam que o que é proibido é proibido! — Está bem! Não se fala mais nessas coisas, mamã. O Matvé Ivanovitch é um bom homem: não devemos fazê-lo zangar. Damo-nos bem um com o outro. É por acaso que ele assiste hoje às entrevistas dos presos com os visitantes. Quem costuma assistir é o diretor. E o Matvé Ivanovitch receia que tu digas coisas... supérfluas. — Acabou o tempo da visita! — disse o guarda, tendo consultado o seurelógio. — Obrigado, mamã! Muito obrigado, querida mãezinha! Não te dê cuidado, que dentro em pouco serei posto em liberdade. Abraçou-a com efusão; ela começou a chorar. — Separem-se! — ordenou o guarda; e, reconduzindo Pelagueia, ia-lhe dizendo, resmungando: — Não chore... Está aqui está na rua! Vão dar a liberdade a muitos... os lugares são poucos... não cabem todos... Em casa, ela disse ao pequeno-russo: — Falei-lhe... com jeito... percebeu-me muito bem. E acrescentou com um suspiro: — Percebeu-me, sim, se não, não me abraçava com tanta gana! Foi a primeira vez... — Ah! Todos desejam isto ou aquilo, mas as mães não desejam senão afagos! — Mas se tivesses visto as outras pessoas! — exclamou ela, com assombro na voz. — Dir-se-ia que já estão acostumados. Levaram-lhes os filhos, meteram- nos na prisão e não se importam nada com isso. Vão à prisão, sentam-se, e falam de banalidades enquanto esperam. Quando as pessoas instruídas se conformam desta maneira, o que farão os operários?... — Isso é natural — respondeu o pequeno-russo com um sorriso. — A lei não é tão severa com eles como connosco... além de que eles precisam dela mais do que nós. Quando a lei os importuna eles reclamam, mas sem grande alarido. A lei, a eles, dá-lhes alguma proteção, ao passo que a nós só nos dá cadeias que nos impedem de bulir. XX Uma noite, estando Pelagueia a fazer meia e André lendo em voz-alta a história da revolta dos escravos romanos, alguém bateu violentamente à porta. O pequeno-russo foi abrir, e Vessovtchikov entrou, com um embrulho debaixo do braço, o boné descaído para os olhos, e todo ele enlameado até aos joelhos. — Passando na rua, vi luz cá dentro e bati à porta para a cumprimentar. Saí da cadeia agora mesmo! E apertando a mão de Pelagueia: — O Pavel recomenda-se muito. Deixando-se cair numa cadeira, hesitantemente olhou em volta, como de costume desconfiado. A sua cabeça angulosa e rapada e os seus olhitos tornavam-no antipático a Pelagueia, o que não impedia que estivesse gostando de vê-lo e que lhe dissesse, afetuosa: — Emagreceste!... Ó André, vamos fazer-lhe o chá! — Já cá estou preparando o samovar! — respondeu da cozinha o pequeno- russo. — E então como vai o Pavel? Vieram outros para a rua contigo? Vessovtchikov respondeu abaixando a cabeça: — O Pavel continua preso... Encheu-se de paciência... Para a rua vim só eu. E levantando o olhar, continuou vagaroso e com os dentes cerrados: — É que eu disse-lhes: «Deixem-me ir embora, que já estou farto! Senão mato o primeiro que puder, e suicido-me depois!» Ora!... Foi logo! E fizeram bem, porque eu cumpria o que prometera! — Sim, sim, creio!... — balbuciou ela, afastando-se, com as pálpebras tremulas, como sempre lhe acontecia quando fitava aquele rosto bexigoso. — E como vai o Fédia Mazine? — perguntou da cozinha André. — Continua fazendo versos? — Continua! Quer dizer... não o percebo bem. Parece um pintassilgo: metem- no na gaiola, e canta. O que sei é que não tenho nenhuma vontade de ir para casa. — E tens razão. Vais encontrá-la vazia, o fogão apagado, tudo muito frio... Vessovtchikov calou-se, cerrou os olhos, depois, tirando da algibeira um maço de cigarros, começou a fumar, muito descansadamente. Com o olhar ia seguindo as nuvens de fumo que se esvaía por cima da sua cabeça; e de súbito, rindo esganiçadamente como o uivar dum cão: — Sim, muito frio... Naturalmente, o chão está, cheio de baratas geladas, osratos devem estar também mortos de fome... Pelagueia Nilovna, dás licença que eu durma cá em casa? — Está dito! — respondeu logo. Sentia-se pouco à vontade; por isto não disse mais. Foi ele que murmurou em tom abatido: — Estamos agora no tempo em que os filhos têm vergonha dos pais. — O quê? — perguntou ela, estremecendo. — Não te apoquentes, que não falo de ti. Tu nunca envergonharás o Pavel. Eu é que me envergonho do meu pai... Não quero voltar para casa dele. Já não tenho pai, nem casa. Estou sob a vigilância da polícia, agora, senão ter-me-iam mandado para a Sibéria. Creio que um homem, que não se poupasse a trabalhos, teria muito que fazer na Sibéria... Daria a liberdade aos exilados, ajudá-los-ia a fugir... Graças ao seu coração sensível, a velha percebia que o rapaz estava sofrendo, mas a sua dor não lhe provocava a compaixão. — Dizes bem. Sendo assim, seria melhor teres ido... André veio da cozinha. — Que estás tu para aí a cantar, homem? A velha ergueu-se. — Vou arranjar alguma coisa para comer. Vessovtchikov olhou fixamente para o pequeno-russo e respondeu com firmeza: — Digo que é preciso matar umas pessoas!... — Ih!... E para quê? — perguntou, tranquilo. — Para que deixem de existir! — Tens então o direito de transformar os vivos em cadáveres? — Tenho! — E onde foste buscá-lo? — Foram os homens que mo deram! O pequeno-russo, alto, magro, parou no meio do quarto, bamboleando o corpo; com as mãos nas algibeiras, observava dos pés à cabeça o bexigoso. Este, sentado e envolto numa nuvem de fumo, tinha naquele momento o rosto pálido salpicado de manchas vermelhas. — Foram os homens que mo deram! — repetiu, de punho cerrado. — Desde que me dão pontapés, tenho o direito de responder, atirando-me aos focinhos, aos olhos... Se não me tocarem, eu não toco em ninguém. Deixem-me viver como quero, que eu viverei quieto, sem incomodar os mais. Juro! Suponhamos quequero viver numa floresta, construir uma cabana numa ravina, na margem dum regato... e viver ali, sozinho... — Pois faz isso! — respondeu, encolhendo os ombros. — Agora? Não! É impossível! Estou ligado estreitamente aos homens até à morte! Ligaram o meu coração com o ódio, prenderam-me a eles com o mal. É um laço muito sólido. Odeio-os, e vá por onde for não os deixarei viver tranquilos. Incomodam-me, e eu incomodá-los-ei. Respondo por mim, só por mim; não posso responder por mais ninguém. E se o meu pai é um ladrão... — Ah! — exclamou repreensivamente André, em voz baixa, aproximando- se. — Ainda acabo por arrancar a cabeça ao Isaías Gorbov, verás! — E porquê? — Porque anda a espiar-me. Foi por causa dele que o meu pai se perdeu, é com ele que o meu pai conta para entrar para a polícia secreta! — Olhem o grande mal! Mas quem te censura, a ti, pela vida do teu pai? Isso é para os tolos! — Para os tolos e para os não tolos! Olha: tu és inteligente, o Pavel também. Diz lá: têm por mim consideração igual à que têm pelo Fédia Mazine ou pelo Samoilov, ou um pelo outro? Não mintas, que não te acreditaria. Atiram-me para o canto! — Tens a tua alma doente, amigo! — respondeu André, afetuosamente, sentando-se ao lado dele. — A vossa também sofre. Mas imaginam que as suas úlceras são mais nobres do que as minhas. Procedemos uns para os outros como canalhas! É o que te digo! O que respondes a isto, hã? Fitou o olhar penetrante em André e esperou, com os dentes à mostra. O seu rosto pálido estava impassível; apenas lhe tremiam os lábios grossos como se tivessem sido queimados e contraídos por algum líquido cáustico. — Nada te responderei! — disse André acariciando o olhar hostil de Vessovtchikov com o sorriso luminoso e triste dos seus olhos azuis. — Sei demais que querer discutir com alguém, cujo coração está sangrando, é o mesmo que irritá-lo. Sei, irmão. — Não se pode discutir comigo; não sei discutir! — resmungou, abaixando os olhos. — Estou certo de que todos nós caminhámos como tu agora, com os pés descalços por cima de vidros partidos; que todos nós respirámos essas mesmas evaporações de horas sombrias... — Não podes dizer coisa alguma que me sossegue. Nada! A minha alma uivacomo um lobo! — Nem tenho tal intuito. O que sei é que isso há de passar. Talvez não muito depressa; mas há de passar. E pôs-se a rir, batendo no ombro do rapaz: — É uma doença de crianças, no género da escarlatina, irmão. Todos nós fomos atacados do mesmo mal, com maior ou menor violência, conforme éramos fortes ou fracos. Ataca a gente da nossa condição, quando nos encontramos sozinhos, quando não compreendemos ainda a vida, quando não vemos o lugar que nos foi destinado. Parece-nos que somos o único homem neste mundo e que ninguém se importa connosco, a não ser para nos devorar. Mais tarde, quando vires que há também boas almas noutros peitos além do teu, consolar-te-ás... e envergonhar-te-ás de ter acreditado que só tu davas a nota afinada, e de ter querido trepar ao campanário sendo o teu sino tão pequeno, que ninguém o ouve na bimbalhada dos dias de festa. Perceberás então que és uma voz apenas percetível, mas necessária, no coro poderoso e magnifico da verdade. Compreendes o que eu quero dizer? — Compreendo... compreendo... Mas não te acredito! — Também eu não queria acreditar... O bexigoso pôs-se então a rir com a boca aberta até às orelhas. — Que é isso? — Pensava que seria um grande parvo aquele que te insultasse. — E porque hão de insultar-me? — perguntou ainda André, encolhendo os ombros. — Sei lá! O que digo é que o homem que te tiver insultado, há de ficar depois com uma linda cara de parvo! — Era a isso que querias chegar!... — comentou, rindo. Ouviu-se a voz de Pelagueia: — Venha, André! Venha buscar o samovar. A sós, Vessovtchikov olhou em volta; estendeu a perna, observou as botas grossas; acurvou-se, palpando a barriga da perna; depois observou atentamente a palma e as costas da mão peluda; levantou-a, e ergueu-se. Quando André trazia o samovar, o bexigoso, diante do espelho, acolheu-o com estas palavras: — Há quanto tempo eu não via o meu focinho!... Estou feio como o diabo! — Que te faz isso? — A Sachenka diz que o rosto é o espelho da alma... — Qual história! Tem o nariz de gancho, as faces agudas como bicos detesoura, e todavia a sua alma é pura como uma estrela!... Sentaram-se para tomarem o chá e comerem. Vessovtchikov deitou a mão a uma grande batata, salgou um pedaço de pão e começou a comer tranquilamente, vagarosamente, como um lobo. — E como vão as coisas por cá? — perguntou com a boca cheia. E, tendo ouvido as informações de André: — Tudo isso vai devagar! É preciso ir mais depressa. — A vida não é um cavalo: não a fazemos andar às chicotadas. Mas o bexigoso meneava a cabeça, obstinado. — Vai devagar... vai... Eu não tenho grande paciência... Que é preciso que eu faça? — Devemos aprender a ensinar os outros. É este o nosso dever! — E quando entraremos em luta? — Ignoro. Segundo a minha opinião, antes de pegarmos em armas, deveremos armar o nosso cérebro. O rapaz ficou silencioso, voltando a comer. Sem que ele percebesse, a velha observava-lhe o rosto picado das bexigas, tentando descobrir nele alguma coisa que a reconciliasse com aquele caráter agressivo; mas ao encontrar-lhe o olhar penetrante, ficava na mesma e movia os sobrolhos, desanimada. No seu íntimo, os dois moradores do velho pardieiro sentiam-se como apertados, pouco à vontade, e lançavam de quando em quando olhares furtivos para o hóspede. Até que este ergueu-se. — Não me saberia mal deitar-me. Estive encarcerado por muito tempo, puseram-me na rua de repente... vim por aí adiante... Estou cansado. Quando ele foi para a cozinha, a velha cochichou a André: — Tem uns pensamentos terríveis!... — Não é um rapaz dócil, não. Mas há de passar-lhe. Eu também era assim. Quando o coração não aquece a valer, junta-se nele muita gordura... Vá deitar- se, mãezinha, que eu ainda vou ler um pouco. André ouviu-a rezar num murmúrio. Enquanto ele ia lendo, um tanto febrilmente, a pêndula do relógio oscilava em cadência, nas vidraças o vento gemia. A velha murmurava: — Ó Senhor! Quanta gente por este mundo, queixando-se conforme os seus males! Onde estão os felizes? — Há-os, sim; e dentro em breve serão em grande número! Ah! Muitogrande! — respondeu ele. XXI A vida ia decorrendo rápida, de dias variados. Cada qual trazia novas a Pelagueia, que não se perturbava com elas. Cada vez eram mais os desconhecidos que vinham à noite conversar com André, e que, sempre desconfiados e cautelosos, se retiravam no meio das trevas, com a gola do casaco levantada, a pala do boné sobre os olhos. Para Pelagueia todos aqueles rostos, novos ou velhos, fundiam-se em um só rosto magro, calmo e decidido, de olhar profundo, carinhoso e severo ao mesmo tempo, como o de Jesus a caminho de Emaús. Contava-os e imaginava-os cercando Pavel, como para torná-lo menos visível aos seus inimigos. Uma noite, uma rapariga esperta, de cabelo encaracolado, chegou da cidade, com um embrulho para André; e, ao sair, disse para Pelagueia com um olhar brilhante e cheio de alegria: — Até à vista, companheira! — Até à vista. E foi à janela para ver a sua «companheira» pela rua abaixo, em passinhos miúdos, fresca como uma flor de primavera, ligeira como uma borboleta. — «Companheira»!... Ah! Minha queridinha! Deus te dê um bom companheiro por toda a vida. Notava por vezes nos que vinham da cidade aspetos variegados que lhe despertavam a simpatia; mas o que principalmente a impressionava era a sua simplicidade, o seu belo e tão generoso esquecimento de si próprios. Compreendia já muitas coisas que os visitantes discutiam; sentia, que de facto, eles tinham descoberto a verdadeira origem da desgraça dos homens, e ia-se acostumando a aprovar as suas opiniões. Mas não acreditava que eles pudessem transformar a existência à sua maneira, nem que tivessem a suficiente força de atrair a si todos os operários. Regularmente, continuava levando folhetos para a fábrica, com o sentimento do dever cumprido; imaginava toda a espécie de astúcias; e os guardas, acostumados a vê-la, nem já lhe prestavam atenção. Todavia, revistavam-na por vezes, mas sempre nos dias seguintes a ter havido distribuição de folhetos. Quando não os levava, Pelagueia sabia fazer-se notada, excitar a curiosidade dos guardas, que a detinham, ficando afinal com caras de tolos. Vessovtchikov não tornou a ser aceite na fábrica; meteu-se como operário numa estância de madeira, e de manhã à noite guiava os carretos de traves, lenha, tábuas. Os cavalos que puxavam a carroça iam como às cegas, em risco de atropelarem quem passava, de irem de encontro às outras carroças; o rapaz era perseguido por uma chuva de doestos e de imprecações. Sem levantar acabeça, sem responder, assobiava estridentemente, e chicoteava, nos intervalos, resmungando: — Toma! Toma!... Sempre que havia reuniões em casa de André para a leitura dum folheto ou do último número dum jornal estrangeiro, Vessovtchikov aparecia, sentava-se e escutava sem dizer palavra, durante uma ou duas horas. Concluída a leitura, os novos discutiam; ele porém não entrava na conversa, e era o último a sair. A sós com André, falava então com o seu modo sorna. — Quem é o mais culpado de todos? — Aquele que foi o primeiro a dizer: «Isto é meu!» Mas como já morreu há milhares de anos, não vale a pena zangarmo-nos com ele! — respondia André, gracejando. — Mas os ricos e os poderosos? E os que os defendem? Têm razão? O pequeno-russo apertava a cabeça entre as mãos, retorcia o bigode e falava durante muito tempo acerca da vida dos homens, com palavras simples e claras. Ele porém volvia: — Não! Há de haver culpados! Existem! Digo-te que é preciso revolvermos a vida toda, sem piedade, como um campo coberto de más ervas!... — Foi o que o Isaías disse uma vez, falando do senhor... — observou Pelagueia. — O Isaías? — Sim. Que mau homem! Espia toda a gente... Vem até espreitar às nossas janelas. — Às suas janelas?... Ela estava já deitada e não lhe podia ver a cara. Mas percebeu que tinha falado de mais, quando André disse, em tom conciliador: — Pouco importa que ele venha espreitar-nos. Não tem que fazer a essa hora: passeia. — Qual! Exclamou o rapaz! Ora aí tens o culpado? — Culpado de quê? De ser parvo? Mas o bexigoso não respondeu e saiu. Pelagueia não dormia. — Tenho medo dele! — exclamou. — Parece um fogão levado ao rubro: não dá calor, mas queima. — Sim... é um garoto irascível. Nunca lhe fale do Isaías, mãezinha. Esse tal Isaías é em verdade um espião... Pagam-lhe até para isso. — Que admira? O seu melhor amigo é um agente de polícia!— O Vessovtchikov ainda acaba por torcer-lhe o pescoço! Veja que sentimentos os que mandam na nossa vida fazem nascer nas camadas inferiores. O que sucederá quando aqueles que se parecem com este rapaz tiveram a consciência da sua situação humilhante e perderem a paciência? O céu raiar-se- á de sangue, e a terra cobrir-se-á de espuma, como se a tivesse invadido um musgo vermelho. — É terrível, meu André! — Os nossos inimigos não terão o que merecem. Todavia, mãezinha, cada gotinha do seu sangue terá sido lavado previamente pelos lagos de lágrimas que o povo chorou. E acrescentou, rindo: — É justo, mas não é consolador! XXII Um domingo, quando a velha, voltando da mercearia, abriu a porta e apareceu no limiar, foi invadida por súbita alegria, pois ouvira lá para o interior da casa, a voz de Pavel. — Cá está ele! — gritou André. Pelagueia notou a rapidez com que o filho se voltou para ela e o brilho que lhe assomou ao rosto. — Eis-te afinal na nossa casa! — murmurou. Pavel avançou, muito pálido, com pequeninas lágrimas bailando-lhe nos olhos, com os lábios trémulos. Em silêncio, os dois contemplavam-se. — Obrigado, mamã! — exclamou por fim, apertando-lhe a mão que estremecia. — Obrigado, minha querida mãe! Comovida por aquelas palavras, ela acariciava-lhe os cabelos, e reprimindo as pulsações do coração, disse com doçura: — Deus seja contigo! O que me agradeces? — O teu auxílio na nossa grande obra! Obrigado! É uma honra enorme para o homem poder dizer que sua mãe também é sua parenta pelo espírito. Não respondeu, aspirando, sôfrega, as palavras do filho, contemplando-o, como em êxtase perante aquele rosto que lhe parecia tão luminoso. — Eu calava-me, mamã, porque percebia que certas coisas da minha vida te impressionavam; tinha piedade da tua alma, e nada podia fazer que lhe fosse agradável. Imaginava que nunca te juntarias a nós, que nunca seguirias as nossas opiniões, que continuarias a suportar tudo, em silêncio, como o tinhas feito em toda a tua vida. E isto custava-me muito. — O André deu-me a compreender tantas coisas!... — observou, desejando chamar André ao sentimento do filho. — Contou-me tudo o que tu fazias! — disse, rindo. — O Iegor também. Somos da mesma aldeia. Olha o André quis ensinar-me a ler. — E tu tiveste vergonha e puseste-te a estudar sozinha, às escondidas. — Espreitou-me, então! — notou, contrafeita. — Mas que é dele? Foi-se daqui, para nos deixar à vontade. Chama-o, que ele... não tem mãe. — André! Onde estás tu? — Aqui. Vou rachar lenha. — Tens tempo. Anda cá. — Lá vou. Não veio logo; e à porta, observou, dando importância ao caso:— É preciso dizer a Vessovtchikov que traga lenha, que já há pouca. Vê como a cadeia fez bem ao Pavel? Em lugar de punir os revoltados, o governo engorda- os. — Ainda não comeste!... Vamos jantar, Pavel! — propôs ela. — Não. O guarda vigilante informou-me ontem de que tinham resolvido pôr- me em liberdade, e logo perdi a vontade de comer. A primeira pessoa que encontrei por cá foi o velho Sizov. Apenas me viu, atravessou a rua para me falar. Aconselhei-o a ser mais prudente, porque eu estou sob a vigilância da polícia. «Que tem isso?» foi a sua resposta. E sabes o que me perguntou acerca do sobrinho? «O Fédor tem-se portado bem na cadeia?» E eu: O que entende por isso de portar-se bem? «Ora!... Não dar com a língua nos dentes a respeito dos companheiros!» Quando lhe disse que ele era um bom rapaz e inteligente, passou a mão pela barba, e disse com altivez: «Nós, os Sizov, não temos patifes na família!» — Não tem nada de tolo, esse velho. E o Fédia vem para a rua por estes dias? — Provavelmente. Creio mesmo em que virão todos. Não há provas contra nós. Apenas o depoimento do Isaías... Mas o que pode ele saber? — Sentemo-nos! — disse Pelagueia, servindo o jantar. Comendo, André referiu-se a Ribine. Quando acabou de contar o que se tinha passado, Pavel murmurou, com muito pesar: — Se eu cá estivesse, não o teria deixado partir assim. O que leva na sua alma? Um sentimento de revolta e umas ideias embrulhadas... — Ora! — disse André, sorrindo. — Quando um homem tem quarenta anos e lutou durante muito tempo contra as dúvidas e as hesitações da sua alma, é difícil transformá-lo. Discutiam, empregando termos que a velha não compreendia, até ao fim do jantar, embora por vezes falassem mais a claro. — Devemos continuar no nosso caminho, sem nos desviarmos dele nem uma linha! — exclamou Pavel com firmeza. — E esbarrarmos no caminho com dezenas de milhões de homens que nos consideram seus inimigos. Pelagueia pôde concluir que Pavel não gostava dos camponeses, ao passo que André os defendia, entendendo ser preciso ensinar-lhes o bem. Compreendia melhor André. Sempre que ele dizia qualquer coisa a Pavel, prestava muita atenção, deixando mesmo de respirar, esperando com impaciência a resposta do filho, para ver se o pequeno-russo o teria ofendido. Mas os dois continuavam discutindo sem se zangarem. De quando em quando, perguntava:— É assim, Pavel? E ele respondia, sorrindo: — É. — Com que então o senhor — dizia André, em tom de malícia, — comeu bem, não mastigou bastante e ficou embatocado?... — Não digas tolices! — Eu. Estou mais sério do que num enterro! E a velha ria... XXIII Aproximara-se a primavera, ia-se derretendo a neve, descobrindo a lama e o suor engordurado das chaminés da fábrica, que ela havia ocultado sob a sua camada branca. Dia a dia, a lama tornava-se mais agressivamente aparente, todo o bairro parecia imundo e envolto em farrapos. O Sol mostrava-se mais amiúde, e os regatos ainda indecisos começavam a dirigir-se para o pântano. Ao meio-dia, a canção cariciosa das esperanças primaveris palpitava pairando sobre o bairro. Andavam em preparação as festas do primeiro de maio. Pela fábrica e pelo bairro todo tinham sido espalhados muitos folhetos, explicando a significação daquelas festas. Até a gente nova, que nada tinha de comum com os socialistas, dizia ao lê-los: — É preciso tratar disso! Vessovtchikov resmungava com o seu sorriso sorna: — E não é cedo. O jogo das escondidas dura há muito tempo! Fédia Mazine rejubilava. Tinha emagrecido e o nervosismo dos seus gestos e das suas palavras lembravam uma cotovia que estivesse metida numa gaiola. Acompanhava-o sempre Jacob Somov, rapaz taciturno, muito grave apesar de novo, e que trabalhava então na cidade. Samoilov, cujos cabelos e barba pareciam terem-se avermelhado ainda mais na cadeia, Vassili, Gussev, Bukine, Dragunov e outros julgavam indispensável munirem-se de armas; mas Pavel, o pequeno-russo, Somov e os seus amigos não eram da mesma opinião. Iegor chegou então, como sempre fatigado, ofegante, e coberto de suor. Disse de brincadeira: — A transformação da organização atual é uma grande obra, companheiros, mas para que ela caminhe mais facilmente é necessário... que eu compre um par de sapatos para a minha pessoa! E mostrou as botas rotas e que metiam água. — As minhas galochas estão na mesma, também muito doentes; todos os dias molho os pés. Não quero descer ao seio da terra sem ter renegado do velho mundo, duma maneira bem pública e visível. Eis porque, rejeitando a moção do companheiro Samoilov relativamente a uma demonstração de força armada, proponho que me calcem com um bom par de valentes botas, porque estou convencido de que serão mais úteis ao triunfo da nossa causa do que a maior das sarrafuscas! Pavel disse uma vez, falando de Iegor: — Sabes, André, aqueles que mais riem, são aqueles cujo coração mais sofre.Depois de um curto silêncio, o outro respondeu: — Qual história! Se assim fosse, toda a Rússia morreria de riso! Natacha apareceu também; estivera na cadeia, noutra cidade, mas não mudara de aspeto. Pelagueia notou que, quando ela estava presente, o pequeno- russo ficava mais alegre, brincava com todos, com uma malícia sem maldade que provoca as gargalhadas da rapariga, e que, quando ela se ia embora, ele entrava de assobiar tristemente as suas inúmeras canções, passeando pela casa, arrastando os pés. Sachenka vinha amiúde, sempre apressada, tornando-se dia a dia mais acre, mais angulosa. Uma vez que Pavel tinha saído para acompanhá-la, sem fechar a porta após si, Pelagueia ouviu-lhes estas frases: — É o sr. que levará a bandeira? — Sou. — É caso resolvido? — É o meu direito! — Não seria possível...? — O quê? — ... deixar que fosse outro...? — Não! — Reflita. O sr. tem tanta influência... estimam-no tanto... Aqui os chefes são o André e o senhor. Quantas coisas poderão fazer, estando livres!... Reflita. São capazes de exilá-lo... para muito longe e por muitos anos!... Estas palavras, cujo sentimento Pelagueia estava entrevendo, caíam-lhe no coração como pingos de água gelada. — Não! Estou decidido. Não renunciarei por coisa alguma neste mundo! — Ainda que eu lhe pedisse...? Pavel interrompeu-a rapidamente, tendo na voz uma severidade especial: — Não deve falar assim. No que está pensando? — Sou uma criatura humana!... — murmurou, defendendo-se. — Uma excelente e meiga criatura! — disse ele em voz baixa e como se lhe custasse respirar. — Uma criatura que me é querida... muito querida! E é por isto mesmo que não deve falar assim! — Adeus! E pelo ruído dos seus passos, a velha percebeu que ela ia correndo. Compreendeu que nova desgraça a ameaçava, e no cérebro cravou-se como um prego esta interrogação: «O que será preciso fazer?»Ao entrar na cozinha, Pavel avançou para André que lhe perguntou: — E aquele desgraçado do Isaías? — Devemos aconselhá-lo a que renuncie à espionagem. — Denunciará aqueles que tal lhe aconselharem. — Que pensas fazer, Pavel? — perguntou-lhe a mãe, desviando o olhar. — Quando? Agora? — Não: no primeiro de maio. — Ah! Quero levar a nossa bandeira. Pôr-me-ei à frente do cortejo, com a bandeira em punho. Naturalmente metem-me outra vez na cadeia. Os olhos de Pelagueia tornaram-se como candentes, a boca foi-lhe invadida por uma secura febril. O filho pegou-lhe na mão e ameigou-a: — Assim é preciso, mãe. A honra está nisto mesmo. — Eu não disse nada... — balbuciou. — Deverias regozijar-te, em vez de entristeceres-te. — Eu não disse nada... Não me oporei... Se tenho pena de ti, é natural... e fica comigo... Pavel afastou-se, e ela ouviu-o resmungar palavras acerbas: — Há afeições que impedem o homem de viver! Receando que ele dissesse pior, exclamou vivamente: — Não fales assim, Pavel! Compreendo. Tens que fazer o que tencionas, por causa dos companheiros. — Não! Por minha própria causa! Poderia proceder de outra forma, mas não quero! Hei de ir! André parou no limiar; parecia metido numa moldura: era mais alto do que a porta e curvava os joelhos caricatamente, com um dos ombros encostados a um umbral, e com a cabeça e o outro ombro estendido para a frente. — Seria melhor que o senhor tagarelasse menos! Parecia um lagarto semioculto na fenda dum rochedo. A velha tinha vontade de chorar, mas, não querendo que Pavel a surpreendesse, disse de repente: — Ah!... Ia-me esquecendo... E retirou-se, rápida. Sob o alpendre, encostou a cabeça à parede, e deu livre curso a todo o seu pranto. As palavras dos dois amigos chegavam até lá. — Divertes-te em atormentá-la! — dizia André. — Não tens o direito de falar-me assim! — Não seria um bom companheiro, se me calasse ao ouvir as tuas estúpidascabriolices! Para que respondeste tão rudemente à tua mãe? — Deve-se falar sempre com firmeza, seja a quem for! — À tua própria mãe? — A todos! Dispenso qualquer amor ou amizade que me detenham no meu caminho. — Que herói! À Sachenka é que devias falar assim. — Foi o que fiz. — Com essa rispidez? Não creio! Havias de falar-lhe com uma voz carinhosa, terna... É como se estivesse a ouvir-te! Guardas o teu heroísmo para quando a tua mãe está presente. Pois fica sabendo, animal, que o teu heroísmo não vale nada! Pelagueia receou que a discussão se azedasse; limpou rapidamente as lágrimas e apareceu, dizendo: — Oh! Que frio que faz! E é isto a primavera!... E, nos arranjos domésticos, deu alguns passos pela casa, voltando de novo à cozinha. Após um silêncio, André aproximou-se de Pavel. — Percebeste-a?... Tem mais coração do que tu. — Querem chá? — perguntou a velha. E sem esperar resposta, acrescentou logo: — É que estou transida de frio. Pavel dirigiu-se a ela, com um sorriso a tremer-lhe nos lábios. — Perdoa, mãe... Sou ainda uma criança... um garoto... Ela estreitou-o a si. — Não me ralhes mais. Não me digas mais nada. Deus seja contigo, filho! Segue lá a tua vida, mas não bulas no meu coração. Como não haveria de uma mãe ter piedade do seu filho? Tenho piedade de todos... — Está bem, mamã. Perdoa. Fiz mal. E afastando se, enleado: — Nunca mais o esquecerei, palavra de honra! Passando à cozinha, Pelagueia disse a André, que se conservara à porta: — Não ralhe com ele. Bem sei que o André é mais velho, mas... Ele não se moveu, e pôs-se a berrar comicamente: — Ora! Ora! Ora! Ralho... e até lhe chego, se calhar! A velha apertou-lhe a mão comovida. — Meu bom amigo!... André entrou na cozinha, e, continuando no mesmo tom irónico:— Desaparece, Pavel, se não queres que eu te torça o pescoço. Por enquanto, não, porque estou arranjando o samovar! Oh! Que péssimo carvão! Está molhado, com mil diabos! Calou-se. Quando a viu perto de si, foi dizendo, baixinho, todo entretido no seu trabalho: — Não tenha medo, mãezinha, que não lhe tocarei nem com um dedo! Sou simplório como um nabo cosido. E gosto muito dele. Olha tu é que não deves dar ouvidos ao teu herói! Anda como se tivesse estreado um colete garrido: com o peito espetado, empurrando em toda a gente para que lhe vejam bem o colete... É bonito, lá isso é; mas para que diabo empurra ele o próximo? Pavel disse de lá: — Ainda estás resmungando? — E aproximou-se logo. André, sempre sentado no chão, tinha posto entre as pernas o samovar e contemplava-o. Pelagueia, encostada à porta, fixava o olhar na nuca e no farto pescoço do pequeno-russo. Ele então deitou o corpo para trás, com as mãos apoiadas no chão, e, depois de ter observado a mãe e o filho: — Em verdade, olhem que são muito boa gente! Pavel abaixou-se para lhe pegar num braço. — Não puxes por mim, que me fazes cair! — Para que se zangam? — perguntou ela tristemente. — Não seria melhor que se abraçassem? — Queres?... — murmurou Pavel. — Porque não? Pavel ajoelhou-se e os dois homens abraçaram-se, unindo-se numa só alma, animada da mais quente amizade. Pelagueia chorava; era porém um pranto sem amargor. Enxugando os olhos, balbuciou: — As mulheres gostam de chorar.. de tristeza... e de alegria... André afastou o amigo, e esfregando os olhos: — Basta! Basta! Que diabo de carvão! Tenho os olhos cheios dele! Pavel sentara-se junto da janela, e murmurou: — Lágrimas como estas não devem envergonhar. — Sim! Acabámos de viver uns momentos de uma boa vida, humana, repleta de amor! — exclamou André. Ao que a mãe observou: — Tudo está mudado! O pesar é outro... outra é a alegria... já nem sei.. já não sei o que me faz viver... faltam-me as palavras...— Tudo está mudado. E assim é que deve ser! — acudiu André. — E sabe porquê? Porque se desenvolve na vida um coração novo, mãezinha. Os corações estão todos eles despedaçados pela diversidade dos interesses, roídos pela cega avareza, mordidos pela inveja, cobertos de chagas e de feridas purulentas... de mentira, de covardia. Os homens são uns doentes, que têm medo de viver... perdidos como em um nevoeiro... conhecendo apenas a sua própria dor. Mas eis que aparece um homem que ilumina a vida com o fogo da razão e que grita: «Eh! Pobres insetos perdidos! Chegou o tempo de compreender que tendes todos os mesmos interesses e o mesmo direito à vida e ao desenvolvimento!» O homem que clama está isolado, sente-se triste e tem frio sozinho. E ao seu chamamento, todos os corações se reúnem, formando um coração imenso, forte, sensível como um sino de prata. E este sino diz assim: «Uni-vos, homens de todos os países, formai uma única família! A mãe da vida é a afeição e não o ódio!» Irmãos, eu oiço este sino! — E eu também! — disse Pavel. — Deitado, de pé, vá para onde for, oiço-o e sinto-me feliz. Eu sei: a terra está farta de suportar a injustiça e a dor; ecoa como se quisesse responder, saudando o novo sol que desponta no peito do homem! Pavel ergueu um braço, ia falar; mas a mãe deteve-o, e disse baixinho: — Não o interrompa. — Sabem? Há ainda muitas dores reservadas aos homens; ainda muito sangue lhes será arrancado por mãos ávidas. Mas tudo isto, toda a minha dor e todo o meu sangue, nada são perante o que já possuo no meu cérebro, na minha medula, nos meus ossos! Já sou rico como uma estrela é rica em cintilações. Suportarei tudo, porque tenho em mim uma alegria, que ninguém nem coisa alguma matará, e que é a minha força! E até à meia-noite, a conversa prosseguiu, harmónica e sincera, acerca da vida, dos homens, do futuro. XXIV De manhã muito cedo, apenas André e Pavel tinham saído, Maria Korsunova bateu à janela com estrondo. — O Isaías foi assassinado! Vamos ver! Pelagueia estremeceu: o nome de assassino atravessou-lhe o peito como uma flecha. — Quem o matou? — O assassino fugiu! Tendo posto um xaile, à pressa, Pelagueia foi ter com ela à rua. — Naturalmente começam outra vez a fazer buscas. Ainda bem que a tua gente não saiu de casa àquela hora. Posso testemunhar. À meia-noite passei eu por aqui, olhei pela janela e vi-os a todos três sentados à mesa. — Mas, Maria, porque haveriam de acusá-los? — perguntou aterrorizada. — O assassino é forçosamente dos vossos! Todos sabem que o Isaías os espionava... Pelagueia parou, ofegante, com a mão no peito. — Que é isso? Não tenhas medo. O Isaías não merecia outra coisa. Vamos depressa, que não chegamos a tempo. A pobre velha caminhava sem mesmo perguntar a si própria para que ia ver o cadáver; tremia pensando em Vessovtchikov: «Conseguiu o seu fim!» Não distante da fábrica, sobre o entulho duma casa recentemente destruída por um incêndio, grande ajuntamento de povo murmurava como uma nuvem de besouros, e movia-se levantando em poeira a cinza com os seus passos. Já lá estavam muitas mulheres, ainda mais crianças, lojistas, os moços da taverna próxima, agentes de polícia, o guarda Petline, um guarda velho, de barbas brancas como prata, e com o peito coberto de medalhas. Isaías estava meio deitado no chão; tinha as costas apoiadas a uma trave enegrecida pelo fogo, a cabeça descaída para o ombro direito. Conservava a mão direita na algibeira das calças; os dedos da esquerda desapareciam contraídos sob a terra fofa. Pelagueia olhou para o rosto do morto. Um dos olhos tinha-o ele fixado no boné posto entre as pernas estendidas, a boca entreaberta numa como expressão de assombro; a barbicha ruiva pendia. O corpo magro, com a cabeça pontiaguda, e o rosto ossudo coberto de manchas avermelhadas, parecia diminuído, comprimido pela morte. Ela então benzeu-se suspirando. Em vida, aquele homem fora-lhe antipático; morto, fazia-lhe dó. — Não tem sangue! — disse alguém. — Talvez o prostrassem aos murros.— Talvez ainda esteja vivo. — Vão-se daqui! — berrou o guarda. — O médico já veio, e disse que ele estava morto! — Fecharam a boca a um denunciador... Foi bem feito! O guarda afastou as mulheres que o cercavam e perguntou ameaçadoramente: — Quem é que falou? Muitos recuaram; outros deitaram a fugir. Ouviram-se risos escarninhos. Pelagueia voltou para casa. — Ninguém tem dó dele!... — ia pensando. — E o perfil maciço do bexigoso erguia-se na sua frente; os seus olhos tinham um brilho frio e rude; a sua mão direita balouçava, como se estivesse ferida. Quando André e Pavel entraram para o jantar, perguntou-lhes logo: — E então? Não está ninguém preso por causa do Isaías? — Não ouvi nada... — respondeu o pequeno-russo. Ela notou que os dois vinham sombrios e reservados. — Não falam do Vessovtchikov?... — avançou. O filho encarou-a com severidade e respondeu, acentuando muito as palavras: — Não! Ninguém pensa nele. Está ausente. Ontem ao meio-dia, partiu a caminho da ribeira e ainda não voltou... Tirei informações... — Deus seja louvado! — exclamou ela com um suspiro de alívio. Ao jantar, Pavel deixou cair de repente a colher no prato e disse: — Não entendo isto! — O quê? — perguntou André, até ali triste e silencioso. — Admito que matem um animal feroz, uma ave de rapina... Julgo-me capaz de matar um homem que se tornasse uma fera para os seus semelhantes. Mas como há quem possa levantar a mão para assassinar uma criatura miserável e repugnante? André encolheu os ombros, e depois: — Ele era tão nocivo com uma fera. — Sei... — Nós também esborrachamos o mosquito que nos suga um pouco de sangue... — Sim, é verdade. Não é esse o meu ponto de vista. Digo que é repugnante! — Que se há de fazer? — e encolheu outra vez os ombros.— Poderias matar uma criatura daquelas? — perguntou Pavel depois de curta pausa. O pequeno-russo fitou-o, lançou um rápido olhar a Pelagueia, e respondeu tristemente mas com firmeza: — Se se tratasse de mim só, não tocaria em ninguém. Pelos companheiros, pela nossa causa, faria tudo. Mataria até meu próprio filho, se preciso fosse! — Oh!... — suspirou Pelagueia. Ele sorriu, concluindo: — Impossível proceder de outra maneira! É a vida que assim o quer! Como se obedecesse a um impulso íntimo, André ergueu-se de repente. — Que se há de fazer? É-se obrigado a odiar o homem, para que venha mais cedo o tempo de admirá-lo sem reservas. Temos que destruir aquele que obsta ao curso da existência, que vende os outros para adquirir honrarias ou o descanso. Se encontramos no caminho dos justos um Judas que nos espera para nos trair, eu próprio seria um traidor, se não o aniquilasse. É crime? É contra o direito? E os outros, os nossos senhores, com que direito se servem de soldados e carrascos, de casas públicas e de prisões, do degredo e de tanta coisa infame para protegerem a sua segurança e o seu bem-estar? Os nossos senhores assassinam-nos às centenas, aos milhares; isto dá-me o direito de levantar a mão e de deixá-la cair na cabeça dum inimigo, daquele que mais se aproximou de mim e que mais me prejudica na vida. Sei que o sangue dos meus inimigos não cria, que é estéril... Desaparece sem deixar vestígios, porque está podre; ao passo que quando o nosso rega a terra como uma chuva compacta, a verdade desenvolve-se exuberante! Também o sei! Mas se vir que é indispensável matar, matarei e reivindicarei a responsabilidade do meu crime. Não falo senão de mim. O meu pecado morrerá comigo, não maculará o futuro com uma única nódoa, não manchará ninguém, ninguém senão eu! Cheia de tristeza e de inquietação, Pelagueia sentia que ele tinha como que uma mola partida no seu espírito, e que sofria. Não a inquietava já o caso do assassínio: não tendo sido Vessovtchikov, nenhum outro companheiro de Pavel o seria, por certo. André prosseguia: — Tempo virá em que os homens se admirarão uns aos outros, em que cada qual brilhará como uma estrela, em que escutará a voz do seu semelhante, como se fosse uma música. Haverá na terra homens ricos, grandes pela sua liberdade, tendo todos o coração aberto, purificado de qualquer ambição ou interesse. A vida será então um culto prestado ao homem; a sua imagem será exaltada porque para os homens livres todas as alturas são acessíveis. Viver-se-á então na liberdade e na igualdade, pela beleza; os melhores serão os que mais souberemabarcar o mundo no seu coração, os que mais o amarem! E por esta vida assim, estou pronto a tudo. Arrancaria o coração a mim próprio, e pisá-lo-ia, com os meus pés! O seu rosto tremia; as suas feições tinham uma excitação luminosa; uma a uma, as lágrimas deslizavam-lhe pelas faces. Pavel levantou a cabeça e contemplou-o. Pelagueia sentia-se inquieta, com um vago e terrível pressentimento. — O que tens, André? — perguntou Pavel, a meia voz. Ele esticou o corpo, e fitando a velha: — Eu vi... eu sei... Pelagueia levantou-se, correu a ele, pegou-lhe nas mãos. — Sossega, André! Meu filho!... Sossega!... Murmurava. — Esperem!... Quero dizer-lhes como a coisa foi... — Não! Não! — acudiu ela, com os olhos rasos de água. Pavel aproximou-se dele, com as mãos trémulas e muito pálido, e segredou- lhe: — A minha mãe receia que tivesses sido tu... Ela porém ouviu, e disse: — Não receio, não. Sei que não foi ele. Ainda que tivesse sido, não acreditaria. — Oiçam... — pediu André, sem os fitar e buscando libertar as mãos que Pelagueia não abandonava. — Não fui eu... mas poderia ter evitado o crime. — Cala-te, André! — exclamou Pavel, pondo-lhe a mão no ombro, como para fazer cessar a tremura que lhe abalava todo o corpo. O pequeno-russo explicou então: — A coisa foi assim: quando nos deixaste, ficámos à esquina, eu e o Dragunov. O Isaías apareceu de repente... e conservou-se afastado... Troçava de nós, observando-nos... Dragunov disse-me: «Não vês! Anda-me a espiar todas as noites. Ainda venho a dar-lhe uma lição!» E afastou-se para entrar em casa, ao que julguei... Então o Isaías chegou-se a mim... Suspirou: — Ninguém me insultou mais relesmente do que aquele cão! Sem falar, Pelagueia fora conseguindo puxá-lo para junto da mesa até obrigá-lo a sentar-se. — Disse-me que todos nós éramos conhecidos da polícia, que tinha os olhos em nós, e que antes do primeiro de maio estaríamos servidos!... Não respondi, limitei-me a rir-me, mas cá por dentro começava a ferver. Disse-me depois queeu era um rapaz inteligente, que não deveria meter-me a tais caminhos... — Percebo!... — murmurou Pavel. — Isso! Acabou por dizer-me que seria melhor eu entrar ao serviço da polícia... E de punho cerrado erguido: — Que alma infame a daquele homem! Mais valia que me houvesse esbofeteado! Ter-me-ia custado menos! E talvez fosse melhor para ele. Perdi a paciência quando assim me cuspiu no coração a sua saliva infeta! Dei-lhe um muro em pleno rosto, e retirei-me. Ouvi uma voz atrás de mim: «Fizeste muito bem!» Era Dragunov, que por certo tinha ficado oculto na esquina. Não olhei para trás, apesar de sentir, de compreender a possibilidade... Ouvi depois um ruído, mas não fiz caso. Eu ia tão tranquilo como se tivesse acabado de esmagar um sapo. Quando cheguei à fábrica, dizia toda a gente: «Mataram o Isaías!» Não quis acreditar. A minha mão é que teve a culpa... Não sou senhor dela... Não me faz sofrer, não... mas dir-se-ia que a sinto retraída agora... Lançou à mão um olhar rápido e exclamou: — Não conseguirei nunca lavá-la desta mancha! — Tenhas tu bem puro o teu coração!... — disse Pelagueia chorando. — Não me acuso, não! — declarou ele com energia. — Mas é repugnante... Não é agradável ter esta lama cá dentro no peito! — Que pensas fazer? — O que quero fazer? E depois de refletir, de cabeça baixa, ergueu-a e respondeu com amargo sorriso: — Não tenho medo de dizer que fui eu... mas tenho vergonha do que fiz! Não! Não posso dizê-lo! Tenho vergonha! — Não te percebo bem! — exclamou Pavel, encolhendo os ombros. — Não foste tu quem matou; e ainda que... — Irmão, apesar de tudo, era um homem. O assassínio é coisa repugnante. Saber que alguém assassina, e não o impedir... é talvez uma covardia infame! — Continuo sem perceber! Ouviu-se o apito da fábrica. André deixou tombar a cabeça para o ombro, escutando aquele autoritário chamamento e disse: — Não quero ir trabalhar. — Nem eu! — Quero ir tomar um banho! Vestiu-se à pressa e saiu.Pelagueia seguiu-o com um olhar de compaixão; depois abriu-se com o filho. — Pode dizer o que quiser, Pavel. Sei que é pecado matar um homem, mas neste caso não encontro culpa em ninguém. Lembro-me de que o Isaías me ameaçou uma vez com a forca para ti... Eu não lhe queria mal, nem me alegro por ele ter morrido... Tinha apenas dó dele... E agora... nem mesmo isso já sinto... — Aí tens o que é a vida, mãe! XXV Alguém acabava de chegar sob o alpendre. Mãe e filho entreolharam-se, estremecendo. A porta abriu-se e deu entrada a Ribine. Trazia vestida uma capa curta, de peles, toda manchada de alcatrão, e nos pés sapatos de cânhamo; do cinto pendiam-lhe grosseiras luvas de lã preta; na cabeça um boné de peles. — Como vão de saúde? Puseram-te na rua, Pavel? E tu, Pelagueia, como vais? — Ah! És tu? Muito estimo ver-te! — Olha que vens mesmo lindo! — disse Pavel. Ribine respondeu, tirando vagarosamente a capa: — Sim. Fiz-me camponês. Tu e os teus vão-se transformando pouco a pouco em senhores; eu ando para trás. E passando ao quarto, lançou o olhar em roda. — Não têm mais mobília do que dantes. Os livros é que aumentaram. São o melhor bem que se pode possuir hoje. Como vão as coisas por cá? Conta-me. Sentou-se abrindo muito as pernas, apoiou as palmas das mãos nos joelhos, parecendo satisfeito na expetativa da resposta de Pavel. — Vão bem. — Muito me alegro! Muito me alegro! — Queres chá? — perguntou a dona da casa. — Pudera! E um copinho de aguardente... e se me oferecessem de comer, também não recusaria. Estou contente por tornar a vê-los! — E como vai? — Bem. Parei em Eguildievo. Conhecem? É uma bela vila, com duas feiras por ano e mais de dois mil habitantes. Má gente. Não há terras para cultivar; arrendam-nas, mas são de má qualidade. Entrei como assalariado ao serviço de um explorador do povo; não faltam destas sanguessugas; são como as moscas à roda de um cadáver. Fazemos carvão, extraímos alcatrão das bétulas. Trabalho duas vezes mais do que trabalhava aqui, e ganho quatro vezes menos. Ao serviço desta sanguessuga somos sete, todos lá da terra, menos eu. Sabem ler e escrever. Um deles, chamado Jéfim, é muito bulhento... — E fala muito com eles? — Está claro. Levei comigo todos os meus folhetos. Tenho trinta e quatro. Mas prefiro servir-me da Bíblia: encontra-se lá tudo o que se quer, e é um livro permitido, publicado pelo Santo-Sínodo, e no qual se pode crer. Piscou o olho, malicioso, e continuou:— O pior é que não basta. Vim cá buscar leitura. Como vamos fazer uma entrega de alcatrão, o tal Jéfim e eu, combinámos a patuscada de passar por tua casa... Dá cá livros antes que ele apareça... É inútil que ele fique sabendo... Pelagueia observava-o; parecia-lhe que ao largar a capa, largara também qualquer coisa da sua pessoa: estava menos grave do que dantes, e havia no seu olhar mais astúcia. — Mamã, vai buscar os livros. Diz que vão para o campo, que logo sabem o que te hão de dar. — Irei apenas o samovar esteja pronto. — Quero livros proibidos e bem incisivos. Distribui-los-ei às escondidas. E se o padre ou alguém da polícia os descobrir, imaginarão que os mestres-escolas é que fazem a propaganda. De mim ninguém suspeitará. Satisfeito por este achado, desatou a rir. — Olha sabes? — disse Pelagueia. — Tens assim o aspeto de um urso, e afinal és uma raposa! Pavel ergueu-se, em tom de censura: — Dar-lhe-emos os livros que deseja, mas o que pensa fazer não lhe fica bem. — E porquê? — Porque se deve responder sempre pelo que se faz. — Não percebo o que dizes! — Acha bem que os mestres-escolas sejam metidos na cadeia como suspeitos de fazerem propaganda? — Então? Que tem isso? Essa é boa! Os livros são coisa que lhes dizem respeito, a eles; portanto eles que tenham a responsabilidade! Pelagueia interveio, mostrando-se da opinião de Ribine, ao que Pavel objetou: — Se qualquer de nós, o André por exemplo, praticasse uma infração da lei e me metessem na cadeia, a mim, o que diria a minha mãe? — Ah! Ah! É um caso melindroso!... — exclamou Ribine. Mas assumindo uns ares doutorais: — Ainda és muito ingénuo, irmão! Não nos devemos preocupar com casos de honra, quando trabalhamos por uma causa secreta. Reflete: quem primeiro cairá na cadeia será a pessoa a quem forem encontrados os livros, e não o mestre. Depois, o texto dos livros autorizados que os mestres distribuem é o mesmo dos livros proibidos, com simples diferenças de palavras e com menos coisas verdadeiras do que os nossos. Portanto os mestres têm o mesmo fim que eu, mas servem-se de rodeios, ao passo que eu vou por caminho direito; e assim, aos olhos das autoridades, somos igualmente culpados; não achas? Em terceiro lugar,que tenho eu a ver com os mestres-escolas? Não procederia da mesma maneira com um camponês. O mestre-escola é um filho de padre; a mestra uma filha de proprietário; não sei porque se põem a querer levantar o povo. Eu, camponês, não posso conhecer os seus pensamentos de pessoas instruídas. Sei o que faço, mas ignoro o que eles querem. Durante milhares de anos, os grandes eram verdadeiros senhores e tiravam a pele do povo; de repente acordam e começam a abrir os olhos às suas vítimas. Nunca tive predileção por contos de fadas, e este é um deles. Para mim, a gente rica e instruída, seja qual for, fica afastada de nós. No inverno, quando atravessamos os campos e vemos ao longe alguma coisa a mexer, perguntamos a nós mesmos: será uma raposa, um lobo, um cão? Sabe- se lá o que é! E, passando a mão pela barba: — Não tenho tempo para delicadezas. O momento é grave. Trabalhe cada qual, segundo a sua consciência... Todas as aves têm o seu canto especial. — Mas há ricos que se sacrificam pelo povo, que passam toda a vida na cadeia... — observou a velha, recordando-se de pessoas amigas. — Com esses o caso é outro. Quando o homem do povo enriquece, acotovela- se com os senhores. Estes, quando empobrecem, tornam-se amigo do povo. Quando a algibeira está vazia, a alma torna-se pura, à força. Ergueu-se e continuou, sombriamente: — Durante cinco anos, desacostumei-me do campo, andando errante de fábrica em fábrica. Quando para lá voltei e vi o que se passava, disse comigo que não podia viver como vivem os camponeses. Percebes? Parecia-me impossível. Por cá não se conhece a fome, nem a muita humilhação. Mas na aldeia a fome segue o homem como uma sombra durante toda a vida, sem nunca lhe dar a esperança de obter pão que chegue. A fome devorou as almas, apagou as feições humanas; não se vive: apodrece-se irremediavelmente na miséria. E as autoridades vigiam, cuidadosas; como os corvos, espreitam, não se dê o caso de que o camponês tenha um bocado de pão a mais. Quando o descobrem, arrancam-lho da mão, e ainda lhe dão com ele na cara! Encostado à mesa, de pé, falando muito perto de Pavel, prosseguiu: — Julguei que não poderia suportar semelhante vida. Todavia, dominei-me. Disse com os meus botões: «Não devo consentir que a minha alma me faça partidas! Ficarei aqui, e, não podendo dar pão aos camponeses, farei a zaragata!» Com a fronte coberta de suor, exclamou: — Dá-me livros que não deixem mais em descanso aqueles que os lerem. Ajuda-me! É preciso meter ouriços dentro da cabeça daquela gente. Diz aos que escrevem folhetos para os da cidade, que os escrevam também para os docampo. Que os escrevam de maneira a regar o campo de água a ferver, para que os cultivadores, depois de lê-los, caminhem para a morte sem protestarem! As frases vigorosas de Ribine impressionavam Pelagueia. Havia naquele homem o que quer que fosse que lhe recordava o marido: um e outro mostravam os dentes e arregaçavam as mangas, com a mesma irritação impaciente. Ao menos, Ribine falava. — Sim! É indispensável! — disse Pavel. — É indispensável organizar um jornal para o campo. Dê-nos o assunto, narre-nos os factos, e nós lhe daremos um jornal. Ao que Ribine respondeu. — Está dito! Mas escrevam com simplicidade, para que até os vitelos os entendam! XXVI Pelagueia tinha saído. Pouco depois alguém entrava. — É o Jéfim! — informou Ribine. — Entra! Anda cá. Este homem, que vês aqui, chama-se Pavel. Foi dele que eu te falei. Jéfim era um rapagão de cara ampla, cabelos ruivos, olhos pardos, robusto e bem talhado, trajando uma capa curta. Avançou até Pavel, de boné na mão e olhar baixo. — Ora viva! — resmungou, apertando a mão de Pavel, e tendo percorrido o quarto com o olhar, demorando-o na estante dos livros, pôs-se a alisar com a mão os cabelos ásperos. — Já os viu! — exclamou Ribine. Jéfim foi ver os livros mais de perto. — Ih! Quantos há por cá! E naturalmente lê-os muito. No campo, não temos tempo... — E pouca vontade, não? — perguntou Pavel. — Ao contrário! Hoje somos obrigados a pensar, se não, não nos resta mais do que deitarmo-nos e esperarmos a morte. Como o povo não quer morrer, pôs- se a trabalhar com o cérebro. «Geologia?...» O que é isto? Pavel explicou. — Não precisamos disso! — concluiu Jéfim pondo o livro no seu lugar. Ribine comentou: — O camponês não tem curiosidade de saber de onde veio a terra, mas sim como foi distribuída, como os proprietários a arrancaram de sob o domínio do povo. Que ela se mova ou não, que importa! Contanto que dê de comer! — «Historia da escravatura!» Isto é com a gente? — Aqui tem um acerca da servidão. — É já muito velho. — Possui algumas terras? — Somos três irmãos, e temos quatro hectares... terreno de areia fina. Coisa fresca, para limpar metais! Mas para cultivar o trigo... Eu cá libertei-me da terra. Não sustenta o homem, antes o traz manietado. Há quatro anos que me alugo como manufator... Para o outono vou para a tropa. O Mikhail diz-me que não vá, porque obrigam os soldados a baterem no povo. Mas vou, por força! É tempo de acabar com isto. Que lhe parece? — É tempo, é... — respondeu Pavel, sorrindo. — Mas o difícil está em saber falar aos soldados. — Aprende-se!— Mas se o apanham em flagrante, podem fuzilá-lo. — Sim... não me perdoarão... — respondeu tranquilamente, voltando a ver os livros. — Vamos ao chazinho, companheiro, que temos que abalar! — disse Ribine. André entrou muito vermelho, acalorado e taciturno. Apertou a mão de Jéfim, sem falar, assentou-se ao lado de Ribine, e, depois de olhar para ele, sorriu. — Pareces triste, homem! Porquê? — perguntou aquele dando-lhe uma palmada no joelho. — Porque sim! Jéfim, observava atentamente André, até que disse: — Os trabalhadores das cidades e vilas são magricelas, têm os ossos a romper a pele. Nós cá, os do campo, somos mais roliços... Ribine completou: — O camponês tem mais firmeza nas pernas. Sente a terra debaixo dos pés, ainda que não lhe pertença. Mas o operário é como um pássaro: não tem pátria, nem lar; um dia aqui, outro dia ali. Pelagueia entrou. Jéfim tinha-se aproximado de Pavel a quem pediu: — Poderia dar-me um livro? — Da melhor vontade. O júbilo brilhou-lhe no olhar. — Eu restituo depois. Obrigado! Hoje, os livros são tão precisos como à noite uma candeia. Ribine tinha posto a capa. — Vamos, que são horas. — Olha: já tenho que ler! — exclamou Jéfim, mostrando-lhe o livro, com um sorriso muito aberto. Quando eles saíram, Pavel dirigiu-se a André. — Que me dizes àqueles diabos? — Parecem nuvens à hora do crepúsculo: grossos, sombrios, arrastando-se lentamente... — Tenho pena de que não chegasses mais cedo. Terias observado um coração, tu, que estás sempre a falar de coração. Ribine disse das suas... Não soube que responder-lhe. A minha mãe tem razão: aquele homem traz em si uma força terrível! — Conheço isso! Essa gente do campo anda envenenada! Quando se revoltarem, derrubarão tudo, sem distinção. Querem a terra absolutamente sua, earrancarão tudo o que a cobre. Falava devagar; percebia-se que pensava noutra coisa. Pelagueia disse-lhe com blandícia: — Deves espairecer, André! — Deixe, mãezinha, deixe... Embora eu não quisesse tê-lo feito, a ação foi abominável! E voltando ao assunto da conversa: — O nosso camponês queimará tudo, como se tivesse havido uma peste, para que todos os vestígios das suas humilhações voem com as cinzas. — E levantar-se-á depois contra nós... — continuou Pavel. — O nosso dever é não lho consentir, reprimindo-o! Somos nós quem se encontra mais perto dele. Acreditar-nos-á... seguir-nos-á! — Sabes? O Ribine pediu-me que fizéssemos um jornal para os camponeses. — Apoiado! É tratar disso. E depois de comentar as últimas palavras de Ribine, ergueu-se, dizendo: — Vou dar um passeio ao campo. — Depois do banho? Olha que faz muito vento... Vais arranjar uma irritação na pele! — acudiu Pelagueia. — Deixá-lo! Quero sair. Vestiu-se e foi-se sem dizer palavra. — Sofre! — suspirou a velha. — Tens um belo coração, mamã! — Oxalá assim seja! Se ao menos pudesse ajudá-los!... Se eu soubesse!... — Não te dê cuidado: hás de saber. O pequeno-russo voltou tarde; estava fatigado; deitou-se logo, dizendo: — Parece-me que andei uns dez quilómetros... — Isso vai melhor? — Não sei... Não faças barulho... Deixa-me dormir. Pouco depois, Vessovtchikov apareceu, sujo, esfarrapado e de mau humor como sempre. — Não sabes quem matou o Isaías? — Não! — respondeu Pavel. — Até que houve um homem que não achou antipático esse feito! E eu que me preparava para torcer-lhe o pescoço!... — Não digas essas coisas, companheiro! Pelagueia interveio:— És bom e tens sempre palavras tão cruéis!... Para quê? Era-lhe então agradável tornar a vê-lo; o seu rosto bexigoso chegava até a parecer-lhe bonito; sentia mais piedade por ele. — Eu não sirvo para nada, senão para tais empresas! Pergunto constantemente qual é o meu lugar. Não o encontro. Se é preciso falar... não sei... Vejo tudo, sinto todas as humilhações dos homens, e não posso exprimi-las. Tenho uma alma muda. Irmãos, deem-me um trabalho penoso, seja qual for. Não posso viver assim, sem fazer nada em favor da nossa causa. Pavel pegou-lhe numa das mãos. — Havemos de pensar em ti, descansa. — André disse lá da cama: — Ensinar-te-ei a conhecer as letras de imprensa, e serás um dos nossos compositores; queres? — Se me ensinares, dar-te-ei de presente uma navalha. — Vai para o diabo mais a tua navalha! — Uma navalha boa! — insistia. André e Pavel riram à larga. Ele parou no meio do quarto, perguntando: — Estão a rir-se de mim? — Então de quem? E o pequeno-russo saltou da cama. — Se fossemos dar um passeio pelo campo? A noite está boa, há luar. Vamos? — Pois vamos! — apoiou Pavel. — E eu também vou. Gosto de ouvir rir o André! — E eu gosto que me prometas presentes! XXVII Os dias decorriam com tal rapidez que não deixavam que Pelagueia pensasse no primeiro de maio. Só à noite quando se deitava, fatigada dos trabalhos e preocupações, é que o seu coração se confrangia, e o seu cérebro a fazia monologar: — Se ao menos já tivesse passado!... Todas as noites as folhas impressas convidando os operários a festejarem o primeiro de maio eram coladas até à porta das estações policiais; todas as manhãs apareciam também na fábrica. Os polícias percorriam o bairro logo de manhãzinha e arrancavam das paredes os pequenos cartazes cor de violeta; mas pelo meio-dia eles tornavam a aparecer espalhados pelo chão. Da cidade vieram polícias da secreta que às esquinas espiavam os menores movimentos dos operários que iam e vinham, animados, alegres, pelas ruas. Era um prazer desfrutar a impotência da polícia; até a gente de idade dizia, sorrindo: — Tem graça isto! Pavel e André quase não dormiam. Regressavam a casa, pálidos, fatigados, pouco antes do apito da fábrica soltar a sua estrídula chamada. Pelagueia sabia que eles organizavam reuniões na floresta, no pântano; não ignorava que a polícia trabalhava para abafar o movimento, chegando até a prender alguns operários; compreendia que todas as noites o filho e André se arriscavam a serem presos, e chegava a pensar que talvez isto fosse melhor. Em volta do assassínio de Isaías tinha-se feito um silêncio extraordinário. A polícia interrogou a princípio umas dez pessoas; depois desinteressou-se do assunto. Um dia, Maria Korsunova, que vivia em paz com a polícia como com toda a gente, dizia: — É lá possível encontrar o criminoso!... Naquela manhã mais de cem pessoas viram o Isaías, e pelo menos noventa tê-lo-iam esganado de boa vontade. André transformava-se a olhos visto. As faces tinham-se-lhe encovado; as pálpebras descaíam-lhe cerrando-lhe os olhos; sorria menos; das narinas descia- lhe uma ruga até ao canto dos lábios. Todavia entusiasmava-se mais, falando do futuro, da festa luminosa e deslumbrante do triunfo da liberdade e da razão. Falando de Isaías, declarou: — Quanto mais penso nele, mais dó me causa. Não queria que o matassem, não! Não queria! — Acaba com isso! — disse Pavel. Pelagueia acrescentou:— Houve quem topasse num tronco podre, que se desfez em pó. Chegou enfim o dia tão impacientemente desejado: o primeiro de maio. Como de costume, o apito da fábrica fez-se ouvir autoritário, implacável. Pelagueia levantou-se dum salto e foi acender o samovar, que ficara preparado de véspera. — Ouves, Pavel? Chamam por nós... — disse André. — E nós levantamo-nos! — respondeu Pavel alegremente. — Já faz sol... e as nuvens vão-se embora. Seriam de mais, hoje! Ao vê-lo perto de si, a velha suplicou-lhe: — Meu André, não te afastes dele! — Está dito! Andaremos sempre juntos. Descanse. — Que estão a dizer? — perguntou Pavel. — Nada. É a mãe que quer que eu me lave mais que de costume, porque as raparigas hoje vão olhar muito para mim! Pelagueia pensava: «Eles agora estão de brincadeira; mas o que acontecerá ao meio-dia?» À mesa, tomando o chá, André contou: — Quando eu era um garoto de dez anos, tive um dia a ambição de apanhar um raio de sol com o meu copo. Parti o copo, cortei a mão, e levei pancada. Saí depois para o pátio, e como o sol se refletisse numa poça de água, saltei nela aos pulos. Levei mais pancada porque fiquei coberto de lama. Berrei para o sol: «Isto não faz mal! Seu diabo ruivo! Isto não faz mal!» E deitei-lhe a língua de fora, por vingança. — Porque lhe chamavas diabo ruivo? — Defronte de nós morava um ferreiro de cara vermelhaça e barba ruiva; era um rapagão sempre alegre; e eu achava que o sol se parecia com ele. Pelagueia exclamou: — Ora esta! Pois não seria melhor que falassem do que vão fazer? — Está tudo organizado! — replicou o filho. — No caso de sermos presos, mãezinha, o Nicolau Ivanovitch virá dizer-lhe o que tem a fazer, auxiliando-a em tudo. O apito da fábrica tinha tocado de novo, mas dir-se-ia já menos firme, como receoso. Pavel aventou: — Se fôssemos para a rua?... — Não. Deixa-te estar em casa até à hora... — aconselhou André. — Para que hás de atrair a atenção da polícia, que te conhece perfeitamente?Fédia Mazine entrou radiante. — O povo já se mexe... Pelas ruas, as caras andam severas como machados. Vessovtchikov, Vassili Gussev e Samoilov estão à porta da fábrica e falam aos operários... Muitos já voltam para casa. Vamos! São dez horas. — Vamos! — disse Pavel, resoluto. Pelagueia exclamou: — Arde de impaciência, como uma vela ao vento! Levantou-se e passou logo à cozinha para vestir-se. — Que vai fazer, mãe? — Arranjar-me para ir também! André lançou um olhar a Pavel, puxando pelo bigode. Rapidamente, ele foi ter com a mãe. — Não falarei contigo, nem tu comigo. Está combinado? — Está combinado! Deus os acompanhe! XXVIII Quando na rua ela ia ouvindo o murmúrio das vozes, quando via por toda a parte, nas janelas, às portas das casas, grupos que seguiam com o olhar André e Pavel, o coração ora parecia brilhar-lhe, ora toldar-se de uma nuvem opaca. Ouviam-se frases soltas: — Ali vem os comandantes do exército! — Sabemos lá quem são os comandantes?!... — Isto não foi por mal. — Se a polícia os agarra, estão perdidos! — Isso agarra ela! Um grito agudo, de mulher, partiu duma janela. — Estás doido? És pai de família!... Eles são solteiros! Ao passarem defronte da casa de um tal Zossimov, operário inabilitado que vivia duma pensão da fábrica, ele chegou à janela e berrou: — Ó Pavel, olha que te cortam a cabeça, como a um salteador! André e Pavel pareciam não ver, não ouvir nada. Caminhavam, calmos, sem pressa, falando em voz alta de vários assuntos. Encontrando Mironov, homem de idade, modesto, respeitado pela vida exemplar que levava: — Também não trabalha hoje, Danilo Mironov? — perguntou Pavel. — A minha mulher está com as dores do parto... e depois... anda uma coisa no ar... Dizem que os senhores querem fazer escândalo, partir os vidros da fábrica... — Não somos uns bêbados! — exclamou Pavel. André explicou: — Atravessaremos apenas as ruas, levando bandeiras e cantando o hino da liberdade. Oiça o nosso hino, que ele lhe ensinará as nossas crenças. — Já as conheço... E vendo Pelagueia: — Também tu? — Devemos caminhar com a verdade, mesmo à beira da cova. — É isso! Aqui está porque dizem que tu levas folhetos proibidos para a fábrica. — E quem o diz? — perguntou Pavel. — Toda a gente. Adeus... adeus.... Não façam algum disparate. Pelagueia pôs-se a rir baixinho: envaidecia-a que assim falassem dela. O filhodisse-lhe: — Metem-te na cadeia, mamã. — Quem me dera! À esquina duma pequena praça, à entrada de uma rua estreita, umas cem pessoas cercavam Vessovtchikov, que discursava. — Espremem-nos para nos tirarem o sangue, como espremeriam um limão para lhe tirarem o suco. — É verdade! — responderam algumas vozes que se confundiram depois no confuso ruído. — Faz o que pode, o pobre rapaz! — disse André. — Vou ajudá-lo. Aproximou-se do grupo, abaixou-se, penetrou nele como um saca-rolhas e começou: — Companheiros! Dizem que há na terra toda a espécie de povos: judeus e alemães, franceses, ingleses, tártaros. Mas não creio que assim seja. Há só duas raças, dois povos irreconciliáveis: os ricos e os pobres. Os vestuários são diferentes, as línguas também; mas quando se vê como os senhores tratam o povo, compreende-se que eles são verdadeiros carrascos para os miseráveis, uma espécie de espinha atravessada na garganta. Rebentou uma gargalhada. O ajuntamento aumentou; os ouvintes estendiam o pescoço, punham-se nos bicos dos pés. — No estrangeiro, os operários já compreenderam esta simples verdade. E hoje todos confraternizam neste luminoso dia primeiro de maio. Deixam o trabalho, e saem para a rua, para se verem, para medirem a sua grande força. Hoje formam um coração único, porque todos os corações têm a consciência da força do povo operário, porque a amizade os une, estando cada qual disposto a sacrificar a vida lutando pela felicidade de todos, pela liberdade, pela justiça a todos! — A polícia! — gritou alguém. Dez guardas a cavalo voltaram a esquina próxima e dirigiram-se para o ajuntamento, de chicote no ar, e intimando: — Nada de ajuntamentos! — Girem! — Que conversas eram essas? — Quem falava? As fisionomias anuviaram-se: todos davam passagem aos cavalos; alguns treparam a uns tapumes.Depois veio a troça. — Olhem: montaram uns porcos a cavalo, e eles grunhem: «Nós também damos ordens!» André ficou sozinho no meio da rua. Dois cavalos avançaram para ele, ao mesmo tempo que Pelagueia o agarrava, dizendo-lhe: — Prometeste não abandonar o Pavel, e vens expor-te assim!... Chegaram afinal à grande praça, ao centro da qual se erguia a igreja. No largo havia umas quinhentas pessoas, movendo-se impacientes. — Mitia! — suplicava uma voz feminina. — Tem cuidado em ti! — Deixa-me em paz! A voz amiga e grave de Sizov dizia, calma e persuasiva: — Não! Não devemos abandonar os rapazes. Têm mais juízo do que nós, e mais audácia. Quem foi que se meteu no caso do kopeck para o pântano? Foram eles. Não nos esqueçamos. Estiveram na cadeia por causa disso, mas todos nós aproveitámos da sua coragem! O rugido do apito da fábrica suplantou o ruído das conversas. A multidão estremeceu; muitos empalideceram. — Companheiros! — gritou Pavel. A seu lado, a mãe tremia. Decorridos instantes, quando tudo caíra em silêncio: — Irmãos! Chegou a hora de renegarmos desta vida cheia de aridez, de trevas e de ódio, esta vida de opressão em que não há um lugar para nós, em que não somos homens! Companheiros! Resolvemos declarar hoje, abertamente, quem somos, desfraldando a nossa bandeira, a bandeira da razão, da verdade, da liberdade! Um pau de bandeira comprido e branco for levantado ao ar, tremulando nele, como uma ave vermelha, a bandeira do povo operário. Pavel estendeu o braço, gritando: — Viva o povo operário! Centenas de vozes lhe responderam em uníssono. — Viva o nosso partido, companheiros! Viva a liberdade do povo russo! Mazine, Samoilov, os dois Gussev tinham-se postado junto de Pavel; Vessovtchikov ia empurrando quem lhe impedia o caminho até ele. Pelagueia, trémula, com os olhos cheios de lágrimas, agarrou-lhe novamente numa das mãos, balbuciando: — Sim!... É a verdade!... Meus amigos! Ele contemplava a bandeira, rugindo palavras vagas, e com a outra mãoestendida para o símbolo da liberdade. Depois abraçou-se a Pelagueia, rindo. — Companheiros! — começou então André, dominando o sussurro com a sua voz meiga, potente e cantante. — Erguemo-nos em honra dum novo Deus, do Deus da luz e da verdade, da razão e da bondade! Partimos para a cruzada, companheiros, e o caminho será comprido e difícil. O fim está distante, e os espinhos estão próximo. Queremos ao nosso lado os que vejam o fim e creiam no bom êxito; os outros não, porque só os esperam o pesar e o sofrimento. Entrai nas fileiras, companheiros! Viva o primeiro de maio, a festa da humanidade livre! Pavel ergueu a bandeira. — Reneguemos do velho mundo! — cantou Fédia Mazine com voz sonora. A resposta veio logo como uma enorme vaga potente: — Sacudamos a poeira dos pés! Pelagueia, com um sorriso ardente, via por cima da cabeça de Fédia, o filho e a bandeira. No meio das vozes mais próximas que entoavam o hino, chegava-lhe aos ouvidos a de André: Ergue-te, ergue-te, ó povo operário! Revoltai-vos, esfomeados!... E o povo corria, apertava-se, avançando para a bandeira, prosseguindo no hino, que em voz baixa tinha sido aprendido em casa. Corramos para aqueles que sofrem... Um rosto de mulher, meio jubiloso e meio assustado, surgiu ao lado de Pelagueia. — Mitia, onde vais? E a velha respondeu: — Deixe-o lá! Não lhe dê cuidado! Eu também tinha medo, dantes. O meu está à frente de todos. Aquele que tem na mão a bandeira é o meu filho! A outra porém continuava: — Ó desgraçado! Que fazes? Os soldados estão ali adiante! — Não se assuste! Isto é uma missão sagrada! Até Jesus não teria existido, se não houvessem homens que morreram por sua causa! Sizov apareceu perto dela, agitando no ar o boné, ao compasso do hino: — Isto é que é bem às claras! Hã? Inventaram um hino que é mesmo lindo! Hã? O czar quer soldados na tropa: Vossos filhos lhes dais...— Não têm medo de nada! — exclamou Sizov. — O meu filho está na cova... Foi a fábrica que o matou! Ergue-te, ergue-te, ó povo oprimido! A multidão, alucinada, nem olhava para trás de si, com os olhos fitos na bandeira vermelha, que balouçava ao vento. — Belo coro! Bravo, rapaz! — berrava um entusiasta; e invadido por um sentimento, que não sabia exprimir, desatou a rogar pragas. Duma janela partiu uma voz de cana rachada: — Heréticos! Revoltarem-se contra sua majestade o imperador! Contra o czar! Mas o hino continuava, firme, altivo. Pelagueia, que no meio dos encontrões, fora sendo empurrada para distante do centro do grande ajuntamento, ouvia então frases soltas: — Perto da escola está uma companhia de soldados, e outra na fábrica... — O governador já chegou... — O quê? É verdade? — Vi-o com os meus olhos! — Ainda bem! Começam a ter medo de nós! Já nos mandam soldados, e o governador. As vozes do coro foram enfraquecendo; dir-se-ia um movimento de recuo. Alguns iam-se calando. Aqui e ali havia quem tentasse animar de novo o hino moribundo. Ergue-te, ergue-te, ó povo oprimido! Ao inimigo, ó gente esfaimada! Pelagueia não podia ver o que se passava no centro; abrindo à força caminho, notou que a multidão tendia a dispersar, de cabeça baixa, sobrolhos franzidos, com as narinas contrafeitas. Ouviam-se já alguns assobios trocistas. — Companheiros! — gritava Pavel. — Os soldados são homens como nós. Não nos farão mal. Porque haviam de fazê-lo? Porque levamos a liberdade a todos? Mas precisam também da nossa verdade. Não compreendem ainda, mas tempo virá, e muito em breve, em que entrarão nas nossas fileiras, em que já não marcharão sob o estandarte dos gatunos e dos assassinos, mas sim à sombra da nossa bandeira da liberdade e do bem! E para que eles compreendam mais depressa a nossa liberdade, caminhemos para a frente! Avante! Companheiros! Avante! A sua voz era firme, mas o rebanho dispersava. XXIX Pelagueia distinguiu à entrada da rua um como pequeno muro, cinzento baixo, composto de seres humanos sem fisionomia e que tapavam a saída da praça. Era este muro que infundia o receio em toda aquela gente. — Companheiros! — continuava Pavel. — A vida inteira está na nossa frente! Não temos outro caminho! Cantemos! Prà frente! Respondeu-lhe um silêncio esmagador. A bandeira ergueu-se, balouçou, e agitando-se por sobre as cabeças, apontou para o muro cinzento dos soldados. Pelagueia estremeceu, fechou os olhos e suspirou: apenas quatro pessoas se tinham destacado da multidão e avançavam: Pavel, André, Samoilov e Mazine. Ouviu-se a voz trémula de Fédia, cantando: — Sois as vítimas prostradas!... — Na grande luta fatal! — continuaram duas vozes como dois suspiros abafados. E uma voz de comando chegou aos ouvidos de alguns: — Cruzar baionetas! O muro cinzento agitou-se, as baionetas fuzilaram no ar, na direção da bandeira. — Marche! — Aí veem eles! — exclamou um vesgo que estivera próximo de Pelagueia; e metendo as mãos nas algibeiras, afastou-se com grandes pernadas. Os soldados avançavam em fila, de baioneta calada. Pelagueia aproximou-se do filho, com as mãos no peito e viu André colocar-se na frente dele, como para protegê-lo. — Ao meu lado, companheiro! — ordenou Pavel. Com as mãos nas costas, André cantava, de cabeça erguida, avançando sempre. Pavel deu-lhe um encontrão com o ombro, exclamando: — Aqui! Ao meu lado! Não tens o direito de ir à minha frente! O primeiro deve ser o porta-bandeira! — Dis... per... sai!... — gritava um oficialzito com voz aguda, de sabre no ar, marchando sem dobrar os joelhos e batendo com os tacões, raivoso. A seu lado, um pouco atrás, marchava pesadamente um homem muito alto de farto bigode branco, com uma grande capa cinzenta, debruada de vermelho, e as amplas calças listradas de amarelo. Como o pequeno-russo, caminhava com as mãos nas costas. Tinha os olhos cravados em Pavel. Os da bandeira e os soldados iam-se aproximando; estes, no seu caminho, iam fazendo dispersar a multidão sem lhe tocar.— Salve-se quem puder! — Vem, Vlassov! — Para trás, Pavel! — Dá cá a bandeira, Pavel! — dizia Vessovtchikov. — Eu a escondo. E deitou-lhe a mão. — Deixa! — berrou Pavel. O bexigoso retirou logo a mão, como se se tivesse queimado. O hino cessara de todo. Os rapazes pararam, envolvendo Pavel num círculo, que ele acabou por transpor. Sob a bandeira haveria, quando muito, uns vinte homens; mas firmes. — Tenente, prenda aquele! — ordenou o velho alto apontando para Pavel. O oficialzito acorreu logo, e agarrou no pau da bandeira. — Dá cá isso! — Não! Abaixo os opressores do povo! A bandeira tremia; inclinava-se ora para a direita, ora para a esquerda, ficando depois ereta. Vessovtchikov passou pela frente de Pelagueia, com o braço erguido, de punho cerrado, e com uma rapidez que ela não lhe conheceu. — Agarrem todos! — berrou o velho, batendo com o pé. Alguns soldados avançaram, um deles com a coronha no ar; a bandeira estremeceu, baixou e desapareceu no grupo cinzento. Pelagueia soltou um grito, um rugido que não tinha nada de humano. Aos ouvidos chegou-lhe a voz do filho: — Até à vista, mãe! Até à vista! «Está vivo! Não se esqueceu de mim!» tais foram os seus dois rápidos pensamentos. Pôs-se nos bicos dos pés e conseguiu ver a cara de André. — Meus filhos, meus queridos filhos! André! Pavel! E eles iam dizendo: — Até à vista, companheiros! Algumas vozes lhes responderam, mas não em uníssono; vinham das janelas, dos telhados, não se sabia de onde. XXX Alguém deu um empurrão em Pelagueia. Através do nevoeiro que lhe toldava os olhos, viu diante dela o oficialzito, que lhe gritou: — Vai-te daqui, velha! Mediu-o com o olhar de alto a baixo, viu-lhe aos pés o pau da bandeira partido em dois; a um dos pedaços estava preso um resto da bandeira. Abaixou-se para apanhá-lo. O oficial arrancou-lho das mãos, lançou-o para distante, e ordenou de novo: — Vai-te, velha! Do meio dos soldados partiu o estribilho: — Ergue-te, ergue-te, ó povo oprimido! O oficial retrocedeu, rápido, e esganiçou-se, ordenando: — Façam-os calar! Krainev... Vacilante, Pelagueia apanhou outra vez o destroço da bandeira. A dez passos dela formara-se novo ajuntamento. Urravam, grunhiam, assobiavam, recuando lentamente, e dispersando para os pátios vizinhos. — Vai para o diabo! — berrou um soldado, empurrando Pelagueia para cima do passeio. Para não cair, porque os joelhos vergavam, ela caminhava apoiada ao destroço da bandeira, ouvindo sempre atrás de si os soldados. Até que estes passaram-lhe à frente. Parou. À entrada da rua, um cordão de tropa impedia a passagem para a praça, que ficara deserta. Quis voltar para trás, mas sem saber o que fazia, continuou para a frente; meteu-se por uma ruazinha estreita. Parou de novo. Ao longe, o povo sussurrava. A ruazita quebrava perto dela para a esquerda. Num grupo compacto discutia-se. — Não é por insolência que eles afrontam as baionetas, irmãos! — Viram, hã! Os soldados a marcharem sobre eles, e eles impassíveis! Sem medo! — Que valente é o Pavel Vlassov! — E o pequeno-russo! — Meus amigos! Boa gente! — exclamou ela, avançando. — Olhem: traz na mão o resto da bandeira! — Cala-te! — ordenou uma voz severa. Ela estendeu o braço, com um gesto largo. — Escutem, em nome de Jesus! Sois todos dos nossos, gente sincera. Abrideos olhos... olhai sem receio... O que se passou? Os nossos filhos levantam-se, pacificamente... Os nossos filhos, o nosso sangue, levantam-se em nome da verdade, abrem lealmente um caminho novo, largo, direito, destinado a todos... Por todos vós, pelos vossos filhos, empreendem uma cruzada... dirigindo-se para um mundo cheio de encanto. Em nome de todos e pelo nome de Cristo, caminham contra todas as coisas por meio das quais os maus, os mentirosos, os rapinantes, nos prendem, nos estrangulam prisioneiros. Meus amigos! É pelo povo, pelo mundo inteiro, por todos os oprimidos que os nossos filhos se sublevaram. Não os abandoneis, não os renegueis, não deixeis os vossos filhos seguirem sozinhos a sua estrela. Tende piedade de vós mesmos... amai-os... compreendei aqueles corações juvenis... tende confiança neles. Fatigada, avergou. Alguém amparou-a. — É Deus que a inspira! — disse um deles. — É Deus que a inspira, amigos! Escutem-na! Outro lamentou-a: — Ah! Está-se matando! — Não se está matando, não, idiota! A nós é que fere, fica sabendo! A mesma voz aguda e ansiosa tornou a fazer-se ouvir: — Cristãos! O meu Mitia... A sua alma é pura... O que fez ele? Seguiu os seus companheiros muito queridos. Fez bem. Por que abandonais os nossos filhos? Que mal fizeram eles? Sizov disse a Pelagueia: — Volta para casa... Vai... Estás arrasada! Passando depois pelo auditório o olhar severo: — O meu filho Matvei foi esmagado, na fábrica, bem sabeis. Mas se vivesse, eu próprio o teria mandado entrar nas fileiras daqueles... Ter-lhe-ia dito. «Vai com eles, vai, porque defendem uma causa justa, uma causa santa!» É um velho quem lhes está falando. Conhecem-me todos. Há trinta e nove anos que trabalho aqui... há cinquenta e sete que vivo neste mundo. O meu sobrinho, um belo rapaz, inteligente e honrado, foi preso hoje outra vez. Ia também à frente de todos com o Vlassov, ao lado da bandeira. E pegando na mão de Pelagueia: — Esta mulher disse a verdade. Os nossos querem viver com honra, segundo o que manda a razão; e nós... nós abandonamo-los! Vai para casa, minha velha, vai! — Meus amigos, a vida é para os nossos filhos! É para eles a terra! — disse ela passando pela multidão o olhar toldado de lágrimas. — Vai, Pelagueia, vai... Toma o teu arrimo!E deu-lhe o destroço da bandeira. Olhavam para a velha com respeitosa tristeza; seguiu-a um murmúrio de compaixão. Sem falar, Sizov abria-lhe caminho; e o povo afastava-se sem protesto, obedecendo a uma força inexplicável, trocando em voz baixa breves palavras de lamento. Ao chegar à porta de casa, Pelagueia voltou-se para eles, e disse com muito reconhecimento: — Obrigada a todos! E acrescentou: — Nosso Senhor Jesus Cristo não teria vindo ao mundo, se os homens não morressem pela sua glória! A multidão olhou para ela em silêncio. Quando Pelagueia entrou em casa acompanhada por Sizov, houve ainda na rua algumas frases em que a reflexão dominava... Depois todos dispersaram, vagarosos. SEGUNDA PARTE I O resto do dia passou num nevoeiro entrecortado de recordações, numa fadiga extrema que oprimia corpo e alma. Como uma sombra pardacenta, o oficialzito saltitava sob os olhares da velha, e em negro redemoinho movediço luziam o rosto bronzeado de Pavel e os olhos risonhos de André... A velha ia e vinha pelo quarto, sentava-se junto da janela, olhava para a rua, tornava a levantar-se e franzia o sobrolho; sentia-se estremecer, relanceava os olhares em torno; e com a cabeça esvaída, procurava o que quer que fosse, sem mesmo saber o que queria... Bebeu água sem acalmar a sede, sem extinguir no coração o ardente braseiro de angústia e de humilhação que toda a consumia. Aquele dia apresentava-se-lhe dividido em duas partes. A primeira tinha uma significação, um conteúdo, mas a segunda era como se se evaporasse, era um vácuo absoluto. Pelagueia não encontrava resposta à pergunta tremente de perplexidade que a si própria apresentava: — Que havia de fazer... agora?... Maria Korsunova apareceu então. Pôs-se a gesticular com força, gritou, chorou, bateu o pé, alvitrou e prometeu qualquer coisa, ameaçou quem quer que fosse. Mas tudo aquilo não conseguiu impressionar sequer a outra. — Ah! — dizia a voz destemperada de Maria, — assim como assim, o povo mexeu-se desta vez... Aí a têm em revolta, toda a fábrica! — É verdade, é — respondeu baixinho Pelagueia, meneando a cabeça. E com o olhar fito, considerava quão longe ficara o passado e tudo o que dela se afastara com André e com Pavel. Não podia chorar. Tinha o coração confrangido mas árido; os lábios secos também, como a garganta. Tremiam-lhe as mãos e tinha arrepios gélidos pelas costas. Mas subsistia nela uma centelha de cólera, fixa, cravada no coração qual agulha. E a tal íntimo instigamento respondia ela com uma promessa de fria reflexão: — Esperem um pouco!... E então, tossindo ruidosamente, franzia as sobrancelhas. Pela noite, veio a polícia. Recebeu-os sem admiração nem temor. Entraram pela casa dentro fazendo muita bulha, com ares satisfeitos. O oficial de pele amarelada disse, mostrando os dentes: — Então como vai isso? É esta a terceira vez que nos encontramos, hã? Ela ficou-se em silêncio e passou a língua pelos beiços para humedecê-los. Entrou então o oficial a falar muito, em tom de pessoa fina. E Pelagueia percebia que ele falava pela satisfação de se ouvir a si próprio. Mas as palavras nem lhe chegavam aos ouvidos nem a impressionavam. No entretanto, quando o oficial lhe disse:— Tu própria tens culpas, porque não soubeste inspirar a teu filho o respeito a Deus e ao Imperador... Respondeu sem o fitar: — Os nossos filhos é que são os nossos juízes... Eles hão de condenar-nos, e com toda a razão, visto que os deixámos seguir tal caminho... — O quê? — gritou o oficial, — fala mais alto! — Digo que os nossos juízes são os nossos filhos! — repetiu com um suspiro. O outro pôs-se então a discorrer em voz rápida e irritada, mas as frases precipitavam-se e não comoviam a velha. Citada como testemunha, Maria Korsunova ficara de pé ao lado de Pelagueia, para quem nem olhava. Quando o oficial lhe fazia qualquer pergunta, inclinava- se logo muito baixo e respondia em voz monótona: — Não sei, excelência! Sou uma pobre mulher ignorante, só trato do meu negócio... Graças à minha estupidez, nada sei... — Cala-te daí! — ordenou o oficial retorcendo os bigodes com violência. A mulher inclinou-se, e logo, fazendo-lhe um gesto de provocação que ele não viu, murmurou: — Toma, guarda lá este! Mandaram-lhe que revistasse a velha. Pestanejou primeiro; depois fitou o oficial, com os olhos muito abertos. E declarou com voz submissa: — Mas eu não sei fazer isso, excelência! O oficial bateu o pé, zangado. — Está bem... Desabotoa-te, Pelagueia — disse Maria. E muito corada, passou a revolver e a apalpar o fato da outra, comentando baixinho: — Hem? Que corja! — O que é? — gritou o oficial desabridamente, e insinuou o olhar, desconfiado, pela abertura por onde Maria se desempenhava da tarefa. — Nada, excelência, não é nada; coisas que só nós usamos... — murmurou Korsunova timidamente. Ao ordenar-lhe o oficial que assinasse o auto de investigação, Pelagueia traçou estas palavras numa caligrafia desconforme, em grandes letras garrafais: «Pelagueia Nilovna Vlassov, viúva dum operário». — Que escreveste tu ali? Porque escreveste aquilo? — prorrompeu o oficial, de sobrecenho carregado e em tom de desdém; e acrescentou com um riso de mofa: — Que selvagens! Retiraram-se os guardas. A mãe foi pôr-se diante da janela. Com os braços cruzados no peito; para ali ficou muito tempo, olhando sem ver.Desfranzira as sobrancelhas, e comprimia os lábios. Ao mesmo tempo, apertava as maxilas de encontro uma à outra, com tal força, que dentro em pouco ficou com dor de dentes. Acabara-se o petróleo do candeeiro, a luz ia a sumir-se, crepitando. Soprou-a de vez e ficou às escuras. A cólera e a humilhação de havia pouco desapareciam nela; agora era uma nuvem negra e fria de angústia e de louco terror, que toda a penetrava, que lhe enchia o peito, dificultando-lhe o pulsar do coração. E imóvel permaneceu, até sentir cansados os olhos e as pernas. Ouviu então sob a janela, Maria parar e gritar-lhe com voz avinhada: — Pelagueia! Estás a dormir? Minha pobre Pelagueia!... Dorme, dorme! Todos estão sofrendo os mesmos enxovalhos, — ouves? — todos! Deitou-se sobre a cama, sem se despir, e caiu em sono profundo, como quem rola para um precipício. Em sonhos, viu-se junto do montículo de saibro amarelo que ficava para lá do pântano, no caminho que conduzia à cidade. Ali, no cume da encosta, que dava acesso às pedreiras de onde se extraía a areia, Pavel cantava em voz doce, mas com uma voz que era a mesma de André: Ergue-te, ergue-te, ó povo oprimido... Pelagueia passou por diante do montículo e contemplou seu filho, ao mesmo tempo que levava a mão à fronte. Destacava-se nitidamente o perfil do rapaz no fundo azul do céu. Mas a mãe sentia vergonha em aproximar-se dele, pois que estava grávida. E levava ao colo, outra criança. Prosseguiu no seu caminho. Pelos campos, havia outras crianças a brincar com uma bola; eram muitas, as crianças, e a bola era vermelha. O pequenito que tinha nos braços queria ir brincar com os outros e entrou a fazer grande berreiro. Deu-lhe de mamar e voltou pelo mesmo caminho. O montículo estava já então ocupado por muitos soldados que lhe apontavam as baionetas. Deitou a fugir em direção a uma igreja edificada em meio dos campos, uma igreja muito branca, altíssima e de levíssima construção, como se fosse formada de nuvens. Lá dentro, cantavam-se responsos; o caixão era grande, preto, hermeticamente fechado. Padre e acólito, vestiam alvas de imaculada brancura, e entoavam: «Cristo ressuscitou de entre os mortos...» O acólito agitou o turíbulo e, ao avistar Pelagueia, sorriu-lhe. Tinha os cabelos ruivos e uns modos prazenteiros, assim como Samoilov. Da cúpula caíam raios de sol em verdadeiras toalhas. E, no coro, crianças repetiam a meia-voz: «Cristo ressuscitou de entre os mortos»... — Prendam-nos! — gritou subitamente o padre, estacando a meio da igreja. A alva que vestia tinha desaparecido e no rosto surgia-lhe um bigode grisalho e espesso. Todos se puseram em fuga, até mesmo o acólito, que atirara para longeo turíbulo e apertava a cabeça entre as mãos, como o pequeno-russo costumava fazer. A mãe deixou cair a criança sob os pés dos fiéis que se afastavam evitando-a, com olhares de temor para o pequenino corpo nu. Ela caíra de joelhos e gritava: — Não abandonem a criança! Salvem-na... E, de mãos atrás nas costas, com um sorriso nos lábios, o pequeno-russo prosseguia cantando: — «Cristo ressuscitou de entre os mortos!...» Pelagueia abaixou-se, agarrou na criança, pô-la num carrinho ao lado do qual Vessovtchikov ia caminhando vagarosamente. Este ria, dizendo: — Sempre me deram um trabalhão!... Percorriam uma rua muito suja. Pelas janelas, havia gente que assobiava, gritava, gesticulava. O dia estava claro, brilhava o sol com ardor; não havia uma nesga de sombra, em parte alguma. — Cante, cante, tiazinha! — dizia o pequeno-russo. — É a vida, isto! E ia cantando sempre, dominando tudo com a sua boa voz sonora e jovial. A mãe seguia-o, lamentando-se. — Porque está ele a mangar comigo? Nisto, recuou; mas logo se sentiu despenhar para um grande abismo sem fim, que escachoava com estrondo... Acordou em sobressalto, toda a tremer, banhada de suores; apurou o ouvido, perscrutando-se. Estupefacta, sentiu vazio o próprio peito. Parecia-lhe que mão desconhecida, ferrenha, lhe esquadrinhara o seio e, tendo-se-lhe apoderado do coração, lho estava a apertar brandamente, como em cruel brinquedo. O silvo da fábrica uivava teimosamente. Pelo som, calculou que fosse já a segunda chamada. Reinava a desordem no quarto; livros e fatos jaziam de mistura, no sobrado emporcalhado; tudo em confusão. Levantou-se, cuidou dos arranjos, sem se lavar, sem mesmo rezar. Na cozinha, encontrou um pau que ainda conservava amarrado um farrapo encarnado; pegou nele e, irritada, esteve para atirá-lo para debaixo do fogão; mas, suspirando, tirou e dobrou cuidadosamente o pedaço de pano vermelho e meteu-o na algibeira. Em seguida, procedeu a uma grande lavagem ao sobrado e à janela. Acabou de vestir-se, arranjou o samovar e depois foi sentar-se ao pé da janela da cozinha, a repetir a si mesma a pergunta da véspera: — Que se há de fazer? Mas lembrou-se que ainda não tinha orado; postou-se por alguns momentosdiante das imagens santas, e depois tornou a sentar-se. No lugar do coração tinha um vácuo. O próprio pêndulo do relógio, ordinariamente tão ágil, dir-se-ia ter afrouxado o seu tiquetaque precipitado. As moscas zumbiam hesitantes e debatiam-se estonteadas de encontro às vidraças... Reinava em todo o bairro um silêncio singular; parecia que toda aquela gente, que na véspera tanto gritara pelas ruas, se tivesse escondido em suas casas para refletir em silêncio naquele extraordinário dia. De súbito, Pelagueia recordou-se de uma cena que presenciara uma vez, quando era rapariga: no velho parque dos senhores Zaussailov havia um vasto tanque todo esmaltado de nenúfares. Por ali passara em um dia de outono nevoento e triste; a meio da laguna, um barco jazia, como que estático na água tranquila e sombria, salpicada de folhas amarelecidas. E desta embarcação sem remos nem remadores, solitária e imóvel na água opaca, entre folhas mortas, provinha funda melancolia, um pesar misterioso. Pelagueia permanecera ali muito tempo, procurando adivinhar quem impelira a canoa para longe da margem e porquê... Afigurava-se-lhe agora ser ela mesma igual à barquinha que outrora a levara a pensar nalgum esquife à espera do cadáver. Nesse mesmo dia, à noite, viera a saber-se que a esposa do intendente se havia afogado, — uma mulherzinha de modos sacudidos, os cabelos pretos sempre em desalinho... Passou a mão pelos olhos, como para expulsar tais recordações, mas logo o pensamento indeciso e horrorizado lhe deslizou brandamente para as impressões da véspera, dominadoras. Com os olhos apegados à chávena de chá, que lhe arrefecia na frente, conservou-se longamente imóvel, sentindo nascer-lhe na alma o desejo de falar com quem quer que fosse, sincero e inteligente, para lhe perguntar inúmeras coisas. E, como de propósito para realizar o seu desejo Nicolau Ivanovitch apareceu pela volta da tarde. Ao vê-lo, apoderou-se dela brusca inquietação. Com voz sumida, disse sem responder aos cumprimentos de Nicolau: — Ah! Tiozinho; fez mal em vir até aqui! É uma imprudência; se o veem, prendem-no! Depois de lhe ter apertado a mão com energia, Nicolau Ivanovitch segurou melhor os óculos no nariz, e ao ouvido dela, explicou-lhe rapidamente, em voz baixa: — É que nós tínhamos combinado, o André, o Pavel e eu, que se os prendessem, eu havia de vir buscá-la logo no dia seguinte, para a levar para a cidade. Vieram cá fazer alguma busca? — Vieram; revolveram tudo; até me apalparam. Essa gente não tem consciência nem pudor! — E porque o haviam de ter? — retorquiu Nicolau com um encolher deombros; e logo lhe expôs as razões por que era conveniente que ela passasse a residir na cidade. A outra escutava aquela voz amiga, cheia de solicitude, fitava aquele rosto de resignado sorriso e sentia-se admirada da confiança que tal homem lhe inspirava. — Uma vez que o Pavel assim decidiu, e se não o incomodo... — disse. — Não pense nisso — interrompeu ele logo. — Vivo sozinho, minha irmã só raramente aparece... — Mas é que eu quero trabalhar, quero ganhar o meu sustento! — Pois se quer trabalhar, há de se lhe encontrar trabalho, descanse! Para ela, a ideia do trabalho relacionava-se indissoluvelmente com a espécie de atividade a que se entregavam seu filho, André e os mais companheiros. Aproximou-se de Nicolau e perguntou-lhe fitando-o muito: — Parece-lhe?... — Pois está claro! A casa não é grande, e quando a gente vive só... — Não lhe falo disso, falo-lhe da nossa grande empresa... — explicou em voz baixa. E soltou um suspiro triste, melindrada por não ter sido compreendida. Nicolau ergueu-se e, franzindo os olhos míopes num sorriso, declarou em tom de gravidade: — Pois para a grande causa, também há de ter que fazer, se quiser... Uma ideia simples e clara formara-se subitamente no espírito dela. Já uma vez conseguira auxiliar Pavel; talvez o conseguisse de novo. Quanto mais gente houvesse a trabalhar por tal causa, tanto mais clara se tornaria aos olhos de toda a gente a razão que a Pavel assistia em defendê-la. E ao mesmo tempo que analisava a fisionomia bondosa de Nicolau Ivanovitch, esperava ela que este lhe falasse compassivamente de Pavel, de André e dela própria. Mas o outro limitou- se a acrescentar, acariciando a barba, como que absorto: — Veja se pode saber pelo Pavel, quando lhe falar, as moradas desses camponeses que pediram jornais... — Já as sei! — exclamou ela alegremente. — Sei perfeitamente quem eles são e onde moram. Dê-me o jornal que eu mesma lho levo. Eu mesma irei procurá-los e farei o que me mandar... Ninguém será capaz de supor que levo comigo livros proibidos. Deus seja louvado, bastantes quilos deles meti na fábrica! Era como um súbito desejo de partir, de ir ao acaso, fosse para onde fosse, pelas estradas sem fim, por bosques e aldeias, com o cajado na mão e a alcofa ao ombro. — Não encarregue mais ninguém desse serviço, peço-lho, meu amigo —disse ela. — Irei a toda a parte onde julgar preciso. Não tenha medo, que não me perderei, seja em que província for. De verão e de inverno, caminharei sem descanso... até morrer! Tornar-me-ei um apóstolo por amor da verdade. Não será digno de inveja o meu destino? Que bela vida, a do viandante! Vaguear pelo mundo, sem se possuir nada e sem se ter necessidade de coisa alguma, a não ser do pão de todos os dias; não humilhar ninguém; percorrer a terra, tranquilamente e sem que ninguém nos conheça!... Também eu quero viver assim!... E hei de encontrar Pavel, hei de encontrar André, hei de chegar até onde eles estiverem... Mas aqui entristeceu ao ver-se já, em pensamentos, sem lar, errante, a mendigar em nome de Deus pelas portas das cabanas... Nicolau agarrou-lhe meigamente na mão e afagou-lha ao calor das suas. — Havemos de falar nisso mais tarde! — declarou, olhando para o relógio. — É perigosa a tarefa de que quer encarregar-se... pense bem! — Meu bom amigo! — exclamou ela. — Para que serve pensar? Pois se os nossos filhos, a parte mais pura do nosso próprio sangue, parcelas dos nossos próprios corações, os que mais do que tudo nos são queridos, sacrificam vida e liberdade e morrem sem contemplação por si mesmos, o que não hei de eu de fazer, eu, que sou mãe? Nicolau fez-se pálido. — Sabe que é a primeira vez que oiço falar dessa maneira?... — Que sei eu dizer! — murmurou ela, sacudindo desconsoladamente a cabeça. E os braços penderam-lhe num gesto de desalento. — Se eu encontrasse palavras que exprimissem o que sente o meu coração de mãe!... E ergueu-se, impelida pelo ardor que nela se concentrava e lhe excitava no cérebro frases candentes de revolta. — ... Muitos haviam de chorar... até os malvados, os entes sem consciência... Nicolau ergueu-se e tornou a ver as horas. — Pois então, fica combinado, vem para minha casa, para a cidade! Ela abanou a cabeça, sem uma palavra. — Quando há de ser? — continuou Nicolau. — O mais depressa possível. E acrescentou com meiguice: — Vou ficar em cuidado por sua causa, palavra! Pelagueia ergueu para ele um olhar admirado: que interesse podia ela inspirar àquele homem? O outro permanecia de cabeça baixa, com um sorriso de constrangimento, míope e um tanto corcovado, no seu modesto fato preto. — Tem dinheiro em casa? — perguntou sem a fitar. — Não.Com vivacidade, tirou logo da algibeira uma bolsa, abriu-a e apresentou-lha. — Aí tem, tire, se faz favor... A pobre mãe esboçou involuntário sorriso e, com um meneio de cabeça, observou: — Como tudo está mudado! O próprio dinheiro já não tem valor para vocês. Há por aí gente capaz de tudo para o possuir, que chega até a perder a própria alma... e para vocês não passa duns bocados de papel... dumas rodelas de cobre... Chega-se a imaginar que se vocês o têm é só por caridade para com os outros! — O dinheiro é na verdade desagradável e incómodo — retorquiu Nicolau Ivanovitch, rindo. — É por igual coisa enfadonha pedi-lo ou dá-lo!... Tomou-lhe novamente da mão, apertou-lha fortemente. — Venha o mais depressa que possa, sim? — repetiu. E, como das outras vezes, foi-se sem fazer ruído. Ao despedir-se dele, Pelagueia pensava: — É tão bom homem!... Contudo não teve uma palavra de compaixão... E não chegou a perceber bem se tal facto lhe era desagradável ou se lhe causava simples admiração. II Quatro dias após a visita de Nicolau, punha-se Pelagueia a caminho, em direção a casa dele. Quando o carro que a transportava e às duas malas, atravessou o burgo e rodou em pleno campo, voltou-se para trás ainda uma vez e sentiu nesse instante que era para sempre que abandonava aquele lugar onde decorrera a quadra mais sombria e penosa da sua vida, onde outra existência começara, período repleto de novos desgostos e de novas alegrias, em que os dias voavam velozes. Semelhante a imensa aranha dum vermelho escuro, estendia-se a fábrica ao longo do solo sujo de fuligem, erguendo muito ao alto na atmosfera, as enormes chaminés. Em torno, amontoavam-se os casinhotos do operariado. Pardacentos e mesquinhos, formavam grupo compacto à beira do charco e pareciam entreolhar-se lastimosamente pelas suas janelinhas sem brilho. A meio deles erguia-se a igreja, de cor vermelha como a fábrica, com o seu campanário, que parecia menos elevado do que as chaminés da fábrica. A pobre mulher suspirou, desapertou a gargantilha do vestido, que a incomodava. Ia triste, mas de uma tristeza árida como a poeira duma tarde de estio. — Para diante! — resmungava o carroceiro, puxando pelas rédeas. Era manco, de idade imprecisa, com uns olhos sem cor definida e uns raros cabelos de tom sujo. Bamboleando-se todo, caminhava ao lado do veículo, demonstrando claramente que o fim da viagem, qualquer que ele fosse, se lhe tornava totalmente indiferente. — Para diante! — repetia com uma voz sem timbre, atirando por maneira caricata com as pernas cambadas, calçadas de grossas botas cheias de lama. A passageira, essa, vagueava o olhar em torno. A desolação da planície era tão profunda como a da sua alma... O cavalo, sacudindo lamentosamente a cabeça, enterrava as patas pela areia profunda, que rangia, frouxamente requentada pelo sol. A carroça, em mau estado e com os eixos mal azeitados, chiava a cada volta das rodas. A todos estes ruídos vinha juntar-se a poeira. Morava Nicolau Ivanovitch no extremo da cidade, num pequeno pavilhão pintado de verde, encostado a um sombrio prédio de dois andares, a cair de vetustez, em rua solitária. À frente do pavilhão, havia um jardim, de forma que pelas janelas dos três quartos metiam-se as frescas ramadas de algumas acácias, lilases e um ou outro alamozinho prateado. Os quartos eram asseados e silenciosos; sombras mudas e recortadas, tremiam sem cessar nos sobrados; pelas paredes havia prateleiras carregadas de livros e alguns retratos de pessoas de modos graves e ponderados.— Parece-lhe que lhe há de agradar isto? — perguntou Nicolau, introduzindo a sua hóspede num quarto com uma janela para o jardim e outra para o pátio coberta por espessa relva. E, neste como nos outros quartos, guarneciam as paredes várias estantes carregadas de livros. — Antes queria ficar na cozinha. Falava assim porque lhe parecia ver em Nicolau o receio de qualquer coisa. Ele dissuadiu-a de tal propósito, mas com uns modos de constrangimento, e logo que ela renunciou a ir habitar na cozinha, tornou a mostrar-se satisfeito. Reinava em toda a casa particular atmosfera: era agradável respirar ali, mas as vozes instintivamente faziam-se menos ruidosas; não se sentia o desejo de falar alto, nem de perturbar a beatífica meditação das personagens que do alto das suas molduras olhavam concentradamente. — Estas plantas precisam de ser regadas — disse ela depois de tatear a terra dos vasos. — Sim, sim — concordou o dono da casa, um tanto confuso. — Bem vê, gosto muito de flores, mas não tenho tempo para tratar delas. Notava Pelagueia que, mesmo em sua casa, bastante confortável aliás, Nicolau movia-se com prudência, sem fazer bulha, como que estranho e a mil léguas de tudo o que o cercava. Ia pôr a cara mesmo em cima do que queria ver; compunha os óculos com os dedos afusados da mão direita, assestando, por assim dizer, uma interrogação muda, a cada objeto que considerava. Dir-se-ia que fizera a viagem com a sua hóspede e que tudo naquela casa lhe era desconhecido. Então, ao vê-lo assim distraído, Pelagueia entrou a sentir-se inteiramente à vontade na sua nova habitação. Precedida de Nicolau, percorria a casa, notando de memória o lugar de cada objeto e interrogando o seu amigo sobre os seus hábitos de vida, ao que este dava respostas embaraçadas, como alguém que tivesse a consciência de não proceder como deveria, mas que não tivesse outro expediente a tomar. Regadas as plantas e reunidas em um só monte as músicas esparsas sobre o piano, deu com o samovar. — Tem de ser limpo — observou. Nicolau passou um dos dedos pelo metal embaciado pela sujidade e, pondo-o mesmo diante do nariz, observou-o com atenção. Isto fê-la rir com gosto. Quando se encontrou na cama, e depois de ter recordado as peripécias de tal dia, Pelagueia deitou a cabeça fora da roupa e pôs-se a olhar em volta. Era a primeira vez na sua vida que se via em casa de um estranho. Não se sentia perturbada com esta ideia. Solicitamente, pensou no seu hospedeiro; a si própria prometeu amenizar-lhe a existência com um pouco de carinhosa afeição. Impressionavam-na a timidez, o feitio desjeitoso e ridículo de Nicolau, aexpressão a um tempo ingénua e séria dos seus olhos claros. E logo o pensamento lhe voou para o filho; reviveu mentalmente os episódios do dia primeiro de maio. Esta lembrança causava-lhe uma dor particular, como particular fora aquele dia: era um sofrimento que não abatia a cabeça para o solo como a pancada dum malho, mas que torturava o coração com mil picadas e excitava surda cólera, fazendo altear-se o dorso corcovado da velha. — Como é triste ter filhos para os ver partir por esse mundo fora!... — pensava. E apurava o ouvido, escutando os ruídos, desconhecidos para ela, da vida noturna da cidade, que lhe chegavam amortecidos e atenuados pela janela aberta, por entre as folhagens do jardim, vindos de longe, a morrerem suavemente dentro do quarto. Pela manhã, cedo, procedeu à limpeza do samovar e acendeu-lhe o lume; guardou toda a loiça sem fazer barulho; depois, foi sentar-se na cozinha e esperou que o seu hospedeiro acordasse. Houve um ruído de tosse e apareceu Nicolau com os óculos na mão. Tendo correspondido aos bons dias que este lhe dirigiu, Pelagueia levou o samovar para a casa de jantar, enquanto Nicolau se lavava, espalhando a água pelo sobrado, deixando cair a todo o momento o sabonete, a escova, resmungando de contínuo contra si próprio. Ao almoço, Nicolau participou-lhe: — É bem triste a minha ocupação na administração da província: emprego- me em observar como é que a nossa gente do campo se arruína... E repetiu com um sorriso contrafeito: — Sim, observo, é o verdadeiro termo. Essa pobre gente morre de fome, ainda novos, lá vão para a cova, roídos pela miséria; as crianças nascem fracas e enfezadas, caem aos centos, como as moscas, quando chega o inverno... Sabemos tudo isso perfeitamente... conhecemos as causas dessa calamidade e afinal, depois de as termos analisado, recebemos o nosso ordenado... e ficamos por aqui. — Mas o senhor o que é? — perguntou Pelagueia. — Foi estudante? — Nada; era mestre-escola rural... Meu pai é diretor duma fábrica em Viatka; e eu fiz-me professor. Mais tarde, por ter distribuído uns livros pelos habitantes do lugar, atiraram comigo para uma enxovia. Depois, fui empregado de livraria Ali, parece que também cometi qualquer imprudência, porque fui outra vez preso: então mandaram-me para a província de Arkangel... Por lá tive também os meus desaguisados com o governo local e fui recambiado lá para as margens do mar Branco, para um lugarejo onde vivi cinco anos... E dizendo isto, a voz ressoava-lhe calma e suave na tranquilidade daquele quarto claro, inundado de sol.Frequentes vezes tinha a sua interlocutora ouvido histórias do género daquela; mas nunca pudera compreender porque era que quem as contava o fazia com tal placidez, sem que nunca formulasse, por tantos sofrimentos, uma acusação contra ninguém, como se aquilo devesse fatalmente acontecer a todos... — Sabe que chega hoje minha irmã — anunciou ele. — É casada? — Viúva. O marido foi exilado para a Sibéria. De lá conseguiu fugir, mas no caminho apanhou um resfriamento e morreu no estrangeiro, há de haver dois anos. — Sua irmã é mais nova do que o senhor? — Não, tem mais seis anos do que eu... Devo-lhe muitos favores... Há de ouvi-la tocar naquele piano, que é mesmo dela... de mais, há aqui muita coisa que lhe pertence... Os livros, esses, são meus... — E onde mora? — Em toda a parte! — respondeu ele, sorrindo. — Onde quer que seja precisa uma criatura decidida, lá a encontrarão... — Então também trabalha pela nossa causa? — Está claro! Dito isto, saiu em direção à sua repartição e a velha ficou-se a pensar naquela causa comum que de dia para dia tornava os homens tão frios e obstinados. Parecia-lhe estar em frente de altíssima montanha, em plena escuridão. Por volta do meio-dia veio uma senhora alta e elegante, vestida de preto. Aberta a porta, a recém-chegada atirou para o chão uma malinha amarela e tomou com vivacidade uma das mãos de Pelagueia, interrogando: — A senhora é a mãe do Pavel Vlassov, não é? — Sou eu, sim, senhora! — declarou Pelagueia, constrangida pela elegância da dama. — Pois a senhora é tal qual eu a tinha imaginado! Meu irmão mandou-me dizer que vinha viver para casa dele! Somos amigos velhos, seu filho e eu... Falava-me tanto de si! A voz era baça; exprimia-se com lentidão, mas tinha gestos rápidos e sacudidos. Brilhava-lhe nos grandes olhos cinzentos um franco sorriso de mocidade. Algumas rugazinhas delicadas sulcavam-lhe já as fontes, e por cima das orelhas bem feitas ondeava um ou outro cabelo branco, como prata. — Venho com fome! — declarou. — Não desgostava de tomar uma chávena de café... — Vou preparar-lho imediatamente — disse a outra; e, ao tirar uma cafeteira do armário, inquiriu em voz baixa: — Então sempre é certo que o Pavel lhefalava de mim? — Com certeza, e até muitas vezes! E a irmã de Nicolau tirou da algibeira uma carteirinha, tomou de um cigarro e acendeu-o. Percorrendo o quarto a grandes passadas, prosseguiu: — Está em cuidados por causa dele? Pelagueia sorria, fitando a chama azulada da lâmpada de espírito de vinho, a crepitar sob a cafeteira. O constrangimento de havia pouco desaparecera na sinceridade da sua satisfação. «Fala então muito em mim, o meu filho!» pensava. E prosseguiu: — Pergunta-me se estou em cuidado?... Com certeza, é bem triste o que se passa... Mas antigamente era pior ainda... Agora, como sei que ele não está só... Fixou o olhar no rosto da sua nova conhecida. — Como se chama, minha senhora? — perguntou. — Sofia. Passou a examiná-la melhor. Havia naquela mulher o que quer que fosse de audácia, demasiada confiança em si própria e excessiva precipitação. O seu falar era por demais imperioso. — O que é importante é que os companheiros não vão ficar muito tempo na cadeia, e que sejam julgados depressa. Quando o Pavel estiver na Sibéria, nós o faremos fugir... Ninguém pode passar sem ele, aqui... Sofia procurava com a vista onde deitar a ponta do cigarro; por fim enterrou- a num dos vasos de flores. — Olhe que assim a planta morre! — observou a velha maquinalmente. — Queira perdoar! — disse Sofia. — É isso o que o Nicolau me está sempre a repetir... E retirando do vaso a ponta de cigarro, atirou-a pela janela. — Sou eu que lhe peço desculpa. Falei sem refletir. Não é a mim que compete repreendê-la. — E porque não?... Se eu sou uma estouvada! — redarguiu Sofia serenamente e com um encolher de ombros. — O café está pronto? Muito obrigada! Então, só uma chávena? Não se serve? E, colocando-lhe as mãos nos ombros, puxou-a para si, fitou-a e perguntou- lhe em tom de admirada: — Estará por acaso a fazer cerimónia? A outra respondeu com um sorriso: — Ainda ontem cheguei aqui, e já hoje me parece que estou em minha casae que conheço a senhora há muitos anos... Nada receio; digo o que me vem à cabeça; faço observações... — E está muito bem! — exclamou Sofia com entusiasmo. — Nem sei onde tenho a cabeça! Nem já me conheço! — continuou Pelagueia. — Antigamente, a gente estudava as pessoas por dentro e por fora primeiro que lhes falasse com o coração nas mãos; agora, não, parece que nada se receia, dizem-se de repente coisas que dantes nem mesmo nos atrevíamos a pensar... e que coisas! Sofia acendeu outro cigarro; pousara o olhar cinzento na sua interlocutora, cariciosamente. — Disse há pouco que se há de arranjar a fuga do Pavel... Mas como vai ele viver depois? Era esta pergunta que importunava Pelagueia e que conseguira enfim formular. — É coisa fácil! — respondeu Sofia, servindo-se outra vez de café. — Há de viver como vive grande número de evadidos... Olhe, agora acabo eu de ir buscar um deles, que acompanhei até ao estrangeiro. É também um homem valioso; é operário no sul; foi condenado a cinco anos de degredo, mas só cumpriu três anos e meio. É por este motivo que me vê tão bem vestida. Julgava que era o meu trajo habitual? Não; detesto os farrapos e os enfeites... A humanidade é de origem humilde; deve trajar com humildade, — vestuário bem feito mas simples... Pelagueia, abanando a cabeça, disse em voz baixa: — Ah! Esse primeiro de maio é que me pôs as ideias em confusão! Não me sinto bem; chega-me a parecer que vou por duas estradas, ao mesmo tempo... tão depressa julgo que compreendo tudo, tão depressa me vejo cercada de nevoeiros... A senhora, por exemplo... Vejo que é uma senhora fina... e a senhora também trabalha pela nossa causa... conhece o Pavel... e diz que o tem em grande conta... Não sei como agradecer-lhe... — Não, os agradecimentos são para si — disse Sofia, rindo. — Para mim?! Não fui eu que lhe ensinei essas coisas todas! — respondeu a mãe com um suspiro. — Dizia-lhe eu então — continuou: — umas vezes, tudo isto me parece simples, outras, nem essa mesma simplicidade eu posso compreender... Assim, agora, encontro-me com o espírito sossegado, daqui a instantes, já sinto medo por me ver tão sossegada. Toda a minha vida tenho passado em meio de inquietações... e agora, que há motivo para receios, já quase não sinto medo... Porque é isto? Não sei!... Pensativamente, Sofia respondeu: — Há de vir um dia em que tudo compreenderá!... Parece-me tempo deabandonar todos estes esplendores de vestuário... Colocou a ponta do cigarro no pires, e sacudindo a cabeça, fez rolar sobre os ombros, em madeixas espessas, os doirados cabelos. Depois saiu... A outra seguiu-a com a vista, suspirou, olhou em torno e começou a arrumar a loiça, com a cabeça vazia de ideias, prostrada por uma sonolência que a amodorrava. III Pelas quatro da tarde, Nicolau estava de volta. Ao jantar, Sofia contou, rindo, o seu encontro com o forçado evadido; falou do terror desse homem, sempre a ver espiões em todos os cantos, e dos modos esquisitos do evadido... No tom de voz em que falava alguma coisa fazia lembrar à velha Pelagueia a fanfarronada dum operário que terminou uma tarefa difícil e que dela se gaba. Vestia agora Sofia um roupão cinzento, leve e adejante que lhe caía dos ombros até aos pés em pregas harmoniosas, vaporoso e simples. Este novo trajo fazia-a parecer mais alta, ao passo que o olhar se lhe anuviara e os movimentos se lhe tornavam mais serenos. — É preciso que trates doutro negócio, Sofia! — disse Nicolau, terminado o jantar. — Como sabes, há ideia de editar um jornal para a gente dos campos... mas, graças às últimas prisões efetuadas, os laços que nos uniam a esses camponeses, quebraram-se. Só Pelagueia sabe como poderemos reaver o homem que se encarrega da distribuição do jornal... Parte com ela... o mais cedo que possas... — Está bem — disse Sofia, recomeçando a fumar. — Está combinado, mãezinha? — Porque não? Pois, vamos! — E é longe? — Oitenta quilómetros, pouco mais ou menos. — Otimamente!... Agora vou tocar um bocado de piano... Está disposta para um pouco de música? — Nada me pergunte, faça de conta que não estou aqui — respondeu ela. E foi sentar-se para um canto do canapé coberto de uma capa de linho. Notava ela que os dois irmãos, sem parecerem ligar-lhe importância, a intrometiam todavia, e amiúde, na conversação. — Ouve isto, Nicolau; é de Grieg. Trouxe hoje a música. Fecha a janela! Abriu a partitura e acariciou as teclas de mansinho, com a mão esquerda. As cordas entraram a vibrar em acordes indolentes e pesados. Houve primeiro um profundo suspiro, depois outra nota veio juntar-se às primeiras, numa forte e tremente amplidão de som. A mão direita entrou então em ressonâncias claras, em gritos parecidos com os de uma ave assustada, balanceou-se depois, em cadência, imitando o palpitar das asas no fundo sombrio das notas graves, que cantavam, harmoniosas e compassadas, quais vagas batidas pela tempestade. Em resposta à canção, vinham logo caudais de acordes soturnos, chorando com dor, sufocando queixumes, implorações, gemidos, tudo fundido num ritmo de angústia. Por vezes, como num impulso de desespero, a melodia soluçava, desfalecida, mas logo recaía, rastejando, hesitante, sob atorrente espessa e cascadeante das notas cavas, e afogava-se, sumia-se, para de novo reaparecer por entre o ribombar igual e monótono; tomava alento, então vibrava e dissolvia-se por fim num poderoso martelar de notas húmidas que toda a salpicavam, e ficava a suspirar sem cansaço, com a mesma força e a mesma resignação... Ao princípio, a música não impressionou Pelagueia; não a compreendia; era para ela como um caos de sonoridades. O ouvido não lhe permitia distinguir a melodia na palpitação complexa daquele aluvião de notas. Meio sonolenta, fitava Nicolau, sentado no outro extremo do canapé, com as pernas dobradas por debaixo do corpo; considerava também o severo perfil de Sofia, de cabeça inclinada, sob o velo espesso dos seus cabelos de oiro. Ia pôr-se o Sol. Um raio trémulo nimbou primeiro a cabeça, o ombro da pianista; depois, deslizando para o teclado, brincou-lhe entre os dedos. Toda a sala estava cheia daquela melodia, e o coração da mãe despertava enfim, sem que ela mesma o percebesse. Sucediam-se, entretanto, três notas vibrantes como a voz de Fédia Mazine, regularmente e sustentando-se mutuamente à mesma altura, tais três peixes de prata flutuando num regato, cintilando por entre a torrente dos sons... De vez em quando, outra nota mais vinha juntar-se às primeiras, e, todas ao mesmo tempo, entravam a cantar uma canção ingénua, triste e acalentadora. E Pelagueia começava a poder segui-las, esperando que voltassem, não escutando outra coisa, abstraindo-as do caos inquietador da harmonia geral, que pouco a pouco ia deixando de ouvir... E subitamente, das negruras remotas do seu passado, veio-lhe a recordação duma humilhação esquecida havia muito, mas que ressuscitava agora com nitidez cruel. De uma vez, o marido voltara-lhe para casa tardíssimo e completamente embriagado. Puxara-a pelo braço, atirara-a da cama e enchera-a de pontapés, regougando: — Vai-te daqui, canalha, que não te posso aturar!... Vai-te! Para se esquivar aos maus tratos, tomara precipitadamente nos braços o filho, que então tinha dois anos, e, firmando-se nos joelhos, protegia-se com o corpinho do inocente, como se fosse um escudo. O pequeno chorava, barafustava, com medo, nu, e quentinho do berço. — Vai-te daqui! — rugia Mikhail. Ela saltara da cama, descalça, correra à cozinha; então, atirando uma camisola para os ombros e embrulhando a criança num xaile, sem uma palavra, sem um queixume nem uma exortação, com os pés no lajedo, saíra para a rua. Era em maio, a noite ia fresca; a frígida terra da calçada colava-se-lhe aos pés, penetrando-a toda, regelando-a.A criança chorava sempre e debatia-se. Desnudara o seio, conchegou a si o pequeno; e, instigada pelo medo, lá se foi pelas ruas escuras, cantando baixinho para adormecer o filho. Ia despontar o dia; Pelagueia toda se envergonhava com a ideia de ser encontrada naquele estado. Desceu até à margem do pântano, sentou-se no chão debaixo de compacto bosque de álamos... E para ali esteve muito tempo, disfarçada na treva, com os olhos esgazeados fitos na escuridão, a cantar timidamente para embalar o filho e o coração ultrajado. Súbito, uma ave negra, silenciosa, esvoaçara-lhe por sobre a cabeça e sulcara o céu, acordando- a. E a tremer de frio, erguera-se e lá voltara para casa, a arrostar com o seu habitual terror das sevícias e das injúrias incessantes... Pela última vez, ecoou um acorde sonoro, mas de indiferença e frieza, que num suspiro se imobilizou no ambiente. Voltou-se Sofia e a meia voz perguntou ao irmão: — Gostas? — Muito! — respondeu, estremecendo como se saísse dum sonho; — muito!... Os dedos de Sofia desfiaram então um harpejo suave e harmonioso. No íntimo do seu peito, Pelagueia escutava ainda o eco débil e tremente das suas recordações. O seu desejo era que a música prosseguisse. E um pensamento germinava nela: — Ora aqui está uma gente que vive sossegada... o irmão, a irmã... muito amigos... Entretêm-se com a música... Não dizem palavradas, não bebem aguardente, não questionam por qualquer futilidade... nem pensam sequer em ofender-se um ao outro, como se faz entre toda a gente de baixa extração... Sofia, entretanto, fumava um cigarro. Fumava muito, quase sem descanso. — Era este o trecho favorito do pobre Kostia! — disse, aspirando com força uma fumaça, e assentou de novo a mão, num débil acorde triste. — Como eu gostava de lho tocar! Era tão inteligente! Nada havia que não compreendesse... O espírito dele era acessível a tudo. — É do marido que fala — pensou a hóspede. E sorriu. — Quanta felicidade ele me trouxe! — continuou Sofia em voz baixa, ao passo que acompanhava os seus pensamentos com leves acordes repetidos. — Como ele sabia viver bem!... Sempre alegre, de uma alegria infantil, cheia de vida, que todo o iluminava... — Infantil! — repetiu a mãe consigo mesma. — É verdade — disse Nicolau, revolvendo a barbicha, — uma alma de iluminado! Sofia atirou fora o cigarro ainda aceso, voltou-se para Pelagueia, perguntou:— Esta bulha não a incomoda? — Já lhe disse que não se importe comigo — respondeu ela com um ligeiro despeito que não pôde disfarçar. — Eu nada percebo disso... Estou aqui quieta, a escutar e a pensar... — Não, senhora, é preciso que compreenda! — replicou Sofia. — Uma mulher, principalmente quando está triste, não pode deixar de compreender a música... E pulsou as teclas com força. Ressoou um grito violento, como se a alguém acabassem de dar uma destas notícias terríveis, das que ferem em pleno coração e arrancam um dolorido queixume. Entraram então a vibrar umas vozes frescas que, logo, horrorizadas e desconcertadas fugiram velozmente, não se sabia para onde; de novo, ecoou uma outra voz sonora e irritada, abafando todo o conjunto... Era com certeza uma desgraça, mas desgraça que incitava cóleras, não gemidos. Depois outra voz enérgica mas reconfortante entrou a entoar uma canção bonita e simples cheia de persuasão, de incitamento. Surdamente, em tom de melindre, as vozes dos graves murmuravam... Sofia tocou por muito tempo ainda. Pelagueia sentia-se perturbada. Todo o seu desejo era perguntar o que significava tal música, que assim fazia germinar nela imagens indistintas, sentimentos, pensamentos mutáveis sem cessar. O pesar e a angústia cediam o lugar perante as cintilações duma serena alegria; dir-se-ia que um bando de invisíveis passarinhos remoinhasse pela sala, acariciando as almas com o perpassar das delicadas asas, contando gravemente alguma coisa que provocasse instintivamente o curso do pensamento com palavras incompreensíveis, acalentando os corações com esperanças vagas, enchendo-os de força e de vigor. E Pelagueia sentia o ardente desejo de dizer o que quer que fosse meigo aos seus companheiros. Sorria ternamente, inebriada por aquela música. Procurou com a vista o que poderia fazer; ergueu-se, e nos bicos dos pés, foi para a cozinha dispor o samovar. Mas o desejo de se tornar útil não se lhe extinguiu, continuava a pulsar-lhe no coração com obstinada regularidade; serviu depois o chá com um sorriso de embaraço e de comoção, com a alma banhada em tépidos eflúvios de ternura que ela partilhava por igual entre si e os seus companheiros. — Nós cá, gente do povo — explicou, — sentimos tudo, mas é-nos difícil exprimi-lo, não podemos formar senão ideias incertas; e envergonhamo-nos de não podermos dizer o que se sente. E quantas vezes, para falar com consciência, a gente não se zanga com as próprias ideias e com aqueles que no-las sugerem! Entramos a irritar-nos e afugentamo-las! Em que agitações se passa esta vida! É ela que por todos os lados nos assalta e nos magoa. Era tão bom descansar!... Mas os pensamentos não deixam à alma um só momento de repouso e ordenam-lheque veja, que oiça. Nicolau escutava-a, com aprovações de cabeça; limpava os óculos com movimentos sacudidos; Sofia encarava fixamente aquela mulher, esquecida do cigarro, que se apagara. Continuava sentada ao piano, e de vez em quando afagava o teclado. Acordes muito brandos acompanhavam assim as considerações da anciã, a qual se deu pressa em revestir os seus pensamentos íntimos com palavras da mais simples sinceridade. — Agora, posso falar um pouco de mim própria e dos meus... porque já compreendo a vida, e comecei a conhecê-la quando pude comparar. Dantes, não tinha pontos de comparação. Na nossa classe, todos levam vida igual. Hoje, que vejo como vivem os outros, lembro-me de como eu vivi e custa-me muito o recordá-lo... Enfim, é impossível voltar atrás; e mesmo quando o pudéssemos fazer, não encontraríamos uma nova mocidade... Baixou a voz; prosseguiu: — Talvez eu esteja dizendo coisas insensatas ou néscias, pois que o senhor e sua irmã devem conhecer tudo isto... mas vejam que é de mim que estou falando e que falo a quem teve a bondade de me chamar para o seu lado. Tremiam-lhe na voz lágrimas de grata felicidade; fitou-os a ambos com um olhar muito risonho e continuou: — Queria abrir-lhes a minha alma para que vissem todo o bem que lhes quero. — Mas nós bem vemos! — disse Nicolau com bondade. — E sentimo-nos felizes por tê-la na nossa companhia. — Sabem o que isto me parece? — interrogou ela, sempre com voz sumida, risonha, — parece que foi um tesoiro que eu achei, que estou rica, que posso presentear toda a gente... Isto é talvez um efeito da minha tolice... — Não diga tal! — interrompeu com gravidade Sofia. Não era para acalmar de pronto aquela sede de expansão; continuou portanto Pelagueia a falar-lhes de tudo o que para ela era novo e lhe parecia de inapreciável importância. Contou-lhes a sua misérrima vida cheia de humilhações e resignado sofrer; por vezes, interrompia-se; julgava ter-se afastado de si mesma e estar falando de si como o faria de qualquer outra... Sem rancor, em termos correntios e nos lábios sorriso de piedade, desenrolou em presença de Nicolau e da irmã a monótona e lúgubre história dos seus tristes dias, enumerado os maus tratos infligidos pelo marido, intimamente admirada, ela própria, da futilidade dos pretextos que os provocavam, admirada por não ter sabido esquivar-se-lhes... Atentos e silenciosos, Nicolau e Sofia escutavam-na; sentiam-se esmagados pela significação profunda daquela história, daquele ente humano tratado comoum animal e que passara tanto tempo sem sentir a injustiça da sua condição, sem um murmúrio. Eram milhares de vidas a falar pela boca daquela mulher. Tudo nesta existência era banal e indiferente, mas havia pelo mundo inumerável quantidade de criaturas avergadas àquele modo de vida... E, avantajando-se mais e mais nos seus raciocínios, aquela história assumia as proporções dum símbolo... Nicolau, com os cotovelos sobre a mesa, a cabeça entre as mãos, quedava-se imóvel, considerando a sua hóspede por detrás do vidro dos óculos, com os olhos piscando de atenção. Sofia, reclinada no espaldar da cadeira, sentia-se estremecer, murmurava de quando em quando o que quer que fosse, abanando a cabeça negativamente. Deixara de fumar; o seu rosto parecia agora mais magro ainda, e mais pálido. — Um dia — começou ela, em voz baixa, — senti-me muito infeliz; parecia- me que toda a minha vida nada mais era do que um delírio de febre. Estava eu então no desterro, numa miserável povoação da província, onde nada tinha a fazer, ninguém em quem pensar, a não ser em mim própria... Para ocupar este ócio, pus-me a fazer a conta das minhas infelicidades, recordando-as todas: ficara de mal com meu pai, a quem estimava, fora expulsa do colégio por ler livros proibidos; em seguida, fora a prisão, a traição dum companheiro a quem muito queria, a captura de meu marido, outra vez a prisão e o degredo, a morte dele... E então parecia-me que a mais desgraçada criatura de toda a terra era eu... Mas todos os meus males justapostos e decuplicados, não chegam a valer um mês da sua vida, pobre mulher... não! Essa tortura de todos os dias durante anos e anos... Onde vão os pobres buscar essa força contra o sofrimento? — Acabam por se habituar! — respondeu ela, suspirando. — E julgava eu conhecer o mundo! — disse Nicolau, pensativo. — E afinal, quando não se trata só de impressões fragmentadas, quando não é já um livro que nos fala, mas uma criatura em pessoa, como é horrível! E os pormenores são também horrorosos, os próprios nadas, cada um dos segundos que formam um ano inteiro!... E a conversa prosseguia em voz baixinha. Mergulhada nas suas recordações, Pelagueia extraía do crepúsculo sombrio do seu passado todas as injúrias mesquinhas e habituais; ia compondo negro quadro de mudo horror imenso, em que soçobrava a sua juventude de mulher. De repente, exclamou: — Ai, e eu aqui a palrar!... São horas de nos irmos deitar! É impossível contar tudo! Nicolau inclinou-se diante dela mais do que costumava e apertou-lhe com mais força a mão. Sofia acompanhou-a à porta do quarto, e ali, parando, murmurou: — Durma bem!... Boa noite! Era caloroso o seu falar; envolvia num meigo olhar de carícia o rosto dePelagueia... Esta agarrou-lhe em uma das mãos e, apertando-a nas suas, respondeu: — Quanto lhes agradeço! IV Quatro dias depois, apresentavam-se a Nicolau as duas mulheres pobremente vestidas de saias de chita já usadas, de cajados na mão e alforge ao ombro. Este trajo tornava Sofia mais baixa e dava-lhe à fisionomia uma expressão de austeridade. — Parece que passas a vida a jornadear de convento em convento! — disse- lhe o irmão. E ao despedir-se dela, apertou-lhe a mão com energia. Mais uma vez, notou a velha esta simplicidade e esta calma. Decididamente, não eram pródigos de beijos nem de demonstrações de estima, e contudo, mostravam-se tão sinceros um para o outro, tão solícitos para com os estranhos! Porque nos meios onde Pelagueia vivera, todos se beijavam muito, todos se animavam com bonitas palavras, o que não impedia que se mordessem como cães danados. Atravessaram as viandantes a cidade, alcançaram o campo e tomaram a vasta estrada bem calcetada, orlada de velhas bétulas. — Não estará cansada? — inquiriu a mais idosa. — Julga que não estou costumada a andar? Pois engana-se... Jovialmente, por entre risadinhas, como se tratasse de travessuras de criança, Sofia entrou de contar os seus feitos de revolucionária. Vivera já com um nome suposto, servindo-se para isso dum passaporte falsificado; disfarçara-se para fugir aos espiões, transportara para diversas cidades muitos quintais de brochuras proibidas. Tinha arranjado a fuga a muitos companheiros exilados, acompanhara-os ao estrangeiro. De uma vez, montara na sua própria casa uma imprensa clandestina; e quando os gendarmes, sob denúncia do delito, tinham vindo proceder às buscas, disfarçara-se ela de criada, minutos antes deles chegarem e saíra, cruzando-se com os inquisidores já no limiar do prédio. Sem uma capa, com uma simples mantilha pela cabeça e de almotolia de petróleo em punho, percorrera de outra vez a cidade de extremo a extremo, sob um frio rigoroso, em pleno inverno. Doutra ocasião, porque se tivesse dirigido a casa de uns correligionários, numa cidade distante, ia a subir a escada quando percebeu que havia lá polícia, varejando. Era tarde para sair do prédio; bateu portanto com o maior atrevimento, no andar de baixo. Entrou em casa de gente que não conhecia, de mala na mão, e tratou de pôr a claro o acontecido. — Os senhores podem denunciar-me se quiserem, mas não os julgo capazes disso — declarara ela convictamente. Atrapalhadíssimos, não fecharam os olhos toda aquela noite, julgando a todo o momento que lhes vinham bater à porta. Contudo, não a denunciaram e, chegada a manhã, mangaram, como ela, com a polícia. Também lhe acontecera vestir-se de irmã da caridade e fazer viagem no mesmo compartimento e no mesmoassento do vagão em que ia um espião encarregado de lhe seguir a pista, o qual, para fazer valer a sua esperteza, se lhe pusera a contar como era que procedia em tal diligência. Estava certo o homem de que Sofia ia naquele comboio, em segunda classe: e a cada nova paragem, descia e comentava regressando para o pé da pseudo-religiosa: — Não a vejo... Provavelmente vai a dormir. É que essa gente também cansa... Levam uma vida tão dura... tal qual a nossa! A outra ria com estas histórias, olhava para Sofia com afeto. Alta e magra, a jovem senhora caminhava com passo leve mas firme; tinha os pés fortes e bem feitos. Na maneira de andar, no falar, no próprio timbre da voz, decidida se bem que um pouco baça, em toda a sua figura esbelta, transparecia uma como boa saúde moral, uma audácia alegre, um desejo de ar e de espaço, e os seus olhares para tudo se dirigiam com uma expressão de juvenil contentamento. — Olhe aquele pinheiro tão bonito! — exclamou, mostrando uma árvore à sua companheira, que parou para vê-la. Mas o pinheiro, afinal, não era nem maior nem mais folhudo que os outros. — É verdade, bonita árvore! — repetiu, risonha. — Olhe uma cotovia! E os olhos pardos de Sofia brilharam de satisfação. Às vezes, com movimentos flexuosos, baixava-se, apanhava uma flor e acariciava-lhe amorosamente as pétalas trémulas com o ligeiro contacto dos seus dedos afusados e ágeis. E trauteava canções meigas. Pelo caminho, cruzavam-se com peões ou campónios empoleirados nas suas carroçadas, que lhes diziam: — A paz seja convosco! Brilhava um lindo Sol primaveril; todo o vasto azul resplandecia; aos dois lados da estrada, estendiam-se densas florestas de madeiras resinosas, herdades de um verde muito vivo; cantavam pássaros, o ar tépido e perfumado acariciava brandamente as faces. Tudo contribuía para aproximar Pelagueia daquela mulher de alma e de olhos tão límpidos; e involuntariamente, chegava-se mais para ela, esforçando-se por igualar a sua andadura pela dela. Contudo, às vezes, destacava-se das frases de Sofia uma expressão demasiado viva, demasiado sonora, que a Pelagueia se afigurava supérflua. Então, era tomada de inquietação: — Estou vendo que não vai agradar ao Ribine... Mas um instante depois, Sofia voltava a falar com simplicidade, cordialmente, e ela de novo a olhava com ternura. — Como é nova ainda! — suspirou.— Ora! Olhe que já tenho trinta e dois! A outra riu. — Não é isso que quero dizer... À primeira vista parece ter mais idade... mas quando se repara nos seus olhos, quando a ouvimos falar, fica-se muito admirado, parece uma menina... A sua vida é desassossegada, penosa, cheia de perigos... e todavia, tem o coração alegre... — Não vejo em que a minha vida seja penosa, nem posso imaginar outra mais interessante e melhor do que esta... — E quem há de recompensá-la dos seus trabalhos? — Se já estamos recompensados! — respondeu Sofia, em tom que à outra pareceu denunciar fundo orgulho. — Arranjámos uma existência que nos satisfaz; que mais havemos de desejar? A mãe olhou para ela furtivamente e baixou a cabeça, repetindo a si mesma: «Não vai gostar nada dela, o Ribine...» Aspirando a plenos pulmões o ar tépido, as duas mulheres caminhavam em passo lento mas firme. A Pelagueia parecia-lhe que andava em romaria. Lembrava-lhe aquilo a sua meninice e a pura felicidade que a animava quando, nos dias de festa, partia da aldeia em direção a algum mosteiro, onde houvesse uma imagem milagrosa. De vez em quando, Sofia entoava com a sua voz novas canções em que se falava de amor e do Céu; outras vezes, punha-se de súbito a declamar estrofes célebres que celebravam os campos e as florestas, o Volga; e a outra escutava-a, prazenteira, meneando, sem dar por isso, a cabeça ao ritmo do verso, cuja melodia a enfeitiçava. Naquele coração, tudo era paz, carinho e doçura, como num velho jardinzinho, numa tarde de estio. V Ao terceiro dia, ao chegarem a uma aldeia, perguntou a mais velha das duas a um trabalhador do campo onde ficava a fábrica do alcatrão. E logo tiveram de descer por estreito atalho íngreme e agreste, qual escada, onde as velhas raízes formavam degraus. Avistaram dali uma clareirazinha circular atapetada de aparas de lenha e de carvão e onde, aqui e ali, havia poças de alcatrão. — Eis-nos chegadas! — disse a velha, olhando em volta com desconfiança. Junto a uma choça feita com estacas e algumas ramadas, jantavam quatro operários, em torno duma mesa feita com três tábuas em bruto estendidas sobre umas estacas cravadas no solo. Eram eles: Ribine, muito sujo, com a camisa aberta no peito, Jéfim e mais dois rapazes. Ribine foi o primeiro que avistou as duas mulheres; quedou-se à espera, em silêncio, formando pala com a mão, para abrigar os olhos. — Viva, irmão Mikhail! — gritou-lhe de longe Pelagueia. Levantou-se então e veio-lhes ao encontro, mas sem se apressar. Ao reconhecer quem lhe falava, deteve-se a acamar a barba. — Andamos em romaria! — disse ela, aproximando-se mais. — E fiz um rodeio para vir ver-te. Esta minha amiga veio comigo; chama-se Ana... Contente com o seu achado, olhou de soslaio para Sofia. Esta permaneceu séria e impassível. — Vivam lá — respondeu Ribine com um sorriso contrafeito. — Apertou-lhe a mão, cumprimentou Sofia e acrescentou: — É inútil mentir; não estamos na cidade; aqui não são precisas mentiras. Aqui só há gente séria, todos nos conhecemos uns aos outros. Jéfim, à mesa, onde continuava sentado, examinava com atenção as recém- vindas; segredou o que quer que fosse aos seus comensais. Ao aproximarem-se as duas, levantou-se, cumprimentou sem dizer uma palavra. Os outros dois deixaram-se ficar, como se não tivessem dado pelas viandantes. — Vive-se aqui como presidiários! — prosseguiu Ribine, batendo familiarmente no ombro da sua conhecida. — Ninguém vem ver-nos, o patrão não está na aldeia, a mulher dele lá está no hospital e eu sou agora aqui uma espécie de gerente... Sentem-se. Tomam chá? Ó Jéfim, vai buscar o leite! Vagarosamente, Jéfim encaminhou-se para a choupana, enquanto as duas se desembaraçavam dos alforges. Um dos camponeses, um grande latagão magro, levantara-se para as ajudar. O outro, atarracado e coberto de farrapos, acotovelado sobre a mesa, olhava pensativo para elas, coçando a cabeça e trauteando baixinho. Aromas sufocantes de alcatrão fresco casavam-se com o cheiro das folhagens apodrecidas, provocando tonturas.— Este chama-se Jacob — disse Ribine, apresentando o mais alto dos dois operários; — aquele é o Ignati... E então o teu filho? — Está na cadeia! — gemeu a mãe. — Outra vez! — exclamou Ribine. — Ao que parece deu-se bem por lá... Ignati deixara de cantarolar. Jacob tomou o cajado das mãos de Pelagueia. — Senta-te, tiazinha! — E a senhora sente-se também — disse Ribine, dirigindo-se a Sofia. Sem uma palavra, esta tomou assento em cima dum fardo e pôs-se a examinar Ribine. — E quando foi ele preso? — perguntou este; e acrescentou com um abanar de cabeça: — Não tens sorte nenhuma, Pelagueia! — Que importa! — Então, já te vais costumando? — Não, mas cheguei ao convencimento de que as coisas não podem ir de outra forma! — Ora aí está! — disse Ribine. — Conta, então... Jéfim trouxe uma infusa de leite; o outro tomou de sobre a mesa uma tigela, laviscou-a com um pouco de água e depois de a encher de leite, empurrou-a para o lugar de Sofia. Ia e vinha sem ruído, com precaução. Depois da mãe ter finalizado a sua curta narrativa, todos ficaram calados. Ignati, que continuava à mesa, fazia gravuras nas tábuas com as unhas. Jéfim encostava-se ao ombro de Ribine. Jacob, de braços cruzados no peito, baixava a cabeça. Sofia continuava a analisar as caras daqueles campónios. — Pois está visto! — declarou Ribine, arrastando muito as sílabas. — Decidiram-se a proceder às claras... — Eles que viessem para cá com uma fantochada dessas — declarou Jéfim, — que os mujiques dariam cabo deles!... — Disseste que o Pavel vai ser julgado? — perguntou Ribine. — Sim, é coisa decidida — respondeu a mãe. — E que pena pode ele apanhar... não sabes? — Ou as galés ou o degredo para a Sibéria, por toda a vida! — respondeu, baixando a voz. Os outros três operários fitaram-na simultaneamente. Ribine prosseguiu: — E quando ele se meteu nesse negócio, sabia o que o esperava? — Não sei... provavelmente. — Sim, sabia-o! — afirmou Sofia com decisão.Calaram-se todos e ficaram-se como estáticos, mergulhados num mesmo pensamento consolador. — Ora aí está! — continuou Ribine em tom de severa gravidade. — Também eu creio que o soubesse. É um homem sério; não se mete levianamente nessas coisas. Vejam lá companheiros. Sabia que o podiam espetar numa baioneta ou que lhe davam as honras dum presídio, e atirou-se para a frente ainda assim! Era preciso que se atirasse — atirou-se! E se lhe tivessem posto a própria mãe no caminho, passava-lhe por cima... não é isto Pelagueia? — Com certeza... — murmurou a mãe com estremecimento. E depois de ter circunvagado o olhar em torno, soltou do peito profundo suspiro. Sofia afagou-lhe com meiguice uma das mãos e teve para Ribine um olhar de descontentamento. — Aquilo é que é um homem? — declarou ele a meia voz, fixando os sombrios olhos nos companheiros. E novamente todos se quedaram silenciosos. Pendiam da atmosfera ténues réstias de sol, como fitas de oiro. Perto dali grasnava um corvo. Os olhares de Pelagueia vagueavam, impressionada com a lembrança de Pavel e de André. Pelo solo, na clareira exígua onde estavam, jaziam barricas escangalhadas que tinham servido a alcatrão, madeiros sem casca e com a fibra a desfiar-se; flutuavam ao vento as aparas, em longas fitas. Os carvalhos e as bétulas perfilavam-se em fila compacta; por todos os lados, ganhavam insensivelmente o espaço da clareira como para apagar, aniquilar todos aqueles destroços, toda aquela imundice que os ultrajava, e, aliados no seu silêncio, imóveis, projetavam no solo as suas sombras negras e trágicas. De súbito, Jacob afastou-se da árvore a que se encostava, deu um passo e logo parou para interrogar com voz forte e desabrida, abanando a cabeça: — E é contra gente dessa que nos vão mandar a combater, o Jéfim e eu? — Pois contra quem pensavas? — retorquiu Ribine em tom frio. — Andam a esganar-nos com as nossas próprias mãos... É o cúmulo! — Pois assim como assim, prefiro ser soldado! — declarou Jéfim com voz indecisa. — E quem te pega? — exclamou Ignati. — Pois vai! E, fitando Jéfim, acrescentou a rir: — Em todo o caso, quando me apontares a espingarda, aponta à cabeça, não me deixes estropiado... mata-me de vez!... — Já me disseste isso! — gritou Jéfim com desabrimento. — Escutem, companheiros! — prosseguiu Ribine; e ergueu o braço num gesto lento. — Olhem para esta mulher! — e apontava para Pelagueia. — O filho está perdido; provavelmente...— Porque dizes isso? — perguntou a mãe, angustiada. — Porque assim é preciso! Pois haviam os teus cabelos de embranquecer em vão e o teu coração de sofrer inutilmente?... Tu ainda não morreste, não é verdade?... Trouxeste livros? A mãe lançou-lhe furtivo olhar e confirmou após um silêncio: — Trago. — Ora ainda bem! — disse Ribine, dando uma palmada na mesa. — Percebi- o logo mal te vi. E para que terias tu vindo, a não ser para isso? Vejam lá vocês, o filho desapareceu-nos das fileiras, e aí temos a mãe no lugar dele! Ergueu-se e pôs-se a gritar com voz cava e gestos ameaçadores: — Essa canalha não sabe o que anda a semear por aí, às cegas! Hão de ver, quando nós estivermos mais fortes, quando entrarmos a ceifar nessas ervas malditas! Hão de ver! A estas palavras, toda se assustou Pelagueia; olhou para Ribine, achou-o muito mudado, muito magro; já não tinha a barba cuidada como dantes, mas emaranhada; distinguiam-se-lhe perfeitamente as saliências dos malares. No branco azulado dos olhos corriam-lhe laivos sanguíneos, como de quem anda mal dormido. O nariz afilara-se-lhe, mais cartilaginoso e adunco, qual bico de ave de rapina. Pelo cós da camisa, desabotoado, dantes sempre sujo de tintas e alcatrão, viam-se-lhe as clavículas mirradas e o denso velo do peito. Toda a pessoa deste homem respirava alguma coisa mais soturna e melancólica do que o fora até então. O brilho dos exaltados olhos iluminava-lhe o rosto sombreado por uma expressão de sofrimento e de rancor, que relampejava em purpúreos clarões. — No outro dia — continuou ele, — o governador do distrito manda-me chamar e pergunta-me: «Que foste tu dizer ao padre, grande garoto?» «E porque é que eu sou garoto? Ganho o meu sustento com o meu trabalho, não faço mal a ninguém», respondi-lhe eu. Pôs-se logo a berrar e deu-me um murro em cheio na cara... e mandou-me para o calaboiço por três dias. Ah! Assim é que vocês sabem falar ao povo? Está bem! Mas não esperem pelo perdão, excomungados! Se não for eu, outro há de lavar a injúria, em vocês ou nos filhos de vocês... lembrem-se bem! Andaram a lavrar no peito do povo com as garras de ferro da avidez e da cobiça e nele semearam a maldade... Pois seremos sem piedade, malditos! Aí tem! Espumava de furor; na voz tinha impetuosidades que amedrontavam Pelagueia. — E afinal que tinha eu dito ao padre? — prosseguiu mais calmo. — À saída duma reunião, estava ele na rua num grupo de campónios e dizia-lhes que os homens eram um rebanho e que precisavam sempre dum pastor... aí está! E eudisse-lhe por brincadeira: «Se fizessem a raposa chefe da floresta, penas havia de haver muitas, mas pássaros, nem um!» O padre olhou-me de revés e entrou a dizer que o povo devia sofrer, resignar-se e orar a Deus com mais frequência, para que ele lhe desse forças para tudo suportar. E eu respondi-lhe: «O povo reza muito; provavelmente Deus é que não tem tempo para escutá-lo. Se nem o ouve!» Ora aí está! Ele então perguntou-me quais eram as minhas orações. E eu respondi-lhe: «Não aprendi senão uma só na minha vida; é a do povo inteiro: Deus, ensina-me a trabalhar para os nossos senhores, a comer pedras, a escarrar sangue!» O padre não me deixou acabar... A senhora é da nobreza, ao que vejo? — perguntou bruscamente Ribine, interrompendo a narrativa e voltando-se para Sofia. — Porque julga isso? — disse ela com um sobressalto de surpresa. — Ora, porquê... — disse Ribine. — É sorte sua, nasceu assim, aí está! A senhora imagina que pode disfarçar o seu pecado de fidalguia só porque tapou a cabeça com um lenço de chita? O padre conhece-se bem, mesmo quando não traz coroa... Agora acaba a senhora de pôr o cotovelo na mesa, que estava molhada e a senhora fez uma careta... E olhe que tem as costas muito aprumadas para uma operária... Receando que ele ofendesse Sofia com aquela maneira de falar, aqueles ditos e aquela graça pesada, Pelagueia interveio com viveza e severamente: — É minha amiga esta senhora. É uma excelente mulher... Foi a trabalhar por nós e pela nossa causa que fez os cabelos brancos... Não sejas tão desabrido com ela... Ribine soltou um suspiro mal contido. — Então eu disse-lhe alguma coisa injuriosa? Sofia olhou para ele e perguntou secamente: — Tinha alguma coisa a comunicar-me? — Eu? Ah, sim! Aí tem: nós temos cá um homem que chegou há dias; é primo do Jacob, está doente, está tísico, mas é esperto e percebe muita coisa. Posso mandar chamá-lo? — Porque não? — retorquiu Sofia. Ribine fitou-a franzindo as pálpebras e ordenou em voz baixa: — Jéfim, vai a casa do homem... diz-lhe que venha cá à noite. Jéfim dirigiu-se à choupana, pôs o boné e sem uma palavra, sem mesmo olhar para quem estava, sumiu-se pelo bosque, a passo sossegado. Ribine meneou a cabeça e, apontando para ele, disse surdamente: — Sofre muito!... É teimoso... Dentro em pouco vai ser soldado... E o Jacob também... O Jacob diz que não pode, que não vai para o regimento. O Jéfimtambém não pode, mas diz que quer ir, custe o que custar... Teve uma ideia... Lembrou-se que poderá levar aos soldados pruridos de liberdade... Eu cá, a minha opinião é que não se pode arrombar uma parede dando-lhe com a cabeça. E eles, metem-lhes uma espingarda na mão e abalam por aí fora. Para onde vão? Não percebem que marcham contra si mesmos... Anda a sofrer, o Jéfim. E o Ignati ainda mais lhe revolve o punhal na ferida. Parece-me inútil... — Qual história! — replicou Ignati com indignação, sem fitar o seu contendor. — Lá no regimento se encarregam de o converter, e há de acabar por fazer fogo, como os outros! — Não, não creio! — replicou o outro, pensativo. — Mas, seja como for, mais vale evitar isso... A Rússia é grande... Como podem eles descobrir um homem? É preciso arranjar um passaporte e fugir de aldeia em aldeia. — São essas as minhas intenções! — declarou Ignati, batendo na perna com uma acha. — Uma vez que está resolvido combater-se, é preciso marchar sem hesitação. A conversa cessou. Voltavam pelo ar, atarefadas, as abelhas e as vespas, esmaltando o silêncio com os seus zunidos. Os passarinhos chilreavam; de longe, vinha uma canção numa toada que vagueava por sobre os campos. Depois de curto silêncio, prosseguiu Ribine: — É preciso trabalhar, companheiros... Ou talvez prefiram descansar... Lá dentro da choupana há camas a lastro. Ó Jacob, vai-lhes arranjar folhas bem secas... E tu, dá cá os livros, tiazinha! Onde estão? Sofia e Pelagueia abriram os alforges. Ribine inclinou-se a espreitar e disse, satisfeito: — Aí está... Mas que grande quantidade trouxeram! Ora venham ver! Há muito tempo que trabalha neste negócio, a senhora? — acrescentou, falando com Sofia. — Há doze anos. — Então, como se chama? — Chamo-me Ana Ivanovna. Porquê? — Cá por coisas. E já esteve presa provavelmente? — Já estive. — Bem vês! — disse Pelagueia, baixo e em tom de censura. — E tu que a trataste mal... Ficou calado um momento. Depois, tomando um pacote de livros, respondeu: — Não se zangue! Campónio e fidalgo são como o alcatrão e a água, não há maneira de os misturar, não se dão... — Não sou fidalga; sou uma criatura que pensa, que sofre e geme! —contestou Sofia. — É possível! — disse Ribine. — Vou esconder tudo isto. Ignati e Jacob aproximaram-se dele, de mãos estendidas. — Dá-nos alguns! — disse Ignati. — São todos iguais? — perguntou Ribine a Sofia. — Nem todos. Vem também um jornal... — Ah! Os três homens precipitaram-se para a cabana. — É exaltado, este rapaz! — observou Pelagueia, baixando a voz e seguindo- os com olhar pensativo. — É verdade — disse Sofia no mesmo tom. — Nunca vi uma cara como aquela... Dir-se-ia um mártir heroico!... Vamos lá também; estou curiosa por ver o efeito do jornal. — Mas não se zangue com ele... — suplicou brandamente a outra. — Que bom coração é o seu, Pelagueia! Ao ver surgir as duas mulheres à porta da choupana, Ignati levantou a cabeça e lançou-lhes rápido olhar; depois, enterrando os dedos pelos cabelos anelados, curvou-se de novo sobre o jornal, que desdobrara nos joelhos. Ribine, de pé, apresentava o periódico à luz duma réstia, que penetrava na choupana por uma greta do teto; ia deslocando pouco a pouco o jornal sob o feixe de luz, à medida que ia lendo e lia por boca pequena. Jacob, ajoelhado, firmava o peito de encontro à borda duma cama e lia também. Pelagueia viu que a Sofia não passava despercebido o entusiasmo dos três por aquelas palavras de verdade. O rosto iluminou-se-lhe num sorriso. Devagarinho, foi para um canto da choça e sentou-se. Sofia, em silêncio, passou-lhe o braço pelos ombros. — Tio Mikhail! Olhe que nos insultam, neste papel, a nós, camponeses! — proferiu Jacob a meia voz, sem se mexer. Ribine voltou-se para ele e disse, risonho: — É porque nos estimam. Aqueles que nos amam podem dizer-nos tudo o que quiserem sem que nos irritemos. Ignati respirou ruidosamente, ergueu a cabeça e pôs-se a rir; em seguida, fechou os olhos, dizendo: — Está aqui escrito: «O homem dos campos deixou de ser uma criatura humana.» E é bem verdade; já o não é! Perpassou pelo seu rosto ingénuo e franco uma expressão de aviltamento. — Este sábio das dúzias! — continuou, referindo-se ao articulista. — Euqueria ver-te na minha pele! Fizesses-te tu fino! Então é que se havia de ver o que tu eras! — Vou descansar um bocado — disse Pelagueia a Sofia. — Sinto-me um pouco fatigada e este cheiro do alcatrão faz-me dores de cabeça. Vem? — Ainda não. Pelagueia estendeu-se na cama e daí a pouco dormitava. Sofia, sentada à cabeceira, continuava observando os leitores, ao passo que ia enxotando com solicitude os zângãos e as vespas que vinham adejar em volta do rosto da companheira. Pelagueia, com os olhos meio cerrados, percebia-o e tais atenções impressionavam-na. Ribine aproximou-se, perguntou: — Está a dormir? — Está. Ele calou-se um pedaço, atentou no sereno rosto da anciã e com um suspiro prosseguiu baixinho: — É talvez esta a primeira que tenha seguido o filho pelo mesmo caminho!... A primeira! — Vamo-nos embora, não a incomodemos — propôs Sofia. — Temos de ir trabalhar. Eu preferia ficar a conversar consigo, mas é forçoso deixar isso para a noite. Vamos, camaradas! Saíram os três homens, deixando Sofia na choupana. Pelagueia pensava: — Deus seja louvado! Fizeram as pazes!... Entendem-se um com o outro!... E adormeceu sossegadamente, aspirando o ar perfumado da floresta. VI À noitinha, voltaram os quatro operários, satisfeitos por verem terminado o seu dia. Ao ruído das vozes, Pelagueia acordou, veio à porta da cabana, risonha, bocejando. — Vocês a trabalharem e eu a dormir como uma fidalga! — disse, fitando-os afetuosamente a todos. — Não faz mal, nós perdoamos-te — disse Ribine. Mostrava-se mais sossegado do que ao jantar; o cansaço dissipara o seu excesso de agitação. — Ignati! — ordenou. — Arranja a ceia. Cada um trata da casa, por sua vez. Hoje é ao Ignati que compete dar-nos de comer e de beber... Ora aí está! — De bom grado cedia hoje a minha vez a outro qualquer — declarou Ignati. E, enquanto procurava distinguir a conversa, começou a apanhar aparas, a fim de acender o lume. — As visitas são sempre interessantes para toda a gente! — confirmou Jéfim, sentando-se ao lado de Sofia. — Eu te ajudo, Ignati! — disse Jacob. Penetrou na choça e de lá trouxe um pão redondo. Partiu-o em fatias. — Chiu! — murmurou Jéfim, — oiço tossir... Ribine apurou o ouvido e disse: — É ele que chega. E, voltado para Sofia, explicou: — Vai ouvir uma testemunha. A minha vontade era poder levá-lo a essas cidades, pô-lo em exposição por essas praças, e o povo que fosse ouvi-lo... Diz sempre o mesmo, mas é digno de ser ouvido!... Silêncio e escuridão tornavam-se mais profundos; as vozes ecoavam com mais suavidade. Sofia e Pelagueia seguiam com o olhar os camponeses a moverem-se pesadamente, mas devagar, com singular prudência. Do bosque surgiu um homem corcovado, de alta estatura, caminhando apoiado com todo o seu peso a uma bengala. Ouvia-se-lhe o ruído da respiração rouca. — Aí vem o Saveli! — exclamou Jacob. — Aqui me têm! — disse o homem, parando, sacudido por um acesso de tosse. Vestia um sobretudo usado que lhe caía até aos pés; de sob o chapéu redondo e muito velho, saíam-lhe em madeixas ténues uns cabelos amarelentos e ásperos. Cobria-lhe o rosto ossudo e pálido uma barba loira; a boca aberta, os olhos comum brilho de febre, nas orbitas profundamente cavadas, como no fundo de sombrias cavernas. Apresentado a Sofia, perguntou: — Segundo parece, trouxe livros para o povo ler? — Sim, senhor. — Agradeço-lho... pelo povo. O povo não pode ainda compreender o livro da verdade... ainda não pode agradecer-lhe como merece; mas eu que o compreendi já, agradeço-lhe em nome do povo. Respirava com avidez, absorvendo o ar em pequenas golfadas repetidas. Falava a espaços. Os dedos descarnados das diáfanas mãos, perpassava-os pelo peito, tentando abotoar o sobretudo. — Pode ser-lhe doentio, para si, este passeio tão tarde, pela floresta... Há muita humidade e sufoca-se, ali! — fez notar Sofia. — Para mim já nada há salubre ou doentio! — respondeu, ofegante. — Só a morte será bem-vinda. Era doloroso ouvir falar aquele homem, tanto mais que toda a sua pessoa provocava dó, uma compaixão infinita mas improfícua. Agachou-se sobre uma barrica, dobrando os joelhos com precaução, como se receasse que se quebrassem; depois, enxugou a fronte, coberta de suor. Tinha os cabelos secos e sem viço. O lume começava a atear-se. Ao clarão das chamas tudo se deslocou; as sombras, lambidas pelas labaredas, fugiam assustadas pela floresta. Por cima do braseiro apareceu por instantes a cara redonda de Ignati, a soprar. Depois, apagado o lume, ficou persistente o cheiro do fumo, e o silêncio e as trevas apoderaram-se de novo da clareira, como se viessem apurar o ouvido para o falar rouco do doente. — Mas ainda posso ser útil ao povo... Sim, como o testemunho dum enorme crime! Olhem para mim! Tenho vinte e oito anos e ando a morrer... Há dez anos, levantava nos ombros, sem me custar, até duzentos quilos... Pensava eu então que com uma saúde daquelas, havia de levar setenta anos para chegar à cova, direito e sem tropeçar... E afinal vivi dez... e não posso ir mais longe. — Aí têm a canção deste homem! — disse Ribine com voz rancorosa. Reacendeu-se mais viva a fogueira; de novo as sombras debandaram, para se sumirem nas chamas, agitando-se em torno do braseiro numa dança silenciosa e hostil. Sob a mordedura do lume, os velhos troncos estralejavam e gemiam. A folhagem sussurrava em segredo, agitada por uma corrente de ar quente. Vivas e folgazãs, as línguas de fogo purpúreas e doiradas brincavam, abraçavam-se, erguiam-se, despedindo faíscas. Voou uma folha em brasa. No céu, as estrelassorriam para as centelhas, atraindo-as a si. — Não é só minha esta canção; há milhares de criaturas que também a cantam, mas só para si! E cantam-na só para si porque não compreendem que as suas miseráveis existências são uma lição salutar para o povo... Quantos seres minados ou estropiados pelo trabalho e pela cadeia, não morrem para aí de fome, sem um queixume!... É preciso gritar bem alto, companheiros, é preciso gritar! E Saveli entrou a tossir, todo curvado e trémulo. Jacob pôs na mesa uma caneca de kvass [4]e atirou para o lado um molho de cebolas, e disse ao enfermo: — Anda, Saveli, trouxe leite para ti. O outro abanou negativamente a cabeça; mas Jacob agarrou-o por debaixo dos braços e fê-lo sentar à mesa. — Oiçam — disse Sofia a Ribine, em voz baixa e em tom de censura, — para que o obrigaram a vir? Pode morrer dum momento para o outro. — É certo — replicou Ribine. — Mas mais vale morrer rodeado de amigos; ser-lhe-á menos doloroso do que na solidão. Tem sofrido muito na sua vida; pois que sofra ainda mais um pouco para servir de aviso aos homens... Que lhe pode fazer isso? Ali está! — Chega a parecer que se desinteressa dele com horror pelos seus sofrimentos — exclamou Sofia. Ribine lançou-lhe rápido olhar e respondeu com modos sombrios: — Só os fidalgos é que se recreiam com o espetáculo do Cristo a gemer na sua cruz; mas nós outros, nós queremos estudar os homens ao vivo e gostávamos que a senhora também aprendesse a conhecê-los... O enfermo retomou a palavra: — Destrói-se um homem com o trabalho, dá-se cabo dele com a prisão... e porquê? O nosso patrão — era na fábrica Nefedov que eu trabalhava à doida — o nosso patrão deu a uma cançonetista uma grande bacia de mãos e mais uma bacia de cama tudo de oiro... E foi em tal vaso que ficaram as nossas forças, as nossas vidas... as minhas e as de milhares doutros. Aí têm para que elas serviram! — O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus! — disse Jéfim, sorrindo — e aí está o emprego que lhe dão... não vai mal! — É necessário gritar isso! — exclamou Ribine com violenta palmada na mesa. — Não devemos suportá-lo! — acrescentou Jacob mais baixo. Ignati limitou-se a sorrir.Notava a velha que os três operários falavam pouco, mas escutavam com uma atenção insaciável de almas sequiosas. De cada vez que Ribine abria a boca, fitavam-no, copiavam-lhe os menores movimentos. As frases de Saveli, porém, provocavam-lhes singulares trejeitos de enfado. Dir-se-ia não sentirem dó algum do enfermo. E Pelagueia inclinando-se ao ouvido de Sofia, perguntou baixinho: — É certo o que ele conta? Sofia respondeu em voz muito alta: — É certo, sim senhora! Os jornais falaram do caso; foi em Moscovo que isso se deu. — E esse homem não foi castigado! — disse Ribine com ódio. — Devia ter sido punido; precisava que o levassem a uma praça pública e ali cortá-lo aos bocados, atirando aos cães essa carne imunda! Grandes castigos se hão de ver, quando o povo se levantar! — Que frio que faz! — disse o tísico. Ajudou-o Jacob a levantar e a chegar-se para o lume. A fogueira ardia em clarão uniforme e vivo. Sombras imprecisas erravam em torno, contemplando surpresas o brinquedo das labaredas. Saveli, sentou-se num cepo e ofereceu ao calor as mãos secas e transparentes. Ribine designou-o com um gesto do mento, e disse para Sofia: — Sabe mais do que um livro! Eu é que o conheço... Quando uma máquina arranca um braço ou mata um homem, compreende-se; é sempre do homem a culpa. Mas sugar o sangue dum homem e atira-lo depois à margem como uma coisa podre, isso é que não se explica. — Sim... — pronunciou com lentidão Ignati, — não se explica... Um chefe de distrito conheci eu, que obrigava a gente do campo a cumprimentar-lhe o cavalo, quando o levavam a passeio pela aldeia, e que punha a ferros quem desobedecesse. Para que lhe servia aquilo?... É o que também não se explica! Depois de comerem, fizeram roda junto à fogueira. Diante deles o lume ardia, devorando rapidamente a lenha; por detrás, céu e floresta envolviam-se na treva. O estropiado fixava no lume os olhos esgazeados, tossia sem descanso, com grandes arrepios. Parecia que do peito lhe saíam pedaços da própria vida, solertes em abandonar aquele corpo esquálido. Dançavam-lhe no rosto reflexos do fogo sem que lhe colorissem a pele fenecida. Só os olhos cintilavam numa coruscação azulada, bruxuleante. — Talvez preferisses abrigar-te na cabana, hã, Saveli? — lembrou Jacob, inclinando-se-lhe no ombro. — Para quê? — respondeu esforçadamente. — Quero ficar aqui. Já não tenho muito tempo a viver entre os homens... Não, não tenho para muito tempo.Vagueou o olhar em volta, ficou um bocado calado e prosseguiu, com um sorriso pálido: — Sinto-me bem entre vocês. Estou-os vendo e estou a pensar que talvez sejam vocês que hão de vingar todos os que foram maltratados... o povo inteiro! Ninguém lhe respondeu. E daí a pouco, a cabeça pendia-lhe para o peito e entrou a dormitar. Ribine considerou-o demoradamente e disse meio em segredo: — É sempre assim quando vem visitar-nos; senta-se para aí e conta sempre a mesma coisa. — Aborrece ouvi-lo repetir-se! — murmurou Ignati. — Bastava ouvir uma vez essa história para não a esquecer e ele sempre a moê-la! — É que para ele, nessa história, tudo se resume, a sua vida inteira, compreende-o bem! — justificou Ribine, soturno. — E da mesma sorte a vida de toda uma legião de seres. Ouvi-lhe essa história dezenas de vezes já, e, ainda assim, acontece-me ter certas dúvidas. Há horas de bondade em que a gente se recusa a crer na vilania do homem, ou na sua loucura, e em que se sente compaixão por todos, ricos e pobres... porque o rico também é um transviado do bom caminho. A um cega-o a fome, ao outro, o dinheiro... E então, a gente pensa: «Homens, meus irmãos! Desentorpeçam esses raciocínios, reflitam com lealdade, reflitam bem.» O doente oscilou estremunhado, abriu os olhos e deitou-se sobre a terra. Sem ruído, Jacob levantou-se, foi à cabana buscar um pequeno agasalho de peles, e estendeu-lho por cima. Depois, retomou o seu lugar ao lado de Sofia. Às vozes dos homens misturavam-se o surdo crepitar da lenha e o murmúrio das labaredas; e aquele lume, qual rosto rubicundo, parecia sorrir-se com malícia para os sombrios vultos que lhe faziam círculo. Falou então Sofia da luta dos povos em prol do direito à vida e à liberdade, dos remotos combates dos rústicos da Alemanha, dos infortúnios dos irlandeses, dos feitos do operariado francês. Sob a floresta, revestida de veludos, na pequena rotunda limitada pelos majestáticos arvoredos, sob a abóbada do negro firmamento, perante a risonha lareira, em meio daquele grupo de sombras hostis e assombradas, ressuscitavam os acontecimentos que haviam revolucionado o mundo dos saciados, dos entes tresloucados pela cobiça; desfilavam uns após outros, os povos da terra, sangrentos, esgotados em mil combates; celebravam-se os nomes dos heróis da liberdade e da justiça... Aquela débil voz de mulher ecoava mansamente, como se viesse do passado; instigava esperanças, inspirava confianças. O auditório escutava religiosamenteaquela melopeia, a vasta história dos seus irmãos espirituais. Todos fitavam o rosto pálido e magro da narradora, correspondiam com sorrisos ao sorrir dos olhos cinzentos. E com mais viva luz brilhava para eles a sagrada causa da humanidade; nos seus peitos medrava mais e mais o sentimento do parentesco moral com os seus irmãos do mundo inteiro; um novo coração nascia para eles na própria terra e ardiam no desejo de tudo compreenderem, de tudo resumirem nele. — Há de chegar o dia em que os povos todos levantarão cabeça, bradando: «Basta! Não queremos continuar nesta vida!» — proclamou Sofia com voz sonora, — e então há de desabar o fictício poder daqueles que só na avidez encontram a sua força, a terra fugir-lhes-á debaixo dos pés e ficarão sem saber em que apoiar-se. — É o que há de acontecer! — afirmou Ribine, de cabeça baixa. — Que ninguém poupe as suas forças e tudo vai de vencida! Pelagueia escutava, arregalando muito as sobrancelhas e com um sorriso de surpresa nervosa. Estava a ver que tudo o que nas maneiras de Sofia lhe parecia insólito, a sua audácia, a sua extrema vivacidade, tudo desaparecera, como submerso no fluxo regular e entusiástico das suas palavras. A noite silenciosa, o revoltear do lume, a fisionomia da jovem oradora, interessavam-na; mas o que a deleitava principalmente era a absorta atenção dos campónios. Permaneciam imóveis, esforçando-se por não perturbarem fosse com o que fosse o desenvolvimento sereno do discurso; dir-se-ia neles um receio de quebrarem o fio luminoso que os ligava ao mundo. De tempos a tempos, um deles colocava com precaução uma nova acha no lume; e dispersava com a mão as faúlhas e o fumo, para que não incomodassem Sofia. Ao romper da aurora, Sofia calou-se, fatigada, e atentou, sorrindo, nos rostos pensativos e tranquilizados que a cercavam. — É tempo de partirmos — disse a velha. — Vamos! — respondeu Sofia com expressão de cansaço. Um dos operários suspirou ruidosamente. — É pena que se vão! — declarou Ribine com desacostumada meiguice. — A senhora fala tão bem! Grande coisa é ligar as criaturas pela sorte comum! Quando a gente pensa que há milhões de seres a quererem o mesmo que nós queremos, o coração torna-se bom... E há tanta força na bondade! — E quando se procede com bondade, pagam-nos com a violência! — protestou Jéfim numa risadinha e pondo-se de pé com presteza. — É bom que elas se vão, tio Mikhail, antes que sejam vistas... Quando os livros estiverem distribuídos pelo povo, as autoridades hão de indagar de onde vieram... E pode alguém lembrar-se das peregrinas e denunciá-las...— Obrigado pelo incomodo, mãe! — disse Ribine interrompendo Jéfim. — Sempre que olho para ti me lembro do Pavel... Fizeste bem em seguir-lhe o exemplo... Inteiramente apaziguado agora, esboçava franco e amigável sorriso. Fazia fresco; no entanto, conservava-se de blusa, o cós entreaberto, o peito à mostra. Pelagueia atentou-lhe no robusto corpo e aconselhou, solícita: — Devias agasalhar-te, faz frio. — Se eu estou tão quente cá por dentro! — objetou. De pé, junto do fogo, os três rapazes conversavam baixo; aos pés deles, dormia o doente, embrulhado nas peles. Branqueava-se o céu, fundiam-se as sombras. Trémula, a folhagem aguardava o sol. — Está bem, adeus! — disse Ribine, apertando a mão de Sofia. — Como hei de perguntar por si, na cidade? — Basta que me procures — responde Pelagueia. Lentamente, em um só grupo, vieram os operários apertar a mão de Sofia com expressões desastradas, de afeto. Em cada um deles transparecia secreta gratidão e amizade, e tal sentimento, novo como era para eles, desconcertava-os. Com os olhos prazenteiros e amortecidos pela insónia, consideravam Sofia, firmando-se ora num pé, ora no outro. — Querem beber uma gota de leite antes de partirem? — ofereceu Jacob. — Ainda ficou algum? — interrogou Jéfim. — Um pouco. Mas Ignati, confuso, declarou, coçando a cabeça: — Não há; eu entornei-o. E todos os três se puseram a rir. Falavam no leite, mas Pelagueia percebia que pensavam em coisa bem diversa; que ambicionavam para Sofia e para si própria todas as felicidades possíveis, mas sem poderem expressar-se. Sofia estava visivelmente comovida, e a sua perturbação era tal, que apenas conseguiu dizer em tom de voz humilde: — Obrigada, companheiros! Entreolharam-se, como se este tratamento os tivesse feito cambalear de prazer. Ouviu-se um acesso de voz rouca do enfermo. No lume extinguiam-se os brasidos. — Até mais ver! — disseram os campónios a meia voz; e os adeuses melancólicos de todos acompanharam por muito tempo as duas mulheres. Vagarosamente estas embrenharam-se por um atalho da floresta, à claridadeda aurora. Entraram a falar de Ribine, do doente, dos operários, que sabiam conservar tão atencioso silêncio e que haviam exprimido sentimentos de reconhecida amizade por forma desjeitosa mas eloquente, dispensando às duas mulheres mil cuidados. Entraram no campo. O sol vinha-lhes ao encontro. Invisível ainda, o astro abrira no céu um leque diáfano de purpúreos raios; pela erva cintilavam gotas de rocio em multicolores lumes de alegria viva e primaveril. Despertavam os pássaros e animavam a aurora com gritos joviais. Com o seu grasnar pressuroso, corpulentos corvos voavam para longe, agitando pesadamente as asas; pelos campos semeados já desde o outono, outros corvos de lustrosa plumagem, saltitavam, tagarelando em vozes ritmadas; perto, andava um verdelhão a assobiar, inquieto. Desanuviavam-se os longes e acolhiam o sol, apagando as sombras noturnas das cumeeiras. VII A existência de Pelagueia decorria em singular sossego que por vezes a surpreendia. Tinha o filho na cadeia, sabia que o esperava duro castigo; de cada vez que nisso pensava, apresentavam-se-lhe, mau grado seu, à memória as imagens de André, de Fédia e doutros, — toda uma larga série de caras conhecidas. Resumindo para si todos os que da sua sorte compartilhavam, a figura de Pavel avantajava-se aos olhos de Pelagueia e quando pensava no filho, os seus pensamentos alastravam, dirigiam-se para todos os lados, sem que ela desse por tal. Era uma dispersão em mil lampejos desiguais que tudo interessavam, que tudo pretendia e tudo reuniam em um mesmo quadro e assim impediam a mãe de se concentrar no desgosto que experimentava por não ter Pavel junto de si, e no terror que lhe inspirava a sorte do filho. Pouco depois partiu Sofia. Cinco dias mais tarde, voltava ela desenvolta e alegre, para desaparecer de novo algumas horas passadas. Então só a tornou a ver ao fim de quinze dias. Dir-se-ia percorrer a existência em círculos cada vez maiores. Vinham assim de vez em quando a casa do irmão para lhe encher a casa de valorosa decisão e de música. Tornara-se agradável a música a Pelagueia, quase indispensável mesmo. Sentia-a correr-lhe no peito, penetrar-lhe no coração, fazendo brotar catadupas de pensamentos rápidos e intensivos, e desabrochar expressões suaves e belas, sugeridas pela força das melodias. Dificilmente se resignava, porém, ao desleixo de Sofia, que atirava para todos os cantos os objetos que lhe pertenciam, e as pontas e a cinza dos cigarros; mais lhe custava a habituar-se à sua maneira de falar tão decidida. Era por demais flagrante o contraste com a pesada tranquilidade de Nicolau, com a gravidade benévola e constante das suas palavras. Ao entendimento de Pelagueia, Sofia não passava duma rapariguita com vontade de passar por pessoa de juízo e que olhava ainda para as pessoas como para brinquedos engraçados. Falava muito da santidade do trabalho e aumentava nesciamente a tarefa da pobre mulher com o seu desmazelo; discorria sobre a liberdade e, contudo, era visível incómodo que a todos proporcionava com a sua irritável impaciência, com as suas incessantes discussões e o seu propósito de se colocar acima dos outros. Muitas contradições se davam nela; Pelagueia tratava-a com prudência constante, mas sem o sentimento caloroso que nutria por Nicolau. Sempre meticuloso, este levava dia por dia a mesma vida monótona e regrada; almoçava às oito horas, lia o seu jornal em voz alta, comentando as notícias mais importantes. Pelagueia descobria nele afinidades de caráter com André. Como acontecia com o pequeno-russo, o seu hospedeiro nunca falava doshomens com rancor; considerava-os a todos culpados da má organização da existência. Mas a fé numa vida nova não era nele tão fervorosa como em André, nem mesmo tão idealmente luminosa. Tinha um modo de falar pausado, uma voz de juiz integérrimo e rigoroso; até quando fazia qualquer narrativa de horrores, esboçava sempre um sorriso compassivo; mas nos olhos tinha um clarão sinistro. Quando reparava naquele olhar, Pelagueia compreendia que não era homem para perdoar; e, sentindo quão mortificadora se lhe devia tornar tal severidade, tinha pena dele. E afeiçoava-se-lhe cada vez mais. Às nove horas, ia ele para a repartição; a velha arranjava os quartos, preparava o jantar, lavava-se, mudava de vestuário; depois, sentava-se no quarto e punha-se a ver as estampas dos livros. Aplicando toda a sua atenção, ainda podia ler um bocado; mas, ao cabo de algumas páginas, ficava cansada e perdia o sentido ao que lia. Em compensação, as gravuras distraíam-na muito, qual a uma criança: desenrolavam-lhe diante da vista um mundo novo, maravilhoso, compreensível, no entanto, e quase tangível. Via cidades imensas com magníficos edifícios, máquinas, navios, monumentos, riquezas incalculáveis amontoadas pelos homens, a par das criações da natureza, numa diversidade que a confundia. Alargava-se a vida até o infinito, patenteando-lhe em cada dia coisas colossais, desconhecidas, portentosas; e pela abundância das suas riquezas, o variegado das suas belezas, exaltava mais e mais aquela alma sedenta que despertava. Gostava ela principalmente de folhear um livro de zoologia; e bem que tal obra estivesse escrita em língua estrangeira, eram as suas ilustrações as que mais nítida representação lhe davam da riqueza, da beleza e da imensidade da terra. — Como a terra é grande! — disse um dia a Nicolau. — É; e apesar disso a humanidade vive apertada... O que sobretudo a enternecia eram os insetos, particularmente as borboletas; percorria, surpresa, os desenhos que as representavam e dizia: — Que beleza! Não é verdade, Nicolau? Quantas destas perfeições existem por toda a parte! Mas vivem ocultas aos nossos olhos, passam ao nosso alcance sem repararmos nelas. Cada qual corre à sua vida, nada sabe, nada admira, porque não há tempo nem vontade para isso. Quanto prazer poderíamos desfrutar, se todos soubessem como a terra é rica e que de coisas admiráveis ela encerra! E é tudo para todos e cada um para tudo... não é assim? — Sim, com efeito... — respondia Nicolau, sorrindo. E trazia-lhe mais livros. À noite, havia visitas muitas vezes; entre elas, Alexei Vassiliev, um belo homem de rosto claro, barba preta, taciturno e grave; Romão Petrov, este de cara redonda e avermelhada, que fazia constantemente estalar os beiços num gesto de lástima; Ivan Danilov, baixo e magro, barba em bico, e uma vozinhafina, agressiva, berrante e acerada como um estilete; Iegor, que de tudo gracejava, de si, dos companheiros e da doença que o ia minando. Amiúde, vinha gente que Pelagueia não conhecia, de povoações distantes e tinham longas conferências com Nicolau, sempre sobre o mesmo assunto: a liberdade e os operários de todas as nações. Discutiam acaloradamente, gesticulavam com força, bebia-se muito chá. Ao ruído da vozearia, Nicolau compunha às vezes umas proclamações que passava a ler aos consócios e ali mesmo eram copiadas em carateres de imprensa. Ela recolhia cuidadosamente os fragmentos dos rascunhos e queimava-os. Enquanto ia servindo o chá, admirava ela o ardor com que os companheiros falavam da vida e da sorte do operário e do campónio, da maneira mais vantajosa e rápida de semear entre o proletariado a ideia da verdade e da liberdade, educando-lhe o espírito. Muitas vezes, divergiam as opiniões, zangavam-se, acusavam-se uns aos outros, injuriavam-se, mas logo voltavam a discutir. Mas ela sentia bem que conhecia melhor do que todos aqueles palradores, a vida do operário; que avaliava com mais nitidez a enormidade da tarefa que eles se propunham, o que lhe permitia tratar os visitantes com a condescendência um tanto melancólica duma pessoa de idade madura a ver crianças a brincarem de marido e mulher sem compreenderem o lado trágico da situação. Mau grado seu, comparava-lhes os discursos com os de seu filho, com os de André, e percebia agora diferenças que dantes não podia avaliar. Gritava-se mais ali do que lá no sítio, ao que lhe parecia. E concluía: — É que sabem mais, falam mais de rijo... A maior parte das vezes, porém, notava ela que todos aqueles homens parecia que se exaltavam de propósito uns aos outros, que eram fictícias as suas exaltações; cada qual pretendia demonstrar aos colegas que andava mais perto da verdade do que eles e que mais prezava esta verdade do que qualquer deles. Os outros vexavam-se e, a seu turno, para provarem como conheciam bem tal verdade, questionavam com desabrimento e rudeza. Cada qual, tudo era querer subir mais alto do que os mais e isto causava-lhe pungente tristeza. Agitava então os supercílios, divagando pela assistência olhares de súplica, e pensava: «Já se esqueceram do Pavel e dos companheiros!... Já não pensam neles.» Escutava sempre atenta as discussões, que, naturalmente não compreendia; procurava descobrir os sentimentos sob aquele fluxo de palavras. Percebeu então que nas reuniões do seu bairro, quando se falava do bem, todos o aceitavam íntegro e completo, ao passo que ali, tudo se fragmentava, tudo se dividia; além, os sentimentos tinham mais força e convicção; aqui, era o domínio das ideias radicais que retalhavam tudo em bocados. Aqui, falava-se mais da destruição do velho mundo; além, sonhava-se um mundo novo, e era por isso que os discursosdo seu filho e de André lhe eram mais compreensíveis, mais ao seu alcance. Surdo descontentamento para com os homens se lhe introduzia furtivamente no coração, trazendo-a inquieta; nascia nela a desconfiança, sentia desejos de compreender tudo, e o mais depressa possível, para falar também do mundo com palavras ditadas pela sua alma. Notava igualmente Pelagueia, quando vinha algum companheiro operário, que Nicolau o recebia com uma sem-cerimónia singular; dava ao rosto uma expressão de bonomia e falava por maneira diversa do costume, se não com mais grosseria, pelo menos com maior liberdade. — É que faz o possível para descer ao nível deles — pensava. Mas esta razão não a satisfazia, pois que o operário claramente se sentia constrangido, com a inteligência como que opressa, e não chegava a expressar- se tão simples e livremente como com ela, por exemplo, mulher da sua condição. Um dia, num momento em que Nicolau se ausentara da sala, perguntou a um deles: — Porque estás tu tão contrafeito? Olha que não és um menino a fazer exame. O homem abriu-se num franco sorriso. — É a falta de hábito... Assim como assim... não é cá da nossa classe! E ficou-se cabisbaixo. — Não quer dizer nada — replicou ela. — Pois se ele é tão boa pessoa... O operário volveu para ela o olhar, sorriram um para o outro e nada acrescentaram. Às vezes, aparecia por lá Sachenka. Nunca se demorava, falava sempre apressadamente, sem se rir. E quando se retirava, perguntava invariavelmente a Pelagueia: — Como está o Pavel? Passa bem? — Sim, senhora; graças a Deus! Está bom, bem disposto. — Cumprimentos da minha parte! — concluía a rapariga, e desaparecia. Umas vezes por outras, queixava-se-lhe a pobre mãe por conservarem preso o Pavel tanto tempo, sem se fixar data para o julgamento. Sachenka calava-se, franzindo o sobrolho; tremiam-lhe os lábios e os dedos agitavam-se-lhe nervosamente. A mãe de Pavel tinha ímpetos de lhe dizer: — Minha querida, eu sei que o amava... sim, bem o sei! Mas não se atrevia: os ares sérios da rapariga, a sua boca franzida, a recusa do seu falar pareciam repudiar de antemão qualquer meiguice. Limitava-se asorrir e a apertar a mão que lhe estendiam, dizendo consigo: «Pobre pequena!...» Um dia, apareceu-lhe Natacha. Muito satisfeita com ver que Pelagueia a beijava afetuosamente, anunciou-lhe, em voz sumida, e entre outras coisas: — Morreu minha mãe... morreu, a minha pobre mamã! E, limpando os olhos, em rápido gesto: — Que pena tenho!.. Ainda não tinha feito cinquenta anos... Podia viver muito mais tempo. Mas, quando penso em tudo o que vejo, chego a pensar que a morte lhe há de ser mais leve do que a vida! Vivia sempre só, estranha a todos; não era precisa a ninguém; meu pai tinha-a feito tímida com os seus contínuos ralhos... Pode-se por ventura dizer que era viver aquilo? Só vive quem espera alguma coisa boa; mas ela, ela nada tinha a esperar, a não ser os maus tratos! — É bem certo o que diz, Natacha! — declarou a outra depois de refletir. — Para viver é preciso que se espere alguma coisa. Nada esperar é viver? Afagou com mimo a mão da rapariga e perguntou-lhe: — E agora, vive sozinha? — Vivo — respondeu Natacha. Calou-se Pelagueia um instante; depois, concluiu com um sorriso: — Que importa! Quando se tem uma alma boa, nunca se está só, sempre se está acompanhada... VIII Natacha foi residir, na qualidade de professora, para um distrito onde havia uma fábrica de fiação. Pelagueia ia de vez em quando levar-lhe livros proibidos, proclamações, jornais. Estava já encartada neste ofício. Várias vezes em cada mês, vestida de irmã da caridade, de vendedeira de rendas ou de retrosaria, de burguesa ricaça ou de peregrina, lá se ia pela província fora, a pé, de caminho de ferro, numa carroça, alforge ao ombro ou de mala na mão. Nos hotéis ou nas estalagens, nos vapores, assim como nos comboios, a sua atitude era sempre calma e simples; com os desconhecidos, era a primeira a dirigir-lhes a palavra, e captava irresistíveis simpatias com o seu falar afável, a sua tranquilidade de mulher que muito viu e aprendeu. Agradava-lhe conversar com os infelizes e informar-se das suas opiniões sobre o mundo, dos seus infortúnios e perplexidades. Enchia-se-lhe o coração de alegria sempre que observava nestes interlocutores aquele vivo descontentamento que, embora proteste contra os golpes da adversidade, ardentemente busca solução para os grandes problemas da humanidade. Mais vasto sempre e mais variado, desenrolava-se aos seus olhos o panorama da vida com todas as suas lutas. Em tudo e por toda a parte ela encontrava a tendência cínica do homem para enganar o homem, para roubá-lo, para tirar dele o maior proveito possível. E também via a abundância por toda a terra, ao passo que o povo jazia na miséria, vegetando a bem dizer esfomeado, no meio das incomensuráveis riquezas. Das cidades, via os templos a abarrotar de oiro e prata inúteis a Deus, enquanto fora, nos adros, os necessitados tiritavam na vã expetativa duma esmola que não vinha. Aquele espetáculo era-lhe já conhecido: as igrejas opulentas, as vestes bordadas dos padres, as mansardas dos pobres e os seus ascorosos farrapos; mas nesse tempo tudo lhe parecia natural, pois que no presente considerava tal estado de coisas ofensivo para os pobres, aos quais, ela bem o sabia, a religião é mais necessária que aos ricos. Mercê das imagens de Jesus, das narrativas que ouvira, Pelagueia sabia que Ele era um amigo para os miseráveis, que Ele se vestia sem ostentação; e nas igrejas, onde os pobres vinham a Ele para serem consolados, ia encontrá-lo oprimido em arrebiques de oiro e de sedas, desdenhosamente insolentes em face de tanta privação. E as palavras de Ribine voltavam-lhe à memória: — Até de Deus se serviram para nos ludibriarem! Disfarçaram-no com embustes e calúnias para nos assassinarem a alma... Sem que desse por tal, Pelagueia rezava agora menos, mas pensava mais em Jesus, nas criaturas que não falavam d'Ele que nem mesmo o conheciam, segundo parecia, mas que viviam segundo o Seu evangelho e, como Ele,consideravam a terra o reino dos pobres, queriam distribuir em partes iguais entre os homens todas as riquezas. Refletia muito em todas estas coisas, aprofundando-as, comparando-as com tudo o que via, e estes pensamentos tomavam corpo, revestiam a forma luminosa de oração, derramando uma claridade igual na escuridão do mundo, na vida e na humanidade. E afigurava-se à boa mulher que o próprio Cristo, a quem sempre venerara com vago amor, com um sentimento complexo em que o medo se aliava estreitamente à esperança, à ternura e à dor, que o próprio Cristo se aproximava mais dela, que se transformara, que lhe era mais visível, numa serenidade mais satisfeita. Agora, via os seus olhos sorrirem-lhe tranquilos com uma viva claridade interior, como se tivesse verdadeiramente ressuscitado, lavado e reanimado pelo sangue candente que por Seu amor generosamente derramam aqueles que têm a sabedoria de nunca O nomear. Destas viagens voltava, portanto, feliz e animada, porque muito vira e ouvira, e satisfeita com a missão cumprida. — É agradável jornadear para um lado e outro e ver tantas coisas — disse ela uma noite a Nicolau. — Fica a gente percebendo como esta vida está arranjada. O povo é escorraçado, atirado à margem, refervendo na sua humilhação e perguntando a si mesmo: «Porque me põem de parte? Porque tenho fome, quando há de tudo em abundância? Porque sou eu estúpido, ignorante, quando há tanta inteligência por toda a parte? E onde está Ele, esse Deus de misericórdia, para o qual não há ricos nem pobres, e de quem todos são bem amados?» Pouco a pouco, o povo revolta-se contra a sua existência; o povo sente que há de aniquilá-lo a injustiça, se não tratar do seu bem estar. E experimentava, cada vez com mais frequência, a necessidade de falar, ela mesma, na linguagem que era a sua, das injustiças da vida; e, por vezes, era-lhe difícil resistir... Quando a encontrava a folhear os desenhos, Nicolau contava-lhe coisas surpreendentes. Impressionava-a a audácia dos problemas que o homem se propunha; perguntava, incrédula: — Pois isso é possível? E Nicolau descrevia-lhe um futuro de sonho, com uma confiança inabalável nas suas profecias. — Os desejos do homem não conhecem limite, a sua força é inesgotável! — afirmava ele. — Contudo, o mundo só muito lentamente se enriquece em dons do espírito, pois que, para serem independentes, os homens são obrigados a juntar dinheiro, e não ciência. Quando tiverem banido a avidez, libertar-se-ão da escravatura do trabalho obrigatório. Pelagueia era raro que compreendesse o sentido das palavras de Nicolau, no entanto, pungia sensivelmente a fé tranquila que as ditava. — Há muito poucos homens livres nesta terra; é o que faz o infortúnio dahumanidade! — dizia ele. Com efeito, Pelagueia conhecia pessoas que se haviam libertado dos rancores e da cobiça; e pensava que se o número dessas pessoas avolumasse, o rosto sombrio e horrível da existência havia de tornar-se mais benévolo e simples, melhor e mais luminoso. — O homem é obrigado a ser cruel contra sua vontade! — dizia tristemente Nicolau. Ela aquiescia com um aceno de cabeça e lembrava-se do pequeno-russo. IX Um dia, Nicolau, por hábito tão pontual, chegou da repartição muito mais tarde do que o costume. Em vez de tirar o sobretudo, disse com vivacidade, a esfregar as mãos: — Sabe, Pelagueia? Fugiu hoje da cadeia um dos nossos companheiros, à hora das visitas!... Mas não consegui saber quem seja. Ela sentiu-se cambalear, tomada de comoção; deixou-se cair numa cadeira e mal pôde balbuciar, em segredo: — Será o Pavel, talvez? — Talvez! — respondeu Nicolau, encolhendo os ombros. — Mas como havemos de o ajudar a esconder-se? Onde estará ele? Tenho andado a passear por essas ruas, a ver se o encontrava. É uma tolice, mas é forçoso fazer qualquer coisa! Eu torno a sair. — Também eu saio! — declarou a mãe de Pavel. — Então, vá a casa do Iegor; talvez ele saiba alguma coisa... — aconselhou Nicolau. E saiu. Ela atirou para a cabeça um lenço, e foi-se nas peugadas de Nicolau, nadando em esperança. Levava a vista turvada; o coração batia-lhe em fortes pulsações que quase a obrigavam a correr. Voava ao encontro duma possibilidade, de cabeça baixa, sem nada ver em torno. «Talvez já esteja em casa do Iegor!» Este pensamento instigava-lhe o passo. Fazia calor; Pelagueia ia ofegante. Na escada de Iegor parou, sem forças para ir mais longe. Voltou-se então e soltou um grito de espanto: tinha-lhe parecido ver na soleira da porta Vessovtchikov, de mãos nas algibeiras e um sorrizinho nos lábios, a olhar para ela. Mas, quando tornou a abrir os olhos, não viu ninguém. — Foi alucinação! — concluía pela escada acima, apurando sempre o ouvido. Do pátio veio um ruído abafado de passos pachorrentos. Deteve-se a meio da escada, foi à janela e olhou: outra vez distinguiu uma cara bexigosa a sorrir para ela. — O Vessovtchikov! Foi ele! — exclamou, descendo a correr-lhe ao encontro, mas com o coração confrangido por aquela deceção. — Não! Sobe! Sobe! — disse-lhe ele debaixo, a meia voz, apontando para o andar superior. Obedeceu; entrou pelo quarto de Iegor, a quem encontrou estendido do canapé. Segredou, esbaforida: — O Vessovtchikov fugiu da cadeia! O outro ergueu a cabeça e numa voz áspera: — O picado das bexigas?— Sim, esse!... E vem para aqui! — Está muito bem! Mas eu é que não estou para me levantar a recebê-lo. O fugitivo entrou neste comenos. Fechou bem a porta no ferrolho, tirou o boné e pôs-se a rir devagarinho. — Se não te tivesse visto, não me restava mais que voltar para a prisão! Não conheço ninguém na cidade... Se tivesse ido lá para o bairro, prendiam-me logo! Eu dizia com os meus botões, enquanto ia andando: «Palerma! Para que fugiste?» Quando nisto, vejo cá a tiazinha a correr. Pus-me logo no seu encalço! — E como pudeste fugir? — perguntou Pelagueia. O rapaz sentou-se desastradamente na beira do canapé e disse com embaraço, encolhendo os ombros: — Não sei... Foi a ocasião que se ofereceu. Andava a passear no pátio... Os presos de crimes comuns atiraram-se à bordoada a um carcereiro, um que foi da polícia e que expulsaram por causa dum roubo... É um que espia dá partes e torna a vida de toda a gente um inferno... Então, houve barafunda; os vigias tiveram medo, uns apitavam, outros corriam... Eis senão quando, vejo a grade aberta. Aproximei-me, vejo um largo, a cidade... Foi uma atração!.. E saí sem pressa nenhuma, como se estivesse sonhando... Dei alguns passos e caí em mim. Para onde havia de ir?... Entretanto, as portas da cadeia tinham-se tornado a fechar... Não me sentia bem; tinha saudades dos companheiros... enfim, aquilo era estúpido; eu não fazia ideia de fugir... — Hum! — resmungou Iegor. — Pois, meu caro senhor, devia ter voltado para trás, bater à porta e pedir delicadamente que o deixassem entrar: «Queiram perdoar, foi momento de distração...» — Sim — continuou Vessovtchikov, — rindo, isso também era tolice, bem vejo. Mas ainda assim, andei mal com os companheiros. Não digo nada a ninguém e ponho-me ao fresco... Na rua, encontrei um enterro. Pus-me atrás do caixão — era uma criança — e lá fui de cabeça baixa, sem olhar para ninguém. Estive um bocado no cemitério, de toutiço ao vento, e então veio-me uma ideia... — Uma só? — observou Iegor, e com um suspiro acrescentou: — Parece-me que não lhe havia de faltar lugar. O bexigoso pôs-se a rir, sem se zangar. — Oh! Já não tenho a cabeça tão vazia como dantes... E tu, Iegor, continuas sempre doente? — Faz-se o que se pode! — respondeu o outro, sacudido por acesso de tosse. — Continua! — Dali fui ao museu. Passei por lá vi, as coleções, mas sempre a pensar:«Para onde hei de eu ir, agora?» Estava furioso comigo mesmo e tinha uma fome horrorosa!... Voltei para a rua, pus-me a caminhar. Sentia-me envergonhado com aquilo! Percebi que os polícias olhavam com atenção para quem passava... E dizia com os meus botões! «Bom! Graças ao meu focinho, estou aqui, estou nas mãos da justiça!...» Nisto, vejo cá a velhota a correr. Passou-me ao lado; afastei-me para a deixar passar, voltei-me e segui-lhe no encalço... E mais nada! — E eu que nem sequer dei por ti! — notou ela em tom pesaroso. Examinava atentamente Vessovtchikov; achava-o mudado, mas para melhor. — Os companheiros estão em cuidado, com certeza, sem saberem onde paro! — prosseguiu ele, coçando a cabeça. — E dos guardas da cadeia, não tens saudades? Olha que eles também devem estar num cuidado!... — observou Iegor. Em seguida abriu a boca e, movendo muito os beiços, como se quisesse absorver todo o ar, exclamou: — Basta de brincadeiras! É preciso tratar de te esconder, o que é coisa agradável de fazer, mas não muito fácil de conseguir... Se eu pudesse levantar- me!... Teve uma crise de sufocação e pôs-se a esfregar o peito, em débeis movimentos. — Estas bem doente, Iegor! — disse o fugitivo. Pelagueia, a esta observação, suspirou e relanceou um olhar de inquietação pelo modesto quarto. — Isso é comigo! — declarou Iegor. — Ó mãezinha, não esteja com cerimonias, peça-lhe notícias do seu Pavel. A cara do bexigoso abriu-se outra vez em franco sorriso. — O Pavel? Está bom, está de saúde. Ele é uma espécie de presidente lá da rapaziada. É sempre ele que fala com as autoridades, em nome da gente; é ele quem manda!... Nós temos-lhe respeito... E com razão! A mãe bebia as palavras do rapaz; por vezes, lançava um olhar furtivo para o rosto macerado e entumecido de Iegor. Este, com a fisionomia estática, qual máscara desprovida de expressão, e com uma aparência singular de nulidade, só pelos olhos vivia, em cintilações de espírito. — Se me dessem alguma coisa de comer... Palavra que tenho muita fome! — exclamou de súbito o bexigoso. — Ó mãezinha — disse Iegor, — naquela prateleira está um pedaço de pão; dê-lho. Vá depois ao corredor e bata à sua esquerda, na segunda porta. Há de vir abrir-lhe uma mulher; diga-lhe que venha cá e que traga tudo o que possuir comrespeito a comestíveis. — Para que há de ela trazer tudo!? — protestou Vessovtchikov. — Ah, não se assuste, que não há de ser grande coisa... talvez até não seja nada! Pelagueia obedeceu, bateu à porta indicada e, apurando o ouvido, pensava com tristeza: «Está mesmo a morrer...» — Quem está aí? — perguntaram de dentro. — Venho da parte do senhor Iegor — respondeu baixo. — Pede-lhe que vá a casa dele. — Lá vou! — responderam. Pelagueia esperou um instante e tornou a bater. A porta abriu-se de brusco e apareceu uma mulher ainda nova, muito alta e que usava óculos. Vinha a alisar a manga do vestido, amarrotada. Secamente perguntou: — Que deseja? — Foi o senhor Iegor que me mandou... — Ah! Vamos lá!... Mas eu conheço a senhora! — exclamou. — Como passou?... É que faz aqui muito escuro... Pelagueia fitou-a e lembrou-se de tê-la visto uma vez ou duas, em casa de Nicolau. «Por toda a parte há gente nossa!» pensou. A mulher deixava livre o caminho, por forma que Pelagueia fosse adiante. — Está então muito mal? — inquiriu. — Muito mal; está deitado. Pede-lhe que lhe leve alguma coisa de comer... — Ora! É inútil... Ao penetrarem as duas mulheres no quarto de Iegor, este debatia-se em doloroso estertor. — Ludmila — disse por fim. — Esse rapaz saiu agora da cadeia sem licença da autoridade. Já é ser descortês! Antes de mais nada, dá-lhe de comer e esconde-o em qualquer parte, por um dia ou dois. Ludmila fez um sinal de assentimento e, ao passo que fitava atentamente o rosto do enfermo, dizia com certa severidade: — Iegor, porque não me chamou logo que chegaram as suas visitas? E já vejo que por duas vezes se esqueceu de tomar o remédio! É um desmazelo!... Pois se é o primeiro a dizer que se sente respirar melhor quando o toma!... Venha para minha casa, camarada!... Não tarda que venham buscar o Iegor para o levarem para o hospital.— É então forçoso ir para o hospital? — perguntou o enfermo. — De certo. Lá irei ter consigo. — O quê? Lá, também?... — Não diga tolices! E enquanto falava, compusera no peito do doente a manta que o cobria, observara fixamente Vessovtchikov e medira com o olhar a altura do remédio no frasco. A voz dela era monótona e grave, mas sonora; os movimentos amplos, o rosto branco, com umas sobrancelhas muito pretas, que quase se reuniam na base do nariz. Tal fisionomia não agradou a Pelagueia, que a ficou julgando arrogante; os olhos não tinham brilho e nunca sorriam; o tom da voz era imperioso. — Vamo-nos daqui! — continuou ela. — Eu já volto. A senhora dê ao Iegor uma colher de sopa deste remédio... Não consinta que fale. E saiu levando consigo o bexigoso. — Que mulher extraordinária! — disse Iegor com um suspiro. — Que admirável criatura!... Para casa dela é que você devia ter ido, mãezinha. Ela trabalha muito... Até anda esfalfada! — Não fales! Olha, bebe antes isto! — suplicou Pelagueia com meiguice. Ele ingeriu o remédio e continuou, fechando um dos olhos: — Que me importa! Que fale ou que não fale, sempre tenho de morrer. Olhou para a velha, ao mesmo tempo que os lábios se lhe entreabriam lentamente num sorriso. Ela tinha curvado a cabeça; agudo sentimento de dó lhe fazia derramar lágrimas. — Não chore, mãezinha; é natural... O prazer da vida traz consigo a necessidade da morte... Ela pousou-lhe a mão na cabeça e, em voz baixa: — Cala-te, sim? O doente fechou os olhos como se estivesse a escutar o estertor dentro do peito. Teimosamente, objetou: — Estúpida coisa o estar calado, mãezinha!... Que ganho eu com isso? Uns minutos mais desta agonia e o ficar sem o prazer de palrar um bocado com uma santa mulher como você... Não creio que no outro mundo haja tão boa gente como neste... Ela interrompeu-o, agitada: — Olha que vem aí já aquela senhora, e depois ralha comigo se te ouve falar... — Não é senhora nenhuma; é uma revolucionária, uma companheira, umcoração admirável!... De toda a maneira, há de ralhar consigo, mãezinha! Está sempre a ralhar com toda a gente! E Iegor pôs-se a contar a história da sua vizinha, lentamente, com um articular custoso dos lábios. Só os olhos sorriam. Inquieta, Pelagueia dizia consigo, notando a maceração daquele rosto banhado de suor: — Vai-me morrer aqui! Voltou Ludmila. Fechou cuidadosamente a porta e disse para a velha: — É absolutamente necessário que aquele seu amigo se disfarce e se vá embora; vá já arranjar-lhe outro fato e traga-lho aqui! Que pena que a Sofia esteja ausente! É a sua especialidade, dar esconderijo a quem foge! — Ela chega amanhã, anunciou a outra, deitando o seu lenço para os ombros. Sempre que a encarregavam de qualquer missão, era ideia fixa sua desempenhar-se dela bem e depressa. Solícita e preocupada, franzindo as sobrancelhas, perguntou ainda: — Como o havemos de vestir? Que lhe parece? — Pouco importa: como ele sai de noite... — É muito pior que de dia: anda menos gente pelas ruas, é-se mais facilmente notado, e como o Vessovtchikov não é muito esperto... Iegor soltou uma gargalhada rouca: — Como você é fina, mãezinha! — Posso ir ver-te ao hospital? — perguntou ela. O doente acenou com a cabeça, tossindo muito. Ludmila fitava na velha os seus grandes olhos pretos. — Quer que lhe fiquemos de guarda, cada uma por sua vez? — propôs. — Sim? Está bem!... Mas agora, vá, vá depressa. Agarrou Pelagueia por um braço em gesto amigável mas autoritário, fê-la sair para o corredor e ali disse-lhe baixinho: — Não se zangue por eu a despedir assim... Não é bonito, bem sei; mas faz- lhe tanto mal falar!... E eu tenho esperança... Esta explicação comoveu Pelagueia. Murmurou: — Não diga isso!... Não é bonito! Mas a senhora é um anjo!... Até mais ver; eu cá me vou. — Cuidado com os espiões! — recomendou a outra em segredo. E levando as mãos ao rosto, passando-as depois pelas fontes, com uma tremulência nos lábios, tomou uns ares de maior bondade. — Sim, esteja descansada — respondeu Pelagueia com uma pontinha de orgulho.Ao chegar à grade da entrada, parou um instante como a arranjar a mantilha e lançou em torno um olhar vigilante, mas que passaria despercebido de qualquer. Sabia bem distinguir, e sem se enganar, os espiões de entre o povo. O andar propositadamente descuidado, a placidez afetada dos movimentos, a expressão de cansaço e de tédio que fazia transparecer, o brilhar tímido, confuso e mal dissimulado dos olhos, movediços e desagradavelmente esquadrinhadores, eram outros tantos disfarces que se lhe haviam tornado familiares. Desta vez, porém, não enxergou cara alguma conhecida. Então, sem pressa, tomou pela rua adiante, e subiu para um carro de praça, que mandou seguir para o mercado. Ali comprou o fato para o fugitivo, não sem regatear ferozmente, desfazendo-se em pragas contra o bêbedo do marido, a quem tinha de vestir de novo quase todos os meses. Esta mentira não fez impressão alguma ao adelo, mas causou-lhe muita satisfação por a ter inventado; tinha ido a pensar pelo caminho que a polícia havia de suspeitar que o fugitivo se disfarçaria e não deixaria de proceder a um inquérito no mercado. Feito isto, Pelagueia voltou a casa de Iegor e foi acompanhar o bexigoso ao termo da cidade. Cada um tomou por passeio oposto e a velha, satisfeita, divertia-se imenso a ver o rapagão a andar no seu passo pesado, cabeça baixa, atrapalhado com a comprida roda dum sobretudo amarelo e atirando para trás o chapéu, que lhe ia sempre a escorregar para os olhos. Numa rua deserta veio-lhes Sachenka ao encontro, e Pelagueia voltou para casa depois de se despedir de Vessovtchikov com um aceno de cabeça. Mas pensava com tristeza: — Pois sim, mas o Pavel está na cadeia... e o André também. X Foi recebida por Nicolau com um grito de mal contida inquietação. — Sabe? O Iegor está muito mal! Levaram-no para o hospital; a Ludmila veio cá pedir que fosse ter com ela. — Ao hospital? Nicolau, depois de ter ajustado os óculos, em movimento nervoso, ajudou-a a vestir um casaco, apertou-lhe a mão entre as suas, secas e febris, e, em voz trémula: — Sim! Leve este embrulho consigo. O Vessovtchikov ficou em segurança? — Sim, tudo vai pelo melhor... — Também hei de ir ver o Iegor... Pelagueia estava tão cansada, que sentia a cabeça a andar-lhe à roda; a inquietação de Nicolau dava-lhe a pressentir um drama. — Vai morrer!... Vai morrer! — dizia consigo; e esta sombria ideia martelava-lhe no cérebro. Mas quando entrou no quartozinho alegre e muito asseado do hospital e viu o Iegor a rir de manso, sentado em meio dum montão de almofadas brancas, sossegou de pronto. Parou à porta a sorrir-lhe e ouviu o doente dizer ao médico: — O remédio, é uma reforma! — Não diga tolices, Iegor! — obtemperou o doutor em tom apreensivo. — E eu, que sou revolucionário, detesto as reformas!... Certamente, o médico tomou a mão do doente e colocou-lha sobre o joelho; em seguida, levantou-se, pôs-se a puxar pelas barbas, enquanto ia apalpando com um dedo os entumecimentos do rosto de Iegor. Pelagueia conhecia bem o doutor por ser um dos melhores camaradas de Nicolau. Aproximou-se de Iegor, que, ao vê-lo, lhe deitou a língua de fora. O médico voltou-se. — Ah, é vossemecê?... Viva!... Sente-se. Que traz aí? — Livros, parece-me. — Não pode ler — declarou o médico. — Quer que eu fique parvo de todo! — choramingou Iegor. — Cala-te! — ordenou. E pôs-se a escrever qualquer coisa na carteira. Do peito do doente exalavam-se breves suspiros forçados, de mistura com saliva, num estertor, violento; tinha o rosto coberto de camarinhas de suor, que ele enxugava de vez em quando, erguendo muito devagar as pesadas mãos, quase inconscientes. A singular imobilidade das faces inchadíssimas descompunha a expressão de bonomia da sua ampla cara, onde as feiçõeshaviam desaparecido sob uma máscara cadavérica; e só os olhos, profundamente cavados entre os inchaços, conservavam um olhar puro e sorriam com condescendência. — Hã?! Esta ciência!... Já não posso mais... Deito-me, doutor? — perguntou ele. — Não! — respondeu com brevidade o médico. — Então deito-me quando tu te fores embora! — Não lho consinta, mulherzinha. Arranje-lhe as almofadas. E tome muito cuidado, não o deixe falar, peço-lhe; faz-lhe muito mal. Pelagueia fez um aceno. O médico saiu em passinhos rápidos. Iegor deitou a cabeça para trás, fechou os olhos e ficou sem movimento; só os dedos se lhe agitavam um pouco. Das paredes brancas da celasinha exalava-se um frio seco e uma tristeza velada e pálida. Pela alta janela divisavam-se os cumes ondulados das tílias; por entre a folhagem poeirenta e sombria destacavam-se vivamente manchas amarelas: eram as frias primícias do outono, que chegava... — Vem para mim a morte, devagar, como que sem vontade! — disse Iegor, sem bulir e sem abrir os olhos. — Parece que tem pena de mim!... Pois se eu era um bom rapaz, de bom génio!... — Cala-te, Iegor! — suplicou Pelagueia, afagando-lhe a mão ternamente. — Espere um pouco, mãezinha, eu vou-me calar... E, ofegante, continuou com esforço imenso a articular palavras entrecortadas de longas pausas: — Gosto muito que vossemecê esteja connosco, mãezinha... É-me muito agradável ver a sua fisionomia, os seus olhos tão vivos, a sua candura... Quando a vejo, pergunto a mim mesmo: «Como irá ela acabar?» E fico triste, a pensar que a espera a cadeia, ou o degredo, toda a espécie de abominações... como os outros... Não tem medo da prisão? — Não! — respondeu ela com simplicidade. — Está claro!... E, contudo, a prisão... é nojenta coisa... foi ela que me matou... Porque, para falar com franqueza, eu não tenho vontade de morrer. Ela sentiu desejo de responder: «Talvez não morras ainda», mas calou-se e ficou a olhar para ele. — Podia ainda fazer alguma coisa pelo bem do povo... Mas quando a gente já não pode trabalhar, é impossível viver, é uma estupidez! À memória da velha acudiram então estas palavras de André: «Isso é verdade, mas não é consolador!» Suspirou. Sentia-se fatigadíssima e com fome. O murmurar monótono e rouco do doente ressoava triste pelo quarto, como que rastejando, impotente, por sobre a lisura das paredes. A folhagem das tílias faziapensar em nuvens que tivessem descido à terra, e impressionava pelo seus tons carregados e melancólicos. Tudo, em volta, se congelava singularmente em tristonha imobilidade, naquela desconfortante expetativa da morte. — Como me sinto mal! — disse Iegor. E calou-se, fechando os olhos. — Dorme! — aconselhou ela. — Talvez te faça bem. Apurou por alguns instantes o ouvido para a respiração do doente e relanceou o olhar em torno de si. Invadida por glacial tristeza, entrou a dormitar. Despertou-a um ruído de vestidos roçagantes. Estremeceu ao ver Iegor acordado, com os olhos muito abertos. — Deixei-me dormir... desculpa! — disse em voz baixa. — E tu, também, perdoa-me! — replicou ele igualmente num murmúrio. Pela janela, entrava o crepúsculo; um frio nevoento oprimia a vista; tudo se fundia em singular opacidade; o rosto do doente tomava tons mais sombrios. De novo se ouviu um roçagar de saias e logo depois a voz de Ludmila, dizendo: — Então, aqui às escuras, a tagarelar?... Onde fica o botão da luz? E de súbito, uma claridade branca e desagradável inundou o quarto. Ludmila estava de pé, alta, toda vestida de negro. Iegor teve um grande estremecimento por todo o corpo e levou a mão ao peito. — O que é? — exclamou Ludmila, correndo para ele. Fixou na velha um olhar demorado; parecia ter os olhos enormes, com um brilho estranho. — Espera... — balbuciou o enfermo. Abriu muito a boca, ergueu a cabeça e estendeu o braço para diante. Pelagueia tomou-lhe a mão com cuidado extremo e fitou-o, contendo a própria respiração. Em movimento convulso e vigoroso, ele projetou a cabeça para trás e disse em alta voz: — Deixei de existir... está acabado... Percorreu-lhe o corpo ligeira contração, a cabeça rolou-lhe lentamente no ombro, e, nos seus olhos esgazeados, a luz da lâmpada colocada por sobre o leito, espelhou-se com um reflexo frio... — Meu amigo!... Murmurou Pelagueia. Lentamente, Ludmila afastou-se do leito; parou junto da janela a olhar para fora e disse numa voz singular e sonora, que Pelagueia nunca lhe tinha ouvido: — Morreu... Ela inclinou-se, apoiou-se à mesinha de cabeceira e entrou de balbuciar coma voz a tremer: — Morreu... sossegadamente... corajosamente... sem um queixume... E de repente, como se lhe tivessem dado uma pancada na cabeça, deixou-se cair de joelhos, sem forças tapou o rosto com as mãos, e desatou em soluços abafados. Depois de ter cruzado os braços pesados do morto, sobre o peito e de lhe ajeitar nas almofadas a cabeça, extraordinariamente quente, Pelagueia avizinhou-se de Ludmila, curvou-se para ela e afagou-lhe docemente os espessos cabelos, ao mesmo tempo que enxugava as próprias lágrimas. Esta última voltou com lentidão para ela os olhos dilatados, febris e balbuciou por entre os lábios trémulos: — Havia muito que o conhecia... Estivemos juntos no degredo, estivemos nas mesmas prisões... Às vezes, aquela tortura era insuportável, horrorosa; muitos de entre nós perdiam o ânimo e alguns endoideciam... Comprimiu-lhe a garganta um espasmo violento; dominou-se com esforço, e em seguida, avizinhando do rosto da velha o seu rosto, a que uma névoa de ternura dolorida dava desconhecida suavidade que o rejuvenescia, prosseguiu em rápido murmúrio, com um soluçar sem lágrimas: — E ele, ele sempre, sempre, andava alegre; nunca se cansava de gracejar, de rir, ocultando corajosamente o seu sofrer, esforçando-se por reanimar os fracos... era tão bom, tão sensível, tão meigo!... Na Sibéria, a inação em que se vive, deprava o espírito e faz nascer maus instintos. Como ele os sabia combater!... Que companheiro aquele era; se soubesse! A sua vida particular foi árdua, dolorosa... mas — sei-o bem — nunca ninguém o ouviu queixar... ninguém, nunca! Assim, eu, que era sua íntima amiga, devo muito ao seu coração e recebi do seu espírito tudo o que podia dar-me; vivia triste, solitário e, no entanto, nunca ele me pediu nada em paga, nem carinhos, nem desvelos... Foi até junto do morto, curvou-se e beijou-lhe a mão. — Companheiro, meu querido e amado companheiro — disse ela numa voz sumida e cheia de desconsolo, — agradeço-te de toda a minha alma... Adeus! Trabalharei, como tu fizeste... sem me cansar... sem duvidar... toda a minha vida... pelos que sofrem... Adeus! Todo o corpo lhe foi sacudido por violentos soluços e, ofegante, a cabeça descaiu-lhe sobre o leito, aos pés de Iegor. Derramava Pelagueia bastas lágrimas que lhe queimavam as faces. Procurava retê-las, pois o seu desejo era consolar Ludmila com um afago especial e animador, falar-lhe do morto com boas palavras repassadas de amor e de tristeza. Por entre o pranto, distinguia o rosto entumecido do defunto, os olhos fechados, os lábios negros, confrangidos em leve sorrisos... Reinava um silêncioprofundo em meio daquela claridade que oprimia. O médico entrou em passinhos apressados, como sempre; parou bruscamente a meio do quarto, enterrou em rápido gesto as mãos pelas algibeiras e perguntou com voz nervosa e sonora: — Há muito tempo? Ninguém lhe respondeu. Bamboleou-se nas pernas e aproximou-se de Iegor, enxugando o suor da testa; apertou a mão do morto e afastou-se novamente. — Não é para admirar... em vista do estado do coração... Isto já devia ter acontecido há seis meses... pelo menos... Sim, com certeza!... Mas aquele tom agudo da voz em que a placidez era forçada e a sonoridade fora de propósito, logo se lhe velou. Encostou-se à parede e pôs-se a passar os dedos rapidamente pela barba, olhando alternadamente para as duas mulheres e para o morto, com os olhinhos piscos. — Mais um!... — concluiu brandamente. Ludmila ergueu-se e foi abrir a janela. Pelagueia como que acordou àquele ruído e olhou em torno, com um gemido. E um instante depois, o doutor, ela e Ludmila encontravam-se reunidos no vão da janela, apertados uns contra os outros, a contemplarem o aspeto sombrio daquela noite de outono. Por cima do arvoredo, cintilavam as estrelas e pareciam recuar, perdendo-se no negro infinito dos céus. Ludmila envolveu o braço de Pelagueia com o seu e descansou-lhe a cabeça no ombro, sem uma palavra. O médico limpava a luneta com o lenço. Fora, os ruídos noturnos da cidade morriam, abafados, o fresco da noite regelava as faces e agitava os cabelos. Ludmila sentia arrepios; e as lágrimas escorriam- lhe pelo rosto. Nos corredores do hospital, vagueavam ruídos amortecidos, assustados, passadas pressurosas, gemidos, murmúrios desconsolados. Imóveis, à janela, os três sondavam as trevas, em silêncio. Pelagueia sentiu que era ali de mais e, depois de soltar com brandura o braço do da jovem senhora, dirigiu-se para a porta, não sem que se inclinasse, ao passar, perante o morto. — Vai-se embora? — perguntou baixo o médico, sem se voltar. — Vou. Pela rua fora, ia pensando em Ludmila. «Nem ao menos sabe chorar!» dizia ela consigo, recordando-se da parcimónia das suas lágrimas. E as últimas palavras de Iegor voltavam-lhe à memória; faziam-na suspirar. Caminhando a passo vagaroso, revia em mente os olhos vivos de Iegor, os seus gracejos, as suas opiniões sobre a vida. — Para a gente proba, a existência é penosa e a morte leve... Como morrerei eu?Em seguida, o pensamento representou-lhe Ludmila e o doutor de pé, junto da janela, naquele quarto muito branco e cruamente iluminado, os olhos embaciados de Iegor; e, invadida por um sentimento opressor, de compaixão, suspirou profundamente e entrou a caminhar mais depressa, impelida por vago pressentimento... «É preciso marchar para a frente!» pensou sob o impulso de coragem valorosa e contristada, que lhe subia do coração. XI O dia seguinte passou-o Pelagueia a dispor tudo para o enterro de Iegor. À noite, quando tomava o chá, com Nicolau e Sofia, apareceu Sachenka, animada e expansiva, o que era para admirar. Vinha com as faces coradas, os olhos brilhantes, e Pelagueia percebeu que ela trazia qualquer esperança risonha. Este radiante estado de espírito veio fazer uma irrupção barulhenta e tumultuosa no curso melancólico das recordações, mas sem o distrair era como uma viva claridade que tivesse brilhado de súbito naquelas trevas e que vinha incomodar a pequena reunião. Nicolau, pensativo, bateu na mesa: — Acho-a mudada hoje, Sachenka!... — Deveras! Pode ser! — respondeu com uma risadinha de contentamento. Pelagueia lançou-lhe um mudo olhar de censura. Sofia fez notar, acentuando as palavras: — Estávamos falando do Iegor. — Que belo homem! Não é verdade? — exclamou Sachenka. — Sempre tinha prontos nos lábios um sorriso e um gracejo... Trabalhava tão bem! Era o artista da revolução; possuía em alto grau a ideia revolucionária, como um verdadeiro mestre! Com que simplicidade mas ao mesmo tempo com que veemência ele sabia descrever-nos o homem — o homem falso, perverso e violento! Muito lhe devo eu! Dizia isto a meia voz, com um sorriso de reflexão, mas que não lhe extinguia no olhar o brilho de alegria que era bem visível e que nenhum dos três compreendia. É que nos acontece às vezes sentirmos prazer com um pesar, fazermos dele um brinquedo torturante que nos rói o coração. Mas Nicolau, Sofia e Pelagueia, esses, não queriam deixar que se dissipasse a sua tristeza, nem abandoná-la aos sentimentos despreocupados que Sachenka viera ali trazer; sem disso terem consciência, defendiam o seu melancólico direito de se acolherem à dor, e tentavam fazer entrar a recém-chegada no círculo das suas preocupações. — E, afinal, está morto! — insistiu Sofia, fitando-a com atenção. Ela vagueou pelos presentes interrogador olhar e baixou a fronte. — Está morto?... — repetiu em voz alta. — Custa-me conformar-me com este facto. Entrou a passear a todo o comprimento da sala, e em seguida, estacando de súbito, prosseguiu em tom singular: — Mas que significa isso: «Está morto?» O que foi que morreu? A minha estima pelo Iegor, a minha afeição por esse camarada, a memória do que a sua inteligência praticou, tudo isso morreu? A opinião que eu tinha dele — a dum homem valente e leal — ficou porventura aniquilada? Morreu tudo isso? Para mim, tudo isso, a melhor parte dele próprio, nunca há de morrer, sei-o bem!Parece-me que há sempre pressa de mais em se dizer que um homem morreu! Se os seus lábios morreram, as suas palavras estão vivas no coração dos que as escutaram. Muito comovida, tornou a sentar-se, encostou-se à mesa e continuou com mais brandura: — Talvez sejam tolices o que digo, mas olhem, camaradas: creio na imortalidade da gente de bem! — Teve alguma novidade? Está tão alegre! — perguntou-lhe Sofia, amável. — Tive! — respondeu Sachenka, confirmando a resposta com um aceno. — Uma novidade muito agradável, ao que julgo. Falei toda a noite com o Vessovtchikov. Antigamente não gostava dele; achava-o muito grosseiro, muito ignorante, o que realmente era verdade. Havia nele um mau humor, uma irritação indefinida e contínua para com todos; estava sempre a antepor-se a tudo com uma insistência que chegava a aborrecer, sempre a falar de si mesmo... Aquele homem tinha o que quer que fosse de maldade, que enervava. Interrompeu-se para sorrir e relanceou em torno um olhar radiante: — E agora, não: fala já dos seus «companheiros». E se ouvissem como ele pronuncia esta palavra! Com uma veneração tão terna, com tanta meiguice, que ninguém o pode intimar! Caiu em si, sabe a força de que dispõe, sabe o que lhe falta... e hoje, o que sente sobre todas as coisas é o verdadeiro sentimento de camaradagem, uma imensa dedicação, capaz de ir ao encontro das maiores provações. Escutava-a Pelagueia, encantada com a alegria daquela rapariga, por hábito tão triste. Mas, ao mesmo tempo, no recôndito do seu coração brotava secreto pensamento de inveja: «E o Pavel, que faz ele no meio de tudo isto?» — Só pensa nos camaradas — continuava Sachenka; — e sabem o que ele me persuadiu que fizesse? Que arranjasse uma fuga geral dos presos... É verdade! Diz que é fácil. Sofia ergueu a cabeça e, em tom de animação: — E que lhe parece, Sachenka? É uma boa ideia. A chávena de Pelagueia entrou a tremer-lhe na mão; pousou-a sobre a mesa. Sachenka ficou-se um instante calada, de sobrolho franzido, reprimindo o entusiasmo; depois, muito séria mas com um sorriso radiante, respondeu com alguma hesitação: — Certo é que se as coisas são realmente como ele diz, devemos tentar... é o nosso dever. Corou, deixou-se cair numa cadeira e nada mais acrescentou. A mãe de Pavel esboçou um sorriso de muita meiguice, dizendo consigo:«Querida! Querida da minha alma!» Sofia sorriu também; Nicolau soltou uma gargalhadinha, e atentou na rapariga, bondosamente. Então, ela ergueu a fronte, olhou em torno com severidade, e, pálida, com os olhos a faiscar, disse secamente: — Riem-se... Percebo porque é. Pensam que sou pessoalmente interessada no resultado da evasão, não é isto? — Mas porquê, Sachenka? — interrogou Sofia hipocritamente. E, levantando-se de onde estava, foi pôr-se ao lado dela. Pelagueia achou a pergunta fútil e humilhante para Sachenka e assim lho fez sentir com um olhar. — Mas, então, não quero tratar de nada! — exclamou Sachenka. — Não quero tomar parte na discussão, desde o momento que consideram este projeto... — Cale-se, Sachenka! — disse Nicolau sem se exaltar. A mãe de Pavel foi para a rapariga e afagou-lhe brandamente os cabelos. Sachenka agarrou-lhe logo a mão e voltando para ela o rosto, onde o sangue afluíra, fitou-a, confusa. Sofia arrastou uma cadeira, sentou-se ao lado de Sachenka, passou-lhe o braço em volta da cinta e disse-lhe, ao passo que a fitava com curiosidade: — Que caráter singular o seu! — Sim, parece-me que disse tolice... mas é que eu gosto das coisas claras... Nicolau interrompeu-a para dizer em tom sério e preocupado: — Se a evasão é possível, trate-se disso, não temos que hesitar!... Mas antes de mais nada, é preciso saber se os companheiros encarcerados estarão de acordo. Sachenka curvou a fronte. — Como se eles pudessem recusar! — disse Pelagueia, suspirando. — O que eu não creio é que isso se possa fazer! Todos ficaram calados. — Deixem-me falar com o Vessovtchikov — disse Sofia. E Sachenka anunciou em voz baixa: — Bem! Amanhã lhe digo onde e quando pode encontrá-lo. Nicolau aproximou-se da velha, que estava lavando as chávenas. — Vossemecê vai depois de amanhã à cadeia; é preciso fazer chegar um bilhete às mãos do Pavel. Compreende? É preciso que a gente saiba... — Compreendo, compreendo! — interrompeu ela com vivacidade. — Eu me encarrego de lho entregar. — Vou-me embora! — declarou Sachenka e, tendo distribuído pelos companheiros vigorosos apertos de mão, foi-se, sem mais uma palavra.Poisou Sofia a mão no ombro de Pelagueia e a sorrir: — Queria ter uma filha como esta, Pelagueia? — Meu Deus! Se eu pudesse vê-los casados, ainda que não fosse senão um dia! — exclamou a boa mulher quase a chorar. — Sim, a felicidade de cada um consiste em ser-se um bocadinho feliz... Quando essa felicidade é demasiada, também é de qualidade inferior. E Sofia foi para o piano tocar uma música triste. XII Na manhã seguinte, apinhavam-se ao portão de ferro do hospital algumas dúzias de homens e de mulheres, à espera que saísse o enterro do companheiro. Pelo meio deles, cautelosamente, giravam vários espiões, escutando cada exclamação, retendo de memória rostos, gestos e palavras; no passeio fronteiro, estava um grupo de polícias, de revólveres à cinta. A imprudência dos primeiros e os risos irónicos dos segundos, a fazerem alarde da força, irritavam o povo. Uns disfarçavam a ira que os possuía e gracejavam; outros, ficavam-se cabisbaixos, olhando para o chão, para não verem aquele aparato ultrajante; outros ainda, incapazes de conter o seu furor, zombavam dos poderes públicos e do seu medo de gente que por armas só tinha o dom da fala. Um céu de outono, de azul muito pálido, iluminava a rua calcetada a seixos redondos, semeada de folhas mortas, que as lufadas erguiam em remoinhos diante dos pés dos transeuntes. Entre a multidão, estava Pelagueia. Ia contando as caras conhecidas e pensava tristemente: — Não são bastantes!... Não são bastantes! O portão rodou nos gonzos. Trouxeram para a rua a tampa do caixão, enfeitada com coroas de fitas encarnadas. Silenciosos, os homens tiraram a um tempo os seus chapéus: dir-se-ia uma revoada de pássaros pretos que se tivesse levantado das cabeças. Um oficial da polícia, de avantajada estatura, de grossos bigodes escuros atravessados num rosto vermelhaço, cercado de polícias e soldados, precipitou-se por entre o povo, empurrando todos sem cerimónia, e gritou com voz roufenha e autoritária: — Tenham a bondade de tirar as fitas! Num pronto viu-se rodeado de homens e mulheres, em círculo compacto, falando todos à uma, gesticulando, empurrando-se uns aos outros. Perante o olhar turvado de Pelagueia, agitaram-se em confusão rostos lívidos e excitados, com os beiços a tremer de ira; e pelas faces duma mulher corriam pesadas lágrimas de humilhação. — Abaixo a prepotência! — gritou uma voz juvenil que se sumiu, desacompanhada, no burburinho da discussão. Pelagueia sentia referver-lhe a amargura; voltou-se para o seu vizinho, rapaz pobremente vestido, e disse-lhe: — Até não nos deixam enterrar um camarada, como entendermos!... Aumentava a hostilidade, a tampa do esquife vacilava por sobre as cabeças, as fitas agitadas pelo vento envolviam os rostos e as cabeças; ouvia-se-lhes o crepitar nervoso e seco da seda. Pelagueia, tomada de terror gélido por uma desordem possível, dirigia aosque lhe ficavam próximos e a meia voz, frases rápidas: — Que importa!... Uma vez que tem de ser... tirem-se as fitas... é melhor ceder... Para que serve resistir? Ressoou uma voz áspera e sonora, que dominou o tumulto: — Queremos que nos deixem acompanhar à sua última morada um companheiro que vocês martirizaram! Alguém, — alguma rapariga com certeza — pôs-se a entoar numa voz aguda e fina: E vós caístes, vítimas, na luta... — Façam favor de tirar as fitas! Jakovlev! Corta essas fitas! Ouviu-se o tinido duma espada a sair duma bainha. Pelagueia fechou os olhos, na expetativa dum grito. Mas tudo sossegou; o povo rosnava, mostrava os dentes como os lobos perseguidos. Depois, de cabeça baixa, em silêncio, esmagados sob o sentimento da impotência, puseram-se a caminho, fazendo ecoar pela rua o ruído dos passos. À frente, a tampa do caixão despojada dos seus ornatos, com as coroas esfrangalhadas, lá ia erguida no ar; depois, vinham os agentes de polícia, balançando-se dum e outro lado, em cima dos cavalos. Pelagueia seguia pelo passeio; não podia enxergar o caixão, devido à muita gente que o cercava; aumentava sem cessar o número dos manifestantes, que ocupavam já toda a largura do calcetamento. Atrás da multidão, alteavam-se também os vultos uniformes e cinzentos dos guardas de cavalaria; de cada lado, polícias, com a mão nos copos das espadas; e, por toda a parte, divisava Pelagueia caras de espiões com os agudos olhares a perscrutarem as fisionomias. — Adeus, companheiro, adeus! — cantaram suavemente duas vozes bonitas. — Silêncio! — gritou alguém. — Calem-se, amigos! Calem-se por enquanto! Havia nesta exclamação uma rudeza tão sugestiva de ameaçador conselho, que o povo calou-se. O canto fúnebre ficou interrompido, e o ruído das vozes sossegou; só se ouviam agora passos amortecidos, num tropel que se elevava muito alto, que se perdia na transparência do céu, agitando a atmosfera, assim como o eco do primeiro trovão de tempestade ainda longínqua. O vento, cada vez mais frio, atirava aos rostos, com animosidade, poeira e lama entumecia os vestidos, entorpecia as pernas, vergastava os peitos... Aquele funeral silencioso, sem um sacerdote, sem um cântico, aquelas fisionomias opressas e carrancudas, aquele ruído de passos enérgicos, tudo provocava em Pelagueia pungente angústia; o pensamento redemoinhava-lhe indeciso, revestindo de frases tristes as suas impressões: — Ah! Que não sois bastantes... lutadores da liberdade, não sois bastantes! Econtudo têm-vos medo! Afigurava-se-lhe não ser aquele mesmo Iegor seu conhecido que ia a enterrar, mas sim uma coisa habitual, que lhe fosse íntima e indispensável. Dominava-a um sentimento de violenta revolta: não estava de acordo com aquela gente. Pensava: — Sei-o bem: Iegor não cria em Deus, como estes também não creem... Mas não conseguia concluir a sua ideia e suspirava, como a querer desembaraçar a alma de pesado fardo: — Ó Senhor! Senhor!... Jesus!... Será possível que também eu vá a enterrar assim?... Chegaram ao cemitério. Depois de muitas voltas por entre os sepulcros, parou o cortejo num vasto espaço livre, semeado de cruzinhas brancas. A multidão agrupou-se em torno duma cova e estabeleceu-se silêncio. E este austero silêncio dos vivos, entre túmulos, pressagiava alguma coisa terrível que sobressaltava o coração de Pelagueia. Imobilizou-se então na expetativa. O vento uivava por entre as cruzes; em cima do caixão adejavam tristemente flores murchas. A gente da polícia, vigilante, tinha-se alinhado, seguindo com os olhares os movimentes do chefe. Então, um rapaz alto, pálido, com a cabeça descoberta, negras sobrancelhas e comprido cabelo negro, foi postar-se junto do coval. No mesmo instante, ouvia-se a voz roufenha do oficial da polícia. — Meus senhores!... — Companheiros! — começou o rapaz com voz sonora. — Perdão! — gritou o oficial. — Tenho a declarar-lhes que não consinto discursos. — Limitar-me-ei a dizer algumas palavras — observou sossegadamente o orador: — «Companheiros! Juremos sobre a sepultura do nosso mestre e amigo nunca esquecermos os seus ensinamentos, juremos trabalhar cada qual toda a nossa vida e sem descanso, para destruir a origem de todos os infortúnios da nossa pátria, a força daninha que a oprime, a autocracia!» — Prendam-no! — gritou o oficial. Mas logo teve a voz coberta por uma explosão de gritos: — Morra a autocracia! Afastando a multidão, às cotoveladas, os polícias atiraram-se para o orador, a quem o povo formava estreito círculo, enquanto ele bradava: — Viva a liberdade! É por ela que devemos viver e morrer! Pelagueia foi arrebatada para longe. Transida de terror, agarrou-se a uma cruz e fechou os olhos, à espera do golpe que havia de feri-la. Ensurdecia-a um turbilhão impetuoso de sons discordantes; sentia faltar-lhe o solo debaixo dos pés;oprimiam-lhe a respiração o vento e o medo. Os apitos da polícia rasgavam o ar; ressoavam vozes roucas, de comando; mulheres soltavam gritos nervosos; estralejavam madeiras das divisórias de covais; no terreno, seco, ressoava lugubremente o pesado tropel de toda aquela gente. Durou isto muito tempo. Pelagueia não podia conservar por maior espaço os olhos fechados; era demasiado lancinante o seu horror. Olhou em volta, e soltando uma exclamação entrou a correr, de braços estendidos. Não longe, em estreito carreiro, entre túmulos, estavam os polícias cercando o rapaz de cabelo preto e defendendo-se dos ataques da populaça. Cintilavam pelo ar com brancos e frios reflexos, as lâminas desembainhadas; elevavam-se acima das cabeças e caíam rapidamente. Bengalas, destroços dos tapumes surgiam, para logo desaparecerem; em selvagem torvelinho, cruzavam-se os gritos da multidão amotinada; de vez em quando, divisava-se o rosto pálido do rapaz; com voz forte que dominava a tempestade das iras, bradava: — Camaradas! Para que serve sacrificarem-se inutilmente? Acabaram por lhe obedecer. Atiraram para longe os cacetes e uns após outros, foram-se afastando. Pelagueia continuava a caminhar, arrastada por força invencível. Viu Nicolau, com o chapéu para a nuca, a repelir os manifestantes, cegos de cólera; ouviu-o dirigindo-lhes censuras: — Endoideceram?... Sosseguem! Pareceu-lhe que trazia uma das mãos toda ensanguentada. — Vá-se daqui Nicolau! — gritou, atirando-se-lhe ao encontro. — Onde vai a correr? Olhe que lhe fazem mal! Sentiu-se agarrar por um ombro. Voltou-se. Era Sofia, sem chapéu, os cabelos em desalinho, sustendo nos braços um rapaz, quase uma criança, que limpava à mão o rosto tumefacto e balbuciava com os beiços a tremer: — Deixem-me... não é nada! — Veja se trata dele. Leve-o para nossa casa. Aqui tem um lenço... amarre- lhe a cabeça! — disse Sofia rapidamente. E introduzindo entre as mãos de Pelagueia a mão do rapaz, deitou a correr, com um último conselho: — Vão-se depressa, se não são presos! Os manifestantes precipitavam-se por todas as saídas do cemitério; atrás deles, os polícias marchavam pesadamente por entre as sepulturas. Embaraçados com as compridas abas das fardetas, praguejavam e brandiam as espadas. O rapaz seguia-os de longe, com a vista. — Vamos, depressa! — disse-lhe Pelagueia com brandura. E limpou-lhe o rosto.O pequeno lançou um escarro de sangue e ciciou: — Não lhe dê cuidado... não sinto nada. O polícia bateu-me com o punho da espada, na cara e na cabeça... E eu dei-lhe com o meu pau... Sempre apanhou uma sova!... Até uivava! — Depressa! — instava Pelagueia, dirigindo-se rápida, para uma pequena aberta do muro do cemitério. Pareceu-lhe distinguir para além do muro dois polícias à espreita, disfarçados com a verdura e que os esperavam, para lhes saltarem em cima à pancada, tão depressa eles aparecessem. Mas depois de ter empurrado a portinha com precaução, espraiou a vista pelo campo, todo envolvido no tecido pardacento daquele crepúsculo outonal. O silêncio e a quietação que nele reinavam tranquilizaram-na de súbito. — Espere, deixe-me ligar-lhe a cabeça — propôs. — Não senhora; não tenho que me envergonhar das minhas feridas. Pelagueia pensou-o sumariamente. Aquele sangue fresco e vermelho apiedou-a imenso; ao sentir-lhe com os dedos a quente humidade, toda a percorreu um estremecimento de terror. Em seguida, conduziu o ferido pelo braço, pelo campo fora, sem proferir uma palavra. Ele libertou os lábios da ligadura para dizer alegremente: — Para que vai a puxar por mim, camarada? Eu posso bem caminhar sozinho! Mas Pelagueia sentia-o cambalear, o andar vacilava-lhe. A voz ia-lhe enfraquecendo enquanto falava, interrogando-a sem esperar as respostas. — Chamo-me Ivan, sou funileiro... e a senhora quem é? Éramos três no clube do Iegor... três funileiros; ao todo, éramos onze! Gostávamos muito dele. Na rua mais próxima, Pelagueia tomou um trem e para ele fez subir Ivan, segredando-lhe: — Agora, cale-se. E para mais segurança, puxou-lhe outra vez a ligadura para a boca. Ele levou logo a mão à cara, mas não conseguiu libertar os lábios; o braço recaiu inerte sobre os joelhos. Ainda assim, continuava a murmurar através do lenço: — Nunca me esquecerei destas pancadas, amiguinhos da polícia!... Antes do Iegor, era um estudante que nos dirigia... Ensinava-nos economia política... Era muito rigoroso, muito aborrecido... Afinal, prenderam-no. Ela passou-lhe o braço em volta e descansou no seio a cabeça do rapaz. De súbito, sentiu que lhe pesava mais, ao mesmo tempo que se tinha calado. Transida de medo, Pelagueia olhava para todos os lados; parecia-lhe ver a cada esquina um polícia, pronto a agarrar Ivan e a matá-lo.O cocheiro voltou-se na almofada, com um sorriso: — Bebeu, hã? — É verdade, até cair! — respondeu ela, suspirando. — É teu filho? — É, sim. É sapateiro... Eu sou cozinheira... — Ah, sim! É duro ofício! Descarregou uma chicotada no cavalo e logo tornou a voltar-se. Baixou a voz. — Sabes? Houve há pouco grande desordem no cemitério. Era o enterro dum desses políticos, dessa gente que está contra a autoridade... que tem questões com a polícia. Havia amigos do defunto no acompanhamento... Eles então puseram-se a gritar: «Morram as autoridades, que arruínam o povo»!» A polícia bateu-lhes. Dizem que alguns ficaram mortos... Mas a polícia também apanhou pancada. Calou-se o cocheiro, abanou a cabeça com ares de desconsolo e prosseguiu num tom de voz estranho: — Assim se vão incomodar os mortos... acordar os cadáveres que dormem! O trem ia aos solavancos pela calçada, chiando muito; a cabeça de Ivan rolava suavemente no peito da sua enfermeira. O cocheiro, virado para eles, continuou, pensativo: — Anda a agitação entre o povo... As desordens parece que se levantam debaixo dos pés... É verdade! Esta noite veio a polícia a casa duns vizinhos. Fizeram lá não sei o quê até pela manhã e depois, quando se foram, levaram preso um que é ferreiro. Dizem que uma noite destas vão levá-lo ali à beira no rio e afogam-no em segredo. E todavia, era um homem inteligente, aquele ferreiro. — Como se chama ele? — perguntou a velha. — O ferreiro? Chama-se Savil, mas tem um outro nome: Evetchenko. É muito mocinho ainda, mas já compreendia muitíssimas coisas, e é proibido compreendê-las, ao que parece... Às vezes, aparecia lá pelas estações de carruagens e dizia-nos: «Que vida que vocês levam cocheiros!» — É verdade, respondíamos-lhe nós, o nosso ofício é pior que o dos cães! — Para aí! — ordenou Pelagueia. O sobressalto produzido fez então que Ivan voltasse a si. Entrou a gemer devagarinho. — Esse rapaz está muito doente — observou o cocheiro. Vacilante, Ivan atravessou o pátio, custando-lhe colocar um pé adiante do outro.— Não é nada — dizia. — Ando perfeitamente... XIII Sofia já estava de volta. Atarefada e mexendo-se muito, recebeu a velha, de cigarro na boca. Deitou o ferido num canapé e ligou-lhe com perícia a cabeça, ao mesmo tempo que ia dando ordens. O fumo do cigarro obrigava-a a piscar os olhos: — Doutor, aí os tem. Sente-se fatigada, Pelagueia? Teve muito medo, não é assim? Está bem, descanse agora um bocado... Nicolau vai-lhe já buscar o chá e um copo de Porto. Emocionada por tais acontecimentos, Pelagueia respirava com dificuldade e ressentia-se de uma dolorosa sensação de picada no seio. — Não se importem comigo — murmurou. E toda a sua pessoa, transida de medo, suplicava um afago, um pouco de atenção... Nicolau veio do quarto contíguo. Trazia a mão ligada. Atrás dele entrou o médico, com os cabelos desgrenhados, como um ouriço. Correu para Ivan, curvou-se a examiná-lo e pediu: — Água, muita água! Panos de linho limpos! Algodão em rama! Já Pelagueia se dirigia à cozinha, mas Nicolau travou-lhe do braço e disse-lhe afetuosamente, levando-a para a casa de jantar: — Não é consigo que ele fala, é com a Sofia. A minha querida amiga passou por bastantes comoções, não é verdade? Àquele falar apiedado respondeu ela com um soluço mal contido e exclamou: — Ah! Que horrível coisa!... A espadeirarem o povo... a espadeirarem! — Eu também lá estava — disse Nicolau, com um aceno confirmativo de cabeça. E encheu um copo de vinho quente. — Dos dois lados houve igual exaltação... Mas não tenha receio; a polícia agrediu só com a parte mais larga das espadas; só uma pessoa ficou ferida gravemente, ao que me parece... e essa vi-a eu cair ao pé de mim... Puxei-a até para fora da batalha. A fisionomia e a voz com que Nicolau lhe falava, a claridade e o calor que reinavam no aposento, sossegaram os nervos de Pelagueia. Dispensou ao seu hospedeiro um olhar de reconhecimento e perguntou-lhe: — Também ficou ferido? — Sim, e creio que por culpa minha... Sem querer, rocei com a mão não sei por quê e fiquei com a pele arrancada. Beba o seu vinho... Faz frio e vossemecê tem um fato tão leve!... Ela estendeu as mãos para o copo e reparou que tinha os dedos cheios de sangue coagulado. Em gesto instintivo, deixou cair os braços sobre os joelhos. Tinha a saia húmida. Esgazeou os olhos, com as sobrancelhas muito erguidas, examinou furtivamente os dedos. A cabeça andava-lhe à roda, uma ideiamartelava-lhe no cérebro: — Aí está, aí está o que espera o Pavel um dia! Voltou o médico. Vinha em mangas de camisa e estas arregaçadas. A uma interrogação muda de Nicolau, respondeu com a sua vozinha delgada: — A ferida do rosto é insignificante, mas houve fratura do crânio, que também não é muito grave... O rapazola é valente, mas ainda assim perdeu muito sangue. Vamos levá-lo para o hospital. — Para quê? Pode ficar aqui! — acudiu Nicolau. — Hoje e amanhã talvez, mas depois era preferível que se tratasse no hospital, não tenho tempo para visitas. Encarregas-te do relatório do que se passou no cemitério? — Bem entendido! — respondeu Nicolau. Pelagueia levantou-se então sem fazer bulha e dirigia-se para a cozinha. — Onde vai? — exclamou Nicolau alvoroçado. — Deixe lá a Sofia governar- se sozinha! Com um olhar e um sorriso involuntário, singular, respondeu a tremer: — Estou toda suja de sangue... Estou toda suja de sangue! E ao mudar de roupa, no seu quarto, mais uma vez ficou a meditar na serenidade daquela gente, naquela faculdade de que dispunham de não demorar muito tempo o pensamento no horror dos acontecimentos. Esta reflexão fê-la cair em si, vencendo o sentimento de terror de que estava possuída. Quando voltou ao quarto onde jazia o ferido, Sofia, curvada sobre este, dizia-lhe: — Que tolice, camarada! — Mas eu vou incomodá-los! — observou ele em voz débil. — Cale-se; é o melhor que tem a fazer. Pelagueia parou por detrás dela e pousou-lhe a mão no ombro; fitou depois, sorrindo, o rosto muito branco do ferido e pôs-se a contar o medo que lhe tinha causado o seu acesso de delírio, no trem. Ivan escutava-a com os olhos a arder em febre; fazia estalar os beiços e exclamava de vez em quando, como que envergonhado: — Oh, que tolo que eu sou! — Bem, agora vamos deixá-lo — declarou Sofia compondo-lhe as roupas que o cobriam. — Descanse! E as duas mulheres passaram para a casa de jantar, onde, com Nicolau e o médico, por muito tempo conversaram baixinho sobre os acontecimentos desse dia. Já o drama era tratado como coisa remota, já se falava do futuro com tranquilidade; preparava-se a tarefa de amanhã. Se os rostos exprimiam a fadiga, os pensamentos latejavam vivos. O doutor mexia-se nervosamente na cadeira,esforçando-se por velar a voz, que tinha aguda e esganiçada: — Ora, a propaganda!... Não basta; os operários têm razão: é necessário exercer a agitação em terreno mais vasto. Creiam que os operários têm razão! Nicolau acrescentou com ar desconsolado: — Por toda a parte se queixam da insuficiência dos livros e ainda não conseguimos montar uma boa imprensa... A Ludmila está esgotada de forças, vai-nos cair doente, se não lhe arranjarmos colaboradores. — E o Vessovtchikov? — perguntou Sofia. — Esse não pode residir na cidade. Há de entrar para o serviço da nova imprensa... mas falta-nos ainda alguém... — E se eu pudesse servir? — propôs a velha com brandura. Os três fitaram-na um momento. — É uma boa ideia! — exclamou Sofia de repente. — Não; é muito difícil para você, creia, Pelagueia — contestou Nicolau com secura. — Era preciso que fosse viver para fora da cidade, que não pensasse mais em ver o Pavel, e em geral... Ela replicou, suspirando: — Olhe que não faria grande falta ao Pavel... e pela minha parte, também essas visitas me partem o coração. É proibido falar seja do que for! Até pareço uma idiota aos olhos do meu filho! Estão ali mesmo, sempre a espiar-nos! Os recentes acontecimentos haviam-na fatigado, e agora, quando se lhe apresentava ensejo de afastar a ideia dos dramas da cidade, era quando se agarrava a esse assunto com todas as forças. Mas Nicolau mudou o curso da conversa. — Em que pensas? — perguntou ele ao doutor. Este, mal humorado, respondeu: — Somos poucos! Aqui tens em que penso... É absolutamente necessário trabalhar com mais energia. É necessário decidir o André e o Pavel a evadirem- se; são dois trabalhadores preciosos de mais para estarem na inação. Nicolau franziu o sobrolho, meneou a cabeça em ar de dúvida e lançou um rápido olhar para a mãe de Pavel. Percebeu que se constrangiam em falar do filho diante dela e foi para o seu quarto, levemente irritada contra quem tão pouco se preocupava com os seus desejos. Deitou-se e, de olhos abertos, embalada pelo ciciar das vozes, sentiu-se tomada de inquietação. Parecia-lhe incompreensível o dia que acabava de decorrer, cheio de alusões ameaçadoras; mas porque este género de reflexão lhe fosse penoso, afastou-as do cérebro e entrou de pensar no seu filho. Queria vê-lo em liberdade e, ao mesmo tempo, tal ideia assustava-a; sentia que tudo se lheagitava em torno; a situação tornava-se cada vez mais tensa, andavam iminentes violentas colisões. A paciência do povo dera lugar a enervada expetativa; crescia visivelmente a irritação pública, ouviam-se com frequência frases rancorosas, de toda a parte soprava um hálito novo, um vento de excitação. As proclamações eram discutidas animadamente no mercado, nas lojas, entre a criadagem e os artífices; cada prisão que na cidade se efetuasse despertava ecos tímidos, mas inconscientemente simpáticos e as suas causas eram comentadas. Pelagueia ouvia agora com mais frequência a gente do povo pronunciar as palavras que outrora a amedrontavam tanto: «socialistas, política, revolta». Tais palavras eram repetidas com ironia, mas esta ironia não chegava a disfarçar o fim principal, que era o de se informarem das opiniões; com cólera, mas sob esta cólera transparecia o medo, e todos andavam pensativos, entre alternativas de esperança e de ameaça... Em vastos círculos, lentamente, ia-se propagando a agitação na vida sombria e estagnada do povo; despertava o pensamento adormecido; os acontecimentos diários já não eram tratados com o sossego habitual e a antiga placidez dos fortes. Pelagueia notava tudo isto mais distintamente do que os seus companheiros, pois que melhor do que eles conhecia o aspeto desconsolador da vida, dela vivia mais próxima e nela divisava sintomas de reflexão e de irritação, uma sede vaga de alguma coisa nova, o que a regozijava e assustava a um tempo. Regozijava-se porque tudo considerava obra de seu filho; assustava-se porque sabia que ele, mal saísse da cadeia, logo iria colocar-se no posto mais perigoso, à frente dos companheiros... e que ali havia de morrer. Sentia muitas vezes Pelagueia agitarem-lhe o espírito os grandes ideais indispensáveis à humanidade e experimentava o desejo de falar da verdade, mas quase nunca conseguia realizar o seu desejo. Nesta mudez forçada, os seus secretos pensamentos acabrunhavam-na. Por vezes, a imagem do filho tomava a seus olhos as proporções gigantescas dum herói de lenda; nele resumia todas as máximas fortes e leais que ouvira, todos os seus afetos, todas as coisas grandes e luminosas que o seu espírito abraçava. Contemplava-o então com mudo entusiasmo; ufana, enternecida, nadando em esperança, dizia consigo: — Tudo há de ir bem!... Tudo! O seu amor materno exaltava-se, comprimia-lhe o coração até fazê-lo sangrar, mas impedia que nele o amor pela humanidade se desenvolvesse, chegando a destruí-lo de todo; e no lugar deste grande sentimento só ficava uma minúscula ideia fixa a palpitar timidamente nas cinzas frias da inquietação: — Vai morrer... Vai morrer!... Adormeceu tardíssimo em profundo sono, mas acordou logo muito cedo, com o corpo dorido e a cabeça pesada. XIV Ao meio-dia, já Pelagueia estava na secretaria da cadeia. Com turvo olhar, examinava o rosto barbudo de Pavel, que se lhe sentara em frente, à espera do momento em que poderia passar-lhe o bilhete que apertava fortemente na mão. — Estou de saúde, e outros também — dizia Pavel a meia voz. — E tu? Como vais? — Muito bem. Morreu o Iegor! — respondeu maquinalmente. — Palavra?! — exclamou Pavel; e baixou a cabeça. — Vinha a polícia no enterro, houve uma desordem, e foi um homem preso — continuou ela com simplicidade. O sub-diretor da cadeia deu com a boca um estalo, aborrecido, e levantou-se a resmungar: — Não falem nessas coisas! É proibido, já devem sabê-lo. Não se consente que se fale de política... Oh, Deus poderoso! Ela ergueu-se igualmente e em voz de inocência desculpou-se: — Eu não falava de política, falava da desordem. E o certo é que eles bateram uns nos outros. Até um ficou com a cabeça aberta! — Não faz mal, queira calar-se! Quer dizer: não profira uma palavra que não lhe diga pessoalmente respeito, a si, à sua família ou à sua casa. E para confirmar melhor as suas explicações, sentou-se à secretária e acrescentou num tom de cansaço e de enfado, ao mesmo tempo que punha em ordem uns documentos: — Depois, eu é que sou responsável. Pelagueia lançou-lhe furtivo olhar e introduziu rapidamente o bilhete na mão de Pavel. Depois, suspirou com alívio: — Nem eu sei de que hei de falar... Pavel sorriu. — Nem eu tão pouco. — Então para que serve vir fazer visitas? — observou, irritado, o funcionário. — Se não sabem de que hão de falar, não venham, não nos incomodem! — Quando vais responder? — perguntou a mãe após curto silêncio. — O procurador esteve aí um dia destes; disse que era para breve. Trocaram ainda umas frases banais. A mãe via que o seu Pavel a fitava amorosamente. Não mudara; mostrava-se, como sempre, calmo e ponderado; unicamente, a barba que lhe crescera vigorosamente, o fazia mais velho; e tinha os pulsos mais brancos. Pelagueia quis causar-lhe prazer dando-lhe notícias de Vessovtchikov.Então, sem mudar de voz, no mesmo tom em que lhe falava de bagatelas, continuou: — Vi o teu afilhado... Pavel fitou-a com o ar interrogador. E logo para evocar o rosto bexigoso do fugitivo, ela cravou o indicador em diversos pontos da cara. — Vai bem, o teu rapaz; é robusto, desembaraçado... Vai ter emprego daqui a pouco... Lembras-te? Estava sempre a exigir que lhe dessem trabalho pesado. Pavel tinha compreendido. Abanou a cabeça e respondeu com os olhos iluminados por um alegre sorriso: — Ora essa!... Se me lembro!... — Pois aí tens! — disse ela com satisfação. Sentia-se contente consigo mesma e alegre com a alegria do filho. Ao retirar- se, apertou-lhe ele a mão vigorosamente: — Obrigado, mamã! Como o vapor da embriaguez, uma sensação de êxtase subiu à cabeça da mãe; sentia o coração do filho mais perto do seu; não teve forças para lhe responder com frases e contentou-se com apertar-lhe também a mão, sem uma palavra mais. Em casa, encontrou Sachenka, pois tinha esta por costume visitá-los nos dias em que Pelagueia ia à cadeia. Nunca a interrogava acerca de Pavel; se Pelagueia, de moto próprio, não falava do filho, Sachenka ficava-se a olhar fixamente para ela, e era tudo. Mas nesse dia, acolheu-a com uma interrogação de desassossego: — E então, que faz ele? — Está bom. — Deu-lhe o bilhete? — Com certeza. — E leu-o? — Está visto que não. Como podia ele lê-lo? — É verdade!... Esquecia-me!... — emendou com lentidão a rapariga. — Esperemos mais uma semana... E que lhe parece? Estará de acordo? — E olhou fito para a mãe de Pavel. — Sim... não sei... creio que sim! — respondeu. — Porque não havia ele de se evadir? Perigo, não há nenhum... Sachenka concordou com um aceno e perguntou com secura: — Não sabe dizer-me o que é que se pode dar a comer ao doente? Diz que tem fome...— Pode comer de tudo... de tudo! Eu mesma lá vou. E encaminhou-se para a cozinha. Sachenka seguiu-a vagarosamente. Pelagueia foi ao fogão buscar uma caçarola. — Escute! — murmurou a rapariga. Fez se pálida, os olhos dilataram-se-lhe numa angústia e com os beiços trémulos, segredou de enfiada: — Queria perguntar-lhe... Eu bem sei: ele não há de querer. Mas convença-o, diga-lhe que precisamos dele, que não podemos passar sem ele, que tenho medo que ele caia doente nessa prisão... que tenho muito medo! Bem vê: nem ainda está fixado o dia do julgamento!... Falava com dificuldade e tal esforço toda a inteiriçava; não se atrevia a fitar a mãe de Pavel; a voz saía-lhe desigual como corda que se puxa de mais, e logo se quebra. Com as pálpebras cerradas molemente, mordia os beiços e ouviam-se- lhe estalar as articulações dos dedos, enclavinhados. Pelagueia, ficou emocionada ao ver aquele acesso de exaltação, mas compreendeu. Comovida, cheia de tristeza, abraçou-a e respondeu baixo: — Minha filha: ele não dá ouvidos senão a si mesmo... A mais ninguém! Permaneceram um instante em silêncio, estreitamente enlaçadas. Depois, Sachenka soltou-se-lhe dos braços suavemente e disse enleada: — Sim... tem razão! São tolices minhas... são os meus nervos! E fazendo-se de repente muito séria, concluiu simplesmente: — Mas agora me lembro: é preciso levar de comer ao doente! Daí a pouco, sentada à cabeceira de Ivan, perguntava a este em tom de amigável solicitude: — Dói-lhe muito a cabeça? — Não, não muito... Mas vejo e oiço tudo vagamente... sinto-me fraco! — respondeu Ivan confuso e puxando a roupa até o queixo. Pestanejava de contínuo, como se a luz se lhe tornasse demasiado forte. E porque notasse que o rapaz não se resolvia a comer na presença dela, Sachenka levantou-se e saiu do quarto. Ivan sentou-se na cama, seguindo-a com a vista; e, piscando o olho: — É tão bonita!... Ivan tinha uns olhos claros e espertos, dentes pequenos e muito iguais, a voz estava ainda na mudança da puberdade. — Que idade tem? — perguntou-lhe Pelagueia pensativa. — Dezassete anos. — Onde vivem seus pais?— No campo. Há sete anos que vivo aqui; abandonei a aldeia ao sair do colégio... E a senhora, camarada, qual é o seu nome? O ouvir tratar-se assim divertia sempre Pelagueia, e sensibilizava-a. Muito risonha, retorquiu: — Que precisão tem de o saber? Calou-se um instante o rapaz, confuso, e explicou: — É que um estudante do nosso grémio... quer dizer do grémio que nos fazia as leituras, falou-nos da mãe de Pavel Vlassov, sabe? Aquele que organizou a manifestação do primeiro de maio... o revolucionário Vlassov. Ela confirmou com a cabeça e apurou o ouvido. — Foi ele o primeiro a desfraldar a bandeira do nosso partido! — declarou com ênfase o rapaz, e esta exclamação de orgulho ecoou no coração da mãe. — Eu não estava no grupo... Tínhamos tenção de fazer uma manifestação também aqui, mas fomos mal sucedidos: éramos muito poucos! Mas este ano há de ser outra coisa... Verá! Ofegava, emocionado, comprazendo-se à ideia de futuros acontecimentos. Agitando a colher, prosseguiu: — Falava eu então da mãe de Vlassov... Ao que parece, entrou também para o partido depois da prisão do filho... Dizem que essa velha é extraordinária! Pelagueia teve um franco sorriso: sentia-se a um tempo lisonjeada e constrangida. Ia dizer-lhe que a mãe de Pavel era ela; mas conteve-se e pensou com tristeza e um pouco de ironia: — Que velha tola que eu sou! E de repente, dominando a sensibilidade que a dominava, curvou-se para o rapaz: — Vamos, coma! Coma que mais depressa se há de curar para prosseguir nos nossos trabalhos! A causa do povo precisa de braços juvenis e robustos, de corações puros, de espíritos leais! São essas forças que lhe dão vida; é por elas que hão de ser vencidas toda a maldade e toda a infâmia!... Abriu-se a porta, deixando penetrar o fresco húmido do outono. Entrou Sofia, alegre, com as faces muito coradas. — Os espiões andam a perseguir-me como os janotas arruinados perseguem uma herdeira rica, palavra de honra! Tenho de me ir embora daqui. — E então, Ivan, como vai?... Bem?... Pelagueia, que diz o Pavel?... A Sachenka está cá? Acendia um cigarro e ia fazendo todas estas perguntas sem esperar as respostas. Afagava no entretanto a velha e o rapaz com a carícia do seu olhar pardacento. Pelagueia considerava a recém-chegada, rindo interiormente epensava: «E eis como eu também me transformei em criatura humana... e numa boa criatura, até!» Inclinando-se de novo para Ivan, disse-lhe: — Cure-se depressa, rapazinho! E passou à casa de jantar, onde estava Sofia a dizer a Sachenka: — Ela já preparou trezentos exemplares!... Mata-se a trabalhar... Que heroísmo o dela! Sabe Sachenka, que é uma verdadeira felicidade viver entre gente assim, ser seu camarada, trabalhar com eles!... — É certo! — respondeu a rapariga. E à noite, Sofia anunciou: — Mãe Pelagueia, precisamos que faça uma nova excursão pelo campo. — Com muito gosto. Quando é a partida? — Dentro de três dias... Está por isso? — Certamente! — Mas não há de ir a pé — aconselhou Nicolau. — Alugam-se cavalos de posta e toma outro caminho: pelo distrito de Nikolski... Aqui, calou-se; tomara uns modos sombrios que não condiziam com a sua expressão habitual; as suas feições tão calmas tiveram uma contração singular de fealdade. — É uma volta muito grande! — fez notar a velha. — E os cavalos custam caro. — É preciso que saibam — prosseguiu Nicolau. — Sou geralmente contrário a estas viagens. Há agitação lá para esses lados... há pouco, fizeram-se por lá prisões, foi encarcerado um mestre escola... É bom ser-se prudente... Mais valia esperar um pouco... — Ora! — redarguiu Pelagueia a rir. — Se é certo o que dizem: que não se tortura ninguém nessas prisões... Sofia, que tamborilava sobre a mesa, observou: — Mas é importantíssimo para nós que a distribuição dos folhetos e dos manifestos se faça sem interrupção... Não tem medo de lá ir, Pelagueia? — perguntou bruscamente. Sentiu-se melindrada. — Tive eu alguma vez medo? Mesmo da primeira vez não me senti nada assustada... e a senhora... Baixou a cabeça sem terminar a frase. É que sempre que lhe perguntavam se ela tinha medo, se podia fazer uma coisa ou outra, se isto ou aquilo era fácil paraela, pressentia que precisavam de si para alguma coisa, que tratavam de se descartar dela, e que a tratavam por forma diversa da que usavam entre eles. Quando tinham vindo os dias dos acontecimentos mais consideráveis, haviam- na ao princípio assustado um pouco a rapidez dos incidentes e a repetição das emoções, mas logo, instigada pelo exemplo e sob o impulso das ideias que a dominavam, o seu coração transbordara do imenso desejo de se tornar também útil. Era este o seu estado de espírito nesse dia, e a pergunta de Sofia tornou-se- lhe assim, pois, tanto mais desagradável. — É inútil perguntar se tenho medo... ou outra qualquer coisa deste género — prosseguiu ela. — Porque havia de ter medo?... Os que possuem alguma coisa é que têm medo. E eu que tenho? O meu filho, unicamente... Tinha medo por ele... Tinha medo que o torturassem e que me fizessem outro tanto. Mas desde o momento que não há torturas, que me importa o resto? — Não está zangada comigo?! — exclamou Sofia. — Não... Somente noto que nunca pergunta aos outros se têm medo... Nicolau tirou com vivacidade os óculos, tornou a pô-los e olhou de fito para a irmã. O silêncio contrafeito que se estabeleceu agitou a alma de Pelagueia. Levantou-se constrangida; ia falar, mas Sofia, pegando-lhe brandamente em uma das mãos, disse baixinho: — Desculpe... Nunca mais lho pergunto. Esta promessa fez rir a anciã. E instantes depois, todos três conversavam afetuosamente mas preocupados, sobre a nova jornada ao campo. XV Logo ao nascer da aurora, lá ia a velha na carrinhola, em fortes solavancos pelas estradas enlameadas pelas chuvas do outono. Soprava húmido vento; a lama voava em mil respingos; o postilhão, sentado à beira do carro, virado para Pelagueia, ia a lamentar-se numa voz anasalada e filosófica: — Tinha eu dito àquele meu irmão: façamos partilhas! E começámos a fazer partilhas... Mas de repente fustigou o cavalo da mão com valente chicotada e gritou furioso: — Queres andar, ou não, estuporado animal? Os nédios corvos de outono saltitavam com gravidade pelos campos nus; o vento vinha-lhes ao encontro, assobiando; eles então apresentavam o flanco ao vento, que lhes arrepiava as penas e os obrigava a cambalear, e eles cediam à força da brisa e deitavam a voar com um palpitar indolente das asas. — Finalmente prejudicou-me, e eu vi que não havia nada a fazer com ele — concluiu o postilhão. As palavras do homem ressoavam como num sonho, aos ouvidos de Pelagueia; no seu coração germinava um pensamento muito diverso, a sua memória fazia-lhe desfilar na frente a longa série dos acontecimentos passados nos últimos anos. Outrora, a vida, para ela, era como uma coisa criada não se sabia onde, muito longe, não se sabia por quem, nem porquê, e, agora, um número considerável de coisas se faziam à sua vista e com o seu próprio auxílio. E um vago sentimento se apoderava dela: era perplexidade e suave tristeza, contentamento e desconfiança de si mesma... Em torno dela, tudo se deslocava com lento movimento; no céu, vogavam pesadamente as nuvens pardacentas, correndo para passarem umas adiante das outras; aos dois lados do caminho, fugiam as árvores encharcadas, com os cumes desnudados a baloiçarem; os campos estendiam-se em círculos regulares; montículos adiantavam-se-lhe ao encontro, depois, ficavam para trás. Dir-se-ia que aquele dia turvado ia a correr para alguma coisa longínqua, indispensável. A voz nasal do postilhão, o tintilar dos guisos, o assobiar húmido e o perpassar do vento, tudo se fundia em uma torrente sinuosa e palpitante, que corria por cima dos campos com força uniforme e que sugestionava os espíritos. — O rico até no céu acha o espaço pouco!... É sempre assim! Meu irmão entrou a chicanar... as autoridades protegem-no! — continuava o cocheiro, sentado sempre no rebordo do veículo. Chegados ao termo da viagem, desatrelou os cavalos e disse à velha num tom desesperado: — Bem me podias dar cinco kopecks para beber uma pinga.E como ela aquiescesse ao pedido, o homem declarou no mesmo tom, fazendo tinir as duas pequenas moedas no côncavo da mão: — Pois vou comprar uns três kopecks de aguardente e dois de pão!... Pela tarde, chegou Pelagueia, esfalfada e transida à importante vila de Nikolski. Dirigiu-se à hospedaria, pediu chá e, tendo ocultado debaixo dum banco a sua pesada mala de mão, foi sentar-se ao pé da janela, a olhar para o largozinho, revestido dum tapete amarelado de erva calcada, e para o edifício da administração da comuna, um casarão pardacento e triste, com os telhados a cair. Sentado nos degraus da entrada, estava um campónio calvo, de barbas compridas, a fumar o seu cachimbo. Corriam as nuvens em massas sombrias; amontoavam-se umas sobre outras. Reinava silêncio; tudo respirava um tédio de mau humor; dir-se-ia que a existência inteira se tinha ocultado não se sabia onde, silenciosa. De repente, apareceu um oficial inferior de cossacos, a galope; sopeou o alazão que montava, em frente da entrada da administração e gritou o que quer que fosse para o campónio, agitando o chicote no ar. Os seus gritos atravessavam as vidraças, mas Pelagueia não podia distinguir as palavras. O campónio levantou-se, estendeu a mão para o horizonte; o oficial inferior saltou para o chão, cambaleou um pouco, atirou as rédeas ao homem; depois, firmando-se pesadamente na balaustrada, subiu os degraus e sumiu-se no interior do edifício. Fez-se novo silêncio. Por duas vezes o alazão bateu com o casco no solo empapaçado. Uma rapariguinha, de olhos cariciosos e rosto muito redondo, com uma pequena trança loira caída no ombro, entrou na sala onde Pelagueia estava. De boca franzida, trazia sobre os dois braços estendidos uma enorme bandeja de bordas já gastas, carregada de louça. Cumprimentou com a cabeça. — Viva, minha lindinha! — disse-lhe Pelagueia amoravelmente. — Viva! Quando dispunha sobre a mesa pratos e chávenas, a pequena anunciou de chofre, muito animada: — Apanharam agora mesmo um ladrão... Vão trazê-lo para aqui. — Que vem a ser esse ladrão? — Não sei. — Que fez ele? — Não sei; só ouvi dizer que tinham apanhado um ladrão! Foi o guarda que saiu a correr da administração para ir buscar o comissário. Ia a gritar: «Está agarrado, tragam-no para cá!» Pelagueia olhou pela janela e viu que vários camponeses se aproximavam. Uns caminhavam devagar, com todo o sossego; outros, corriam e vinham aabotoar as suas capas de peles mesmo a andar. Pararam todos em frente do casarão e dirigiram os olhares para a esquerda. Mas conservavam-se todos em singular silêncio. A rapariguinha olhou também para a rua e saiu da sala, batendo ruidosamente com a porta. Pelagueia estremeceu. Ocultou o melhor que pôde a mala debaixo do banco, cobriu a cabeça com um lenço e veio fora, a passo rápido, reprimindo o incompreensível desejo de fugir que toda inteira a assaltava. Ao chegar ao poial da entrada da estalagem, sentiu nos olhos e no peito um friozinho agudo; sufocou, teve as pernas dormentes: a meio do largo caminhava Ribine com as mãos amarradas nas costas, escoltado por dois guardas. Silenciosa, a multidão dos campónios estava à espera, em volta da escadaria da administração. Atordoada, sem compreender bem o que via, Pelagueia não desfitava Ribine. Este vinha a falar, pois que Pelagueia lhe ouvia o som da voz, mas as palavras voavam indecisas, sem que tivessem eco no vácuo fremente e obscuro do seu espírito. Voltou a si e respirou melhor. Um campónio de barba loira estava a fitar nela atentamente os olhos azuis. Ela tossiu, esfregou o peito com as mãos trémulas de terror e perguntou com esforço: — Que se passa? — Veja vossemecê mesma — redarguiu o camponês, voltando-se de novo para ela. Outro rústico aproximou-se do primeiro e postou-se lado a lado. Os guardas fizeram alto em frente da populaça sem cessar crescente, mas que permanecia muda. De súbito, a voz de Ribine ressoou com energia: — Têm ouvido falar desses papéis em que se escreve toda a verdade a respeito da nossa vida de campónios?... Pois bem: foi por causa desses papéis que me prenderam! Fui eu que os distribui pelo povo! A multidão cercou então o preso. Este aparentava voz calma, refletida, e isto aliviou Pelagueia da opressão em que se sentia. — Estás ouvindo? — perguntou o segundo camponês ao dos olhos azuis, dando-lhe com o cotovelo. Este, sem responder, ergueu a cabeça e de novo fitou a velha. O outro fez o mesmo. Era mais novo que o primeiro e tinha uma cara chupada, coberta de sardas, de barbinhas pretas. Os dois afastaram-se um pouco. — Têm medo! — disse Pelagueia consigo. E aumentou de atenção. Da soleira da estalagem distinguia perfeitamente o rosto sujo e tumefacto de Ribine, divisava-lhe o brilho do olhar; desejava que ele também a visse; pôs-se nos bicos dos pés, de pescoço estendido.Vários populares atentavam nela com modos frios, desconfiados, sem proferir uma palavra. Só nas primeiras filas do ajuntamento é que se notava um sussurro continuado de conversações. — Camponeses, meus irmãos — prosseguiu Ribine com voz máscula e firme, — tenham confiança nesses escritos! É para a morte talvez, que eu caminho por causa deles! Fui espancado, torturado, quiseram obrigar-me a dizer de onde eles provinham... Pois que continuem a espancar-me — tudo suportarei!... Porque nesses papéis encontra-se a verdade, e a verdade é para ser por nós mais prezada do que o pão!... Do que a própria vida! — Para que diz ele aquilo? — perguntou um dos dois campónios. O dos olhos azuis respondeu com lentidão: — Que lhe importa, a ele? A gente não morre duas vezes... E agora que já está condenado... Os trabalhadores continuavam mudos, relanceando olhares furtivos e mal humorados; a todos parecia acabrunhar o que quer que fosse invisível mas esmagador. O oficial inferior apareceu nisto na balaustrada da administração. Titubeante e em voz avinhada, regougou: — Que vem a ser toda esta gente? Quem está para aí a falar? Precipitou-se para o largo, agarrou e sacudiu Ribine pelos cabelos, gritando: — És tu que estás a falar, filho duma cadela... és tu? Fez-se agitação entre o povo, que entrou a murmurar. Presa de violenta angústia, a cabeça de Pelagueia descaiu sobre o peito. Um dos campónios suspirou com ruído. E de novo ressoou a voz de Ribine: — Pois bem, boa gente, escutem!... — Cala-te! E o sargento deu-lhe um murro sobre o ouvido. Ribine cambaleou, depois, ergueu os ombros. — Amarram as mãos a uma pessoa para a martirizarem à vontade! — Guardas, levem-no! Olá! Toca a dispersar! E, aos saltos na frente de Ribine, como um cão preso pela trela diante dum naco de carne, o sargento atirava-lhe murros à cara, ao ventre e ao peito. — Não lhe batas! — gritou uma voz entre o povo. — Para que lhe bates? — perguntou outro. — Vamo-nos embora! — disse o dos olhos azuis para o companheiro, abanando a cabeça. E, de seu vagar atravessaram o largo, enquanto Pelagueia os acompanhava com um olhar de simpatia.Suspirou então, mais aliviada. O sargento acudiu outra vez, em pesado passo, à balaustrada e entrou a gritar, furioso, brandindo o punho: — Tragam-no para aqui, já lhes disse. — Não! — replicou uma voz sonora. (A velha percebeu que era a do camponês dos olhos azuis.) — Não devemos consentir! Se o deixam entrar ali, vai ser espancado até o matarem! E depois não faltará quem diga que a culpa foi nossa, que fomos nós que o matámos!... Não devemos consentir! — Camponeses! — gritou Ribine. — Não veem a vida que levam? Não veem como são explorados, ludibriados, e que lhes tiram o sangue?... Tudo repousa em vós; vós sois a principal força da terra... toda a sua força!... E quais são as vossas regalias? Unicamente a de morrer à fome! De súbito, os camponeses prorromperam em gritos, interrompendo se uns aos outros: — O homem tem razão! — Chamem o comissário da polícia rural! Onde está? — O sargento foi chamá-lo! — Ora adeus! O sargento está bêbedo! — Não é a nós que compete chamar as autoridades! — Fala, que não deixamos que te batam! — O que foi que tu fizeste, hã? — Desamarrem-lhe os pulsos. — Não, não, meus irmãos! — Porque não? Que importância tem isso? — Pensem bem no que fazem! — Doem-me os pulsos! — disse Ribine, dominando o tumulto com a sua voz sonora e espaçada. — Meus irmãos! Descansem que não fujo!... Eu não posso fugir à verdade, pois que ela vive em mim! Algumas pessoas separaram-se do ajuntamento e foram-se afastando com meneios de cabeça; alguns riam... Mas sem cessar, gente exaltada, mal vestida por terem envergado os fatos à pressa, vinha chegando de todos os lados. Fervilhavam em volta de Ribine qual negra escuma. De pé, no meio deles, tal um cruzeiro em meio da floresta, o preso ergueu os braços acima da cabeça e gritou: — Obrigado, obrigado, boa gente! Sim! Devemos desligar as nossas mãos mutuamente! Quem nos havia de ajudar, se nós não nos ajudássemos uns aos outros? Ergueu novamente uma das mãos, toda ensanguentada: — Veem o meu sangue? É pela verdade que o derramo!Pelagueia desceu o poial. Mas do nível do largo, já Ribine lhe não era visível; tornou pois a subir os degraus. Tinha o peito em fogo mas dentro dele sentia palpitar alguma coisa de vaga alegria... — Camponeses! Busquem esses folhetos, leiam-nos. Não acreditem nas autoridades e nos padres, que andam a dizer-lhes que são ímpios e hereges aqueles que vos trazem a verdade!... A verdade vai sempre fazendo o seu caminho silencioso pela terra, e no seio do povo encontra abrigo. Para essas autoridades ela é pior que o ferro e que o fogo. A verdade é a nossa melhor amiga; para a autoridade é uma inimiga declarada. — aí têm porque ela se esconde. De novo ressoaram entre a multidão várias exclamações. — Irmãos, escutem! — Ai, pobre homem, estás perdido! — Quem te denunciou? — Foi o padre — respondeu um dos guardas. Dois dos camponeses vomitaram logo uma chuva de impropérios. — Cuidado, camaradas! — advertiu uma voz. XVI É que vinha chegando o comissário da polícia rural. Era um homem alto e robusto, cara redonda. Trazia o boné inclinado para a orelha; uma das guias do bigode vinha retorcida para cima, a outra pendia-lhe do canto da boca, o que lhe dava uma expressão contorcida à cara, já de si desfigurada por um sorriso parado e estúpido. Na mão esquerda tinha uma pequena espada e balançava o braço direito ao ritmo dos passos. Fazia bulha, com o andar, pesado e firme. A populaça afastava-se na sua passagem. As fisionomias tomavam um aspeto de triste acabrunhamento. O tumulto sossegara, desaparecera como se se tivesse sumido pela terra. Pelagueia sentiu estremecer-lhe em repuxões nervosos a pele da fronte; ofuscava-lhe a vista uma como névoa de calor. Novamente teve vontade de ir misturar-se àquela gente; inclinou-se porém, e ficou imóvel, em angustiosa expetativa. — Que temos? — perguntou o comissário, parando diante de Ribine e medindo-o dos pés à cabeça. — Porque é que este homem não tem as mãos amarradas? Porquê? Amarrem-lhas! Tinha a voz aguda e sonora, mas sem timbre. — Ele tinha as mãos amarradas... mas o povo desamarrou-lhas! — respondeu um guarda. — O quê? O povo? Que povo? Percorreu com a vista o semicírculo que o cercava e prosseguiu na sua voz branca e uniforme: — Quem vem a ser aqui o povo? Tocou com o punho da espada o peito do camponês de olhos azuis: — És tu que és o povo, Tchumakov? E quem mais? És tu, Michine? E deu um puxão nas barbas doutro camponês. — Vamos a dispersar, canalha!... Senão, comigo se hão de haver...! Não demonstrava no tom em que falava nem irritação nem ameaça, como tão pouco na fisionomia. Exprimia-se com uma tranquilidade completa e ia distribuindo as pancadas em gestos firmes e iguais. Diante dele, os grupos recuavam, baixavam-se as cabeças, desviavam-se os rostos. — Então, por que esperam? — perguntou aos guardas. — Amarrem-no! E depois de uma chuva de insultos cínicos, virou-se de novo para Ribine: — Olá, tu! Mãos atrás das costas! — Não quero ser amarrado! — replicou Ribine. — Eu não fujo... não me defendo... Para que serve amarrarem-me?— O quê?! — exclamou o comissário, indo para ele. — Já bastante martirizastes o povo, feras! — continuou Ribine, erguendo a voz. — Também vocês dentro em pouco hão de ter os seus dias de sangue! O comissário parou-lhe na frente de chofre e pôs-se a mirá-lo, ao mesmo tempo que repuxava o bigode. Depois, recuou um passo e disse em tom de espanto e numa voz sibilante: — Ah, filho dum cão!... Que significam essas palavras? E bruscamente, com toda a força, descarregou uma punhada no rosto de Ribine. — Não se destrói a verdade a murros! — gritou este, crescendo para ele. — E tu não tens o direito de me bater! — Eu não tenho o direito?! — berrou o comissário, destacando muito as palavras. E novamente atirou o braço para atingir o rosto de Ribine. Este baixou-se, por forma que o comissário, com o impulso, esteve a ponto de cair. De entre o ajuntamento alguém fungou com ruído. Furioso, Ribine repetiu: — Já te disse que não tens o direito de me bater, grande diabo! O comissário olhou em torno. Os homens, silenciosos e de má catadura, rodeavam-no em compacto círculo. — Nikita! — chamou. — Olá, Nikita! Um campónio baixote e atarracado, vestido de um curto casacão de peles, saiu do grupo. Vinha de olhos fitos no chão, com a enorme cabeça baixa e os cabelos desgrenhados. — Nikita! — ordenou o comissário com a maior tranquilidade e retorcendo o bigode. — Dá-lhe uma bofetada boa! O homem deu um passo para diante, parou em frente de Ribine e ergueu a cabeça. Ribine, à queima roupa, bombardeou-o com estas palavras sinceras e duras: — Vejam vocês, boa gente, como este bruto vos esmaga com a vossa própria mão!... Vejam bem... e reflitam. Lentamente, o homem ergueu o braço e contundiu Ribine na cabeça, mas levemente. — Assim é que eu te mandei fazer, canalha? — gritou o outro, esganiçando- se. — Eh, Nikita! — disse alguém próximo. — Não te esqueças de que Deus te está vendo! — Bate-lhe, já to disse! — gritou o comissário, empurrando o camponês.Este afastou-se um passo e respondeu com frieza, de cabeça baixa: — Não, senhor! Não estou para mais! — Como? Contraiu-se o rosto da autoridade. Bateu o pé e precipitou-se sobre Ribine, rogando pragas. A pancada ressoou em surdo choque. Ribine cambaleou, agitou o braço; em segundo assalto, prostrou-o o comissário no solo e, aos pulos em volta dele, entrou a dar-lhe pontapés na cabeça, pelo peito, nas ilhargas. A multidão, soltando gritos hostis, pôs-se em movimento e cresceu para o comissário, mas este deu um salto para o lado e desembainhou a arma. — Ah, é assim? Revoltam-se? Ah, é isso? Tremeu-lhe a voz, tornou-se mais aguda e passou a sair-lhe da garganta em guinchos, como se se tivesse quebrado. E ao mesmo tempo que perdia a voz, sentia-se perder todo o prestígio. Com a cabeça encolhida nos ombros, o dorso recurvado e relanceando em torno o olhar amortecido, entrou a recuar, tateando cautamente o solo atrás de si. Amedrontado, rouquejava, ao mesmo tempo que ia cedendo: — Muito bem... Fiquem com ele... Eu vou-me embora!... Mas, depois? Fiquem bem sabendo: esse homem é um criminoso político, combate contra o nosso czar, anda a fomentar revoltas! Compreendem? É contra Sua Majestade o Imperador... e vocês defendem-no! Sabem que ficam sendo rebeldes? Imóvel, o olhar de estátua, sem ideias nem ação, como num pesadelo, Pelagueia sucumbia ao peso do terror e da sua piedade. Semelhantes às vibrações dum sino enorme, sussurravam-lhe aos ouvidos os gritos irritados da plebe. Tudo lhe remoinhava dentro da cabeça, a voz tremente do comissário, mil ruídos confusos... — Se é criminoso, seja julgado! — E não massacrado! — Tenha dó dele, excelência! — Pois está claro! Não tem direito de bater-lhe! — Se isto são maneiras de proceder! Dessa forma, começam todos para aí a bater na gente! O que será então! — Que brutos! Que carrascos! Dividia-se o povo em dois grupos: uns rodeavam o comissário, gritavam, exortavam-no, os outros, menos numerosos, permaneciam junto do ferido e discorriam em voz baixa e com ares de abatimento. Ergueram-no do chão alguns homens. Os guardas dispunham-se a ligá-lo de novo. — Esperem aí, seus diabos! — gritaram-lhes. Ribine limpou a lama e o sangue que lhe empastavam a cara e, silencioso,olhou em torno. Deu então com a vista no rosto de Pelagueia. Esta estremeceu, adiantou todo o corpo para ele, fez instintivo gesto. Ele desviou os olhos. Mas, alguns instantes mais tarde, voltava o olhar do preso a fixar-se nela. Afigurou-se à pobre mulher que Ribine se endireitava na sua direção, que erguia a cabeça para ela, com um movimento convulso das ensanguentadas faces. — Reconheceu-me!... É possível que me tenha reconhecido?!... E, vibrante de uma pungente satisfação angustiada, fez-lhe um sinal com a cabeça. Mas logo reparou no homem dos olhos azuis, que se encontrava junto de Ribine e que a fitava. Despertou nela a consciência do perigo. — Que estou eu a fazer?... Podem prender-me também. O homem segredou algumas palavras a Ribine; este abanou a cabeça e disse nervosamente mas por forma distinta e valorosa: — Que importa? Se eu não estou sozinho no mundo!... A verdade nunca poderá ser encarcerada! O povo há de lembrar-se de mim por toda a parte onde passei... Aí está! O ninho foi destruído, mas que mal vai nisso, se dentro dele já não estavam nem amigos, nem camaradas? — É para mim que está a falar! — pensou Pelagueia. — O povo saberá construir outros ninhos, em prol da eterna verdade, e há de chegar o dia em que as águias voarão livremente... em que o povo será libertado! Trouxe uma mulher um balde de água e, desfazendo-se em lamentações, entrou de lavar o rosto do preso. A vozinha chorosa e fina da mulher confundia- se com a de Ribine e não deixava que Pelagueia entendesse o que ele dizia. Precedido do comissário de polícia, avançava um grupo de camponeses. Alguém ordenou: — Um carro para levar o preso para a cidade! Olá, a quem toca fornecer o carro? Em seguida, o comissário gritou numa voz transtornada e como vexado: — Eu posso bater-te, entendes? Mas tu não me podes fazer outro tanto, tu é que não tens esse direito, idiota! — Ah! E quem és tu então? Deus de misericórdia! — replicou Ribine. Algumas exclamações abafadas cobriram a resposta. — Não discuta, tiozinho! Olhe que é um chefe! — Não se zangue mais, excelência! — Cala-te daí, meu original! — Vão-te já levar para a cidade!... — Lá, há mais respeito pela lei! Os gritos da populaça tornavam-se mais conciliadores, suplicantes;conjugavam-se em indistinta vozearia, lamentosa, mas sem qualquer nota em que se traduzisse uma esperança. Os guardas agarraram Ribine pelos braços, conduziram-no pela escadaria da administração e com ele penetraram no edifício. Lentamente, a multidão foi-se escoando. Pelagueia notou que o homem dos olhos azuis se dirigia para o seu lado e a observava de soslaio. Tremiam-lhe as pernas; desconsoladora sensação de impotência e de isolamento lhe alanceava a alma, causando-lhe náuseas. — Não devo ir-me embora! — pensou. — Não o devo fazer! Reteve-se vigorosamente à balaustrada e ficou esperando. Em pé, no cimo da escadaria da administração, o comissário discursava com grandes gestos, repreensivo, e na sua voz outra vez incaraterística de indiferença: — Imbecis! Filhos de cães! Não compreendem nada e vão meter-se num negócio destes!... Num negócio de Estado! Idiotas! Vocês deviam agradecer-me a minha bondade, deviam inclinar-se diante de mim, até ao chão! Se eu quisesse, iam todos para as galés! Escutavam-no uns vinte campónios, de chapéu na mão. Caía a noite; vinham descendo as brumas... Então o homem dos olhos azuis aproximou-se de Pelagueia e comentou com um suspiro: — Que cantiga aquela, hã? — É verdade! — respondeu baixo. Ele fitou-a com um modo decidido; perguntou: — Em que se emprega? — Compro rendas às mulheres que as fabricam... e panos também. O campónio afagou devagar a barba; depois, disse em tom de contrariedade e a olhar na direção da vila: — Não temos nada disso lá em casa... A velha examinou-o da cabeça aos pés e ficou-se esperando instante oportuno para voltar ao interior da hospedaria. Era belo e pensativo o rosto do homem; nos olhos tinha uma nuvem de melancolia. Alto e espadaúdo, vestia uma blusa muito remendada, uma camisa limpa, de chita, umas calças cor de castanha, de grosseiro pano e trazia os pés nus numas alpercatas de cânhamo. Sem saber porquê, soltou Pelagueia um suspiro como de alívio. E de súbito, obedecendo a um instinto mais pronto do que o seu raciocínio, perguntou-lhe em um impulso que a ela mesma surpreendeu: — Posso passar a noite em tua casa? E logo sentiu os músculos, o corpo inteiro retesarem-se num espasmo. Atravessaram-lhe rapidamente o cérebro ideias cruciantes:— Vou perder Nicolau!... Não mais tornarei a ver o Pavel... por muito tempo... E hão de espancar-me também! O homem, sem precipitação alguma, olhos no chão, respondeu, enquanto cruzava sobre o peito a gola da blusa: — Passar a noite? Sim... porque não? O pior é que a minha cabana não é grande coisa! — Também, eu não estou habituada a mimos! — respondeu ela. — Está bem! — aquiesceu o campónio, medindo-a por seu turno com olhar perscrutador. À claridade do crepúsculo, os olhos do homem tinham um brilho frio; o rosto tornara-se-lhe muito pálido. E logo, Pelagueia, baixo: — Então, vou já contigo... Hás de trazer-me a mala. — Está dito. Encolheu os ombros, cruzou outra vez a blusa e segredou: — Ora, veja: lá vem a procissão! Ribine surgira no topo da escadaria. Trazia de novo as mãos amarradas, e a cabeça e a cara embrulhadas em qualquer coisa pardacenta. A sua voz vibrou na frialdade do crepúsculo: — Até mais ver, boa gente! Busquem a verdade, conservem-na; creiam naqueles que vos trazem as boas palavras... Não poupem quantas forças tenham, em prol da verdade! — Cala-te, cão! — gritou o comissário. — Guarda, faz andar esses cavalos! — Pois que têm a perder? Que existência é a vossa? Pôs-se o carro em andamento. Sentado entre dois guardas, Ribine ainda gritou cavamente: — Porque morrem de fome? Trabalhem por obter a liberdade... É ela que lhes há de dar pão e justiça!... Boa gente, adeus! O ruído precipitado das rodas e das patas dos cavalos, as invetivas do comissário de polícia confundiam-se com a sua voz, entrecortando-a e abafando- lha. Pelagueia voltou para dentro de casa; sentou-se à mesa, perto do samovar, agarrou num pedaço de pão, examinou-o e tornou a pô-lo lentamente no prato. Não tinha vontade de comer, bem que experimentasse na boca do estômago uma desagradável sensação que lhe esgotava as forças, que lhe expulsava o sangue do coração e lhe fazia andar a cabeça à roda. — Ele deu por mim! — dizia ela consigo, tristemente, no sentimento da sua fraqueza, para poder reagir. — Deu por mim... Adivinhou, com certeza!...E não podia ir mais longe o seu pensamento: fundia-se numa prostração dolorosa, numa sensação viscosa de enjoo... O silêncio tímido, como que acoitado para além das vidraças e que sucedera ao burburinho, provava que em toda a vila os habitantes haviam voltado ao antigo torpor medroso e subserviente, e isto mais lhe acirrava a sensação de isolamento em que se debatia, enchendo-lhe o espírito de obscuridade pardacenta e penetrante como cinza. A rapariguinha abriu a porta e do limiar perguntou: — Quer que lhe traga uma omelete? — Não... Já não tenho vontade... Esta gritaria fez-me um mal!... A pequenita foi até junto da mesa e pôs-se a narrar animadamente, mas em voz baixa: — Como ele lhe bateu com força, o comissário!... Eu estava mesmo ao pé dele; vi tudo... Até quebrou os dentes todos do homem!... E quando o homem escarrava, o sangue vinha muito grosso, muito grosso e escuro!... Nem se lhe viam os olhos!... O sargento está cá. Está embriagado de todo e não faz senão pedir vinho. Diz ele que era uma quadrilha inteira e que aquele das barbas era o chefe. Apanharam três, mas um fugiu... E também prenderam um mestre escola que andava com eles!... Eles não creem em Deus e aconselham o povo a roubar todas as igrejas. Aqui está o que eles fazem! Havia homens que tinham dó do tal das barbas, mas outros diziam que se devia dar cabo dele!... Sempre há homens muito maus cá no nosso sítio! Pelagueia escutava atenta esta rápida e entrecortada narrativa; esperava distrair assim o seu desassossego e dissipar a opressora angústia da expetativa. A pequena encantada com tão boa ouvinte, tagarelava sempre com crescente animação, comendo as palavras: — O papá diz que tudo isto vem da falta de géneros, tudo! Há já dois anos que a terra não produz nada... e toda a gente anda sem saber o que há de fazer. É por isso que aparecem agora homens como aquele. É uma desgraça! Vão para as reuniões gritar e bater uns nos outros!... Ainda no outro dia, quando venderam as terras do Vassiukov, porque não pagava o foro, deu uma bofetada no staroste. [5] «Aí têm o foro!» disse-lhe o Vassiukov. Ressoaram pesados passos para além da porta. Pelagueia ergueu-se com as mãos apoiadas na mesa. O camponês dos olhos azuis entrou e sem tirar o boné: — Onde tem a sua bagagem? Ergueu a mala sem esforço algum. E observou: — Está vazia!... Maria, acompanha esta viajante a minha casa.E saiu sem olhar para ninguém. — Vai passar a noite à vila? — inquiriu a pequena. — Vou, sim! Eu negoceio em rendas e quero ir fazer as minhas compras. — Não há de encontrá-las por cá. Em Tinekov e em Darino, aí é que as fazem, mas cá na terra, não! — explicou Maria. — Pois amanhã lá irei... Pagou o chá e deu três kopecks à pequena, que ficou contentíssima. Já na rua, propôs esta, enquanto ia chapinhando com os pés descalços pela terra húmida: — Se a senhora quer, eu vou muito depressa a Darino, digo às mulheres que lhe tragam cá as rendas... As mulheres vêm e a senhora não precisa fazer a viagem... Olhe que sempre são doze quilómetros! — Não, minha lindinha, não é preciso — respondeu, continuando a caminhar ao lado da pequena. Acalmara-a o ar fresco da tardinha. Lentamente, formava vaga resolução confusa, mas que a satisfazia. Tal ideia ia germinando com força e, para lhe abreviar a definitiva fixidez, Pelagueia ia sem cessar perguntando a si mesma: — Que fazer?... Proceder aberta, francamente?... Tinha caído completamente a noite, húmida e glacial. Brilhavam as janelas das cabanas com avermelhadas, baças, imóveis claridades. O gado fazia ouvir no silêncio mugidos de indolência. Aqui e ali, distinguiam-se breves exclamações. Esmagadora melancolia envolvia todo o lugar. — É aqui! — disse a rapariguinha. — Sempre escolheu muito má casa! Este camponês é tão pobre!... E às apalpadelas, procurou a porta abriu-a e gritou com voz esperta: — Tatiana, aqui está a sua hóspede! E logo deitou a correr. A sua vozinha vibrou ainda na escuridão: — Adeus! XVII Pelagueia deteve-se no limiar a examinar o interior, abrigando os olhos sob a mão em pala. Era pequena e acanhada a choupana, mas de um asseio que logo saltava à vista. Uma mulher nova apareceu por detrás do fogão, cumprimentou em silêncio e desapareceu de novo. A um canto, sentado a uma banca, sobre a qual havia um candeeiro aceso, o dono da casa tamborilava com os dedos na madeira. Fitava demoradamente a recém-chegada. — Entre! — disse-lhe ao cabo de alguns momentos. — Tatiana, vai chamar o Pedro, depressa! A mulher saiu rapidamente sem mesmo dispensar um simples olhar à viajante. Esta sentou-se num banco, em frente do aldeão e divagou a vista pelo aposento. Não via a sua mala. Reinava grave silêncio na cabana; só o candeeiro fazia ouvir um leve crepitar da chama. A fisionomia daquele homem, preocupada e um tanto carrancuda, vacilava à luz mortiça, com feições mal definidas. — Então: Fala... Avia-te!... — E onde está a minha mala? — perguntou logo Pelagueia em voz alta e com severidade, sem ter bem consciência do motivo por que assim falava. O campónio encolheu os ombros. Pensativo, respondeu: — Deixa estar que não está perdida! E acrescentou friamente e em voz baixa: — Eu disse diante da pequena que a mala estava vazia. Cá tinha as minhas razões. Ao contrário, você traz ali coisas bem pesadas... — E então? Levantou-se, aproximou-se dela, curvou-se e inquiriu, baixando ainda mais a voz: — Conhece aquele homem de há pouco? Pelagueia estremeceu, mas declarou com firmeza: — Conheço! Estas simples respostas parecia-lhe que a acalentavam interiormente, iluminando tudo em volta com a luz dum heroísmo. Sorriu-se o campónio. — Eu bem a vi fazer-lhe um sinal... E ele respondeu-lhe... Perguntei-lhe ao ouvido se conhecia a mulher que estava à porta da hospedaria... — E ele? — interrogou com ansiedade. — Ele disse só isto: «Somos em grande número...» Sim, foi isto que ele disse: «Somos em grande número...»Perscrutava com olhar interrogador a sua hóspede. Sorriu outra vez e prosseguiu: — É uma grande força, aquele homem!... Tem muita coragem; diz o que pensa! Batem-lhe, injuriam-no, mas não cede! Com o escutar aquele falar ingénuo, com o ver aquelas feições grosseiras e aqueles olhos francos e claros, ia-se tranquilizando pouco a pouco Pelagueia. O seu acabrunhamento e os seus receios dissipavam-se para dar lugar a uma compaixão intensa e profunda para com Ribine. Foi assim que, com súbita e amarga ira, que não pôde reprimir, ela exclamou em tom de lamento: — Aqueles monstros! Aqueles bandidos! E entrou a soluçar. O campónio deu alguns passos, abanando a cabeça com pesar. — É verdade!... O governo tem andado a arranjar temíveis inimigos! E de repente, voltando para junto dela, segredou: — Escute. Suponho que traz jornais na mala... É certo? — É! — respondeu Pelagueia simplesmente. E limpava as lágrimas. — Era para ele que os trazia. O dono da casa carregou os sobrolhos, juntou na mão toda a barba em punhado e ficou-se calado, a olhar para um canto. — Nós também recebemos um... e folhetos, livros... Eu cá não sou muito instruído, mas tenho um amigo que o é. E minha mulher também me lê essas coisas. Calou-se de novo, pôs-se a pensar; depois perguntou: — E agora que vai fazer a tudo isso, à sua mala? A velha fitou-o, e, em tom de instigação: — Deixo-lha cá! O outro não pareceu surpreso, não protestou; apenas repetiu: — Deixa-a cá? Mas nisto estendeu o pescoço para a porta, apurou o ouvido. — Vem aí gente, segredou. — Quem? — Gente nossa, provavelmente... Entrou a mulher, seguida do campónio sardento. Este atirou o boné para um canto, foi até junto do dono da casa e disse-lhe: — E então?O outro meneou a cabeça afirmativamente. — Ó, Stepane! — lembrou a mulher. — Talvez a nossa viajante tenha vontade de comer. — Não, muito obrigada, minha querida senhora. Voltou-se o segundo camponês para ela e em voz rápida, um tanto quebrada pela comoção: — Permita que eu mesmo me apresente. Chamo-me Pedro Rabinine, por alcunha o Sovela. Percebo alguma coisa desses negócios... Sei ler e escrever e não sou um imbecil, para falar assim... Apertou a mão que Pelagueia lhe estendera, sacudiu-lha, enquanto ia dizendo a Stepane: — Ora vê tu lá, Stepane! A esposa do nosso senhor e amo é uma boa senhora, pois não é? E apesar disso, ela diz que todas estas coisas são tolices, extravagancias!... Que são estudantes e garotos que se divertem a alvoroçar o povo. Mas não vimos nós dois, ainda agora, ser preso um homem de bem? E agora estás vendo esta mulher que já não é criança nenhuma e que também não me parece que seja fidalga, e que está do nosso lado... Não se ofenda! Como se chama? Falava rápido, mas com voz distinta, quase sem tomar fôlego; o queixo tremia-lhe nervosamente e com os olhos franzidos, perscrutava o rosto e toda a pessoa de Pelagueia. Andrajoso, os cabelos em desalinho, dava a pensar que acabasse de alguma luta em que tivesse vencido o seu adversário e que o dominasse a álacre excitação duma vitória. Agradou-se dele Pelagueia por amor de tal vivacidade e principalmente por tê-lo ouvido falar com simplicidade e franqueza desde o começo. Correspondeu com amigável olhar às suas boas palavras. O outro sacudiu-lhe outra vez a mão e pôs-se a rir, num risinho seco e meigo, muito acentuado. — É negócio de seriedade, bem vês, Stepane. É coisa que a todos dá honra! Eu bem te dizia que o povo começava a fazer obra pelas suas mãos... A fidalga, essa, não quer dizer a verdade, porque isso ia prejudicá-la. Mas o povo quer ir para a frente, está decidido a isso, sem lhe importarem perdas nem prejuízos, estás entendendo? Pois se ele leva má vida, se não tem senão prejuízos de todos os lados, se ele não sabe para onde se há de voltar, pois que não ouve outra coisa senão «Prende! Mata!» — Bem vejo! — aprovou o outro, abanando a cabeça. E acrescentou: — Está em cuidado por causa da mala. — Não se inquiete, está tudo em ordem, tiazinha! A sua mala foi para minha casa. Há bocado, quando o Stepane me falou a seu respeito e me disse que também era cá dos nossos, que conhecia aquele homem, disse-lhe eu: «Tomacuidado, Stepane! Nada de dar à língua! Olha que é coisa séria!» Mas vossemecê, ainda agora, tiazinha, logo adivinhou também que a gente estava do seu lado. É que as caras da gente honrada conhecem-se num pronto, porque elas não são muitas por essas ruas, ah, não!... A sua mala foi para minha casa! Sentou-se-lhe ao lado e alvitrou com uma solicitação em cada olhar: — E se quer despejá-la, com todo o gosto a ajudamos... Precisam-se livros por cá. — Quer dar-nos tudo! — declarou Stepane. — Está muito bem, tiazinha! Deixe, que havemos de saber empregá-los bem. E bruscamente, levantou-se, entrou a rir. Depois, passeando a passos largos pela cabana, satisfeito: — É o que se pode chamar um caso de pasmar... ainda que bem simples, afinal! Parte-se a corda num sítio e concerta-se noutro. E a coisa assim não vai mal... Olhe que é muito bom, esse periódico, tiazinha; faz efeito, abre os olhos ao povo. Está visto que não agrada aos nossos senhores! Trabalho eu agora na casa dum proprietário, a sete quilómetros daqui; sou marceneiro... A mulher dele é boa criatura, forçoso é concordar; dá-nos livros... alguns bastante estúpidos. Vamo-los lendo e vamo-nos instruindo... Ficamos-lhe em geral reconhecidos. Mas quando eu lhe mostrei o tal jornal, zangou-se e disse: «Deixe isso, Pedro. Os que o escrevem não passam duns garotos e duns tolos, e com isso vossemecê não arranja senão desgostos... a cadeia e a Sibéria. Aqui tem o que lhe pode acontecer se continuar a ler esses papéis.» Após um instante de reflexão, perguntou: — Diga-me: aquele outro... o homem... é da sua família? — Não — respondeu Pelagueia. Pedro pôs-se a rir só consigo, muito satisfeito, sem que os outros soubessem porquê. Afigurou-se a Pelagueia uma injustiça falar de Ribine como de qualquer estranho. — Não é da minha família — explicou; — mas há muito que o conhecia... Respeito-o como se fosse meu irmão... Mas não achava a expressão que buscara. Tal deficiência tornava-se-lhe dolorosa; e não pôde conter o pranto. Na choupana reinava melancólico silêncio. Pedro inclinou a cabeça sobre o ombro; dir-se-ia que escutava o que quer que fosse. Reclinado sobre um dos cotovelos, Stepane tamborilava. A mulher deste, encostada ao fogão, conservava-se na sombra. Pelagueia sentia-lhe o olhar fito e, por vezes, olhava também para ela, entrevia-lhe o rosto redondo, de pele escura, nariz direito, o mento talhado em ângulo e com uma expressão de atenta vigilância nos olhos esverdinhados. — É portanto, um amigo! — concluiu Pedro. — É um homem de valor, porcerto! Tem-se em grande conta e assim devem todos fazer. Aquilo é que é um homem! Não é assim, Tatiana?... Que dizes? — É casado? — interrompeu Tatiana. E franziu com força os lábios delgados da sua boca miúda. — É viúvo — respondeu a velha com tristeza. — Por isso tem tanta coragem! — declarou Tatiana em tom profundo e grave. — Um homem casado não se portava assim; tinha medo! — E então eu, não sou casado? E no entretanto... — observou Pedro. — Basta! — disse a mulher sem o fitar e com uma contorção de altivez nos lábios. — Que fazes tu? Falas muito e lês um livro de tempos a tempos! Não é por andares aos segredinhos com o Stepane, pelos cantos, que o povo é mais feliz. — Mas é que há muito boa gente que me dá atenção! — contestou, ofendido, o campónio. — Fazes mal em falar-me dessa maneira! Eu sou como uma espécie de fermento... Stepane olhava para sua mulher, sem uma palavra. Por fim, baixou a cabeça. — Para que se casa a gente do campo? — perguntou ela. — Porque precisam de quem trabalhe, dizem eles. Para trabalhar em quê? — Então tu não tens bastante em que te entretenhas? — interrompeu Stepane, já zangado. — E para que serve esse trabalho? O povo continua a viver na miséria! Nascem os filhos e nem sequer há tempo para tratar deles, porque o trabalho urge, o trabalho, que nem nos dá o pão! E dito isto, foi sentar-se ao lado de Pelagueia. Numa obstinação que não lhe dava à voz nem tristeza nem lágrimas, prosseguiu: — Eu tive dois... Um morreu escaldado pelo samovar, tinha dois anos; o outro nasceu morto... sempre por causa do maldito trabalho! Que felicidade me trouxe então o casamento? O que acho é que a gente do campo faz mal em casar: ficam de mãos amarradas, e aí está! Se se conservassem livres, haviam de combater abertamente em prol da verdade, como esse homem que tu conheces... Não tenho razão, mãezinha? — Tens! — declarou. — Sim, minha querida; de outra forma não se podem vencer as contrariedades da vida. — E a senhora, tem marido? — Já morreu. Tenho um filho... — Onde está ele? Vive consigo? — Está na cadeia! E no seu coração, um pacífico orgulho temperava a tristeza de que tais palavras vinham sempre acompanhadas.— É já a segunda vez que o encarceram por ter compreendido a verdade divina e por andar a semeá-la, abertamente, sem se poupar a fadigas!... O meu filho é moço, é belo rapaz e é inteligente! Foi dele a ideia de fundar um jornal; foi graças a ele que o Ribine se prestou a distribuí-lo, havendo a notar que o Ribine tem duas vezes a idade dele! Vão julgá-lo dentro em pouco, por tudo isso. Mas depois, quando o meu filho estiver na Sibéria, fugirá e voltará a continuar na campanha. — Temos já muita gente e o número aumenta sempre! Todos estão decididos a lutar até à morte, pela liberdade, pela verdade! Então, pôs de lado toda a prudência. Não citou nomes, mas contou tudo o que sabia do trabalho minaz a que se andava procedendo em favor do povo. E ao entrar neste assunto tão caro ao seu espírito, punha nas palavras toda a energia, todo o excesso do amor que tão tarde brotara nela sob os repetidos golpes da adversidade. A voz afluía-lhe igual; acudiam-lhe agora as palavras com tranquila facilidade, e quais pérolas multicolores e irisadas, enfiava-as com rapidez no sólido fio do seu desejo de purificar a alma de toda a lama e de todo o sangue daquele dia. Os aldeões como que tinham criado raízes nos sítios em que as suas primeiras palavras os haviam encontrado. Imobilizados, fitavam-na em grave compostura. Chegava a ouvir a respiração arquejante da mulher que se lhe sentava ao lado; e a atenção do auditório fortificava-lhe a crença nas coisas que dizia e prometia. — Todos os que se sentem esmagar pela injustiça e pela miséria, o povo inteiro, devem correr ao encontro dos que por ele morrem nas prisões ou nos cadafalsos. Não têm esses nenhum interesse pessoal em jogo. Explicam qual é o caminho que conduz à felicidade de todos, mas dizem abertamente quão difícil é esse caminho! Não constrangem ninguém, mas quando tomamos lugar nas suas fileiras, nunca mais os abandonamos, pois vemos que têm razão, que esse caminho é o verdadeiro, e que não há outro. Era grato ao coração da anciã realizar finalmente o seu desejo: ela própria falava agora ao povo, acerca da verdade! — Com tais amigos, pode o povo marchar sem receio: eles não cruzarão os braços sem que o povo se tenha conjugado numa só alma, sem que tenha bradado com uma voz única: «Sou eu o supremo senhor; eu mesmo farei as leis, iguais para todos!» Fatigada por fim, calou-se Pelagueia. Tinha a serena certeza de que as suas palavras não se extinguiriam sem deixar vestígios. Os camponeses continuavam a fitá-la, como se ainda a escutassem. Pedro cruzara os braços no peito e cerrara as pálpebras, com um sorriso a brincar-lhe nas faces sardentas. Com o cotovelo na mesa, Stepane inclinara-se, adiantando todo o corpo, de pescoço estendido.Velava-lhe o rosto uma névoa, um aspeto de maior sisudez. Sentada junto dela, com os cotovelos firmados nos joelhos, Tatiana fitava os bicos dos sapatos. — Ah! Aí está! — balbuciou Pedro. E sentou-se num banco, com precaução, a abanar a cabeça. Stepane endireitou lentamente o tronco, lançou rápido olhar a sua mulher e estendeu o braço, como se quisesse alcançar alguma coisa. — Com efeito — começou ele, meditativo, — quem quiser meter ombros à empresa, é para se lhe entregar de toda a alma! Pedro interveio aqui, timidamente: — Está claro... e sem olhar para trás! — O negócio vai a bom caminho! — continuou Stepane. — E em todo o mundo!... — disse ainda Pedro. XVIII Recostada e com a cabeça reclinada na parede, escutava Pelagueia as reflexões dos dois homens. Tatiana levantou-se, olhou em roda, tornou a sentar-se. Com um brilho metálico nas pupilas verdes, lançou olhares de desprezo aos dois. — Vê-se que tem sido muito infeliz! — disse de súbito, voltando-se para Pelagueia. — É verdade! — A senhora fala bem... As suas palavras vão direitas ao coração. Quando a gente a escuta, pensa: «Meu Deus! Quem pudesse ver, ainda que não fosse senão uma vez, gente tão boa, viver vida tão bela!» Como vivemos nós, aqui? Como uns carneiros! Eu sei ler e escrever... e leio livros... reflito muito; às vezes, tenho ideias que nem me deixam dormir de noite. E qual é o resultado de tudo isto? Se não reflito, sofro, e sofro em vão; se reflito, é a mesma coisa! Demais, tudo é baldado! Assim, esta gente do campo: trabalham, esfalfavam-se por amor dum pedaço de pão... e nunca possuem nada!... E é isso o que os irrita; entram a beber, a bater uns nos outros... e lá vão outra vez para o trabalho. E o que se apura daí? Nada. Falava assim, deixando transparecer a ironia no olhar e na voz grave e ampla, detendo-se por vezes, como para cortar as frases, tal a linha com que estivesse costurando. Os homens nada objetaram. O vento rufava nas vidraças, sussurrava no colmo do teto, e por momentos, soprava em brandas lufadas pela chaminé. Uivava um cão. Raras gotas de chuva vinham, como a custo, fustigar a janela. Oscilava a luz do candeeiro, empalidecia e recomeçava de súbito a brilhar, viva e igual. — E aqui está para que vivem os homens! E é curioso: persuado-me de que já sabia tudo isto! Todavia, nunca tinha ouvido nada parecido; nunca tinha tido ideias deste género... nunca! — Tratemos de cear, Tatiana, e de apagar o lume! — interrompeu Stepane com voz abatida e vagarosa. — Essa gente há de pensar: «Os Tchumakov tiveram o lume aceso até muito tarde!» Para nós, isso não teria importância, mas é por causa da nossa visita. Talvez seja imprudente... A mulher logo se levantou, dando-se pressa em obedecer. — É certo! — confirmou Pedro, com um sorriso. — É preciso ter cuidado, agora! Quando se tiver feito nova distribuição do jornal... — Não é por mim que falo — declarou Stepane, — mesmo se me prenderem, a desgraça não será grande! A vida dum campónio nenhum valor tem. Experimentou Pelagueia súbita compaixão por aquele homem. E era maisviva do que pouco antes a sua simpatia por ele. Agora, que já tinha falado, sentia- se desajoujada do peso ignóbil dos acontecimentos desse dia; sentia-se contente consigo mesma e cheia dum sentimento de benevolência. — Não deve falar assim! — disse ela. — O homem nunca deve medir-se pelo valor que lhe atribuem aqueles que só o julgam por aparências e dele só pretendem o sangue. Aprecie-se a si mesmo, na sua consciência, não para os seus inimigos, mas para os seus amigos! — E onde estão esses amigos?! — exclamou o camponês. — Nunca os vi! — Mas se eu te digo que há amigos do povo! — Haverá, mas não aqui; e essa é que é a desgraça! — contestou Stepane, pensativo. — Pois bem! Nesse caso, é preciso que os criem. Refletiu o outro e respondeu em voz baixa: — Sim... era o que se precisava. — Vamos para a mesa! — propôs Tatiana. Durante a ceia, Pedro, a quem as exortações de Pelagueia pareciam ter preocupado, voltou a falar com animação: — Sabe, tiazinha? Olhe que é bom que se vá daqui cedo, para não ser notada. Vá à aldeia próxima; não vá à cidade; e tome uma carruagem. — Para quê? — objetou o outro homem. — Se eu próprio a levo comigo! — Nada disso! Se acontecesse alguma coisa, não faltaria quem indagasse se tinha passado a noite em tua casa... «E para onde foi ela?» «Levei-a à aldeia próxima.» «Ah, foste tu? Pois vais para a cadeia!...» Percebeste? E para que há de a gente ter pressa de ir para a cadeia? Cada coisa a seu tempo!... Mas se tu declarares que ela dormiu cá em casa, que alugou carro e que tornou a ir-se embora, não te podem fazer nada. Ninguém é responsável pelo que fazem os viajantes. Se passam tantos cá pelo sítio!... — Já aprendeste a ter medo, Pedro? — perguntou Tatiana, irónica. — É bom aprender de tudo! — respondeu, dando uma punhada no joelho. — É bom saber ter coragem e é bom também saber ter medo! Lembras-te como o escrivão lá do tribunal andou a incomodar e a perseguir o Baguanov por causa daquele periódico? Pois agora, o Baguanov nem por todo o dinheiro do mundo tocaria sequer num desses papéis! Creia, boa mulher: para mim, é coisa fácil imaginar boas artimanhas; todos o sabem cá no sítio. Sou capaz de distribuir livros e folhetos como ninguém... tantos quantos quiser! A nossa gente é pouco instruída e muito medrosa, é certo; todavia, a vida vai tão dura, que o homem sempre se vê obrigado a abrir os olhos e a informar-se do que se passa. E o livro responde- lhe francamente: «Muitas vezes, mais percebe o ignorante do que o homeminstruído...» principalmente se o instruído for um desses que abarrotam de fartura. Conheço bem o sítio e sei ver com olhos de ver! Pode uma pessoa ir arranjando a vida, mas com esperteza e muita habilidade, para não ir à forca logo duma assentada! As autoridades também percebem que as coisas vão mudadas, que o camponês anda sorumbático, pouco ri e é de poucas amabilidades... É que, em geral, passava-se bem sem as tais autoridades!... Ainda ultimamente, em Smoliakovo — um lugarejozito perto daqui — vieram os homens para cobrar uns impostos. Os camponeses então foram a correr buscar cacetes. «Ah, bestas! Vocês revoltam-se contra o czar!» gritou o comissário. E estava lá um rústico, um chamado Spivakine, que respondeu: «Vá você para o diabo com o seu czar! Que vem a ser esse czar que nos leva até à última camisa do corpo?» Ora aqui tem em que as coisas param, tiazinha. Escusado é dizer que o Spivakine foi preso e atirado para uma enxovia. Mas ficaram as palavras dele, e até as crianças já as repetem. Ficaram vivas, a bradar, essas palavras! Nem comia: falava, falava sempre, em murmúrio rápido; os olhos, pretos e astuciosos, brilhavam-lhe, muito vivos. E importunava largamente Pelagueia com mil observaçõezinhas sobre a vida do sítio, como se estivesse a despejar um saco de moedas de cobre. Por duas vezes lhe disse Stepane: — Anda, come! Ele agarrava num pedaço de pão, numa colher, e espraiava-se de novo em considerações, falando, falando, como um pintassilgo a cantar. Terminada a ceia, finalmente, levantou-se de brusco, declarando: — É tempo de voltar para casa! Aproximou-se de Pelagueia e sacudiu-lhe a mão: — Adeus, tiazinha! Talvez nunca mais nos tornemos a ver... Sempre lhe quero dizer que tive muito prazer em travar relações consigo e em ouvi-la falar... sim, senhora, muito prazer! Tem mais alguma coisa na mala além dos livros? Um xaile de lã? Está muito bem... um xaile de lã, ouves, Stepane? Ele já lhe traz outra vez a sua mala. Vamos, Stepane! Adeus! Passe bem! Assim que os dois saíram, Tatiana tratou de preparar cama para a velha; foi acima do fogão e ao sótão buscar umas roupas e dispô-las sobre o banco. — É um rapaz desembaraçado! — observou Pelagueia. A outra respondeu, interrompendo a tarefa para lhe lançar um olhar furtivo: — É muito leviano! Faz muita bulha, muita bulha, mas não passa dali! — E seu marido? — perguntou Pelagueia. — É um bom homem. Não bebe, e damo-nos muito bem. O único defeito dele é ser de caráter fraco.Soergueu-se e prosseguiu após um silêncio: — De que se precisa agora? De sublevar o povo, é claro! Todos pensam nisso... mas cada um para seu lado! E o que é necessário é que se fale nisso bem alto; é forçoso que apareça alguém decidido a fazê-lo. Sentou-se e perguntou sem transição: — A senhora disse que até já há meninas finas e ricas a tratarem deste negócio, e que vão fazer leituras políticas aos operários... E elas não têm medo? Não sentem repugnância? E depois de ouvir atentamente a resposta de Pelagueia, soltou profundo suspiro e continuou, com as pálpebras cerradas e movendo devagarinho a cabeça: — Já li uma vez num livro que a vida não faz sentido. O que isto queria dizer percebi eu logo à primeira! Como se eu não soubesse o que é essa vida: a gente tem umas ideias, mas umas ideias desapegadas umas das outras, e que andam a vaguear como carneiros estúpidos sem pastor... Vagueiam, vagueiam... E não há nada, não há ninguém que as reúna... porque a gente não sabe o que há de fazer para isso! Ora aqui está o que é uma vida que não faz sentido! A minha vontade era fugir para longe dela, sem mesmo olhar para trás!... Muito infeliz é a gente quando começa a perceber um poucochinho!... Esta mágoa, via-a Pelagueia bem no brilho verde dos olhos da mulher, naquele rosto magro; ouvia-a vibrar naquela voz. Pretendeu consolá-la, acalmá- la: — Mas a minha querida amiga compreende o que é necessário fazer-se.... Tatiana interrompeu-a brandamente: — Mas se o que se precisa é saber-se como fazê-lo!... Tem a sua cama pronta... deite-se! E dirigiu-se para o fogão, grave e concentrada. Pelagueia deitou-se sem se despir. Tinha dores nos ossos, quebrados de fadiga. Soltou um gemido débil. Tatiana apagou o candeeiro. E assim que as trevas reinaram dentro da choupana, ressoou novamente a sua voz grave e igual: — A senhora não reza... Eu também não acredito em Deus nem em milagres. Tudo isso foi inventado para nos meter medo, porque sabem que somos estúpidos! Pelagueia, no seu leito improvisado, agitou-se, inquieta. Fitavam-na pela janela as trevas infinitas e, por entre o silêncio, atritos, ruídos furtivos mal percetíveis, perpassavam em torno. Com voz tímida, murmurou: — Pelo que respeita a Deus, não sei que dizer... Mas creio em Jesus Cristo e creio nas suas palavras:«Amar o próximo como a nós mesmos...» sim, eu creio nisto! E de súbito, exclamou, perplexa: — Mas se Deus existe, porque nos abandonou? Porque não nos protege com o seu poder misericordioso? Porque consente que a humanidade se divida em duas castas? Porque consente o sofrimento humano, as torturas, as humilhações, a maldade e as ferocidades de toda a espécie? Tatiana não respondeu. No escuro, Pelagueia podia divisar-lhe o contorno vago do perfil ereto, que se desenhava em cinzento, no fundo negro do fogão. E assim se conservava, imóvel. Muito angustiada, Pelagueia cerrou as pálpebras. De súbito, vibrou uma voz fria e dolorida: — Nunca perdoarei a morte dos meus filhos! Nem a Deus nem aos homens! Nunca! A anciã sentou-se no leito, condoída da intensidade daquela paixão. Lembrou com meiguice: — A senhora é nova; ainda há de ter filhos... Após um silêncio, a outra segredou: — Não! O médico disse que nunca mais poderia tê-los. Passou um rato a correr pelo chão. Um estalido seco e forte rasgou a imobilidade do silêncio, e de novo se ficaram ouvindo distintamente os mesmos atritos e o murmúrio da chuva sobre o colmo, que, dir-se-ia, dedos finos e trémulos acariciavam. As bátegas caíam tristemente sobre a terra e ritmavam o curso da longa noite de outono. Mergulhada em pesada sonolência, Pelagueia ouviu uns passos ecoarem surdamente da parte de fora e em seguida, no corredor. Abriu-se devagarinho a porta, e ouviu-se uma exclamação abafada: — Estás já deitada, Tatiana? — Não. — «Ela» está a dormir? — Sim, parece-me que sim... Brilhou uma claridade, que tremeluziu e logo se afogou nas trevas. O campónio aproximou-se do leito da velha e compôs a capa de peles que lhe cobria as pernas. Esta atenção impressionou profundamente Pelagueia. Fechou de novo os olhos e sorriu. Stepane, sem fazer bulha, despiu-se e trepou para o sótão. Pelagueia, imóvel, prestava atento ouvido às variantes preguiçosas do silêncio sonolento. Na sua frente, nas trevas, via desenhar-se o rosto ensanguentado de Ribine.Chegou-lhe então aos ouvidos um leve murmúrio que vinha do sótão: — Tu bem vês. Atenta nessa gente que anda a trabalhar pelo bem de todos! Gente idosa, até, e que passou por mil desgostos e depois de mourejar toda uma vida! Chegou-lhes a sua ocasião de descansar, mas bem vês como se aproveitam dela!... E tu, Stepane, estás ainda novo, és inteligente... e nada fazes! Respondeu a voz grossa do homem: — A gente não pode meter-se numa coisa dessas sem pensar! Espera um pouco, que aquela canção já eu conheço há muito! Sumiram se as vozes, mas depois recomeçaram. Dizia Stepane: — Aqui está o que deve fazer-se: primeiro, é preciso falar com cada homem em particular. Assim, por exemplo: com o Alecha Makov. É instruído, valente e anda há muito, zangado contra as autoridades. Com o Sérgio Chorine, também... É homem de juízo. Com o Kniazev, que é honrado e homem decidido! E para começar é bastante!... Depois, quando já tivermos um partidozinho, veremos... É preciso saber a direção desta mulher, para chegarmos à fala com a gente a quem ela se referiu... Agarro no machado e vou-me de passeio até à cidade. Se te perguntarem, dizes que fui ganhar uns cobres como rachador de lenha. É bom tomarmos as nossas precauções. Tem a velha razão quando diz que cada qual é que dá a si o seu próprio valor... E quando se trata duma coisa destas, bom é que a gente dê a si grande preço, se se quiser meter na coisa!... Olha aquele campónio, aquele Ribine! Não era capaz de dobrar nem diante de Deus, quanto mais diante dum comissário!... Aguenta-se firme, como se estivesse enterrado no chão até aos joelhos! E aquele Nikita, hã? Teve vergonha o homem!... E foi milagre que tal sucedesse... Ah! Se o povo entra no movimento à uma, muita gente há de ir atrás dele! — Pois sim! Veem espancar um homem e ficam para ali, de braços cruzados! — Não te exaltes, mulher! Olha, diz antes assim: «Deus seja louvado, que não foram vocês mesmos que o tosaram!» Pois se eles tanta vez obrigam o povo a bater nos presos! E o povo obedece! Lá no íntimo, talvez chore de compaixão, mas vai batendo!... Não se atrevem a recusar-se àquela barbaridade, com medo de também apanharem para baixo! Há ordem para um homem ser o que quiser: um porco, um lobo... mas não um homem — é proibido! E quem desobedecer, livram-se logo dele com a maior facilidade! Nada!... É preciso arranjar as coisas de forma a reunir muita gente e revoltar-se tudo ao mesmo tempo! Discorreu ainda por largo espaço. Umas vezes, falava tão baixinho, que Pelagueia quase não compreendia; outras, erguia a voz, grossa e sonora. A mulher então recomendava: — Devagar! Vais acordá-la!Adormeceu profundamente a anciã. Foi como uma nuvem de opressão que o sono se precipitou sobre ela, a envolveu e a arrebatou. Despertou-a Tatiana quando a aurora, pardacenta, entrava a mirar com gélidas pupilas as janelas da choupana. Por sobre a aldeia, no silêncio frio, a voz brônzea do sino planara e ia a morrer. — Fiz-lhe uma gota de chá; beba-o, se não logo no carro, vai ter frio. Enquanto alisava as barbas desgrenhadas, Stepane, todo alvoraçado, informava-se onde havia de procurar a sua hóspede, na cidade. E parecia a Pelagueia o rosto do campónio mais definido, mais simpático do que na véspera. Ao tomar o chá, exclamou ele alegremente: — Como tudo isto é singular! — O quê? — perguntou Tatiana. — Este nosso encontro. É coisa tão simples, afinal!... — Na causa do povo tudo é duma simplicidade extraordinária! — disse Pelagueia pensativa e em tom de grande convicção. Despediram-se então marido e mulher, sem gastar muitas palavras, antes manifestando com mil cuidados e atenções, sincera solicitude. Já no carro, Pelagueia pensava naquele campónio e na sua maneira de trabalhar com prudência, como uma toupeira, sem ruído e sem descanso. E continuava a ouvir a voz da mulher, descontente; revia o brilho seco e febril dos seus grandes olhos verdes. Quantos anos vivesse, tantos aquela paixão vingativa e feroz de mãe que chora os seus filhos, havia de viver-lhe na memória. Lembrou-se depois de Ribine, do seu rosto, do seu sangue, daquele ardente olhar, das frases que lhe ouvira e, de novo, o coração confrangeu-se-lhe no amargo sentimento da sua impotência contra as feras. E em todo o percurso até à cidade, viu de contínuo, desenhado no fundo tristonho daquele dia pardacento, o perfil robusto de Ribine, com a sua barba preta, a camisa em farrapos, mãos amarradas nas costas, os cabelos desgrenhados, a fisionomia iluminada pela cólera e pela fé na sua missão. Pensava também nas inumeráveis aldeias e lugarejos onde o povo esperava em segredo a vinda da propaganda de verdade; nos milhares de criaturas que trabalhavam silenciosas toda a sua vida sem saber porquê, sem uma esperança... Quando refletia no resultado da sua viagem, sentia no íntimo um contentamento meigo e irrequieto e decidia não mais pensar em Stepane nem na mulher. Avistou de longe os campanários e telhados da cidade, e grata sensação lhe reanimou o espírito inquieto, e lho tranquilizou: desfilavam-lhe pela memória as fisionomias cheias de preocupação de todos os que dia a dia iam ateando o fogo sagrado do pensamento e o espalhavam em centelhas pelo mundo. E a almadaquela mãe transbordava da serena ambição de dar a todas aquelas criaturas toda a energia e todo o seu amor de mãe. XIX Veio abrir-lhe Nicolau, despenteado, com um livro na mão. — Já?! — exclamou alegremente. — Está bem!... Estou mais contente agora! Piscava os olhos, amigavelmente, por detrás dos óculos. Ajudou Pelagueia a tirar a capa e disse-lhe, fitando-a afetuosamente: — Sabe? Vieram cá fazer uma busca esta noite. Eu perguntava a mim próprio porquê. Receei que lhe tivesse acontecido alguma coisa... Mas deixaram-me em paz, e logo sosseguei: se a tivessem prendido, não me deixavam assim com certeza! Levou-a para a casa de jantar. Pelo caminho, ia contando animadamente: — Ainda assim, fui despedido da repartição. Pouco desgosto me dá... Estava já farto da estatística do gado cavalar que não existe nas herdades!... Tenho mais que fazer! Atentando-se no aspeto da sala, dir-se-ia que mãos vigorosas, em estúpido acesso de fúria, haviam sacudido pela parte de fora as paredes da casa, até tudo ficar em completa desordem. Os retratos jaziam pelo chão, os reposteiros e sanefas arrancados, pendiam em farrapos; em determinado sítio uma tábua do sobrado fora levantada, o peitoril da janela, arrombado; ao pé do fogão, cinzas espalhadas. Na mesa, ao lado do samovar sem lume, estava loiça suja, presunto e queijo em cima dum pedaço de papel, nacos de pão, livros e carvão, Pelagueia sorriu. Nicolau mostrou-se confundido. — Fui eu que completei a desordem... mas não faz mal. Parece-me que voltam cá hoje, e tanto que nem ainda comi nada. E então fez boa viagem? Esta pergunta como que a magoou pesadamente em pleno peito: de novo a imagem de Ribine se ergueu na sua memória; sentiu-se culpada por não ter falado dele logo ao chegar. Aproximou-se de Nicolau e entrou a contar-lhe tudo, diligenciando permanecer calma e não omitir pormenor algum. — Foi preso! Nicolau teve um sobressalto. — Preso! Mas como? Ela com um gesto, fê-lo calar e prosseguiu, como se, face a face, o rosto da própria justiça se encontrasse na sua frente e a ela estivesse reclamando contra o suplício a que assistira. Nicolau, reclinado na cadeira escutava-a, fazia-se pálido e mordia os beiços. A certa altura, lentamente, tirou os óculos, pousou-os na mesa, passou a mão pela cara, como se estivesse a limpá-la duma invisível teia de aranha. As feições acentuaram-se-lhe, as maçãs do rosto tornaram-se-lhe singularmente salientes, palpitaram-lhe as narinas. Era a primeira vez quePelagueia o via naquela excitação, o que não deixou de a assustar. Quando acabou a narrativa, viu-o levantar-se em silêncio e pôr-se a caminhar em grandes passadas, de punhos cerrados nas algibeiras. Por fim, murmurou, comprimindo os dentes: — Deve ser um homem extraordinário!... Que heroísmo! E vai sofrer numa prisão como sofrem todos os que a ele se assemelham! Depois, parou em frente da sua narradora; ajuntou com voz vibrante: — Evidentemente todos esses comissários, esses oficiais, não passam duns instrumentos, duns cacetes de que sabe servir-se um patife inteligente, um domesticador de animais! Mas urge dar cabo do animal, para o castigar de se ter deixado transformar em fera! Eu cá, matava-o logo, esse cão danado! Enterrava mais profundamente os punhos nas algibeiras, tentando, mas debalde, reprimir aquela comoção de que Pelagueia também se ressentia. Tinha os olhos contraídos como lâminas de facas. Entrou de novo a passear e ao mesmo tempo ia dizendo com frio rancor: — Ora vejam que coisa horrível! Uma meia dúzia de homens espancam, sufocam e oprimem toda a gente, para defenderem o funesto poderio de que gozam sobre o povo! A ferocidade recrudesce, a crueldade torna-se lei universal! É para meditar!... Uns batem e procedem como bestas, porque estão certos da impunidade, porque os morde o desejo voluptuoso de torturar, como a repugnante volúpia dos escravos a quem se permitia que manifestassem os instintos servis e os hábitos bestiais, em toda a sua hediondez! Os outros envenena-os a vingança, e ainda os terceiros, bestificados sob os maus tratados, tornam-se cegos, tornam-se mudos!... E assim pervertem o povo, um povo inteiro! Deteve-se novamente, agarrou a cabeça entre as mãos. — É para bestializar, mesmo sem se querer, essa vida feroz! — concluiu em voz baixa. Depois, dominou-se. Brilhava-lhe agora no olhar uma expressão decidida. E foi quase com tranquilidade que fitou a velha, cujo rosto as lágrimas inundavam. — Não temos tempo a perder, Pelagueia. Onde está a sua mala? — Na cozinha. — Está a casa cercada de espiões, não é possível passar para fora tal quantidade de impressos, sob pena de sermos vistos... Não sei onde os hei de ocultar... Parece-me que a polícia há de voltar esta noite... Não quero que seja presa. Ainda que muito nos custe, vamos queimar tudo isso. — O quê? — perguntou ela. — O que está dentro da mala.Foi então que ela compreendeu e, por grande que fosse a sua tristeza, a ufania do bom êxito da sua viagem fez-lhe aflorar ao rosto um sorriso. — Mas a mala não tem nada! Nem uma folha de papel! — declarou, animando-se gradualmente. E, narrou a continuação das suas aventuras. Nicolau ouviu-a primeiro com inquietação, depois com surpresa. Por fim, interrompeu-a para exclamar: — É simplesmente maravilhoso! Tem uma sorte espantosa! Entrou a mover-se dum lado para o outro, pasmado, e foi apertar-lhe a mão. — Chega a comover-me pela confiança que tem no povo! Que bela alma a sua!... Amo-a como nunca amei minha própria mãe! Ela tomou-o nos braços e por entre soluços de contentamento, aproximou dos seus lábios a cabeça de Nicolau. — Talvez me tivesse exprimido nesciamente, há pouco! — murmurou, comovido e desconcertado pela novidade do sentimento que experimentava. Pelagueia, convencida de que Nicolau se sentia profundamente feliz, seguia-o com um olhar em que transparecia afetuosa curiosidade; queria compreender porque se mostrara tão apaixonadamente vibrante. — Em geral, tudo corre às mil maravilhas! — declarou ele, a esfregar as mãos, com um risinho caricioso. — Sabe? Passei singularmente bem estes últimos dias. Estive sempre com operários; fiz-lhes umas leituras, conversámos, deram-me ensejo a que os observasse... Juntei no meu coração sensações admiráveis, tão puras e sãs!... Que bela gente! Tão francos, tão claros como os dias de maio! Falo dos operários mais novos; são robustos, são sensíveis, têm sede de compreender tudo!... Ao vê-los, adquire-se a certeza de que a Rússia há de vir a ser a mais brilhante democracia do mundo! Erguera o braço como para firmar um juramento. Passado um instante, continuou: — Como sabe, eu era funcionário numa repartição do estado. Foi ali que o meu feitio se azedou: no meio de algarismos e de papelada. Um ano daquela vida bastou para me deturpar o caráter. Porque eu estava habituado a viver entre o povo e quando me separo dele, sinto-me pouco à vontade. Sempre propendi com todas as minhas forças para a vida popular. E agora já posso viver de novo em liberdade, confraternizar com os operários, ensinar-lhes o que sei! Compreende? Assim, estarei junto do próprio berço do ideal que vem surgindo, junto da própria energia criadora nascente. É o que me parece admiravelmente simples e belo e também terrivelmente excitante! Torna-se um homem mais novo, mais decidido, mais calmo, e desfruta de uma existência íntegra! Aqui, riu, expansivo. E daquele contentamento partilhava Pelagueia.— E depois, que criatura excessivamente boa a senhora é! — declarou ele ainda. — Tem em si uma força tão poderosa e tão sedutora! Atrai a si as almas com tal persuasão! Sabe descrever tão completamente as pessoas! Sabe vê-las tão bem! — Vejo a sua existência e compreendo-o, meu amigo! — Todos a estimam... E que maravilhosa coisa é estimar uma criatura humana!... É tão bom! Se soubesse! — É o meu amigo que sabe ressuscitar os entes humanos de entre os mortos! — murmurou a anciã com calor, acariciando-lhe a mão. — Meu amigo, quanto mais penso, mais vejo quanto há a fazer e de quanta paciência precisamos! E o que eu quero é que não perca a coragem. Oiça o resto... A mulher, ia eu dizendo, a mulher do tal camponês... Nicolau sentara-se ao lado dela. Tinha desviado o rosto prazenteiro, e passava a mão devagar pelos cabelos. Mas daí a pouco tornava a dirigir o olhar para Pelagueia, escutando avidamente a narrativa. — Que sorte admirável! — exclamou. — Com efeito, era muito possível que fosse presa... Mas não! O que parece é que essa gente do campo também se vai mexendo. Não é para admirar, afinal! E essa tal mulher, parece que a estou vendo daqui. Sim, compreendo esse coração aceso em ira. E tem razão em dizer que uma dor tão profunda jamais se extinguirá!... Precisávamos de quem se ocupasse especialmente de animar essa gente do campo!... Gente! Muita gente! É o que nos falta e por toda a parte! A vida exige milhares de braços! — Para isso era necessário que o Pavel estivesse em liberdade... e o André também — aventou ela em voz baixa. Ele lançou-lhe rápido olhar e curvou a cabeça. — Olhe, sabe? Vou dizer-lhe a verdade, ainda que lhe custe: conheço bem o Pavel e estou certo de que vai recusar-se a fugir. O que ele pretende é ser julgado, quer exibir-se em todo o seu prestígio... e não renuncia a isso. É trabalho escusado!... Depois, fugirá da Sibéria... A mãe de Pavel murmurou: — Que se há de fazer?... Ele sabe melhor do que eu o que deve decidir. Nicolau ergueu-se de chofre, novamente tomado de contentamento. Inclinou- se para ela e disse: — Graças a si, passei hoje instantes melhores... os melhores da minha vida, talvez!... Obrigado! Dê-me um abraço! E apertaram-se, silenciosos. — Como isto é bom! — exclamou ele baixo. Pelagueia deixara cair os braços e sorria em estos de felicidade.— Hum! — murmurou Nicolau, fitando-a muito por detrás dos seus óculos. — Ainda se esse tal camponês não tardasse em vir!... Porque é absolutamente preciso escrever um artigozinho acerca do Ribine e distribuí-lo pelas aldeias, o que não pode prejudicar o Ribine, visto que ele trabalha abertamente, por si mesmo, e que a causa do povo tem tudo a ganhar. Vou escrevê-lo agora mesmo. A Ludmila imprime-o amanhã... Sim, mas como se hão de expedir os fascículos? — Irei eu levá-los. — Não, obrigado! — exclamou Nicolau com vivacidade. — Não crê que o Vessovtchikov pudesse tomar esse encargo? — Quer que lhe fale nisso? — Experimente e ensine-lhe como ele se há de haver nesse negócio. — E eu então, que faço? — Não lhe dê isso cuidado! E pôs-se a escrever. Enquanto desembaraçava a mesa das loiças e dos outros objetos, Pelagueia não tirava a vista dele, seguindo a pena, que lhe tremia na mão e traçava no papel longas séries de palavras. Por vezes, um arrepio perpassava pela nuca do mancebo; outras vezes, projetava ele a cabeça para trás e ficava-se de olhos fechados. Pelagueia sentiu-se emocionada. — Castigue-os! — murmurou. — Não os poupe, àqueles assassinos! — Aqui está! Está pronto! — disse ele, levantando-se. — Esconda este papel consigo. Mas olhe que se a polícia vem, hão de também querer revistá-la... — Leve-os o diabo! — respondeu com o maior sossego. À noite, veio o doutor. — Porque anda a autoridade tão agitada? — inquiriu ele, passeando pelo quarto. — A noite passada fizeram-se sete buscas!... Onde está o doente? — Foi-se embora ontem! — respondeu Nicolau. — É sábado hoje e não podia faltar à sessão de leitura, compreendes? — É uma estupidez ir para uma conferência quando se tem a cabeça aberta! — Foi o que eu tentei demonstrar-lhe; mas nada consegui! — Era a vontade de ir fazer-se valente diante dos camaradas — disse Pelagueia; — de lhes mostrar que também já derramou o seu sangue pela grande causa! O doutor lançou-lhe um olhar, tomou uns ares de ferocidade e exclamou com os dentes cerrados: — Que sanguinárias criaturas vocês são! — Pois então, meu amigo, já nada tens a fazer aqui, e nós esperamos umas visitas. Vai-te embora! Pelagueia, dê-lhe o papel.— Outra vez! — exclamou o médico. — Vá! Toma e leva isto à imprensa. — Está dito; lá o levarei. Mais nada? — Sim... Está ali um espião defronte da casa. — Já o vi. E em minha casa também. Bem, até mais ver! Até à vista, mulher cruel! Sabem, meus amigos? A desordem do cemitério veio mesmo a calhar, positivamente! Não se fala noutra coisa em toda a cidade. Isto impressiona o povo e obriga-o a refletir. O teu artigo a esse respeito estava muito bom e foi publicado em bela ocasião. Eu sempre fui de opinião que uma boa desordem era mais útil do que uma má concórdia... — Está bom, vai-te! — Estás hoje pouco amável, homem! A sua mão, tiazinha! O pequeno andou como um pateta. Não sabes onde ele mora? Nicolau deu-lhe o endereço. — É preciso ir a casa dele amanhã... É um belo rapaz, não é verdade? — É verdade!... Excelente coração! — É preciso não o perder de vista, que ele não é tolo! — disse o médico, ao sair. — É justamente essa rapaziada que há de formar o verdadeiro proletariado instruído, e ocupar os nossos lugares, quando nós nos formos para o sítio onde não há, segundo creio, diferenças de castas... — Sempre estás um tagarela! — Sinto-me contente; por isso dou à língua!... Cá vou, cá vou... Então, sempre contas ir para a cadeia? Desejo que descanses bem por lá. — Obrigado, mas não me sinto cansado. Pelagueia escutava-os satisfeita por ver os cuidados, em que ambos estavam, no ferido. Logo que saiu o médico, Nicolau e Pelagueia sentaram-se à mesa e ficaram esperando as suas visitas noturnas. Por muito tempo, em voz baixa, Nicolau esteve falando dos companheiros que viviam no exílio, dos que tinham fugido e continuavam trabalhando com nomes supostos. As paredes nuas do aposento refletiam-lhe o som abafado da voz, como se duvidassem daquelas singulares histórias de heróis modestos e desinteressados, que haviam sacrificado todas as suas forças à grande obra do rejuvenescimento humano. Pelagueia, mergulhada numa sombra de agradável tepidez, sentia o coração encher-se-lhe de amor por aqueles desconhecidos, que à sua imaginação se resumiam num ser único e imenso, dotado de máscula e inesgotável força. Lentamente, mas sem nunca parar, tal ser extraordinário caminhava pela terra, arrancando o bolor secular da mentira, descobrindo aos olhos do homem a verdade simples e positiva da vida, aqual a todos prometia libertar da avidez, do ódio e da falsidade, três monstros que haviam subjugado pelo horror o mundo inteiro. Esta visualidade gerava no íntimo de Pelagueia impressão idêntica à ressentida noutros tempos, quando ela, ajoelhada perante as imagens pias, terminava com uma oração de reconhecimento o seu dia, que lhe ficava assim parecendo menos árduo do que os outros. Agora, que o seu passado ia longe, este sentimento ampliava-se, fazia- se mais luminoso e mais jovial, penetrava mais fundo na sua alma, robustecia-se e exaltava-se mais e mais. — A polícia não vem! — exclamou Nicolau, interrompendo o fio das suas narrativas. Ela fitou-o um instante e após curto silêncio: — Que vão para o inferno! — Está claro!... Vossemecê deve estar fatigada a valer, precisa de deitar-se. É robusta, ainda assim todos estes cuidados, todas estas inquietações... suporta-as admiravelmente. Só os cabelos é que lhe embranqueceram muito depressa... Vá descansar, vá... Apertaram-se as mãos e separaram-se. XX Adormecera Pelagueia, rápida e sossegadamente, quando, de manhãzinha, a despertaram umas pancadas violentas na porta da cozinha. E sucediam-se com teimosia. Ainda fazia escuro. Vestiu-se à pressa, correu a perguntar, através da porta: — Quem está aí? — Eu! — respondeu voz desconhecida. — Quem? — Abra! Abra! — murmurou a mesma voz, agora sumida e suplicante. Pelagueia puxou o ferrolho e empurrou a porta: E entrou Ignati, a exclamar alegremente: — Ah! Não me enganei! Cheguei a bom porto! Vinha coberto de lama até à cintura, o rosto desfigurado, fundas olheiras, e do boné saíam-lhe em desordem os cabelos anelados. — Grande desgraça lá por casa! — segredou logo ao fechar a porta. — Já sei... Ficou espantado e perguntou com um pestanejar de curiosidade: — Como assim?... Por quem? Contou-lhe Pelagueia em breves palavras o encontro que tivera. — E os outros dois teus camaradas, também os prenderam? — Não estavam lá: tinham ido à junta de inspeção. Prenderam cinco, contando com o Ribine. Fungou, num acesso de riso, e explicou: — Eu, como vê, escapei. Provavelmente andam em minha busca... Pois que procurem! Não volto para lá nem por todo o oiro do mundo! Ainda assim, ainda lá ficaram seis ou sete rapazes e uma rapariga, com quem se pode contar! — Mas como pudeste escapar? — Eu? — exclamou Ignati, sentando-se num banco e olhando em roda. — Os polícias vieram de noite, direitinhos à fábrica, mas um minuto antes já o guarda campestre tinha vindo a correr bater-nos na janela: «Atenção, rapaziada, vêm prendê-los!» Pôs-se a rir e a limpar a cara com a aba da blusa. E prosseguiu: — O tio Ribine não é homem para perder a cabeça... E olhe que o provou!... Disse-me logo: «Ignati, corre à cidade! Lembras-te das duas mulheres que aqui estiveram?» E escreveu qualquer coisa num papel, muito depressa... «Toma, vai, adeus, meu irmão!» disse-me ele. E deu-me um empurrão nas costas. Eu atirei-me para fora da cabana, escondi-me entre umas moitas, pus-me a andarde gatas e ouvi chegar os guardas! Eram muitos, apareciam por todos os lados! Cercaram a fábrica. Eu estava por detrás duma sebe... passaram-me mesmo na frente. Depois, levantei-me e entrei a andar, a andar... Andei um dia e duas noites, sem parar. Estou estafado para uma semana; nem sinto as pernas! Mostrava-se satisfeito de si mesmo; iluminava-lhe um sorriso os grandes olhos escuros; tinha um tremor nos beiços grossos e vermelhos. — Vou-te fazer uma gota de chá num pronto! — disse Pelagueia solícita, agarrando no samovar. — Mas enquanto esperas, vai-te lavando. Ficas melhor depois! — O que eu queria era dar-lhe o bilhete. Levantou com dificuldade uma das pernas, dobrou-a, colocou o pé sobre o banco, isto com inúmeras caretas e gemidos, e começou a desenrolar uma das ligaduras, que lhe envolviam ambos os pés. Nicolau apareceu à porta. Ignati, confuso, tornou a pôr o pé no chão; tentou levantar-se, mas cambaleou e caiu desamparadamente em cima do banco, ao qual se agarrou às mãos ambas. — Ai, que cansado que eu estou! — Bom dia, camarada! — disse-lhe Nicolau em tom amigável e com um sinal de cabeça. — Espere, que eu o ajudo. Ajoelhou-se diante do operário e desenrolou rapidamente a ligadura, emporcalhada e húmida. — É necessário esfregar-lhe os pés com álcool. Há de fazer-lhe bem — disse Pelagueia. — Isso mesmo! — aprovou Nicolau. Ignati fungou de novo, muito atrapalhado. Finalmente, achou Nicolau o bilhete; alisou-o, mirou-o um instante e apresentou-o à velha. — Aqui tem! É para si. — Leia. Ele aproximou dos olhos o pedaço de papel sujo e amarrotado e leu: «Mãezinha: não deixes que se perca o nosso negócio. Diz a essa senhora que não se esqueça de fazer que se escreva sempre e muito, a respeito das nossas coisas. Peço-te. Adeus. Ribine.» — Belo rapaz! — disse Pelagueia com melancolia. — Estavam a esganá-lo e ainda ele se lembrava dos outros! Lentamente, Nicolau deixou descair o braço em que tinha o bilhete, e a meia voz:— É espantoso! Ignati olhava para um e outro, vermiculando devagar com os dedos emporcalhados do pé descalço. Pelagueia, procurando ocultar o rosto inundado de lágrimas, foi para ele com uma celha com água. Sentou-se no chão e estendeu a mão para tomar a perna do homem. — Que quer fazer?... Não é preciso... — Deixa ver o pé, depressa. — Eu vou buscar o álcool — disse Nicolau. O rapaz metia sempre mais a perna debaixo do banco, murmurando: — Não quero!... Então isso é coisa que se faça? Sem lhe responder, ela tratou de lhe desembaraçar das ligaduras o outro pé. O rosto redondo de Ignati distendeu-se de espanto. Pelagueia entrou a lavar o rapaz. — Sabes? — disse ela com voz chorosa. — O Ribine foi espancado!... — Palavra? — exclamou Ignati assustado. — É verdade. Quando chegou a Nikolski, já ele vinha moído de pancada, e ainda ali, o sargento e o comissário lhe deram murros, pontapés... Estava todo coberto de sangue! — Ah, lá quanto a isso, é o ofício deles, e conhecem-no a valer! — exclamou o operário, sentindo um calafrio percorrer-lhe as espáduas. — Tenho medo deles como do diabo! E os camponeses não lhe bateram? — Um só, à ordem do comissário. Os outros fizeram o seu dever; até não consentiram que continuassem a maltratá-lo. — Sim... O campónio começa a compreender... — Também lá os há muito inteligentes, nessa vila... — E onde é que os não há? Há-os por toda a parte! Sim, sempre é forçoso que os haja; o difícil é descobri-los. Metem-se aí pelos cantos e ficam a remoer aquilo lá por dentro, cada um para seu lado. Não têm a coragem de se reunir! Nicolau trouxe uma garrafa de álcool, deitou uns pedaços de carvão no samovar e saiu sem dizer palavra. Ignati, que o seguira com a vista, curioso, perguntou em voz baixa: — É nosso mestre? — Na causa do povo não há mestres, só há camaradas! — É caso para pasmar! — disse o operário, sorrindo entre perplexo e incrédulo. — O quê? — Tudo isto!... Dum lado, dão bofetadas na gente, do outro, lavam-nos os pés... Haverá um meio-termo?A porta do aposento abriu-se de par em par e Nicolau respondeu: — Há, sim, senhor! E esse meio-termo são os que lambem as mãos daqueles que os maltratam e sugam o sangue dos maltratados. Aqui tem o que é esse meio-termo! Ignati fitou-o com deferência e disse, após reflexão: — Isso agora é verdade! — Pelagueia! — instou Nicolau. — Deve estar cansada... Deixe isso, que eu continuo. O rapaz encolheu as pernas com inquieto acanhamento. — Está pronto! — respondeu ela, erguendo-se. — Vá, Ignati: levanta-te agora! O outro obedeceu, conservou-se um bocado num pé, ora no outro, firmando- se fortemente no sobrado, e declarou: — Até parece que ficaram novos! Obrigado!... Muito obrigado! Fez uma pausa e ainda murmurou, a olhar para a celha com a água suja: — Nem sei como hei de agradecer-lhe suficientemente... Os três passaram para a casa de jantar e almoçaram. Ignati pôs-se a contar em voz muito séria: — Fui eu que distribui os periódicos. Eu gosto muito de andar. O Ribine tinha- me dito: «Vai tu levá-los sozinho! Se fores apanhado, não suspeitam de mais ninguém.» — E há muita gente que os leia? — perguntou Nicolau. — Todos os que sabem ler. Pensativo, Nicolau refletiu: — Mas como havemos de arranjar que o fascículo a propósito da prisão do Ribine chegue depressa às aldeias?... Ignati apurara logo o ouvido. — Pois eu me encarrego disso hoje mesmo! Já há prontos esses fascículos? — Há, sim. — Dê-mos, que eu os levo! — propôs Ignati com os olhos cintilantes, e a esfregar as mãos. — Eu sei bem onde e como os hei de levar!... Dê-os cá! Pelagueia sorria, ouvindo-o falar assim. — Mas tu estás cansado e tens medo; foste tu mesmo que disseste não querer voltar lá!... Ele produziu com os beiços um estalido, e, ao mesmo tempo que alisava com a alentada mão os caracóis do cabelo, declarou em tom de seriedade e sangue- frio:— Estou cansado... Melhor, depois descansarei!... Quanto a ter medo, isso é verdade!... Pois se vossemecê acabou de contar que eles batem na gente até nos porem a escorrer sangue!... Quem é que tem vontade de ficar estropiado? Eu me arranjarei: Vou de noite... Sempre hei de achar maneira de fazer o recado! Dê cá... Parto esta noite mesmo. Ficou um momento calado, de sobrolho franzido, e logo: — Vou daqui esconder-me na floresta. Depois, aviso os companheiros e digo- lhes: «Vão lá ter comigo e sirvam-se.» É o melhor que há a fazer! Se eu mesmo distribuísse os jornais e fosse apanhado, era uma pena por causa dos jornais... Já há tão poucos, que é preciso ter muita cautela com eles. — E o medo? Que fazes tu a ele? — Inquiriu de novo Pelagueia. Divertia-a deveras aquele alentado rapagão de caracóis, pela sinceridade que vibrava na menor das suas palavras, pela sua fisionomia franca e pelas suas maneiras teimosas. — O medo é o medo e negócios são negócios! — replicou ele, mostrando muito os dentes. — Para que está a mangar comigo? Então, já viram?... Talvez não seja coisa de meter medo a uma pessoa?... Mas já que é preciso, atira-se a gente ao lume! Quando se trata dum negócio destes... — Ah! Meu filho! — exclamou involuntariamente Pelagueia, vencida pelo entusiasmo e o contentamento que ele lhe inspirava. Ele sorriu acanhado: — Ainda mais esta: eu, seu filho! Alguma criancinha, talvez?... Nicolau, que não deixara de observar o rapaz, com olhar amigo, interveio então: — Você não vai, homem! — Então, que devo fazer? Onde é preciso que vá? — interrogou ele com inquietação. — Outro irá em seu lugar e você há de explicar-lhe miudamente como ele deve proceder. Quer fazer isto? — Está bem! — respondeu Ignati de má vontade, após um instante de hesitação. — Nós nos encarregamos de lhe fornecer documentos, para lhe arranjarmos um lugar de guarda-mato. — E se for lá gente do campo apanhar lenha ou caçar clandestinamente, de os prender? Para isso não sirvo eu!... Os dois puseram-se a rir, o que acabou por de todo atrapalhar o campónio, muito desgostoso. — Não tenha medo! — disse-lhe Nicolau. — Não há de ter ocasião para tal,creia! — Isso agora é diferente! — comentou Ignati. E já mais tranquilo, sorriu-se para Nicolau, confiado e alegremente. — Eu sempre gostava mais de ir à fábrica; dizem que há por lá camaradas bastante inteligentes... Parecia que no vasto peito lhe ardia um fogo, intermitente ainda e que se extinguia por alternativas, não deixando ver mais que o fumo da perplexidade e de inquietação. Pelagueia levantou-se da mesa e foi à janela, dizendo, pensativa: — Como a vida é singular!... Por cada cinco vezes que rimos, choramos outras tantas!... Que coisa pouco agradável!... Já acabaste, Ignati? Vai dormir. — Não, senhora, não quero. — Vai dormir, já te disse. — Vossemecê é muito severa! Está bem, lá vou! E muito obrigado pelo seu chá, pelo açúcar... e pela sua amizade! Deitou-se na cama de Pelagueia. Resmungava coçando a cabeça: — Agora fica tudo a cheirar a alcatrão cá em casa... Olhe que faz mal em me amimar tanto, creia!... Eu não tenho sono... São ambos boas pessoas... Já não percebo nada... parece que estou a cem mil quilómetros da aldeia... E como ele falou bem a propósito no meio-termo... No meio-termo estão os que lambem as mãos dos que maltratam os outros... Demónio! E subitamente, com um ronco sonoro, arqueando muito as sobrancelhas e de boca entreaberta, adormeceu. XXI Nessa noite, já muito tarde, encontrava-se Ignati num subterrâneo, sentado em frente de Vessovtchikov e segredava a este: — Quatro vezes, na janela do meio... — Quatro? — repetia o bexigoso, com ares de grande concentração. — Sim; primeiro três, assim... E bateu na mesa com o dedo dobrado, enquanto contava: — Uma, duas, três; e depois, mais uma vez, passado um instantinho... — Estou percebendo. — Há de vir à porta um campónio de cabelos vermelhos, e há de perguntar- lhe: «Vem por causa da parteira?» E você responde-lhe: «Sim, senhor, venho da parte do senhorio!» E não precisa mais, ele logo percebe do que se trata! Neste colóquio, aproximavam as cabeças; ambos altos e alentados, falavam baixinho, abafando muito a voz. De pé, junto duma mesa, com os braços cruzados sobre o peito, Pelagueia observava-os. Todos aqueles sinais cabalísticos, aquelas perguntas e respostas convencionadas de antemão, lhe davam imensa vontade de rir. E pensava: «Não passam ainda dumas crianças!» Um candeeiro seguro na parede iluminava as sombrias manchas do bolor e as gravuras recortadas de jornais. Pelo chão jaziam baldes amolgados, fragmentos de zinco; e divisava-se pela janela, no céu muito escuro, uma grande estrela cintilante. Reinava em toda a quadra um forte cheiro a ferrugem, tintas de óleo e humidade. Ignati ostentava grosso sobretudo peludo em que muito se comprazia; Pelagueia via-o, volta e meia, acariciar com volúpia a manga do espesso casacão e inclinar com custo o largo pescoço, para melhor se admirar. E um pensamento cantava no coração de Pelagueia: «Filhos!... Meus queridos filhos!...» — Ora aqui está! — disse Ignati, levantando-se. — Então não se esqueça! Primeiro, ir a casa do Muratov, perguntar pelo avô... — Cá estou lembrado! — respondia Vessovtchikov. Mas Ignati não se dava por crente, repetia-lhe outra vez todos os sinais combinados e todas as palavras de passe. Por fim, estendeu-lhe a mão. — Agora não falta mais nada! Adeus, camarada! Dê-lhes recomendações minhas! Olhe, diga-lhes assim: «O Ignati está vivo e passa bem.» É boa gente, verá!... Mirou-se satisfeito, passou a mão pelo casacão e perguntou a Pelagueia:— Posso ir-me embora? — E hás de atinar com o caminho? — Está claro que sim!... Até mais ver, camaradas! E lá se foi, aprumado, arqueando o peito, de chapéu novo à banda e as mãos enterradas nos bolsos. Na testa e nas fontes, os anéis dos cabelos, loiros e infantis, dançavam-lhe jovialmente. — Ora até que enfim já tenho também trabalho! — exclamou Vessovtchikov, aproximando-se da velha. — Andava aborrecido; perguntava a mim mesmo para que tinha saído da cadeia. Não faço senão andar escondido!... Ao menos, na cadeia, sempre aprendia! O Pavel recheava-nos a cabeça que era um gosto! E o André também nos limpava as ideias, sim senhora!... E então, sempre se decidiu a fuga? Arranja-se isso? — Hei de sabê-lo depois de amanhã! — respondeu. E repetiu, suspirando, mau grado seu. — Depois de amanhã... O bexigoso aproximou-se-lhe, descansou-lhe no ombro a alentada mão e opinou: — Podes dizer aos chefes que é coisa fácil. Eles hão de dar-te ouvidos! Ora vê tu mesma: aqui está a muralha da cadeia, ao pé dum lampião. Em frente, ficam umas terras sem cultivo; à esquerda, o cemitério; à direita, uma rua e o resto da cidade. Vem um acendedor de candeeiros mesmo de dia, dia claro, para limpar o lampião; encosta a escada ao muro, sobe, engata ao espigão da muralha os ganchos duma escada de corda que há de ficar para o lado do pátio, e está pronto! Eles, na cadeia, já hão de saber a hora combinada, pedem aos presos de crimes comuns que armem qualquer desordem, ou armam-na eles mesmos, e entretanto, os que estiverem na combinação marinham pela escada e está tudo feito! E dali vem de passeio até à cidade, enquanto eles lá ficam a procurá-los pelo cemitério e nas tais terras de baldio! Gesticulava com vivacidade, expondo este plano, aos olhos dele simples, claro e de extrema habilidade. Pelagueia, que nunca conhecera nele mais que um rapagão tosco e desajeitado, admirava-se de ver aquele rosto bexiguento tão cheio de vivacidade e inteligência. Dantes, os minguados olhos de Vessovtchikov tudo fitavam com irritação e desconfiança; agora, era para crer que outros os haviam substituído, rasgados e brilhantes de cintilações uniformes e severas que convenciam e emocionavam Pelagueia. — Pensa bem: de dia é que há de ser!... Sim, de dia! Quem há de imaginar que um preso se atreva a fugir de dia, à vista de todo o pessoal da prisão? — E se os fuzilassem? — lembrou a mãe, horrorizada. — Quem? Se não há soldados, e os carcereiros servem-se dos revólveres parapregar pregos! — Quase que estou achando tudo isso simples de mais!... — Pois é como te digo; tu verás! Fala nisso aos outros. Eu já arranjei tudo: a escada de corda, os ganchos... Já falei cá com o meu hospedeiro; é ele que há de fazer de limpa-candeeiros. Para além da porta, mexia-se alguém entre acessos de tosse; ouvia-se um ruído de ferros velhos. — Aí está ele, o hospedeiro! — anunciou o bexigoso. Pela abertura da porta apareceu uma banheira de zinco, e uma voz encatarroada praguejou: — Entra, diabo! Depois, surgiu uma cara redonda e barbuda, de cabelos grisalhos, sem chapéu, de expressão bonacheirona e grandes olhos esbugalhados. Vessovtchikov foi ajudar o homem a fazer passar a banheira pela porta; depois, o recém-chegado, grande latagão corcovado, pôs-se a tossir com um grande entumecimento nas faces imberbes, escarrou e disse na mesma voz rouca: — Boa noite! — Pois agora, pergunta-lhe! — convidou o rapaz. — O quê? Que querem perguntar-me? — É a respeito da fuga da cadeia. — Ah, sim! — disse o velho, limpando o bigode com os dedos sujos. — Quer saber, Jacob? Ela não acredita que seja fácil arranjar! — Ah, não acredita? Pois se não acredita, é porque não quer a coisa. Mas nós dois, que queremos que isso se faça, acreditamos que seja fácil! — respondeu serenamente o homem. Foi tomado dum acesso de tosse que o dobrou em ângulo reto, e em seguida esteve muito tempo no meio da quadra a aspirar com força o ar e a esfregar o peito. Fitava Pelagueia com olhos de espanto. — Mas não sou eu quem decide esta questão! — observou ela. — Mas fala lá com os outros; diz-lhes que está tudo arranjado! Ah! Se eu pudesse falar com eles, eu os convenceria! — exclamou o bexigoso. Estendeu os braços em largo gesto e depois apertou-os como para abraçar qualquer coisa. Vibrava-lhe na voz um sentimento cuja energia assombrava Pelagueia. — Vejam que mudança fez! — pensou ela. E contestou em voz alta:— O Pavel e os companheiros é que hão de decidir. Meditativo, o outro ficou-se de cabeça baixa. — Quem é esse Pavel? — interrogou o velho, tomando lugar num banco. — É o meu filho. — Qual é o nome da família? — Vlassov. Ele abanou a cabeça, puxou pela bolsa do tabaco e, enquanto enchia o cachimbo: — Tenho ouvido falar. O meu sobrinho conhece-o. O meu sobrinho também está na cadeia; chama-se Evetchenko. Conhece? Eu chamo-me Gadune. Daqui a pouco, está na cadeia! Então é que a gente há de viver feliz e sossegada, nós, os velhos! Um, da polícia, prometeu que me havia de pregar com o sobrinho na Sibéria... E há de cumprir a promessa, o excomungado! Entrou de fumar, escarrando para o chão de vez em quando. — Ah! Ela não quer? — continuou, virado para o rapaz. — Isso é com ela!... O homem é livre! Quem está cansado, que se sente; quem estiver cansado de estar sentado, passeie!... Quem for roubado, que se cale; quem for tosado, sofra com resignação! E se o matarem, que se deixe cair!... Sempre é certo isto. Mas eu cá hei de fazer sair o meu sobrinho da cadeia. Olá, se hei de!... Estas expressões incisivas, parecidas com latidos, tornaram Pelagueia perplexa. As últimas palavras do velho haviam até excitado nela uma tal ou qual inveja. Pela rua fora, ao vento gélido e à chuva, ia pensando no Vessovtchikov. — Como ele está mudado!... Vejam aquilo! E ao lembrar-se de Gadune, meditou com um sentimento quase de religiosa piedade: — Ao que parece, não sou só eu que ando nesta vida de promissão! Depois, a imagem de seu filho acudiu-lhe ao espírito: — Se ele consentisse, ao menos!... XXII No domingo seguinte, ao despedir-se de Pavel, na secretaria da cadeia, sentiu que ele lhe deixava na mão uma bolinha de papel, o que a fez estremecer de alvoroço. Lançou ao filho olhar interrogador e suplicante, mas Pavel não lhe deu resposta alguma. Nos olhos azuis do filho nada viu além do sorriso sereno e decidido que conhecia bem. — Adeus! — disse, suspirando. De novo, Pavel, ao estender-lhe a mão, deu ao rosto carinhosa expressão. — Adeus, mamã! Reteve ainda a mão do filho, à espera. — Não te inquietes... Não te zangues... — suplicou ele. Estas palavras e o vinco de obstinação daquela fronte deram à mãe a resposta esperada. — Porque dizes isso? — murmurou, baixando a cabeça. — Que há nessas tuas palavras? E saiu rápida, sem o fitar para não trair com as lágrimas o seu estado de espírito. Pelo caminho, chegava-lhe a parecer que lhe doía a mão em que trazia o bilhete de seu filho; sentia o braço pesado como se lhe tivessem dado uma pancada no ombro. E, ao entrar em casa, entregou a Nicolau a bolinha de papel. Enquanto esperava que ele desdobrasse o papel, fortemente comprimido, ainda teve um novo vislumbre de esperança. Mas Nicolau disse-lhe: — Já o sabia! Aqui tem o que escreve:«Companheiros: não fugiremos; não devemos fazê-lo; nenhum de nós se presta a isso. Perderíamos assim o respeito por nós mesmos. Tratem antes do camponês ultimamente preso. Merece a vossa solicitude. É digno das vossas diligências. Está sofrendo horrores, aqui. Todos os dias tem desaguisados com as autoridades. Já passou vinte e quatro horas no segredo. É torturado sem descanso. Todos nós intercederemos por ele. Consolem minha mãe; tratem dela com carinho. Contem-lhe tudo isto; ela há de compreender. Pavel.» Pelagueia ergueu a cabeça e com voz firme: — Contar-me, o quê? Já compreendi tudo! Nicolau virou de súbito as costas, puxou pelo lenço e assoou-se com ruído. Murmurou: — Sempre apanhei um defluxo!... Ocultou os olhos com a mão, sob pretexto de compor os óculos, e continuou, passeando pelo quarto: — Olhe, sabe que mais?... Assim como assim, havíamos de nos sair mal da empresa!— Que importa! Pois que seja julgado! — disse a mãe de Pavel com o peito a estalar de indefinida angústia. — Recebi há pouco carta dum colega de São Petersburgo. — Também da Sibéria se pode fugir, não é assim? — Com certeza... O meu colega diz-me que o processo cedo será julgado. O veredito já é conhecido: o degredo para todos. Ora veja a senhora: aqueles patifes fazem da justiça uma comédia infame!... Está compreendendo? A sentença é lavrada em São Petersburgo, antes mesmo da decisão do júri! — Não pense mais nisso, Nicolau! — disse Pelagueia resoluta. — É inútil pretender consolar-me ou explicar-me seja o que for!... O Pavel nunca há de fazer nada que não seja bem feito! E não se há de apoquentar senão pelo que o mereça!... Aqui, deteve-se para tomar fôlego. — Assim como também nunca apoquenta os outros... E ele estima-me! Estima-me, sim! Não vê como se lembrou de mim? «Consolem-na», escreveu ele, hã? Batia-lhe forte o coração; a violência do seu sentir fazia-lhe um tanto andar a cabeça à roda. — Seu filho é uma bela alma! — exclamou Nicolau com voz singularmente vibrante. — Estimo-o e venero-o profundamente! — E se nós tratássemos do Ribine! — alvitrou ela. O seu desejo era entrar imediatamente em ação, partir, caminhar até cair de fadiga, para depois adormecer satisfeita com o seu dia de trabalho. — Sim, com efeito! — respondeu Nicolau, prosseguindo no passeio pelo quarto. — Que fazer neste caso?... Eu preciso que a Sachenka... — Ela não tarda. Vem sempre que sabe que eu estive com o Pavel. De cabeça baixa, meditativo, sentou-se Nicolau no canapé, ao lado dela. Mordia os beiços e cofiava a barbicha. — Que pena minha irmã não estar por aí!... Ela é que havia de tratar da fuga do Ribine. — Se fosse possível dar-lhe já fuga, enquanto o Pavel ainda aí está... Havia de ficar tão contente! — disse ela. Esteve um instante calada e, de repente, baixinho e com dolência: — Não compreendo... Porque se recusa ele?... Uma vez que tem possibilidade de o fazer?... Ressoou forte campainhada. Nicolau levantou-se de chofre. Olharam um para o outro.— É a Sachenka! — disse Nicolau com voz débil. — Nem sei como lho hei de dizer! — exclamou ela no mesmo tom. — É verdade... é difícil! — Tenho pena dela! A campainha vibrou outra vez, mas com menos força, como se a pessoa que se encontrava para além da porta hesitasse também. Dirigiam-se os dois a abrir, mas, chegados à cozinha, deteve-se Nicolau e segredou-lhe: — É melhor ir a senhora só. — Recusa-se a fugir? — perguntou a rapariga com decisão, tão depressa Pelagueia lhe abriu a porta. — Recusa! — Bem o sabia! — disse Sachenka simplesmente. Faz vento, chove... que abominável tempo!... E ele está bom? — Está. — Contente e de saúde... como sempre! — disse Sachenka a meia voz, ao mesmo tempo que examinava uma das mãos. — Manda-nos dizer que devemos dar fuga ao Ribine — anunciou a mãe de Pavel, sem se atrever a fitá-la. — Ah, sim? Pois é preciso levar esse plano a bom caminho! — respondeu a rapariga com vagar. — Sou da mesma opinião! — declarou Nicolau, aparecendo à porta. — Boa noite, Sachenka! Ela estendeu-lhe a mão e perguntou: — E que obstáculo há? Todos reconhecem que o projeto é engenhoso, não é assim? Eu sei que é este o parecer de todos. — Mas quem há de encarregar-se de o organizar? Andam todos tão ocupados!... — Eu! — disse com vivacidade a rapariga, pondo-se de pé. — Eu tenho tempo. — Pois seja! Mas são precisos outros colaboradores... — Bem, eu os encontrarei! Vou tratar disso imediatamente. — Porque não descansa um pouco? — propôs Pelagueia. Ela sorriu e respondeu, diligenciando dar meiguice à voz: — Não se apoquente por minha causa... Não estou cansada... Apertou as mãos a ambos, silenciosa, e foi-se como viera, fria e de semblante carregado.Pelagueia e Nicolau foram à janela para a ver. Atravessou o pátio e sumiu-se para além da grade. Nicolau pôs-se a assobiar baixinho; em seguida, sentou-se à mesa e pegou na pena. — Ela quer tratar deste negócio para distrair o seu desgosto! — disse Pelagueia, baixo. — É evidente! — confirmou Nicolau. E, voltando-se para Pelagueia, com o rosto bondosamente iluminado de um sorriso: — Este fel é que os seus lábios não provaram, não é verdade?... Nunca andou a suspirar por um homem amado! — Que ideia! — exclamou ela, agitando negativamente a mão. — Eu, a suspirar? O que eu tinha era medo de que me obrigassem a casar com um ou com o outro. — Ninguém lhe agradava então?... Refletiu e depois respondeu: — Não me lembro, meu amigo. É provável que houvesse um que me agradasse mais do que os outros... E como não havia de ser assim?... Mas não me lembro. Fitou o seu interlocutor e resumiu com dolorosa melancolia: — Fui tão maltratada pelo meu marido, que tudo o que se passou antes dele é como se me tivesse apagado da lembrança. E ausentou-se por um instante. Quando voltou, disse-lhe Nicolau com afetuoso olhar, como para lhe suavizar as penosas recordações, com palavras repassadas de ternura e amor: — Quer saber? Também eu tive uma... história... parecida com a da Sachenka. Amava uma menina, uma criatura deliciosa! Era ela a estrela da minha vida... Há vinte anos que a conheço e a amo... porque a amo ainda hoje, para dizer a verdade; amo-a tanto como sempre a amei... de toda a minha alma, com gratidão! Pelagueia via-lhe no olhar uma chama viva e apaixonada. Ele descansara a cabeça nos braços apoiados ao espaldar da poltrona e olhava para longe, nem ele mesmo sabia para onde. Todo o seu corpo magro e delgado, mas robusto, parecia tender para um ponto fixo, tal a haste da planta virada para a luz do sol. — Mas então, case-se! — aconselhou ela. — Oh! Há cinco anos que está casada! — Porque não casou com ela? Não o amava? Teve um momento de reflexão e respondeu:— Creio que me amava... Tenho mesmo a certeza! Porém, veja a senhora! Fomos sempre infelizes: quando ela estava em liberdade, era eu que estava preso, e quando eu estava solto, era ela que estava na cadeia. Vivíamos na mesma situação da Sachenka e do Pavel! Finalmente, mandaram-na por dez anos para a Sibéria... Tão longe!... Eu quis segui-la... Mas tivemos ambos vergonha, pelo nosso amor... E fiquei. No degredo, travou conhecimento com um dos meus camaradas, excelente rapaz. Evadiram-se juntos... e agora vivem no estrangeiro... Tirou os óculos e limpou-os; depois, examinou as lentes contra a luz e entrou de novo a esfregá-las. — Ah, meu caro amigo! — disse afetuosamente Pelagueia, abanando a cabeça. Lastimava-o Pelagueia sinceramente, mas ao mesmo tempo, havia nele o que quer que era que a forçara a sorrir, com bondoso e maternal sorriso. Nicolau mudou logo de expressão, retomou a pena e batendo com ela, ao ritmo das frases, declarou: — Afinal, a vida de família diminui a energia do revolucionário; é certo, diminui-a sempre! Vêm os filhos, o dinheiro rareia, é preciso trabalhar para ganhar o pão... E o verdadeiro revolucionário deve desenvolver a sua energia sem desfalecimentos. E é preciso ganhar tempo para isso! Se nos deixamos ficar para trás, vencidos pelo cansaço, ou seduzidos pela possibilidade duma conquistazinha amorosa, traímos a bem dizer, a causa do povo! Falava com voz firme e, bem que o rosto se lhe conservasse pálido, mostrava no olhar uma decisão sem transigências, inabalável. De novo, violenta campainhada interrompeu as considerações de Nicolau. Era Ludmila. Vinha com as faces muito vermelhas do frio. Enquanto tirava a capa de borracha, anunciou em tom de irritação: — Está marcado o dia do julgamento: é dentro duma semana! — Tem a certeza? — gritou Nicolau do quarto, onde fora. Pelagueia correra para ele sem saber se era contentamento ou receio o que a impelia. Seguira-a Ludmila. Esta continuava, com a sua voz grave, repassada de ironia: — Tenho, sim! O procurador substituto Chostak já lavrou o libelo de acusação. No tribunal, diz-se abertamente que o veredito já está pronunciado. Que significará isto? O governo terá medo de que os magistrados tratem os seus inimigos com excessiva benevolência? Depois de ter pervertido os seus servidores com tanta perseverança e paciência, ainda não estará seguro do seu servilismo? E dito isto, sentou-se no canapé e pôs-se a esfregar as cavadas faces; despediado olhar sem brilho, infinito desprezo e a voz alteava-se-lhe cada vez mais irada. — Não gaste a sua pólvora inutilmente, Ludmila! — aconselhou Nicolau. — O governo não a ouve! As olheiras que assombreavam o rosto da mulher cavaram-se mais, cobrindo-lhe as feições duma névoa de ameaça. Mordendo os lábios, prosseguiu: — Eu luto contra o governo. Que ele me mate, bem vai: está no seu direito, pois que sou sua inimiga! Mas que não ande a corromper as criaturas para defender o poder; que não me obrigue a votar-lhe profundo desprezo; que não me envenene a alma com tal cinismo! Nicolau, por detrás dos seus óculos, fitou-a muito, com um franzir de pálpebras e sinais aprovativos. A outra continuou a discorrer, como se aqueles a quem odiava estivessem na sua presença. Pelagueia escutava atentamente aquelas frases, mas sem as compreender. Maquinalmente, a si mesma repetia as mesmas palavras: — O julgamento... dentro duma semana... O julgamento!... Não podia conjeturar o que ia passar-se, nem como os juízes tratariam seu filho. Mas sentia a iminência de alguma coisa implacável, cuja crueza e cuja ferocidade deixavam de ser humanas. Os pensamentos baralhavam-lhe o cérebro, velavam-lhe a vista dum vapor azulado e mergulhavam-na no que quer que fosse frio, viscoso, que lhe causava arrepios, náuseas e, que, infiltrando-se-lhe no sangue, lhe chegava ao coração e sufocava nela todo o valor. XXIII Dois dias passou neste nevoeiro de perplexidades e angústias. Ao terceiro, veio Sachenka dizer a Nicolau: — Está tudo pronto. É para hoje, à uma hora. — Já?! — exclamou admirado. — Não era coisa muito complicada! Bastava que arranjasse fato para o Ribine e sítio para o esconder. Do resto encarregou-se o Gadune. O Ribine não terá de andar mais que uns cem passos. O Vessovtchikov, disfarçado, está claro, irá ao encontro dele, fornecer-lhe-á um casacão e um boné e dir-lhe à onde deve ir. Eu espero o Ribine e guiá-lo-ei. — Está muito bem... Quem é esse Gadune? — disse Nicolau. — Deve conhecê-lo. É na loja dele que temos feito as leituras aos serralheiros... — Ah, já me lembro!... Um velhote esquisito... — Sim; é um retelhador, por ofício; antigo soldado. De inteligência pouco desenvolvida, nutre um ódio inesgotável contra todas as violências, contra toda a opressão. É um tanto ou quanto filósofo, rematou Sachenka, pensativa, a olhar pela janela. Ouvia-se Pelagueia em silêncio. Pouco a pouco, ia amadurecendo nela uma ideia vaga. — O Gadune quer dar fuga ao sobrinho, o Evtchenko, aquele ferreiro de quem tanto se agradavam todos pelo seu asseio e donaire, lembram-se? Nicolau afirmou com um gesto. — Pois tem tudo preparado na perfeição — continuou Sachenka; — mas ainda assim, começo a duvidar do bom êxito... Os presos passeiam todos à mesma hora. Quando virem a escada, há de haver logo muitos a quererem fugir... Fechou os olhos e calou-se por instantes. Pelagueia aproximara-se dela. — E hão de estorvar-se uns aos outros. Estavam agora os três junto da janela, Nicolau e Sachenka à frente, Pelagueia mais atrás. A conversação rápida dos dois primeiros despertava cada vez mais em Pelagueia um vago sentimento... — Pois hei de lá ir! — anunciou de súbito. — Para quê? — perguntou Sachenka. E Nicolau aconselhou: — Não, não, querida amiga! Podia acontecer-lhe alguma coisa. Não! Ela fitou-os a ambos e repetiu, mais baixo, com insistência:— Sim, hei de ir! Os dois trocaram rápido olhar. Sachenka encolheu os ombros e comentou: — Compreende-se... Depois, voltando-se para ela e tomando-lhe do braço, inclinando-se-lhe ao ouvido, declarou com singeleza e cordialidade: — Mas olhe que eu previno-a: nada tem a esperar... — Minha querida! — exclamou a mãe de Pavel, puxando-a para si, a tremer, — leve-me consigo!... Eu não a estorvo... É que eu queria ver... Não creio, não julgo que seja possível... uma evasão! — Há de vir connosco por força! — limitou-se a dizer a rapariga para Nicolau. — Isso é com vocês as duas! — respondeu ele, baixando a cabeça. — Mas olhe que não podemos ficar juntas. Vossemecê tem de andar pelos campos, pelos jardins. Veem-se de lá os muros da cadeia, muito bem... De outra forma, arrisca-se a que lhe perguntem o que anda ali a fazer. Com serenidade, Pelagueia exclamou: — Sempre hei de achar uma resposta! — Não se esqueça de que os vigias da cadeia conhecem-na! — lembrou Sachenka. — Se a veem por ali... — Não hão de ver-me! — respondeu ela. E logo a seguir, a esperança que ela sempre acalentara sem mesmo dar por tal, incendiou-se em viva chama que toda a animou: — Quem sabe?... Talvez que ele também... — pensava, enquanto se vestia apressadamente. Uma hora depois, encontrava-se ela em meio duns campos, perto da prisão. Soprava vento agreste, que lhe enfunava as saias, enrijecia o solo gelado, fazia oscilar o tapume velho dum jardim, fustigava com violência o muro da cadeia e penetrava no pátio interior, de onde a vozearia subia, arrastada para o firmamento no seu irresistível sopro. Corriam velozes as nuvens, deixando por vezes entrever a imensa profundidade do azul. A cidade estendia-se por detrás de Pelagueia; e na sua frente, o cemitério. A uns vinte passos para a direita, elevava-se a cadeia. Perto do cemitério, dois soldados andavam a dar passeio a um cavalo. Caminhavam com pesado passo, assobiavam e riam. Obedecendo a instintivo impulso, acercou-se dos dois homens e gritou-lhes: — Camaradas, viram a minha sobrinha? Não fugiu para aqui? — Não, não vimos — respondeu-lhe um.Afastou-se devagar, passou-lhes adiante e dirigiu-se para o muro do cemitério, olhando sempre de soslaio. De súbito, sentiu vergarem-se-lhe as pernas e tornarem-se-lhe pesadas, como se o gelo lhas tivesse pregado ao solo: à esquina da cadeia tinha aparecido um acendedor de candeeiros, corcovado sob pequena escada, a correr, como todos eles costumam fazer. Toda a tremer de susto, olhou Pelagueia para o lado dos soldados. Tinham ficado parados em certo sítio; o cavalo brincava, pulando-lhes à roda. Viu depois que o homem já tinha encostado a escada ao muro e por ela trepava sem pressa alguma. Viu-o fazer um sinal com a mão, descer rápido, e sumir-se na esquina da cadeia. Pulsava violentamente o coração de Pelagueia; os segundos decorriam com lentidão. A escada mal era visível entre as grandes manchas da lama e da caliça escalavrada, que deixava a descoberto os tijolos. Nisto, surgiu na crista do muro a cabeça de Ribine, e logo o corpo apareceu, passou para o outro lado e deslizou. Segunda cabeça coberta de boné de pelo surgiu; rolou para o chão uma espécie de novelo preto que logo se sumiu na esquina do edifício. Ribine aprumara-se e olhava em torno. Fez um sinal com a cabeça. — Foge! Foge! — segredou Pelagueia, batendo o pé. Tinha zumbidos nos ouvidos, parecia-lhe ouvir gritos, quando terceira cabeça, esta loira, emergiu do espigão do muro. Comprimindo o peito às mãos ambas, Pelagueia olhava, petrificada. A cara loira e imberbe teve um impulso para cima, como para se separar do corpo, e depois, desapareceu por detrás do muro. Os gritos de há pouco faziam- se mais ruidosos e traduziam maior alvoroço; o vento levava-os pelo espaço, de mistura com trilos agudos de apitos. Ribine caminhou ao longo do muro e depois transpôs um terreno que separava a prisão dos prédios da cidade. A Pelagueia afigurava-se que ele ia muito devagar e de cabeça alta demais; com certeza as pessoas que com ele se cruzavam não lhe esqueceriam as feições. — Depressa!... Mais depressa! — murmurou ela. No pátio da cadeia, houve qualquer coisa que se quebrou com ruído seco, ouviu-se um tinido agudo de vidros partidos. Firmando os pés no chão com toda a sua força, um dos soldados puxava pelo cavalo; o outro, de mão ao lado da boca, gritava o que quer que fosse na direção do presídio, depois apurava o ouvido com a cabeça inclinada nesse sentido. Em crispações de incerteza, a mãe de Pavel olhava para tudo aquilo; os seus olhos, que tudo haviam visto, em nada queriam crer. A evasão, que ela imaginara coisa terrível e complicada, efetuara-se tão rápida e simplesmente, que dela mal lhe restava consciência. Em baixo, na rua, já não se divisava Ribine. Os únicos transeuntes eram agora um homem de elevada estatura, vestido de comprido sobretudo, e uma rapariguinha. Apareceram três vigias àesquina. Corriam, apertando-se uns contra os outros, com o braço direito estendido para a frente. Um dos soldados precipitou-se ao encontro deles, o outro mal podia acompanhar o cavalo, que, caprichoso e rebelde, tentava recomeçar o brinquedo, esquivando-se e pulando. Pelagueia julgava ver tudo em volta dela oscilar. Os apitos rasgavam a atmosfera em trilos incessantes e desesperados. Compreendeu então o perigo que corria. Toda trémula, foi andando ao longo do tapume do cemitério, sem perder de vista os guardas. Estes deitaram a correr para a outra esquina da cadeia e desapareceram, assim como os soldados. Logo depois viu o sub-diretor da prisão, que ela conhecia bem, tomar a mesma direção. Trazia a farda desabotoada. Acudiam polícias; formava-se um ajuntamento... O vento soprava, deslocando-se em redemoinhos, como se quisesse mostrar- se satisfeito; com ele chegavam aos ouvidos de Pelagueia fragmentos de exclamações confusas: — Ela ainda lá está! — A escada? — Vá para o diabo! Porque espera!... De novo retiniram apitos estridentes. Todo este tumulto era do agrado de Pelagueia. Apressou o passo, ao mesmo tempo que ia pensando: — Logo, era possível!... E se ele quisesse, também o tinha podido fazer! De repente, ao voltar uma esquina do tapume, embateu em dois guardas, acompanhados dum polícia. — Para! — gritou-lhe este, ofegante. — Não viste um homem de barba a correr? Não veio para aqui? Ela apontou para os campos e respondeu com todo o sangue frio: — Vi, sim, senhor. Foi para ali!... — Jegurov! — berrou o polícia. — Vá! Corre! Apita! E há muito tempo? — Há de haver um minuto... Mas teve a voz dominada pelo estridor do apito. Sem esperar a resposta, o polícia desatou a correr por entre os montões de lama gelada, agitando as mãos na direção dos jardins. De cabeça baixa e apito na boca, os outros precipitaram- se-lhe nas peugadas. Ficou um momento a segui-los com a vista e voltou para casa. Sem que um pensamento particular predominasse nela, sentia, não obstante, o pesar por alguma coisa; havia no seu coração amargura e despeito. Ao chegar próximo da cidade, fê-la parar um trem que ia passando. Ergueu a cabeça e viu na carruagem um rapaz de bigode loiro, rosto pálido e que revelava cansaço. Elefitou-a também. Ia sentado de esguelha; era talvez por isso que parecia ter o ombro direito mais alto que o esquerdo. Nicolau recebeu Pelagueia com um suspiro de alívio. — Chegou sã e salva? Então como se passou isso? — Parece que conseguiram o que queriam. E diligenciando rememorar os mais insignificantes pormenores, contou o que tinha visto, como se estivesse a repetir inverosímil história. — Ora veja que temos sorte! — disse Nicolau, esfregando as mãos. — Mas que susto em que estive por sua causa! Nem pode imaginar! Nada receei com respeito ao julgamento. Quanto mais cedo for, tanto mais breve chegará o dia da libertação do seu Pavel, creia! Talvez até possa evadir-se quando for a caminho da Sibéria... Quanto ao julgamento, aqui tem pouco mais ou menos o que é. Entrou a descrever-lhe o tribunal. A mãe de Pavel escutava-o, mas pressentia que ele receava alguma coisa e diligenciava tranquilizá-la. — Está imaginando talvez que eu quero dirigir-me aos juízes, entregar-lhes algum memorial! — disse ela. Nicolau levantou-se bruscamente, agitou a mão e exclamou em tom de melindre: — Que está dizendo? Nunca pensei nisso! — Tenho medo, isso é certo! Tenho medo e não sei de quê! Calou-se. O olhar vagueava-lhe pelo aposento, ao acaso. — Em certas ocasiões, quer-me parecer que hão de mofá-lo, que hão de injuriá-lo e dizer-lhe: «Oh, campónio, filho de campónio! Que descoberta foi essa agora?» E o Pavel é orgulhoso; há de querer responder-lhes... Ou então é o André que vai para lá zombar deles. São todos tão entusiastas, tão francos e leais, os nossos!... É por isso que eu digo comigo mesmo: «Se acontecesse alguma coisa, se um deles perdesse a paciência, os outros haviam de apoiá-lo e lá os tínhamos todos condenados... por maneira que nunca mais aparecessem!» Nicolau, sombrio, atormentando a barba, permanecia silencioso. — Não posso expulsar tais ideias desta cabeça! Continuou ela mais baixo. É terrível, uma audiência! Vão para ali pôr-se a examinar tudo, a avaliar tudo... a procurar onde está a verdade! É deveras um horror!... Não é o castigo que amedronta, é o julgamento... a avaliação da verdade... Não sei como hei de dizer... Sentia que Nicolau não compreendia o seu terror, e isto ainda mais a embrulhava na demonstração. XXIV Este terror de Pelagueia não fez senão aumentar durante os três dias que a separavam da audiência e, quando esta chegou finalmente, levava ela sobre si, para o tribunal, um fardo que toda a avergava. Cá fora, reconheceu vários dos seus antigos vizinhos do arrabalde, inclinou-se em silêncio para corresponder aos seus cumprimentos e abriu à pressa caminho por entre a multidão tristonha. Nos corredores e depois, na sala, topou com as famílias dos seus. Falava-se abafando a voz; trocavam-se frases que ela não compreendia. Daquela turba brotava pungente sentimento que se comunicava a Pelagueia e a oprimia ainda mais. — Senta-te! — convidou Sizov, arranjando-lhe lugar no banco, a seu lado. Obedeceu, compôs as dobras do vestido e olhou em torno. Divisava vagamente umas faixas verdes e encarnadas, umas manchas, uns fios amarelos e delgados, que brilhavam. — Foi o teu filho que levou o meu à perdição! — murmurou uma mulher que lhe ficava perto. — Cala-te daí, Natália! — interrompeu Sizov com o semblante carregado. Pelagueia ergueu a vista para aquela mulher: era a mãe de Samoilov. Um pouco mais adiante, estava o pai, calvo, de belo rosto ornado de espessa barba ruiva talhada em leque. Semicerrava as pálpebras e olhava direito para diante de si, com um estremecimento involuntário de vez em quando. Pelas altas janelas entrava uma claridade uniforme e turva; escorregavam flocos de neve pelas vidraças. Entre as janelas, havia um imenso retrato do czar em grossa moldura doirada, e com reflexos oleosos na pintura; e a um e outro lado do quadro, ocultavam a parede as pregas hirtas dos pesadíssimos reposteiros que revestiam as janelas. Frente ao retrato, uma mesa coberta de pano verde, ocupava quase toda a largura da sala; à direita, por detrás duma espécie de gelosia gradeada, dois bancos de pau; à esquerda, duas filas de poltronas forradas de vermelho. Os oficiais de diligências, de golas verdes e botões doirados iam e vinham pela sala, nos bicos dos pés. Na atmosfera, de equívoca pureza, perpassavam ruídos de vozes, cochichando baixinho; pairava, vindo ninguém saberia de onde, um vago cheiro de farmácia. Todas aquelas cores vivas e aquelas cintilações ofuscavam a vista; penetravam no peito os odores do ambiente de envolta com a respiração; o espírito sentia-se submerso numa espécie de temor inexprimível. De súbito, alguém começou a falar em voz alta. Toda a assistência se pôs de pé. Pelagueia teve um sobressalto e ergueu-se também, agarrada ao braço de Sizov. No canto esquerdo da sala, tinha-se aberto uma porta alta, dando passagem aum velhinho de óculos, muito alcachinado e de andar incerto. Umas escassas suíças tremiam-lhe dos lados da carinha de cor terrosa, o lábio superior, barbeado, quase se lhe sumia na cavidade da boca. As maçãs do rosto e o queixo comprimiam-se-lhe sobre a altíssima gola da farda, dando a julgar que por baixo nada existia de pescoço. O velho caminhava sustido por um rapaz alto, de cara de porcelana, muito redonda e rosada. Atrás deles, vinham três personagens revestidos de uniformes recamados de bordados e mais três sujeitos à paisana. Por muito tempo, estiveram a deliberar entre si, em volta da mesa; depois, sentaram-se. Logo que todos tomaram os seus lugares, um deles, rosto imberbe e com a farda desabotoada, entrou a falar ao velho, com uns modos de indiferente indolência e movendo com custo os beiços entumecidos. O velho ia-o escutando. Conservava-se hirto e imóvel, e Pelagueia distinguia-lhe duas manchazinhas esbranquiçadas por detrás dos vidros dos óculos. Junto de estreita secretária, na extremidade da mesa, um homem alto e calvo folheava papéis, com uma tossinha seca. O velho fez um movimento para diante e começou a falar. A primeira palavra pronunciou-a ele distintamente, mas as outras parecia que se sumiam ao sair-lhe dos lábios delgados e sem cor. — Declaro... — Olha! — segredou Sizov à sua vizinha com uma leve cotovelada. E pôs-se de pé. Por detrás do gradeamento abrira-se uma porta que dera passagem a um soldado de espada desembainhada, ao ombro, e logo depois a Pavel, André, Fédia Mazine, os irmãos Gussev, Bukine, Samoilov e mais cinco rapazes desconhecidos de Pelagueia. Pavel vinha a sorrir; André cumprimentou Pelagueia com um aceno de cabeça. Aqueles rostos, aqueles sorrisos e gestos de animação fizeram parecer menos frio o silêncio e tornaram a sala mais luminosa; suavizaram-se os reflexos opulentos de oiro dos uniformes; um alento de confiança, uma aragem de força viril penetraram o coração da mãe de Pavel, arrancando-a ao seu torpor. Por detrás dela, pelas bancadas onde até ali a turba se conservava acabrunhada, à espera, murmúrios surdos e reprimidos iam respondendo às saudações dos réus. — E é que não têm medo! — ouviu ela Sizov segredar-lhe, ao passo que à sua direita a mãe de Samoilov se desatava em soluços. — Silêncio! — gritou uma voz severa. — Tenho a preveni-los... — disse o velho. Pavel e André tinham ficado lado a lado; a seguir, estavam Mazine, Samoilov e os irmãos Gussev, todos na primeira bancada. André cortara a barba; mas o bigode crescera-lhe tanto, que as guias pendiam e reuniam-se, assemelhando-lhea redonda cabeça à dum gato. Trazia impressa na fisionomia uma expressão nova: nos vincos aos cantos da boca, havia alguma coisa penetrante, irónica, e o olhar tornara-se-lhe sombrio. Mazine tinha agora o lábio superior sombreado por dois traços escuros, e o seu rosto engordara; o Samoilov tinha os mesmos cabelos, tão encaracolados como dantes. O Ivan Gussev continuava a mostrar o mesmo amplo sorriso. — Fédia! Fédia! — suspirou Sizov, baixando a cabeça. Pelagueia respirava agora melhor. Apurava como podia, o ouvido às perguntas indistintas do velho, o qual interrogava os réus sem olhar para eles, com a cabeça entalada entre a gola da farda. Escutava as respostas breves e calmas que seu filho ia dando. Queria-lhe parecer que aquele presidente e aqueles juízes não podiam ser más e cruéis pessoas. Examinava-lhes pormenorizadamente as fisionomias, tentando perscrutar-lhes os sentimentos, e assomava-lhe ao coração uma nova alvorada de esperança. Indiferente, o homem da cara de porcelana estava lendo um documento; a sua voz circunspecta enchia a sala dum tédio que causava sonolências no público. Em voz baixa e animadamente, quatro advogados conversavam com os réus; tinham todos uma gesticulação sacudida e veemente e faziam pensar em grandes passarolos negros. À direita do velho, um juiz ventrudo, de olhinhos sumidos entre as papadas da gordura, enchia completamente toda a capacidade da poltrona; à esquerda, estava um homem alquebrado, de bigode vermelho, de rosto esmaecido. Reclinava com lassidão a cabeça no espaldar, de pálpebras semicerradas, meditando. O procurador também aparentava cansaço, enfado e indiferença. Por detrás dos juízes, ocupavam poltronas vários indivíduos: um robusto e esbelto homem estava acariciando uma das faces, com ares de grande concentração; o marechal da nobreza, já grisalho, de rosto rubicundo e comprida barba, divagava o olhar dos seus grandes olhos simplórios; o síndico do bailiado, a quem o enorme abdómen visivelmente incomodava, diligenciava disfarçá-lo sob uma aba da blusa, que escorregava de contínuo. — Aqui não há criminosos nem juízes! — proclamou Pavel com voz firme. — Aqui só há cativos e vencedores! Fez-se silêncio. Durante alguns segundos, o ouvido de Pelagueia nada distinguiu além do ranger precipitado e estridente das penas sobre o papel e das palpitações do seu próprio coração. O presidente do tribunal parecia que estava escutando ou esperando alguma coisa. Os juízes seus colegas agitaram-se nas poltronas. Ele então disse: — Sim!... André Nakodka!... Reconhece... Ouviram-se vozes segredar:— Levanta-te!... Levante-se! André pôs-se de pé com lentidão e ficou a olhar para o velho, de soslaio, enquanto frisava e desfrisava o bigode. — De que posso eu reconhecer-me culpado? — disse, com um encolher de ombros, o pequeno-russo, na sua voz cantante e arrastada. — Eu não matei, nem roubei: simplesmente protesto contra esta organização da sociedade, que obriga os homens a explorarem-se e a assassinarem-se uns aos outros. — Limite-se a responder sim ou não! — disse o velho com esforço mas percetivelmente. Pelagueia sentia que por detrás dela sussurrava certa agitação; todos falavam baixinho e mexiam-se muito nas bancadas, como para desanuviarem os espíritos da teia de aranha tecida pelo discurso enfadonho do homem de porcelana. — Vês como eles respondem? — segredou Sizov para a mãe de Pavel. — Sim! — Fédia Mazine, responda! — Não quero! — declarou Fédia perentoriamente, pondo-se de pé. Estava muito corado pela comoção e com os olhos brilhantes. Sizov soltou um «Ah!» de mal contido espanto. — Não quis defensor, portanto nada direi. Considero o julgamento deste tribunal como ilegítimo!... Quem são os senhores? Foi o povo quem lhes deu o direito de julgar-nos? Não, não foi o povo! Logo, não os conheço! Tornou a sentar-se e ocultou o rosto rubro, por detrás do ombro de André. O juiz gordo curvou-se para o presidente, cochichando. O juiz de rosto esmaecido lançou uma olhadela oblíqua para os réus e, com o lápis, passou um traço por cima do que quer que fosse, escrito no papel que tinha em frente. O síndico do bailiado abanou a cabeça e removeu os pés do sítio em que os tinha, com precaução. O marechal da nobreza conversava com o procurador; o administrador da comuna prestava atento ouvido ao que diziam e sorria, esfregando sempre uma das faces. De novo se ouviu a voz triste e sumida do presidente. Os quatro advogados escutavam atentos; os réus conversavam em segredo uns com os outros; Fédia continuava a ocultar-se às vistas, sorrindo, muito comprometido. — Então, não viste aquilo?... Falou melhor que todos os outros! — murmurou Sizov ao ouvido da sua vizinha. — Ah, aquele brejeiro! Pelagueia sorriu sem o compreender. Tudo o que se estava passando não era para ela mais do que o prologo inútil e forçado de alguma coisa terrível, que, ao surgir, havia de esmagar todo o auditório sob gélido terror. Contudo, as calmasrespostas de Pavel e André manifestavam tanta firmeza e decisão, como se as tivessem pronunciado na modesta casinha do arrabalde e não perante juízes. A réplica entusiasta e juvenil de Fédia tinha-a divertido imenso. Pairava na sala uma atmosfera de audácia e de mocidade, e, pela agitação de todo o auditório, Pelagueia sentia que não era ela só que lhe sentia os eflúvios. — A sua opinião? — perguntou o velho. O procurador calvo ergueu-se com a mão apoiada na carteira e discursou com verbosidade, citando números. Nada havia naquela voz que infundisse terror. No entanto, ao ouvi-lo, Pelagueia sentiu logo como uma punhalada no coração: era um vago pressentimento de alguma coisa hostil e que se lhe afigurava ir desenvolvendo-se lentamente em uma forma indefinível. Examinava também os juízes, mas não os compreendia: ao contrário do que ela esperava, não os via zangar-se com Pavel e Fédia, nem proferir palavras injuriosas contra os réus; queria-lhe parecer que todas as perguntas que faziam não tinham para eles importância alguma; dir-se-ia que era de má vontade que as formulavam e que lhes custava esperar as respostas; nada os interessava tudo sabiam já de antemão. Agora estava um polícia postado na frente deles e falava com uma voz de baixo profundo. — Toda a gente apontava Pavel Vlassov como o principal cabeça de motim. — E André Nakodka? — perguntou com indolência o júri gordo. — Esse também. Levantou se um dos advogados e disse: — Dá-me licença?... O velho perguntou a alguém: — Não tem objeção a apresentar? Pelagueia chegava a julgar que os juízes se achavam todos doentes. Traduzia- se um cansaço mórbido na menor das suas atitudes, nas vozes e nas fisionomias. Via-se que tudo os enjoava: os uniformes, a sala, os polícias, os advogados, a obrigação de estarem ali sentados naquelas poltronas, de interrogarem e de ouvirem. Raras vezes Pelagueia se encontrara na presença de gente de posição elevada e havia alguns anos que nem sequer a tinha visto, e assim, as feições dos juízes eram para ela como uma coisa inteiramente desconhecida, incompreensível, mas mais compassiva do que severa. Estava agora a falar o oficial de cara amarelada que ela conhecia bem; referia-se a André e a Pavel, arrastando muito as palavras, enfaticamente. E enquanto o ouvia, Pelagueia comentava consigo mesma: — Não sabes nada disto, meu pateta!Deixara de sentir compaixão ou receio pelos que se sentavam por detrás do gradeamento; não temia pela sua sorte, e achava que lhes era inútil a sua piedade, mas todos eles lhe inspiravam admiração e um sentimento de amor que lhe acalentava docemente o coração. Jovens e robustos como eram, estavam sentados à parte, junto da parede e quase nem intervinham na conversação monótona entre testemunhas e juízes, nas discussões dos advogados e do procurador. De vez em quando, um deles tinha um sorriso de desprezo e dizia baixo algumas palavras aos seus companheiros. André e Pavel, esses, falavam quase continuadamente com um dos defensores, a quem Pelagueia conhecia de o ter visto na véspera em casa de Nicolau e que por este era tratado de «camarada». Mazine, mais animado e irrequieto que os outros, prestava atento ouvido a esta conversa. De vez em quando, Samoilov segredava meia dúzia de palavras ao ouvido de Ivan Gusev. E Pelagueia, olhando para tudo, comparava, refletia, sem que pudesse compreender aquela sensação de hostilidade que a invadia, nem achar termos para exprimi-la. Sizov chamou-lhe a atenção com ligeira cotovelada; virou-se para ele: estava com uns ares ao mesmo tempo satisfeitos e um tanto preocupados. Segredava: — Olha para a presença de espírito com que eles estão, aqueles garotos, hã? Parecem verdadeiros fidalgos, não é verdade? E no entretanto estão a ser julgados... para os ensinar a não se meterem no que não é da sua conta. Ela repetiu involuntariamente a si mesma: — Estão sendo julgados... Na sala, depunham testemunhas, com vozes incaraterísticas e atabalhoadas; os juízes iam sempre interrogando, indiferentes e mal humorados. O juiz gordo bocejava, dissimulando a boca sob a mão inchada de cieiro; o seu colega dos bigodes ruivos tornara-se ainda mais lívido; por vezes, erguia o braço, premia fortemente uma das fontes com um dedo, e ficava-se a fitar o teto com o olhar morto. De vez em quando, escrevia o procurador algumas linhas a lápis e depois recomeçava a cochichar com o marechal da nobreza. O administrador cruzara as pernas e tamborilava numa delas, com o olhar fixado com gravidade no movimento dos dedos. Com o ventre descansando-lhe nos joelhos e sustentando-o prudentemente entre as duas mãos, o síndico do bailiado quedara-se de cabeça pendida; parecia ser ele o único a escutar o murmúrio monótono das vozes, além do velho, enterrado na poltrona e imóvel como um catavento quando não sopra a brisa. Durou isto muito tempo e de novo o aborrecimento se apoderava do auditório. Pelagueia sentia que a justiça, a justiça implacável que põe friamente as almas a descoberto, que as examina, que tudo vê e tudo aprecia com os olhosincorruptíveis e tudo pesa com mão leal, não tinha ainda dado entrada naquela sala. Nada via por enquanto que a amedrontasse com uma manifestação de força ou de majestade. Rostos descoloridos, olhos sem brilho, vozes fatigadas, o indiferentismo tristonho duma tarde de outono, eis tudo o que presenciava. — Declaro... — disse o velho com clareza; e em seguida, depois de ter abafado o resto da frase entre os delgados lábios, ergueu-se. Logo a sala se encheu de rumores, suspiros, exclamações sufocadas, acessos de tosse e arrastar de pés. Os réus foram conduzidos para fora do pretório; ao saírem, faziam sinais com a cabeça e sorriam-se para parentes e amigos. Ivan Gussev chegou mesmo a gritar com afabilidade para quem quer que fosse: — Não te deixes intimidar, camarada! Pelagueia e Sizov saíram para o corredor. — Queres vir ao bufete, tomar chá? — perguntou solícito o velho operário. — Temos hora e meia para esperar. — Não, obrigada. — Bem, então também eu não vou. Viste os rapazes, hã? Falam como se eles fossem os verdadeiros homens e os outros coisa nenhuma! Ouviste o Fédia, hã? De boné na mão, vinha chegando neste momento o pai de Samoilov. Com um sorriso triste, perguntou: — Que dizem do meu filho? Não quis advogado e recusa-se a responder... Foi ele que teve a ideia. O teu filho era pelos advogados, Pelagueia; o meu disse que não os queria. E houve quatro que lhe seguiram o exemplo. A mulher esteve ao lado dele. Piscava de contínuo os olhos e limpava o nariz com a ponta do lenço. Samoilov reuniu na mão toda a barba, num punhado, e continuou: — Outra coisa que me dá que pensar: quando a gente olha para aqueles demónios, parece que eles fizeram tudo aquilo inutilmente, que comprometeram a sua vida sem necessidade e, de repente, fica-se a cismar se eles não terão razão... E é bom não esquecer que lá na fábrica, o partido deles aumenta continuadamente. De vez em quando, prendem-nos; mas nunca os apanham a todos, assim como nunca se apanham os peixes todos dum rio! E a gente fica sempre a perguntar com os seus botões: «Quem sabe se eles dizem a verdade!» — Para nós, é difícil compreender esta questão! — declarou Sizov. — Sim, é certo! — aquiesceu o outro. A mulher interveio então, depois de ter respirado com ruído: — Parece que estão todos de perfeita saúde, estes malditos juízes!...E continuou, com um sorriso no seu rosto emurchecido: — Não estejas zangada, Pelagueia, por eu te dizer há bocado que o Pavel era o culpado de tudo!... Para falar com franqueza, nem a gente sabe qual é o mais culpado! Ouviste o que os espiões e os polícias contaram do nosso filho?... Claramente se via que tinha orgulho daquele filho, embora ela própria talvez nem desse por isso; mas Pelagueia, que avaliava bem tal sentimento, abriu-se em bondoso sorriso. — Os corações moços andam sempre mais próximos da verdade do que os velhos! — disse ela em voz baixa. Passeava-se pelo corredor; formavam-se grupos em que se discutia concentradamente, todos pensativos e animados. Ninguém se conservava afastado, toda a gente sentia a necessidade de falar, de interrogar e de escutar o que se dizia. No estreito recinto da passagem, entre as duas paredes brancas, os grupos iam e vinham, como se, impelidos por violenta rajada, procurassem apoio nalguma coisa firme e segura. O irmão mais velho de Bukine, um grande latagão de cara envelhecida prematuramente, gesticulava, virando-se com vivacidade para todos os lados. Protestava ele: — O síndico do bailiado nada tem a ver para o caso; não está aqui no seu lugar! — Cala-te, Constantino! — exortava o pai, um velhinho, sempre a olhar em volta, assustado. — Não, senhor, eu quero falar! Dizem que o ano passado matou um empregado... por causa da mulher deste! Ora que espécie de juiz vem a ser aquilo, fazem favor de me dizer? A viúva do empregado vive agora com ele!... Que havemos de concluir?... Além disso, toda a gente sabe que é ladrão... — Ai, meu Deus!... Constantino!... — Tens razão, sim senhor! — apoiou Samoilov. — Tens razão! Não é um juiz sério!... Bukine, que tudo ouvira, aproximou-se rápido, levando atrás de si numeroso grupo. Muito vermelho, de excitado, entrou de falar, com grandes gestos: — Quando se trata de assassinatos ou de roubos, são os jurados que julgam, quer dizer: a gente habitual, trabalhadores, burgueses... Agora, quando se trata dos que são contra o governo, quem os julga é o próprio governo!... Isto pode ser?... — Constantino! — Mas escuta, estão eles realmente contra o governo? Vê lá, que dizes? Não, espera! O Fédia Mazine tem razão. Se tu me ofenderes e eu te der umabofetada e se tu tiveres de me julgar, com certeza é a mim que chamarás culpado; e contudo, quem insultou? Tu! Tu! Um guarda já idoso, de nariz adunco e peito ornado de medalhas, atravessou por entre o ajuntamento e foi dizer a Bukine, ameaçando-o com o dedo: — Olá! Não grites! Onde imaginas que estás? É alguma taberna, aqui? — Queira perdoar, cavalheiro... Eu percebo bem. Ora escutem: se eu bater em alguém e esse alguém me retribuir as pancadas e se eu tiver de julgá-lo depois, como é que podem imaginar... — Olha que te faço sair! — disse o guarda severamente. — Sair? Para onde? Porquê? — Para a rua! Que é para não berrares! Bukine circunvagou o olhar pelo auditório e comentou a meia voz: — Para eles, o essencial é que estejamos calados. — Ainda não o sabias? — replicou o velho com rudeza. O outro baixou a voz. — E depois, porque é que o público não pode assistir às audiências, mas tão somente os parentes? — Se há justiça nos julgamentos, é para serem presenciados por todos! De que têm medo? E Samoilov apoiou, mas com mais veemência: — Isso é verdade! Estes tribunais não satisfazem a consciência pública. Pelagueia desejava também repetir o que Nicolau lhe dissera acerca da ilegalidade do julgamento; mas não o havia compreendido bem e esquecera em parte as expressões empregadas por Nicolau. Para tentar rememorá-las, afastou- se da multidão e viu um rapaz de bigode loiro a observá-la. Trazia a mão direita metida na algibeira das calças, o que fazia com que parecesse ter o ombro esquerdo mais baixo do que outro. Esta particularidade lembrou-se Pelagueia que já era sua conhecida. Mas o homem virou-lhe as costas e, cansada do seu esforço de memória, Pelagueia logo se esqueceu dele. Instantes depois, distinguia um fragmento de conversa em segredo: — Aquela? À esquerda? E alguém respondeu mais alto, com expansão: — Essa mesma. Olhou. O homem dos ombros de desigual altura estava ao lado dela e conversava com o seu vizinho, um homem corpulento de barba preta, com umas enormes botas e casaco curto.Estremeceu. Ao mesmo tempo, sentia o desejo de falar nas crenças de seu filho, para ouvir as objeções que lhe pudessem apresentar e calcular a decisão do tribunal pelas opiniões dos que a rodeavam. — É isto por ventura forma de julgar? — começou ela a meia voz, prudentemente, dirigindo-se a Sizov. — Não compreendo isto. Os juízes só tratam de averiguar o que fez cada um deles, mas não perguntam porque o fez. Será isto justo? Diga lá! E são todos eles velhos! Para julgar gente nova são precisos homens novos! — Sim! — disse Sizov. — Torna-se-nos difícil compreender todo este negócio... muito difícil! E abanava a cabeça, pensativo. Nisto, o guarda abriu a porta da sala e gritou: — Entrem os parentes! Mostrem os seus bilhetes. Uma voz de mau humor comentou: — Os bilhetes... como no circo!... Sentia-se agora uma irritação geral e mal contida, uma cólera vaga. Os curiosos manifestavam maior sem-cerimónia do que pouco antes, faziam barulho, discutiam com os guardas. XXV Sizov retomou o seu lugar resmungando. — Que tens? — perguntou lhe Pelagueia. — Não tenho nada! O povo é estúpido... Não sabe nada, vive às apalpadelas. Ressoou uma campainhada. Alguém anunciou com indiferença: — O tribunal! Todos se puseram novamente de pé, como da primeira vez. Os juízes entraram pela mesma ordem e sentaram-se. Foram introduzidos os acusados. — Atenção agora! — segredou Sizov. — Vai falar o procurador. Pelagueia estendeu o pescoço e toda se inclinou para a frente, imobilizada na expetativa do terrível acontecimento iminente. De pé, virando a cabeça para o lado dos juízes, o procurador soltara um suspiro e entrara a falar, agitando a mão direita. Pelagueia não percebeu as suas primeiras palavras. A voz do orador era fácil e grossa, mas, tão depressa lhe afluía com rapidez, como afrouxava. As palavras iam-se seguindo primeiro como em larga fita uniforme, depois, voavam, remoinhavam, tal um enxame de negras moscas sobre um torrão de açúcar. Mas nessas palavras não via Pelagueia coisa alguma ameaçadora ou terrificante. Frias como neve, indecisas como cinza, iam-se sucedendo e enchiam a sala de aborrecimento, de alguma coisa horripilante como uma poeira fina e seca. O discurso, abundante em palavras e falho de ideias, não chegava provavelmente aos ouvidos de Pavel e dos seus companheiros, os quais, sem mostrarem a menor preocupação, continuavam sossegadamente a conversar entre si. Umas vezes, sorriam, outras, faziam-se muito sérios para conterem o sorriso. — Está mentindo! — declarou Sizov baixinho. Pelagueia não saberia dizer ao certo se assim era. Escutava o que ele dizia e compreendia que estava acusando toda a gente, sem se referir diretamente a ninguém. Quando citava o nome de Pavel, punha-se a falar de Fédia; em seguida, depois de ter reunido estes, juntava-lhes Bukine. Dir-se-ia que metia todos os acusados no mesmo saco, apertados uns contra os outros. Mas o sentido externo das suas palavras não satisfazia Pelagueia, como também não a perturbava nem mesmo impressionava. Contudo, continuava esperando o pormenor terrível, e procurava-o obstinadamente sob aquele fluxo de palavras, no rosto do procurador, nos olhos, na voz, na mão muito branca que ele balanceava com lentidão. E sentia que estava ali, naquele homem, a coisa assustadora, indefinível e incompreensível. De novo se lhe confrangeu o coração. Olhou para os jurados: o discurso estava-os claramente enfadando. Os seus rostos macilentos, terrosos, inanimados, não aparentavam expressão alguma; eram quais manchas cadavéricas e imóveis. E aquelas faces, umas de nutriçãoenfermiça, outras, demasiado magras, sumiam-se cada vez mais em meio do cansaço que invadia a sala. O presidente não fazia um só movimento, estático e hirto; por vezes, as manchazinhas pardacentas que lhe apareciam por detrás dos vidros dos óculos, sumiam-se-lhe na palidez do rosto. Perante esta indiferença glacial, esta frieza tíbia, Pelagueia a si própria perguntava com desassossego: — Estarão eles verdadeiramente a julgar? De repente, como de improviso, terminou o procurador o seu libelo. O magistrado inclinou-se perante os juízes, a esfregar as mãos. O marechal da nobreza fez-lhe com a cabeça um sinal, ao mesmo tempo que rebolava as pupilas. O administrador da comuna estendeu-lhe a mão e o síndico contemplou o seu abdómen, risonho. Mas via-se que os juízes não haviam ficado satisfeitos com o procurador: não tinham feito um só movimento. — Cão tinhoso! — resmungou Sizov. — Tem a palavra... — disse o velhinho, erguendo um papel até junto do rosto. — Tem a palavra o defensor de... Fedossiev, Markov, Zagarov. Levantou-se então o advogado que Pelagueia vira em casa de Nicolau. Tinha uma cara cheia e aspeto bonacheirão; os olhinhos irradiavam, parecia ter nas orbitas dois pontos acerados, a cortarem no ar qualquer coisa, como lâminas de tesoura. Entrou a falar sem pressa, em voz nítida e sonora; mas Pelagueia não pôde escutar o que dizia. Sizov segredava-lhe de lado: — Percebeste o que ele disse? Diz que são uns doidos, uns garotos de génio brigão. É do Fédia que ele quer falar! Acabrunhada pela sua cruel deceção, Pelagueia não respondeu. Sentia-se mais e mais humilhada, e esta humilhação oprimia-lhe a alma. Compreendia agora porque esperava em vão a justiça, porque se enganara pensando assistir a uma discussão leal e séria entre a verdade que seu filho proclamava e a dos juízes. Imaginara que os juízes iam interrogar Pavel, demoradamente e com atenção, sobre a sua vida; que examinariam com olhos perspicazes todas as ideias, todos os atos de seu filho, e o emprego de todos os seus dias, e que, reconhecendo a sua hombridade, haviam de declarar convictamente: «Este homem tem razão.» Mas nada disso sucedia. Era para crer que os acusados e os juízes estivessem a cem léguas uns dos outros e ignorassem mutuamente as suas existências. Fatigada pela tensão da expetativa, Pelagueia deixara de acompanhar o debate. Pensava de si para consigo, melindrada: — É então assim que se julga? O julgamento... E pareceu-lhe vazia e sem sentido esta palavra; soava como um vaso debarro, quebrado. — É bem feito! — murmurou Sizov, aprovando com a cabeça. — Parece que estão mortos, aqueles juízes! — disse ela. — Eles já voltam a si! E com efeito, tornando a olhar para eles, viu-lhes nos rostos uma expressão de desassossego. Era outro advogado que falava, um homenzinho de cara de fuinha, lívido e irónico. Os juízes interromperam-no logo. O procurador levantou-se de chofre e em voz rápida e zangada, ameaçou-o com uma autuação; depois, conferenciou com o velhinho. O advogado ficou-os escutando, com a cabeça respeitosamente inclinada; em seguida, prosseguiu no uso da palavra. — Vai catando! Vai catando! — aconselhou Sizov. — Vê se descobres onde está a alma!... Na sala crescia a animação; começava a nascer uma exaltação batalhadora. O advogado atacava os juízes por todas as formas, aguilhoava-lhes as carcomidas epidermes com ditos cáusticos. Os juízes parecia apertarem-se mais uns contra os outros, incharem e fazerem-se mais corpulentos, para resistirem àquele chuveiro de piparotes, com toda a massa dos seus corpos amolentados e nulos. Pelagueia examinava-os; pareciam entumecer cada vez mais, como se receassem que os botes do advogado lhes fizessem vibrar dentro do peito um eco capaz de lhes perturbar a soberana indiferença. Pavel pôs-se de pé. Estabeleceu-se súbito silêncio. A mãe inclinou para a frente todo o corpo. Tranquilamente, Pavel declarou: — Pertencendo eu a um partido, só reconheço o tribunal desse partido. Não falo para defender-me, mas para satisfazer o desejo daqueles dos meus companheiros que também não quiseram ser defendidos. Vou tentar explicar- lhes o que os senhores não compreenderam. O procurador qualificou a nossa demonstração, sob o estandarte da democracia socialista, de revolta contra as autoridades supremas e falou constantemente de nós como de revoltados contra o czar. Devo declarar, contudo, que, para nós, não é só o czar a grilheta a que anda amarrado o corpo da nação; o czar não é mais do que o primeiro elo dessa cadeia, de que jurámos libertar o povo. Fizera-se mais profundo ainda o silêncio, sob o império daquela voz varonil. A sala parecia tornar-se mais vasta e Pavel afastar-se para longe do auditório, mais luminoso e inspirado. Pelagueia foi tomada de uma sensação de frio. Os juízes agitavam-se pesadamente nas cadeiras, cheios de inquietação. O marechal da nobreza segredou algumas palavras ao juiz de modos indolentes; este abanou a cabeça e falou com o velhinho, a quem o juiz de aspeto doenteestava também falando ao ouvido, do lado oposto. O presidente, vacilante na sua poltrona, para a direita e para a esquerda, dirigiu algumas palavras a Pavel, mas a voz sumiu-se-lhe no curso amplo e igual da exposição que o mancebo ia proferindo. — Somos socialistas. Significa isto que somos inimigos da propriedade particular, que promove a desunião entre os homens, os leva a armar-se uns contra os outros e cria uma rivalidade de interesses irreconciliáveis, que mente quando pretende dissimular ou justificar esta hostilidade e perverte os homens pela mentira, a hipocrisia e o ódio. Somos de opinião que a sociedade, considerando o homem unicamente como um meio de auferir riquezas, é anti- humana e torna-se-nos declaradamente hostil; não podemos aceitar a sua moral com duas caras, o seu cinismo sem vergonha e a crueldade com que trata as individualidades que lhe são adversas; queremos lutar, e havemos de lutar, contra todas as formas de subserviência física e moral do homem, em uso nesta sociedade, contra todos os métodos de fracionar a coletividade em proveito da cobiça! Nós, os operários, somos quem pelo nosso trabalho tudo cria, desde as máquinas gigantescas até aos brinquedos das crianças. E vemo-nos privados do direito de lutar pela nossa dignidade de homens; Cada qual arroga-se o direito de nos transformar em instrumentos para atingir o seu fim! Queremos que nos deem liberdade bastante para que se nos torne possível, com o tempo, conquistar o poder. Quer-se o poder para o povo!... Aqui, sorriu Pavel e passou devagar a mão pelos cabelos; a luz dos seus olhos azuis brilhou com fulgor mais intenso. — Tenha a bondade... Não saia do assunto! — disse-lhe o presidente em voz nítida e forte. Virava-se agora todo para Pavel e fitava-o. Pareceu a Pelagueia distinguir- lhe nos olhos, até ali pálidos e sem expressão, um brilho cúpido e de maldade. Todos os juízes tinham as atenções voltadas para o orador; os seus olhos pareciam colar-se-lhe, aderir-lhe fortemente ao corpo, para lhe sugarem o sangue e com ele reanimarem os seus membros exaustos. Pavel, firme e resoluto, estendeu para eles o braço e prosseguiu com voz distinta: — Somos revolucionários e sê-lo-emos enquanto uns só tratarem de oprimir os outros. Havemos de lutar contra a sociedade, cujos interesses os senhores foram mandados que defendessem; a reconciliação só entre nós será possível quando nós formos vencedores. Porque havemos de ser nós os vencedores, nós, os oprimidos! Os mandatários de todos vós, senhores, não são tão fortes como se julgam. Essas riquezas que acumularam e na defesa das quais sacrificam milhões de infelizes criaturas, essa força que lhes dá o poder sobre nós, criam entre eles alternativas de hostilidade e arruínam-nos, a eles, física e moralmente. A defesa do vosso poderio, senhores, exige uma constante tensão de espírito; e,na realidade, vós, nossos senhores, sois todos mais escravos do que nós, porque são os vossos espíritos que jazem na opressão, ao passo que nós só fisicamente somos oprimidos. Não podeis libertar-vos do jugo dos preconceitos e dos hábitos, e isto mata-vos moralmente; enquanto a nós, nada nos impede que sejamos intimamente livres! E a nossa consciência vai tomando vida, vai desenvolvendo- se sem cessar; inflama-se dia a dia e arrasta consigo os melhores elementos, moralmente sãos, mesmo do próprio meio que é o vosso... E, se não, vede: já não possuís ninguém que possa lutar em nome do vosso poderio contra a corrente das ideias; esgotastes já todos os argumentos capazes de vos protegerem dos ataques da justiça da história; nada mais podeis criar novo, no domínio da intelectualidade: sois uns estéreis de espírito. As nossas ideias, pelo contrário, desenvolvem-se com força crescente, penetram nas massas populares e vão-nas dispondo para a luta pela liberdade, luta encarniçada, luta implacável! Não podereis travar este movimento, senão usando de crueldade e de cinismo. Mas o cinismo é evidente demais e a crueldade não faz senão irritar o povo. As mãos que hoje empregais para nos sufocar, hão de amanhã apertar as nossas mãos em fraterno amplexo. A vossa energia é a energia mecânica produzida pelo açambarcamento do oiro, e é essa energia que vos desune em grupos rivais, destinados a aniquilarem-se mutuamente. Enquanto que a nossa energia é a força viva e sem cessar crescente do sentimento de solidariedade que liga todos os oprimidos. Tudo o que praticais é criminoso, porque só pensais em escravizar o homem; o nosso empreendimento, esse, liberta o mundo dos monstros e fantasmas criados pelas vossas mentiras, pela vossa cupidez, pelo vosso ódio! Mas, em breve, a grande massa dos nossos artífices e camponeses há de ser liberta e há de criar um mundo livre, harmonioso e imenso. E assim há de ser! Calou-se Pavel um instante e depois repetiu ainda com mais força: — E assim há de ser! Os juízes cochichavam, com caretas estranhas, sem desviarem os olhos de Pavel. A mãe pensava de si para consigo, que aqueles olhares infamavam o corpo vigoroso de seu filho, cuja saúde e fresca mocidade invejavam. Os réus tinham escutado atentos as palavras do seu companheiro. Pálidos ao princípio, tinham agora nos olhares uma chama de álacre contentamento. Pelagueia devorara as frases de seu filho; gravavam-se lhe todas profundamente na memória. O velhinho por diversas vezes interrompeu Pavel, para lhe explicar ninguém saberia dizer o quê, duma das ocasiões, esboçou até, um sorriso triste. Pavel escutava-o em silêncio e logo retomava a palavra com voz severa mas serena. Todas as atenções convergiam para ele. Durou isto muito tempo. Por fim, o presidente gritou algumas palavras, ao mesmo tempo que estendia o braço na direção do mancebo. Este respondeu em tom levemente irónico:— Eu vou concluir. Não foi ideia minha ofender pessoalmente os membros deste tribunal, bem ao contrário: forçado a assistir a esta comédia a que chamais uma audiência, chego a sentir compaixão pelos senhores. A despeito de tudo, os senhores são homens e é sempre para nós uma humilhação ver homens, curvarem-se de tão vil maneira ao serviço da violência e perderem a tal ponto a consciência da sua dignidade humana... mesmo quando esses homens se mostram hostis aos nossos intentos... E sentou-se sem olhar para os juízes. A mãe conteve a respiração, fitando, anelante, aqueles de quem dependia a sorte de seu filho, e esperou. André, radiante, apertou vigorosamente a mão de Pavel. Samoilov, Mazine e todos os outros voltaram-se para ele. Pavel sorriu, um tanto constrangido pelo entusiasmo dos seus companheiros e olhando para a bancada em que se encontrava Pelagueia, fez-lhe um sinal de cabeça, como para perguntar: — Foi bem, assim? Ela respondeu-lhe com profundo suspiro de contentamento, fremente, inundada por uma ardente vaga de amor. — Aí está! Vai começar o julgamento! — segredou-lhe Sizov. — O teu filho deixou-os em bonito estado, hã? Ela abanou a cabeça sem responder, satisfeita de ter ouvido o filho falar com tal desassombro e talvez mais satisfeita ainda por ele ter terminado o discurso. Martelava-lhe no cérebro uma ideia fixa: — Meus filhos! Que vai ser de vocês? O que seu filho dissera não era novo para ela; conhecia bem as suas opiniões; mas, fora ali, perante aquele tribunal, que pela primeira vez sentira a força convincente e extraordinária das suas teorias. Impressionava-a a serenidade do mancebo, e no seu íntimo, o discurso de Pavel aliava-se à firme convicção da vitória e dos justos direitos de seu filho, que lhe punham na alma a irradiação duma estrela. XXVI Julgava ela que os juízes iam discutir severamente com ele, replicar-lhe coléricos, e expor os seus argumentos. Mas nisto, levantou-se André, lançou um olhar de soslaio para o tribunal e começou: — Senhores defensores. — Quem o senhor tem na sua presença é o tribunal e não a defesa! — gritou- lhe o juiz doente, com força, muito irritado. Pelagueia percebia pela fisionomia de André que o que ele queria era gracejar; o bigode tremia-lhe de riso mal contido, e nos olhos, tinha uma expressão ao mesmo tempo felina e meiga, bem conhecida dela. Esfregou vigorosamente a cabeça com as compridas mãos e suspirou. — Pois é possível? — perguntou, ao mesmo tempo que sacudia a cabeça. — Eu julgava que não era assim, que os senhores eram, não juízes, mas unicamente defensores!... — Queira fazer favor de se referir somente ao assunto principal! — intimou o velhinho com secura. — O assunto principal? Está bem. Quero pois crer que os senhores são realmente juízes, isto é: pessoas independentes, leais... — O tribunal não precisa da sua opinião! — Como? Não precisa dum elogio destes!... Hum!... Todavia, eu continuo. Os senhores são homens que não estabelecem diferença alguma entre amigos e inimigos, os senhores são inteiramente livres no seu juízo. Assim, têm agora na sua frente dois partidos: um queixa-se de que o roubam e o maltratam; o outro responde que tem o direito de roubar e de maltratar porque traz na mão uma espingarda. — Tem alguma coisa a dizer concernente ao processo? — perguntou o velhinho, alteando a voz e com as mãos a tremer. Esta irritação satisfazia imenso Pelagueia. Mas a forma de proceder de André não lhe agradava; achava-a discordante do discurso de Pavel. Preferia ouvir travar-se uma discussão séria e ponderada. O pequeno-russo fitou o velho, sem responder; em seguida, disse com gravidade: — O processo?... Para que lhe havia eu de falar do processo? O meu companheiro disse-lhes o que os senhores deviam saber já! O resto, outros lho dirão quando chegar o momento oportuno... O velhinho sobre-ergueu-se da poltrona e declarou: — Retiro-lhe a palavra!... Gregório Samoilov!O russo menor apertou com força os dentes e deixou-se cair pesadamente no banco. Ao lado dele, Samoilov pôs-se de pé, sacudindo os anéis do cabelo. — O procurador disse que nós éramos uns selvagens, inimigos do progresso... — Fale só do que diz respeito à sua acusação! — Mas é justamente o que estou fazendo!... Não deve haver coisa alguma que não interesse à gente honesta... E peço-lhe o obséquio de não me interromper. Assim, pergunto eu aos senhores: qual vem a ser o grau das suas culturas intelectuais? — Não estamos aqui para discutir consigo! Voltemos ao assunto! — disse o velho, mostrando rancorosamente os dentes. Os gracejos de André haviam manifestamente irritado os juízes e como que lhes tinham suprimido o que quer que fosse das fisionomias. Agora, nos rostos terrosos, apareciam-lhes manchas sanguíneas, brilhavam-lhes os olhares com cintilações frias e implacáveis. O discurso de Pavel também os havia encolerizado, mas o tom de energia em que fora dito, reprimira-lhes o rancor e forçara-lhes o respeito. O pequeno-russo, porém, conseguira quebrar esta contenção e pusera a descoberto o que sob ela se ocultava. Com crispações nas fisionomias, os juízes segredavam entre si, tinham gestos mais sacudidos, denunciadores da raiva que lhes ia no íntimo. — Os senhores educam espiões, pervertem mulheres e donzelas, colocam o homem sério na situação dum gatuno, dum assassino, envenenam-no com a aguardente, deixam-no apodrecer nas masmorras!... As guerras internacionais, a mentira, o deboche, o embrutecimento de todo o país — aqui está a vossa civilização! Sim, somos inimigos de tal civilização! — Tenha a bondade!... — gritou o velhinho, sacudindo ameaçador o queixo. Samoilov, rubro, o olhar em fogo, entrou a gritar ainda mais alto do que ele. — Mas a civilização que nós amamos e respeitamos é a outra, a que foi criada pelos que vós atirastes para as masmorras ou para os hospitais de doidos... — Retiro-lhe a palavra!... Fédia Mazine! O rapazinho levantou-se de chofre, como uma sovela a sair dum furo e exclamou com voz sacudida: — Eu... juro!... Eu bem sei, os senhores vão condenar-nos! Sufocou; fez-se branco, só se lhe viam os olhos, muito brilhantes. Estendeu o braço e prosseguiu: — Dou-lhes a minha palavra de honra! Mandem-me para onde quiserem, que eu hei de fugir, hei de voltar, hei de dedicar-me sempre pela causa do povo... pela liberdade da nação... toda a minha vida! Dou-lhes a minha palavra de honra!Sizov soltou um gritinho. Toda a assistência, revolucionada por vaga excitação, se mexia com um ruído surdo e singular. Chorava uma mulher; alguém tossia, sufocando. Os guardas, alternadamente olhavam para os réus com um espanto estúpido e para a multidão do público, furiosos. Os juízes agitaram- se; o velho gritou: — Gussev Ivan! — Não falo! — Gussev Vassili! — Não quero responder! — Bukine Fédor! Loiro e meio descorado, ergueu-se pesadamente e disse com lentidão, meneando a fronte: — Os senhores deviam envergonhar-se!... Eu, que não passo dum ignorante, compreendo ainda assim o que deve ser a justiça! Levantou o braço acima da cabeça e calou-se, com as pálpebras semicerradas, como se estivesse vendo qualquer coisa muito ao longe. — Que diz? — gritou o velho com atónito exaspero, reclinando-se na poltrona. — Olhe que você!... Bukine deixou-se cair no banco tristemente. Havia nas suas palavras desacompanhadas de significação, alguma coisa imensa e importante, e ao mesmo tempo uma censura ingénua e penalizada. Foi esta a impressão que todos receberam. Os próprios juízes apuraram o ouvido, como para distinguirem um eco mais nítido de tal discurso. Nas bancadas reservadas ao público, tudo se calou; apenas ficou ressoando um leve ruído de choro. Depois sorriu-se o procurador e encolheu os ombros; o marechal da nobreza tossiu; de novo se elevaram sussurros que serpenteavam vagamente pela sala. Pelagueia inclinou-se para Sizov e perguntou-lhe: — Os juízes falarão? — Não; está tudo terminado. Só falta pronunciar o veredito. — E não há mais nada? — Não! Pelagueia não podia acreditar. A mãe de Samoilov agitava-se ansiosamente, tocando em Pelagueia com o cotovelo e com o ombro, e perguntando em voz baixa ao marido: — Mas, como? É possível? — Bem vês! — E o que é que vão fazer ao nosso filho?— Cala-te! Deixa-me! — Percebia-se que no público alguma coisa se havia perdido, aniquilado ou transformado. Os olhos desvairados, pestanejavam como se ardente lareira se lhes tivesse incendiado na frente. Embora não compreendessem o grande sentimento que acabava de despontar neles tão bruscamente, os curiosos iam, sem dar por isso, fragmentando-o em sensações evidentes, acessíveis e fúteis. O irmão de Bukine dizia a meia voz, sem constrangimento algum: — Perdão! Porque não os deixam falar? O procurador disse tudo o que quis e durante todo o tempo que quis! Perto da bancada estava uma sentinela. O soldado murmurava, agitando o braço: — Silêncio! Silêncio! O pai de Samoilov inclinou-se para trás, e, disfarçado com as costas da mulher, continuou a pronunciar em voz surda frases entrecortadas: — Evidentemente!... Admitindo que eles sejam culpados, o dever do tribunal era deixá-los explicar-se... Contra quem se revoltaram eles? Contra tudo! Eu gostava de compreender, afinal! Porque isto também me interessa... De que lado está a verdade? Sim, eu queria compreender... É preciso que os deixem explicar- se! — Silêncio! — gritou de novo a sentinela, ameaçando-o com um dedo. Sizov abanava a cabeça, apoquentado. Pelagueia não perdia de vista os juízes. Notava-lhes a crescente excitação, via-os falar uns com os outros, mas não podia compreender o que diziam. O sussurro frio e escorregadio das suas vozes perpassava-lhe pelo rosto, fazia-lhe tremer nervosamente as faces e provocava-lhe na boca uma sensação desagradável. Afigurava-se-lhe que estavam falando todos eles do corpo de seu filho e do dos seus companheiros, daqueles corpos robustos, dos seus músculos e dos seus membros cheios de vermelho sangue e de força vivente. Estes corpos deviam excitar neles uma inveja impotente e malvada, uma avidez ardente de esgotados e doentes. Falavam com estalidos secos dos lábios, com o pesar de não possuírem aqueles músculos, capazes de trabalhar e de enriquecer, de gozar e de criar. Agora, iam aqueles corpos sair da circulação ativa da vida, renunciavam a ela, ninguém poderia mais chamar-lhes seus, aproveitar a sua força, nem absorvê-los. E era por isso que inspiravam aos velhos magistrados a animosidade vingativa e desconsolada das feras já sem forças que têm diante de si a carne fresca, mas já não dispõem da energia suficiente para dela se apoderarem. E quanto mais Pelagueia olhava para eles, mais esta ideia grosseira e singular se acentuava no seu espírito. Parecia-lhe que estavam patenteando claramente a sua rapacidade e a sua sanha de esfomeados, capazes, em tempos idos, de comermuito. Ela, a mulher e mãe, para a qual o corpo do filho tinha sido sempre e a despeito de tudo, mais querido do que a própria alma, sentia-se horrorizada com os olhares sem viço que perpassavam pelo rosto dele, tateando o peito, os ombros, os braços, roçando-se pela ardente pele, como em busca de uma possibilidade de se reanimarem, de requentarem o sangue das suas veias endurecidas, dos seus músculos gastos de homens semimortos. Parecia a Pelagueia que o seu filho sentia aqueles contactos frios e que estremecia quando para ela olhava. O mancebo fixava em sua mãe os olhos um tanto fatigados, mas calmos e afetuosos. Por momentos, sorria-lhe e fazia-lhe um sinal de cabeça. — Em breve estarei em liberdade! — dizia este sorriso, que era uma carícia para o coração de Pelagueia. Neste comenos, levantaram-se os juízes todos ao mesmo tempo. Pelagueia seguiu-lhes instintivamente os movimentos. — Vão-se embora! — disse Sizov. — Para os condenar? — perguntou ela. — Sim... Dissipara-se de súbito a tensão de espírito em que até ali estivera; pesado cansaço lhe invadiu o corpo; aljofraram-lhe a fronte gotas de suor. Um sentimento de cruel deceção e de humilhação impotente brotou no seu coração e depressa se transformou em profundo desprezo pelos juízes e pelo seu julgamento. Assaltou-a violenta dor nas fontes; esfregou a testa com a palma da mão e olhou em torno: os parentes dos réus tinham-se aproximado do gradeamento, a sala enchia-se de um ruído surdo de conversações. Ela caminhou também para o filho, apertou-lhe a mão e entrou a chorar, tomada a um tempo, de desgosto e de contentamento. Pavel dirigiu-lhe algumas palavras de conforto. André ria e gracejava. Mais por hábito do que por desgosto, todas as mulheres choravam. O que se sentia não era aquela dor que atordoa como estúpido golpe descarregado bruscamente na cabeça: tinha-se a consciência da triste necessidade de abandonar os filhos, mas esta mágoa confundia-se, sumia-se nas impressões que eram filhas da oportunidade. Os pais olhavam para os filhos com uma expressão em que a desconfiança que lhes era inspirada pela mocidade e pela consciência da própria superioridade, se confundia singularmente com uma espécie de respeito por eles. Ao mesmo tempo que a si próprios perguntavam com tristeza como passariam eles agora a viver, os velhos olhavam com curiosidade para aquela nova geração que discutia audaciosamente a possibilidade duma existência diferente daquela e melhor. Não sabiam exprimir o que sentiam, pois faltava-lhes para tanto o hábito; as palavras corriam abundantes, das bocas, mas não se falava mais do que de coisas vulgares, de fatos e roupas, de cuidadosnecessários; aconselhavam até os condenados a não irritarem inutilmente os superiores. — Todos andamos cansados disto! — disse Samoilov ao filho. — Nós tanto como eles! O mais velho dos Bukine agitava a mãe e exortava o mais novo: — Aí está a justiça dessa gente! Custa aceitá-la! O rapaz respondeu: — Hás de tratar bem do estorninho, sim?... Gostava tanto dele! — Ainda há de ser vivo quando voltares! Sizov tomara pela mão o sobrinho e dizia com vagar: — Então foi assim que tu fizeste, Fédia? Foi assim? Fédia curvou-se para ele e segredou-lhe o que quer que fosse ao ouvido, com um riso de esperteza. O soldado que lhes estava próximo sorriu também, mas logo retomou os seus ares de gravidade e resmungou. Pelagueia limitava-se, como os outros, a conversar acerca de arranjos de roupas e cuidados de saúde, mas no coração reprimia mil interrogações relativas a Pavel, a Sachenka e a si própria. E sob as suas palavras banais, lentamente se desenvolvia o sentimento de imenso amor que dedicava ao filho, o ardente desejo de o cativar, de viver no seu coração. A expetativa do acontecimento terrível desaparecera, deixando unicamente, após si, um arrepio desagradável, quando se lembrava dos juízes, agora ausentes. Sentia nascer em si uma intensa alegria luminosa, mas não a compreendia e isto trazia-a perturbada. Viu que o pequeno-russo falava muito com todos os que o rodeavam, e entendendo que ele, mais do que Pavel, precisava de conforto, disse-lhe: — Não me agradou a audiência! — Porquê, mãezinha?! — exclamou André. — É um moinho velho, mas vai sempre moendo! — É uma coisa, afinal, que não mete medo algum, e é incompreensível! Nem ao menos se procura averiguar a verdade! — disse ela hesitante. — Oh! Era isso o que queria? — exclamou André. — Mas então imagina que alguém se importa aqui com a verdade? Pelagueia suspirou. — Eu imaginava que isto fosse coisa muito séria... mais séria ainda do que na igreja!... Que se celebrava o culto da verdade!... — Querida mãe: onde a verdade é respeitada sabemo-lo nós! — disse Pavel em voz baixa e no tom de quem perguntasse sem afirmar.— E a mãezinha também o sabe! — acrescentou o pequeno-russo. — O tribunal! Correram todos para os seus lugares. Com uma das mãos apoiada na mesa, o presidente ocultou a cara por detrás dum papel e pôs-se a ler com uma voz débil qual zumbido: «O Tribunal... depois de ter deliberado...» — É a condenação! — disse Sizov, apurando o ouvido. Fez-se silêncio. Todos se haviam posto de pé, com os olhos fitos no velhinho. Seco e hirto, assemelhava-se este a um cacete sobre o qual mão invisível se apoiasse. Os juízes estavam também de pé; o síndico do bailiado, com a cabeça pendente no ombro, dirigia o olhar para o teto; o administrador da comuna cruzava os braços no peito; o marechal da nobreza afagava a barba. O juiz com cara de doente, o seu colega barrigudo e o procurador, olhavam todos na direção dos acusados. E por detrás dos juízes, por cima das suas cabeças, aparecia o czar, de uniforme encarnado. Um inseto ia-lhe marinhando pela cara, pálida e indiferente; uma teia de aranha balouçava ao vento. «São condenados a deportação para a Sibéria...» — O degredo! — disse Sizov com um suspiro de alívio. — Finalmente, já passou, Deus louvado! Muita gente esperava os trabalhos forçados. Isto assim, já não é tão mau, tiazinha; não vale mesmo nada! — Eu já o adivinhava — disse Pelagueia baixinho. — Assim como assim, agora é certo!... Mas vá lá a gente saber, com uns juízes destes! Voltou-se para os condenados, a quem faziam já abandonar o pretório, e disse alto: — Até à vista, Fédia!... Até à vista, vocês todos! Que Deus os proteja! Pelagueia fez um sinal de cabeça a Pavel e aos seus companheiros. A sua vontade era chorar, mas conteve-a uma espécie de vergonha. XXVII Ao sair do tribunal, ficou Pelagueia admiradíssima com ver que já a noite caíra sobre a cidade, os candeeiros das ruas acesos; as estrelas cintilando no céu. Nas circunvizinhanças do palácio da justiça, formavam-se pequenos agrupamentos; na gélida atmosfera, ouvia-se o ruído da neve rangendo sob o andar; vozes de gente nova interpelavam-se mutuamente. Aproximou-se de Sizov um homem coberto com um capuz cinzento e perguntou em voz rápida: — Qual foi a sentença? — O degredo. — Para todos eles? — Para todos... — Obrigado! O homem afastou-se. — Bem vês! — disse Sizov à mãe de Pavel. — Bem vês como isto os interessa. De súbito, encontraram-se cercados por uma dúzia de rapazes e raparigas. Entraram a chover as exclamações, que atraíam ainda mais gente para o grupo. Sizov e Pelagueia tiveram de parar. Todos queriam conhecer a sentença, saber como se tinham comportado os réus, quem tinha pronunciado discursos e sobre que assunto. E em todas estas perguntas vibrava a mesma nota de curiosidade ávida e sincera. — É a mãe do Pavel Vlassov! — gritou uma voz. Calaram-se todos à uma. — Permita que lhe aperte a mão! E logo uma mão sólida se lhe apoderou da sua, com vigor. A mesma voz continuou, trémula de entusiasmo: — O seu filho será para nós todos um nobre exemplo! — Viva o operariado russo! — gritou uma voz vibrante. — Viva a revolução! — Morra a autocracia! Multiplicavam-se os brados, cada vez mais violentos; rebentavam pelo ar, cruzando-se; acudia gente de todos os lados e apinhava-se em torno de Sizov e Pelagueia. Os apitos dos polícias rasgavam o ar, mas sem conseguirem dominar o burburinho. O velho ria. Quanto a Pelagueia, parecia-lhe tudo aquilo um belo sonho. Sorria, apertava centenas de mãos, cumprimentava. Comprimiam-lhe a garganta lágrimas de felicidade; vergavam-lhe as pernas de cansadas, mas o seu coração, transbordando de triunfante alegria, refletia as suas impressões como o claro espelho da água dum lago.Perto dela, uma voz clara exclamou em tom enervado: — Companheiros! Amigos! O monstro que devora o povo russo, satisfez hoje mais uma vez os seus apetites!... — Vamo-nos embora! — disse Sizov. Nesse mesmo instante, apareceu Sachenka. Agarrou Pelagueia por um braço e puxou-a para o passeio oposto, aconselhando: — Venha... A polícia pode atirar-se para cima de nós e bater-nos... Ou vão prender-nos... E então? Foi o degredo, não foi? Para a Sibéria? — Sim, é verdade!... — E ele que fez? Falou? Eu já sei tudo, afinal... É ele o mais valoroso também, é certo! É sensível e terno, mas sempre se acanha quando tem de manifestar os seus sentimentos. É firme e resoluto como a própria verdade!... É um grande homem, e tudo reside nele... tudo! Mas a maior parte das vezes, ele próprio se constrange... com o receio de não se entregar todo ele, de alma e coração, à causa do povo... Eu sei-o bem! Estas palavras de amor, segredadas em um desabafo de paixão, acalmaram Pelagueia, reanimando-lhe as desfalecidas forças. — Quando vai encontrar-se com ele? — perguntou à rapariga, em voz baixa e afetuosa, puxando-a muito para si. Sachenka respondeu, com o olhar fito na sua frente, e com tranquila decisão: — Tão depressa encontre quem se encarregue do meu trabalho! Porque em breve me tocará a vez de responder em juízo... Hão de mandar-me também para a Sibéria. Direi então que desejo ser deportada para o sítio em que ele estiver... Por detrás das duas mulheres ouviu-se então a voz de Sizov: — Faça-lhe os meus cumprimentos!... Chamo-me Sizov. Ele conhece-me: sou tio do Fédia Mazine. Sachenka parou para se voltar e estender-lhe a mão: — Eu conheço o Fédia. O meu nome é Sachenka. — E o seu nome de família? Ela lançou-lhe um breve olhar, e respondeu: — Não tenho família. Já não tenho pai. — Morreu? — Não, está vivo! — declarou já excitada. E alguma coisa obstinada, teimosa, lhe vibrou na voz e transpareceu nas feições. É um proprietário rural, e é chefe do distrito. Agora, rouba a gente do campo... e maltrata-a!— Ah! — proferiu Sizov arrastadamente. E após silêncio, ajuntou, ao mesmo tempo que examinava a rapariga de soslaio: — Bem, então, adeus, tiazinha! Eu vou por aqui!... Aparece para tomar chá e cavaquear um pedaço... quando quiseres!... Até mais ver, minha menina!... A menina é muito severa para com o seu pai!... Está claro que isso é lá consigo!... — Se seu filho fosse um homem inútil, prejudicial aos outros, o senhor dizia- o? — exclamou Sachenka, com paixão. — Dizia, sim, senhora! — respondeu o velho, depois de hesitar um momento. — Por consequência, a verdade merecer-lhe-ia mais apreço do que o seu filho. Pois a mim merece-me mais apreço do que o meu pai... O outro abanou a cabeça, e em seguida, suspirando: — Ah! É astucioso, sim, senhora! Se tem assim resposta para tudo, os velhos não podem resistir-lhe! Sabe atacar pela certa! Até mais ver! Desejo-lhe todas as felicidades possíveis... Mas seja mais condescendente com as pessoas sim? Que Deus vá consigo! Adeus, Pelagueia! Se falares com o Pavel, diz-lhe que ouvi o seu discurso... Não percebi tudo... Até me meteu medo em certas ocasiões, mas o que ele disse é a verdade! Ergueu o boné e desapareceu, sem se apressar, na volta da esquina. — Deve ser um bom homem! — observou Sachenka, seguindo-o com olhar risonho. Parecia a Pelagueia ver no rosto da sua companheira expressão mais meiga e melhor do que de costume... Chegadas a casa, sentaram-se no canapé, muito uma à outra. Pelagueia referiu-se de novo aos planos de Sachenka. Com as espessas sobrancelhas muito erguidas, pensativa, a outra olhava para distante com os seus grandes olhos de sonho. Lia-se-lhe no pálido rosto uma pacífica concentração de espírito. — Mais tarde, quando tiverem filhos, também eu para lá irei, para tratar deles. E não havemos de viver pior lá do que vivemos aqui... O Pavel há de encontrar trabalho; é muito habilidoso. Sachenka olhava agora para ela, perscrutando-lhe os pensamentos. Interrogou: — Não deseja então ir juntar-se a ele desde já? Respondeu, com um suspiro: — Para quê? Nada mais iria fazer-lhe do que causar-lhe incómodo, caso ele quisesse fugir. E depois, ele não mo consentia... Murmurou Sachenka: — Não, com efeito...— Além disso eu tenho que fazer aqui — acrescentou a mãe de Pavel com um tanto de ufania. — Sim, é verdade! — secundou, pensativa, a outra. — E sabe trabalhar muito bem... Mas de repente estremeceu, como se acabasse de libertar-se de um peso qualquer, e logo anunciou com simplicidade, a meia voz: — Decididamente, ele não se demora na Sibéria... Há de fugir... É certo! — Mas, então, que há de ser feito de si? E a criança, se a tiverem? — Não sei; veremos. O que eu não quero é que ele viva em cuidados por minha causa. Dou-lhe plena liberdade para fazer o que quiser, em qualquer ocasião que seja. Não sou mais do que uma simples correligionária. Bem sei que me há de ser terrivelmente custoso deixá-lo... mas hei de saber conformar-me... Não quero importuná-lo em coisa alguma, isso não! Sentia Pelagueia que Sachenka era capaz de executar o que dizia. Cheia de comiseração por ela, tomou-a nos braços: — Minha querida... Muito tem que sofrer!... Sachenka sorriu com meiguice; comprimiu-se toda contra o corpo de Pelagueia; subiu-lhe o rubor às faces. — Isso ainda vem longe... Mas não julgue que seja um sacrifício penoso para mim. Sei o que faço, sei com o que posso contar, serei feliz se ele se considerar feliz comigo... O meu desejo, o meu dever, é aumentar a sua energia, dar-lhe toda a felicidade que esteja em meu poder, muita felicidade! Amo-o muito... e ele ama-me, que sei eu! Retribuir-nos-emos dos nossos sentimentos, enriquecer- nos-emos mutuamente, tanto quanto pudermos; e, se assim for necessário, separar-nos-emos como bons amigos... Por entre um sorriso de felicidade, a mãe disse lentamente: — Eu irei juntar-me a vocês ambos... Talvez eu também seja exilada... E por muito tempo as duas mulheres permaneceram estreitamente abraçadas, sem uma palavra, pensando naquele que amavam. O silêncio, a tristeza, uma tépida suavidade, as envolviam. Nicolau chegou neste comenos, fatigadíssimo. Rapidamente, enquanto se despia, foi dizendo: — Sachenka, vá-se depressa, se não depois talvez já não tenha tempo! Desde esta manhã andam dois espiões a seguir-me tão às claras que me cheira a mandado de prisão... Tenho um pressentimento... Deve-nos ter acontecido alguma infelicidade, onde, ainda não sei... A propósito: aí tem o discurso do Pavel; foi decidido imprimi-lo. Leve-o à Ludmila, suplique-lhe que o componham o mais breve possível. O seu Pavel falou muito bem, Pelagueia!...Sachenka, tome cuidado com os espiões! Espere, leve também estes papéis; dê- os ao doutor, por exemplo. E ao dizer isto, esfregava vigorosamente uma contra a outra as mãos, que trazia regeladas. Em seguida, foi à mesa, abriu as gavetas, de onde extraiu vários documentos. Preocupadíssimo e com os cabelos em desalinho, entrou a folheá- los à pressa, rasgou uns, emaçou outros. — Olhem que não há ainda muito tempo que eu pus tudo isto em ordem, e vejam que montão enorme cá tenho outra vez! Demónio!... Talvez fosse melhor não dormir cá esta noite, Pelagueia! Que lhe parece? Não é das melhores coisas ter de assistir a essa comédia, os guardas são capazes de a levar também... e é absolutamente necessário que vá por esses campos distribuir o discurso do Pavel... — Ora adeus! Porque é que me haviam de prender? — contestou ela. — E daí, talvez se engane, talvez não venha ninguém... Nicolau redarguiu em tom de confiança e agitando a mão: — O meu faro nunca me enganou!... Além disso, vossemecê podia auxiliar a Ludmila! Vá-se enquanto é tempo ainda... Na satisfação de ir cooperar na impressão do discurso de seu filho, ela respondeu: — Pois se assim é, cá me vou. Mas olhe que não é porque tenha medo... E com admiração de si própria, proferiu estas palavras em voz baixa mas decidida: — Agora, já não tenho medo de nada!... Deus louvado! Já sei tudo o que queria... — Às mil maravilhas! — exclamou Nicolau, sem a fitar. — Ah! Diga-me onde está a minha roupa branca e a minha mala. A senhora de tudo tem cuidado com tal carinho, que me vejo de todo incapaz de descobrir o que é minha propriedade pessoal! Eu vou preparar-me. Os polícias é que vão ter uma desagradável surpresa! Sachenka ia queimando no fogão os papéis rasgados. Quando os viu de todo consumidos, teve o cuidado de misturar as cinzas com as do combustível. — Vá, Sachenka, vá! — disse-lhe Nicolau com um aperto de mão. — Até à vista! Não se esqueça de me mandar livros, se for publicada qualquer coisa de novidade e intensa. Até à vista, cara correligionária! E trate sobretudo de ter prudência... — Julga estar muito tempo na prisão? — perguntou Sachenka. — O demónio que o julgue! Bastante tempo, com certeza... Têm diversos pecadinhos a censurar-me... Pelagueia, saia ao mesmo tempo com Sachenka. Émais difícil seguir duas pessoas. — Bem! — concordou ela. — Eu já me visto. Observara Nicolau atentamente, e nada anormal descobrira nele, a não ser a preocupação que lhe velava o olhar bondoso e complacente. Não lhe vira aparentar emoção alguma. Igualmente atencioso para com todos, afetuoso e metódico, sempre sossegado e solitário, levava a mesma existência, misteriosa no seu foro íntimo e como que antepondo-se a todas as diligências alheias. Pelagueia estimava-o tal qual ele era, com um amor prudente, que parecia duvidar de si mesmo. E agora experimentava por Nicolau uma compaixão indizível; mas dominava-a porque sabia que se ele lha notasse, havia de comover-se e tornar-se um pouco ridículo, como habitualmente. Não era sob este aspeto que Pelagueia o queria ver. Já vestida, voltou ao gabinete. Nicolau estava apertando a mão de Sachenka. Dizia-lhe: — Otimamente! Estou certo de que há de ser bom para ele, como para si... Um poucochinho de felicidade pessoal nunca causa dano... Mas olhe que não é bom que seja demasiada, para não perder o valor. Está pronta, mãezinha! Acercou-se dela, compondo os óculos. — Bem! Então, até à vista!... Daqui a três, quatro ou seis meses. É muito tempo!... Que de coisas se podem fazer em seis meses! Poupe-se, sim? Peço-lho. Vá lá! Venha um abraço! Passou os robustos braços em torno do pescoço de Pelagueia e fitando-lhe muito os olhos, disse com um riso muito franco: — Parece-me que estou apaixonado por si... Não faço senão abraçá-la! Sem lhe responder, ela beijou-o na testa e nas faces. As mãos tremiam-lhe: deixou-as pender para que ele não o notasse. — Então, vai partir?... Às mil maravilhas!... Mas tome cautela, seja prudente! Olhe: mande um rapazito aqui amanhã pela manhã; a Ludmila tem um lá em casa. Por ele ficará sabendo o que se tiver passado. Bem, até mais ver, camaradas! Tudo vai bem!... Que tudo continue bem, é o que se quer! Pela rua, comentava Sachenka em voz baixa: — Com aquela mesma simplicidade é capaz de ir para a morte, se for preciso... Só com um pouco de pressa, como ainda agora. Quando lhe chegasse a sua hora final, ajustava os óculos, dizia assim: «Às mil maravilhas!» e morria! — Amo-o deveras! — segredou Pelagueia. — Pois a mim, causa-me espanto! Quanto a amá-lo, não! Estimo-o, simplesmente. Acho-o muito seco, ainda que lhe encontre certa bondade e às vezes até alguma ternura. Mas não possui em si bastante humanidade... Parece-me que vamos sendo seguidas. Separemo-nos. Não vá a casa da Ludmila, se desconfiar que a vigiam... — Bem sei! — respondeu ela. Mas Sachenka insistiu ainda: — Não vá para casa dela... Se tal suceder, venha antes para a minha. Até mais ver! Virou-se rápida e voltou pelo mesmo caminho. A outra gritou-lhe: — Até à vista! XXVIII Minutos depois, aquecia-se Pelagueia junto do fogão, no quarto de Ludmila. Vestida de preto, esta última passeava devagar pelo estreito aposento, que enchia com o rugir das suas saias e com a soberania da sua voz autoritária. No fogão, a lenha estralejava e assobiava, aspirando o ar do quarto. Vibrava a voz igual e monótona da dona da casa: — Os homens são infinitamente mais tolos do que maus. Não sabem ver senão o que lhes fica perto, o que têm ao seu alcance imediato!... Ora tudo o que nos fica próximo é mesquinho; só o que se encontra afastado tem valor. Na realidade, seria vantajoso para todos que a vida se tornasse mais fácil e as criaturas mais inteligentes... Mas para chegarmos a isso, forçoso é renunciar por enquanto a viver com tranquilidade. Aqui, estacou de súbito em frente de Pelagueia e acrescentou mais baixo, como para desculpar-se: — Dou-me com tão pouca gente!... Quando alguém vem a minha casa, ponho-me logo a discursar!... É ridículo, não é? — Ora essa! Porquê? Diligenciava Pelagueia descobrir onde era que Ludmila imprimia os folhetos, mas não via em torno de si nada extraordinário. No quarto, com três janelas para a rua, havia um canapé, um armário com livros, uma mesa, cadeiras, uma cama encostada a uma das paredes; num dos cantos, o lavatório, noutro, o fogão; pelas paredes fotografias. Tudo isto com aparência de novo, sólido e asseado. E neste conjunto, a figura quase monástica da dona do aposento era principalmente o que impunha severo aspeto. Pressentia-se haver naquele quarto o que quer que fosse misterioso e oculto. Olhou depois para as portas: penetrara no quarto por uma delas — a que abria para uma exígua casa de entrada; perto do fogão, havia outra, alta e estreita. — Vim para tratar de certo negócio... — disse ela um tanto confusa, ao ver que Ludmila a estava observando. — Já sei. Ninguém vem a minha casa com outro motivo. Pareceu a Pelagueia vibrar na voz da sua interlocutora uma intenção singular; via-lhe um sorrisinho nas delgadas comissuras dos lábios, e as pupilas, baças habitualmente, brilhavam-lhe por detrás dos vidros da luneta. Desviou portanto o olhar e apresentou-lhe o manuscrito com o discurso de Pavel. — Aqui está. Pedem-lhe que o imprima o mais depressa que possa. E narrou os preparativos a que Nicolau procedera, prevendo a sua captura. Sem dizer uma palavra, Ludmila entalou o papel no cinto e sentou-se numa cadeira. Agitavam-se-lhe pelo rosto impassível os reflexos do lume.— Quando os polícias vierem a minha casa, faço fogo para cima deles! — declarou. — Tenho o direito de defender-me contra a violência e o dever de lutar contra ela, visto que instigo também os outros a fazê-lo! A vermelhidão das chamas desapareceu-lhe do rosto, o qual voltou a mostrar- se severo e um pouco altivo. «Deve ser bem trabalhosa a vida que levas» — foi o súbito pensamento que acudiu ao espírito de Pelagueia, acompanhado dum sentimento de afeição. Ela pôs-se a ler o discurso de Pavel, primeiro, sem vontade, depois, curvando- se cada vez mais sobre o papel. Ia atirando rapidamente para o chão as folhas já lidas. Finda a leitura, levantou-se, endireitou o tronco e foi para a outra: — Está muito bom! Aí está do que eu gosto! É nítido e claro! Inclinou a cabeça e refletiu um instante. — Não quis falar-lhe do seu filho: nunca o vi e não me agradam as conversas tristes. Eu sei o que se sente quando vemos um dos nossos ir para o degredo!... Diga-me: é agradável ter-se um filho como ele? — Sim, muito agradável! — E deve ser coisa terrível também?... Com um sereno sorriso, Pelagueia respondeu: — Não; agora já não... Ludmila alisou com a mão, muito morena, os cabelos penteados em bandós; depois, voltou-se para a janela: palpitava-lhe nas faces uma leve sombra apaixonada. — Vamos imprimir isso... Quer ajudar-me? — Certamente! — Vou compor o mais depressa possível. Deite-se; o dia deve-lhe ter sido fatigante. Vê-se que está cansada. Deite-se naquela cama, que eu não durmo hoje. Talvez tenha de a acordar de noite, para me auxiliar. Antes de adormecer, apague o candeeiro. Acrescentou duas achas ao lume e saiu pela porta estreita, praticada ao lado do fogão, que tornou a fechar cuidadosamente após si. Pelagueia seguira-a com o olhar. E enquanto se despia, pensava maquinalmente na sua hospedeira: «É um caráter severo... E vê-se que sofre, a pobre senhora!» O cansaço esvaía-lhe a cabeça; no entretanto, sentia o coração singularmente calmo; no seu espírito, tudo se iluminava com suave e cariciosa luz. Pelagueia conhecia já aquela tranquilidade, que segue sempre às grandes comoções; antigamente, inquietava-a, mas agora, fazia que a sua alma se expandisse, revigorada em forte e puro sentimento. Apagou o candeeiro, deitou-se na camamuito fria, encolheu-se, aconchegando a si os cobertores e adormeceu logo em profundo sono. Quando descerrou os olhos, estava o quarto banhado da claridade gélida e branca dum desanuviado dia de inverno. Estendida no canapé, com um livro na mão, Ludmila fitava-a com uma expressão de ternura que a transfigurava. — Deus meu! — exclamou Pelagueia, confundida. — Quanto tempo eu dormi! É muito tarde, pois não é? — Bom dia! — respondeu-lhe Ludmila. — Vão dar as dez horas. Levante-se para irmos almoçar. — Porque não me acordou? — Tive ideia disso; mas a senhora mostrava um sorriso tão bonito, enquanto dormia... Num movimento ágil do seu corpo robusto e flexível, Ludmila levantou-se, aproximou-se do leito, curvou-se sobre o rosto dela; e Pelagueia pôde distinguir nos olhos sem brilho da sua hospedeira alguma coisa familiar, amigável, compreensível. — ... que não quis despertá-la... Era um belo sonho que estava tendo, com certeza... — Não, senhora; não sonhei com coisa alguma. — Pois é pena... Mas gostei de ver aquele seu sorriso: achei-o tão meigo, tão santo! E Ludmila pôs-se a rir, um rir aveludado e discreto. — Entrei a pensar em si, na sua vida... Porque a sua existência deve ser árdua! Pelagueia contraiu os sobrolhos, pensativa. — Não sei! — respondeu, hesitante. — Há momentos em que me parece que sim... mas não é verdade! Há tantas coisas... coisas espantosas e graves, que se seguem com tanta rapidez umas às outras!... Subia-lhe ao peito a onda de excitação que ela conhecia bem, enchendo-lho de imagens e de pensamentos. Sentou-se na cama e deu-se pressa em revestir de palavras as suas ideias. — Tudo o que estamos presenciando caminha para o mesmo fim, como o fogo, quando arde uma casa, tende sempre a subir! Aqui, abre caminho, mais além, brilha intensamente, sempre mais violento, sempre mais luminoso... Há tanta coisa que custa ver! Se soubesse!... Essa pobre gente sofre, é incomodada, espiada... Batem-lhes, batem-lhes com crueldade... Eles, então, ocultam-se a todas as vistas, passam a viver como frades. Quantas alegrias há que lhe são defesas!... E é triste assim, a vida!Ludmila ergueu com vivacidade a cabeça e fitou Pelagueia com profundo olhar. — Não é de si que está falando! — observou em voz baixa. — De mim!... — repetiu ela, enquanto se ia vestindo. — E pode alguém colocar-se à parte, quando o nosso coração ama alguma coisa, quando este ou aquele nos é querido, quando se sente medo e compaixão por todos?... Tudo isto se nos entrechoca na alma, atraída assim para cada um desses infelizes... Como podemos colocar-nos à parte? Para nos refugiarmos onde? Já meia vestida, permaneceu um instante pensativa no meio do quarto. E subitamente, afigurou-se-lhe que já não era ela a mesma criatura que tanto se inquietara e alarmara pela sorte de seu filho; tal personalidade já não existia, tinha-se desapegado e afastado dela. Escutou-se então a si própria, no desejo de saber o que se passava no seu íntimo, embora receasse despertar outra vez o seu velho sentimento de ansiedade. — Em que está pensando? — perguntou-lhe Ludmila afetuosamente. — Nem eu sei! Calaram-se as duas, olharam uma para a outra e sorriram. Depois, Ludmila abalou do quarto, murmurando: — Que estará fazendo o meu samovar? Pelagueia olhou então pela janela. Lá fora, reinava a frialdade dum luminoso dia de inverno. Ela, no âmago do coração, sentia também uma claridade igual àquela, mas quente. O seu desejo seria falar de tudo; demorada e jovialmente, num vago sentimento de gratidão por tudo o que baixara à sua alma, tornando-lha assim bem formada. Sentiu, o que havia muito não lhe sucedia, um desejo de rezar. Veio-lhe então à lembrança um rosto moço e imberbe; na sua memória ecoou uma voz delgada: «É a mãe do Pavel Vlassov...» Cintilavam os meigos olhos joviais de Sachenka; desenhava-se o negro perfil de Ribine; sorria o rosto valoroso e bronzeado de Pavel; Nicolau piscava os olhos, acanhado. E de repente, todos aqueles rostos amigos foram eclipsados em meio dum suspiro ligeiro mas de significação profunda; baralharam-se, confundiram-se em uma nuvem transparente e multicolor, que envolvia o coração em um sentimento de paz. — O Nicolau tinha razão! — disse Ludmila ao regressar ao quarto. — Foi preso, não há dúvida possível! Conforme me recomendou, mandei um rapazito a casa dele. Já voltou. Diz que estão lá agentes de polícia escondidos no pátio; que viu um por detrás da porta da rua. Os espiões vigiam ao de redor da casa; o pequeno conhece-os. — Ah! — limitou-se Pelagueia a dizer, com um meneio de cabeça. — Pobre Nicolau! — Nestes últimos tempos, ele fazia muitas preleções aos operários da cidade;estava desmascarado; era tempo e mais que tempo que desaparecesse! — prosseguiu Ludmila em tom sombrio mas sereno. — Os companheiros andavam sempre a dizer-lhe que saísse da cidade; ele não quis dar-lhes ouvidos!... A minha opinião é que, em tais casos, o que se deve não é aconselhar as pessoas, mas obrigá-las! À porta apareceu um rapazito de cabelo preto, pele rosada, nariz aquilino e bonitos olhos azuis. — Quer que traga o samovar? — perguntou com voz sonora. — Traz, sim, Sérgio, se fazes favor. É meu discípulo... Não o conhecia? — Não. — Tenho-o mandado algumas vezes a casa do Nicolau. Pelagueia, entretanto, achava Ludmila muito mudada, parecia-lhe mais singela de maneiras, mais compreensível. Havia nos movimentos graciosos do seu esbelto corpo, beleza e força, a atenuarem o que no rosto pálido tinha de severidade. Com a noite perdida as olheiras haviam-se-lhe cavado mais. Sentia- se-lhe nos modos um esforço continuado, como se na sua alma vibrasse uma corda em demasiada tensão. O rapaz trouxe o samovar. — Sérgio, olha a senhora Pelagueia Vlassov, a mãe do operário que foi ontem condenado. A criança inclinou-se em silêncio, apertou a mão de Pelagueia, tornou a sair e voltou trazendo pão. Sentou-se também à mesa. Enquanto ia servindo o chá, Ludmila aconselhou Pelagueia a não voltar para casa sem que se soubesse quem era a pessoa alvejada pelas diligências policiais. — Talvez seja a senhora mesma... Hão de querer interrogá-la. — Que me importa! — redarguiu ela. — Se for presa, a desgraça não será grande! Só o que desejava era que o discurso do Pavel estivesse já distribuído... — Já está composto. Amanhã teremos exemplares bastantes para a cidade e para os arrabaldes... e também para o resto do distrito. Conhece a Natacha? — Ora se conheço! — Pois é preciso que lhe leve os folhetos. A criança estava lendo um jornal. Parecia não ouvir o que diziam, mas de quando em quando, erguia os olhos para Pelagueia. Esta, quando lhe surpreendia aquele olhar tão vivo, sentia-se agradavelmente comovida. A jovem senhora falou novamente de Nicolau, sem lamentar sequer a sua captura, o que de toda a maneira pareceu a Pelagueia naturalíssimo. O tempo dir-se-ia passar mais veloz; era perto do meio-dia quando terminaram o almoço.De repente ouviu-se bater na porta, rapidamente. Levantou-se a criança e dirigiu interrogador olhar à dona da casa. — Abre, Sérgio! Quem poderá ser? Com o maior sossego, introduziu a mão na algibeira do vestido e disse à sua hóspede: — Se for a polícia, coloque-se ali naquele canto. E tu, Sérgio... — Bem sei! — respondeu a criança, baixando a voz. E saiu. Pelagueia sorria. Não a impressionavam tais preparativos; não tinha o pressentimento duma desgraça. Quem entrou afinal foi o doutor. Anunciou logo com precipitação: — O Nicolau foi preso!... Ah, está por cá, tiazinha?... Não estava em casa quando o levaram? — Não, senhor; foi ele que me mandou para aqui. — Hum!... Não me parece que isso lhe seja de grande utilidade... Esta noite, uns rapazes imprimiram com gelatina quinhentos exemplares do discurso do Pavel. O trabalho ficou bom, está bem impresso, lê-se bem. Tencionam distribui- los pela cidade, esta noite. Não sou dessa opinião: para a cidade são preferíveis os folhetos impressos; os outros é que devem ser expedidos para toda a parte. — Eu os vou levar à Natacha! Dê-mos! — exclamou Pelagueia com vivacidade. O seu grande desejo era fazer circular o mais depressa possível o discurso de Pavel; inundar a terra com as palavras de seu filho. E fitava o médico atentamente, com olhar quase suplicante. — Não sei se será prudente que a senhora se meta agora nessa empresa! — disse, indeciso. E puxou pelo relógio. — São onze horas e quarenta e três minutos... O comboio parte às duas e cinco; pode chegar ao seu destino às cinco e quinze.. Ia chegar de noite, mas não era muito tarde... Além do que, não é isto o essencial... — Não, não é isso o essencial! — repetiu Ludmila, franzindo o sobrolho. — Então o que é? — perguntou Pelagueia, aproximando-se deles. — O essencial é que a distribuição seja bem feita... e eu sei como me hei de haver! A dona da casa atentou nela fixamente e declarou, passando a mão pela testa: — É perigoso... — Porquê? — exclamou a outra. — Aqui tem porquê! — expôs o doutor com voz precipitada e desigual. — Vossemecê desapareceu de casa uma hora antes da prisão do Nicolau. Daqui a pouco, vai ser vista lá na fábrica, onde é tão conhecida. Logo depois de lá chegar, entram a aparecer os folhetos revolucionários... Tudo isso são indícios que se lhevão apertar na garganta como um laço corredio... — Mas é que não hão de dar por mim! — objetou ela com animação crescente. — Se for presa quando de lá voltar, e me perguntarem onde estive... Interrompeu-se um momento e prosseguiu: — Sempre hei de achar resposta! Por exemplo: posso ir da fábrica diretamente ao arrabalde. Conheço lá um sujeito chamado Sizov. Pois digo que logo em seguida ao julgamento fui para casa do Sizov, por me achar incomodada com o desgosto sofrido... Também ele está muito pesaroso: o sobrinho foi condenado juntamente com o Pavel!... Digo que estive todo este tempo em casa dele, e ele há de confirmar o que eu disser... Bem veem! E porque os sentisse cederem aos seus argumentos, esforçava-se por convencê-los e falava com crescente calor. Por fim, aquiesceram. — Que se há de fazer? Pois vá! — concordou o doutor, mas de má vontade. Ludmila conservava-se em silêncio; passeava pelo quarto, meditativa. O rosto assombreara-se-lhe, as faces haviam-se-lhe cavado; os músculos do pescoço pareciam ter-se distendido, como se a cabeça se tivesse bruscamente tornado mais pesada e tombasse irresistivelmente para o peito. O forçado consentimento do doutor arrancara a Pelagueia profundo suspiro. — Andam todos a animar-me! — disse, sorrindo. — Mas os senhores são os primeiros que não se poupam! — Isso não é assim! — replicou o doutor. — Poupamo-nos todos; temos o dever de nos poupar. E as nossas censuras nunca serão demasiadas para aqueles que se expõem inutilmente! Por consequência lá se lhe irão levar os folhetos à estação. Explicou-lhe o que tinha a fazer e em seguida acrescentou, fitando-a bem de frente: — O que desejo é que se saia bem! Está satisfeita, não é assim? E foi-se descontente. Logo que ouviu fechar-se a porta, Ludmila aproximou- se de Pelagueia. — A senhora é uma excelente mulher!... Eu compreendo-a... Travou-lhe depois do braço, e ambas entraram a passear pelo aposento. — Também eu tenho um filho. Tem já doze anos. Mas vive com o pai. Meu marido é procurador substituto; talvez seja já procurador efetivo, não sei... E aquela criança está na sua companhia... Quantas vezes pergunto a mim mesma qual será o seu futuro!... Teve na voz, desfalecida, uma comoção, e depois prosseguiu baixinho, de novo meditativa: — Se ele está sendo educado por um inimigo figadal daqueles que me sãoqueridos, daqueles que eu considero como as melhores criaturas da terra!... E assim, meu filho pode vir a ser meu inimigo também... Não me é lícito trazê-lo para a minha companhia, pois que vivo com nome suposto. E há oito anos já que o vi pela última vez!... Quanto tempo! Oito anos! Ao pé da janela, parou e ficou a olhar para o pálido e desolado céu. — Se ele vivesse comigo, sentir-me-ia mais forte. Mesmo se morresse, ficaria mais aliviada... Após um instante de silêncio, ergueu a voz para explicar: — Porque então, ficaria sabendo que só estava morto; porque não poderia tornar-se num inimigo de aquilo que é superior ao próprio amor materno, de tudo o que na vida há mais precioso!... — Minha querida amiga! — murmurou brandamente Pelagueia, sentindo o coração confranger-se-lhe de dó. — A senhora é feliz! — prosseguiu Ludmila com um sorriso. — É admirável ver uma mãe e um filho caminharem lado a lado... É raro! — Sim, é certo; é delicioso! — exclamou Pelagueia. E explicou, baixando a voz, como para confiar um segredo: — É como se tivéssemos uma segunda vida! A senhora, Nicolau, todos, enfim, os que lutam pela verdade, estão connosco!... E assim, tornamo-nos mais íntimos uns dos outros... E eu compreendo-os... não o que dizem, mas tudo o mais, sim, compreendo-o!... Tudo! — Ah, é assim? — exclamou a jovem senhora. — É assim!... E logo Pelagueia, pousando-lhe a mão no ombro: — Os nossos filhos vão em marcha pela terra! Eis o que eu compreendo! Vão em marcha pela terra, por toda a terra e em toda a parte caminham para o mesmo fim! Arremessam-se ao assalto os melhores corações e os espíritos mais leais, sem olharem para trás de si, para tudo o que é mau e sinistro. E avançam, avançam... Débeis ou robustos todos dedicam as suas inteiras forças à mesma causa: a justiça! Juraram triunfar da desgraça; armaram-se para aniquilar o infortúnio da humanidade: querem vencer o horror e hão de vencê-lo! «Havemos de acender um novo sol» disse-me um deles. E hão de acendê-lo! «Havemos de reunir num só todos os corações despedaçados!» disse outro. E hão de fazê-lo! Ergueu o braço para o céu: — Além há um sol! E, batendo no peito, concluiu: — E aqui, outro se há de acender, mais brilhante que o do céu, o sol da felicidade humana, que eternamente iluminará a terra inteira e aqueles que ahabitam, com a luz do amor de cada criatura por todos e por tudo! E Pelagueia evocava as palavras das orações esquecidas para entusiasmar a sua nova fé e lançava-as do coração como centelhas: — Os nossos filhos, caminhando pela senda da razão e da verdade, levam o amor a todas as coisas, criam um novo céu, acendem o lume sagrado e incorruptível que brota da alma, do âmago do coração. E é assim que nos é oferecida uma vida nova no apaixonado amor dos nossos filhos pelo mundo inteiro. E quem poderia extinguir este amor? Quem? Existe força superior a esta? Quem poderia vencê-la? Foi a própria terra que a gerou e a vida inteira exige a sua vitória... a vida inteira! Pelagueia afastou-se de Ludmila e sentou-se, ofegante, quebrada pela sua comoção. A jovem senhora afastou-se também de mansinho, com precaução, como se receasse quebrar alguma coisa. No seu passo ágil, atravessou o quarto, fixando para longe dali o olhar profundo dos seus olhos sem brilho. Parecia ainda mais delgada, mais hirta e mais alta. Tinha na cara chupada e severa uma expressão concentrada, comprimia nervosamente os lábios. O silêncio acabara por apaziguar a exaltação de Pelagueia. A meia voz, num tom de receio, perguntou: — Talvez eu dissesse coisas que não deveria ter dito. Ludmila voltou-se com vivacidade, lançou-lhe um olhar assustado e exclamou: — Não! É assim mesmo! É assim mesmo!... Mas não falemos mais nisso! Fiquem as suas palavras tais quais as pronunciou, sim! E prosseguiu depois, já mais calma: — É forçoso partir... A estação fica longe daqui. — Sim, vou já partir! Como me sinto contente! Se soubesse!... Levo comigo as palavras do meu filho, as palavras do meu sangue! É como se levasse a minha alma! Sorria. Mas este sorriso não produziu mais que um pálido reflexo na fisionomia de Ludmila. Pelagueia sentia aquela frieza regelar-lhe a sua própria alegria. Assim, sentiu o desejo súbito de comunicar àquela alma severa o seu ardor, abraçar-se com ela, afim de a fazer sentir em uníssono com o seu coração de mãe. Tomou a mão de Ludmila e disse, apertando-lha com força: — Minha querida! Como é bom saber que há na vida luz para todos os homens e que, com o tempo, eles hão de acabar por vê-la, por fundirem nela as suas almas e por arderem todos da mesma chama inextinguível! O seu rosto bondoso tremia de entusiasmo; os seus olhos radiantes e as suas sobrancelhas agitavam-se, como para dar asas ao brilho das pupilas. Sentia-se inebriada pela sublimidade dos seus ideais, em que punha toda a ardência docoração, tudo o que experimentara, e encerrava nos rijos e límpidos cristais das palavras iluminadas as ideias que floresciam e desabrochavam mais e mais no seu coração outonal, iluminado pelo sol da força criadora. — É como se para nós tivesse nascido um novo Deus! Tudo para todos, todos para tudo, a vida inteira em um só, em cada um a vida inteira! E cada um para a vida inteira! É assim que eu compreendo; é para isso que vós todos andais pela terra, eu bem o vejo! Em verdade, todos sois camaradas, todos sois da mesma família, porque todos sois os filhos da mesma mãe: a verdade! Foi a verdade que vos gerou e é pela sua força que viveis! Pelagueia retomou alento e continuou, com um gesto largo que parecia abarcar tudo! — E quando a mim própria pronuncio esta palavra «camaradas» parece-me ouvi-los caminhar. De toda a parte vêm em multidão. Oiço um ruído atroador e alegre, como se os sinos de todas as igrejas da terra entrassem a tocar! Conseguira o que desejava: animara-se o rosto de Ludmila; os lábios tremeram-lhe; uma após outra, rolaram-lhe dos olhos pesados lágrimas cristalinas. Então, Pelagueia tomou-a entre os braços; teve um riso silencioso, meigamente ufana da vitória obtida pelo seu coração. Ao afastarem-se as duas mulheres, Ludmila fitou Pelagueia e perguntou em voz baixa: — Sabe que é muito agradável estar na sua companhia? E a si própria respondeu, rematando: — Sim, parece que se está no cimo de uma alta montanha, ao nascer da aurora... XXIX Lá fora, o ar seco e glacial fustigava o corpo, irritava a garganta e o nariz; sufocava a respiração. Pelagueia parou a certa altura, olhando em torno: perto dali, à esquina duma rua, estava um cocheiro com um boné de pelo; mais longe, caminhava um homem, todo corcovado, com a cabeça encolhida entre os ombros. Um soldado corria, aos pulos, esfregando as orelhas. «Provavelmente mandaram-no à loja, a comprar alguma coisa!» pensou ela. Escutava com satisfação o ruído da neve que se lhe quebrava sob os passos. Em breve chegou à estação; o comboio ainda não estava formado; no entretanto, havia já muita gente na sala de espera da terceira classe, enfumaçada e suja. O frio para lá escorraçara os trabalhadores do caminho de ferro; e também vinham aquentar-se ali, cocheiros e indivíduos mal vestidos, sem eira nem leira. Também ali se encontravam viajantes: alguns campónios, um negociante gordo, vestido de espessa capa de peles, um padre com a sua filha, uma rapariguita de rosto pálido, cinco ou seis soldados e alguns burgueses com ares de atarefados. Fumava-se, conversava-se, bebia-se aguardente ou chá. Junto ao bufete, ouviam- se grandes gargalhadas; pairava por cima das cabeças o fumo do tabaco em densas nuvens. Ao abrir-se, a porta chiava, e quando a tornavam a fechar, batia com estrondo e as vidraças ressoavam e tremiam. Assaltava violentamente as narinas um cheiro a tabaco e a peixe salgado. Pelagueia sentou-se perto da porta, bem em evidência, e esperou. Quando entrava alguém, envolvia-a uma lufada de ar frio; a sensação era agradável: respirava nesses momentos a plenos pulmões. Aparecia gente em pesados trajos, carregada de embrulhos; prendiam-se desastradamente na porta, praguejavam, atiravam os seus fardos para o chão; depois limpavam da geada a gola e as mangas dos casacões, limpavam as barbas ou os bigodes, resmungando. Um rapaz, que trazia uma mala amarela, entrou, e depois de olhar rapidamente em torno, foi direito a Pelagueia. — A Moscovo? — perguntou ele a meia voz. — Sim! A casa de Tânia. — Aí tem! E dito isto, colocou a mala sobre o banco, ao lado dela, tirou um cigarro da algibeira, acendeu-o rapidamente e tornou a sair por outra porta, depois de ter erguido levemente o boné. Pelagueia passou a mão pelo coiro frio da mala e encostou-se a ela. Satisfeita, enfim, pôs-se a examinar quem estava. Instantes depois, levantou-se e foi sentar-se noutro banco, mais próximo da saída. Levava a mala numa das mãos com a maior serenidade, de cabeça levantada e fitando as caras que lhe passavam ao alcance da vista. Um homem vestido dum casaco curto e com a cabeça enterrada na gola,erguida, deu-lhe um encontrão e afastou-se sem dizer uma palavra, levando simplesmente a mão ao boné. Pareceu-lhe tê-lo já visto. Voltou-se e viu que ele a estava observando. Sentiu-se como trespassada por aquele olhar claro; a mala entrou a tremer-lhe na mão, como se tivesse repentinamente aumentado de peso. — Onde vi eu aquele homem? — perguntava a si mesma, como para repelir a sensação desagradável que lhe subia do peito até à garganta e lhe enchia a boca de amargo travor. Apoderou-se dela um desejo irresistível de se voltar e de olhar mais uma vez para ele: o homem continuava no mesmo lugar, firmando-se ora num pé, ora no outro e parecia indeciso. Introduzira a mão direita entre os botões do casaco e conservava a outra na algibeira, o que fazia parecer que tinha o ombro direito mais alto do que o esquerdo. Devagar, Pelagueia caminhou até um banco, sentou-se lentamente, com precaução, como se receasse quebrar alguma parte do corpo. A sua memória, despertada por um agudo pressentimento de desgraça, evocava dois aspetos deste homem: o primeiro datava do dia da evasão de Ribine; o outro, da véspera. Lembrava-se ter visto no tribunal, ao lado daquele individuo o agente de polícia a quem fornecera a errada indicação sobre o caminho que Ribine tomara na sua fuga. Tornara-se pois conhecida, andava vigiada, era certo! — Estarei eu apanhada? — perguntou a si mesma. E respondeu, sentindo-se estremecer: — Talvez ainda haja meio... Não, decididamente estou apanhada, não há nada a fazer... Olhou em roda, mas não viu nada suspeito. Uma após outra, como centelhas, surgiam-lhe e apagavam-se-lhe várias ideias dentro do cérebro. — Deixar a onda?... Ir-me embora? Mas logo outra centelha mais viva brilhou: «As palavras do meu filho... atirá- las assim fora! Deixá-las em semelhantes mãos!» E chegou a mala mais para si. «E se eu agarrasse nela e deitasse a fugir!...» Chegava-lhe a parecer não serem seus os próprios pensamentos, que alguém lhos introduzia no cérebro, à força. Eram como queimaduras a corroerem-lhe dolorosamente a cabeça e o coração, levando-a para longe de si mesma, para longe de Pavel, de tudo o que já fazia parte integrante do seu coração. Sentia que uma força hostil a oprimia obstinadamente, lhe pesava nos ombros e no peito, a aviltava, mergulhando-a em frio terror. Incharam-se-lhe as veias das fontes, subiu-lhe à cabeça intenso calor. Então, dum só impulso vigoroso que a ergueu de chofre, sufocou em si todos estes lampejos de tibieza, covardes e astuciosos, ordenando a si própria com autoridade: «Não sejas a vergonha do teu filho!» Aos seus olhos apareceu então um olhar tímido e desconsolado. Passou-lhepela memória a imagem de Ribine. Estes poucos segundos de hesitação bastaram para fortalecer nela todas as crenças. O coração pulsou-lhe com mais regularidade. — Que irá acontecer? — perguntou a si mesma, olhando em torno. O espião acabava de chamar um guarda; segredava a este o que quer que fosse, designando-a com o olhar. O guarda observou Pelagueia e recuou. Aproximou-se outro guarda e pôs-se a escutar o que diziam. Era um velho robusto, grisalho e de comprida barba. Fez um sinal com a cabeça ao espião e adiantou-se para o banco em que Pelagueia se sentava. O espião desapareceu como por encanto. O velho caminhava sem pressa alguma, perscrutando atentamente com olhar irritado a fisionomia de Pelagueia. Ela encolheu-se toda no fundo do banco. «Contanto que não me batam!... Deus permita que não me batam!» O guarda parou junto dela e, após silêncio, perguntou com severidade: — Que estás tu a olhar? — Nada... — Está bem... Ladra! Então és velha e andas nessa vida?! Com estas palavras julgou Pelagueia que recebia uma bofetada. Irritadas e roucas, faziam doer, como se lhe rasgassem as faces e arrancassem os olhos. — Ladra, eu?! Mentes! — gritou com toda a força dos pulmões. Tudo o que a rodeava lhe parecia mover-se descompassadamente entre o redemoinho da sua indignação; sentia o coração atordoado pela amargura da injúria. Agarrou na mala, que logo se abriu por si. — Olha! Olhem todos! — exclamou, pondo-se em pé e agitando acima da cabeça um maço de proclamações. Através dos zumbidos de que tinha cheios os ouvidos, ouvia as exclamações das pessoas que acudiam de todos os lados. — Que se passa? — É um agente da polícia secreta... — Mas que aconteceu? — Dizem que roubou, aquela mulher... — Aquela mulher? — Mas ela protesta. — Ora adeus! Com aquele todo tão respeitável! — Quem foi que prenderam? — Eu não sou ladra! — repetia ela com voz forte e serenando pouco a pouco com o ver a atitude dos curiosos que a rodeavam em compacto círculo. — Ontem foram condenados alguns presos políticos e entre eles o meu filho...O meu filho chama-se Vlassov. Pronunciou um discurso: aqui o têm! Ia levá-lo à gente do povo, para que o leia e reflita nas verdades que ele encerra! E porque um dos circunstantes, com precaução, tomasse um dos fascículos que ela tinha na mão, agitou os outros e atirou-os por sobre o ajuntamento. — Estás livre de receber felicitações pela maneira por que os distribuíste! — comentou a medo uma voz. — Cuidado, que vai acontecer alguma! — aconselhou outra voz. Pelagueia via que cada qual tratava de se apoderar dos papéis e de escondê- los nas algibeiras ou no peito. Mais animosa, entrou a tomar maços e maços de dentro da mala e a atirá-los à direita e à esquerda, nas mãos ávidas e ligeiras que se lhe estendiam. — Sabem porque condenaram o meu filho e os que com ele estavam? Vou dizer-vo-lo! Creiam neste coração de mãe! Condenaram-nos porque vos traziam a todos a santa verdade! E ontem mesmo eu vi como essa verdade triunfou!... Ninguém pode lutar contra ela, ninguém! A multidão, que se conservava muda de assombro, engrossava cada vez mais, cercando Pelagueia duma cadeia de seres viventes. — A pobreza, a fome, a doença: eis o que o trabalho nos rende! Tudo é contra nós. De dia para dia, morremos sob o trabalho, sofremos fome e frio, prostrados sempre no lodo e no ludíbrio; e são outros que se fartam e se divertem à custa do nosso labor!... Como cães presos pela trela, imobilizam-nos na ignorância; nós nada sabemos e, na nossa covardia, de tudo temos medo! A nossa vida é uma noite, uma noite escura! É um pesadelo horrendo!... Pois não é verdade? — Sim! — responderam algumas vozes surdas. — Fecha-lhe a boca! Por detrás do ajuntamento, Pelagueia avistou o espião acompanhado por dois guardas. Deu-se pressa em distribuir os últimos maços, mas quando a sua mão chegava mais uma vez à mala, sentiu o contacto de outra mão. — Levem tudo! Levem tudo! — disse ela, curvando-se. — Para transformar esta vida, para libertar todos os homens, para os ressuscitar de entre os mortos, como eu ressuscitei, nasceram criaturas filhas de Deus que andam a semear pelo mundo a verdade santa. Operam em segredo, pois, como bem sabem, ninguém pode dizer a verdade, sem que seja logo perseguido, sufocado, atirado para uma enxovia, mutilado! A verdade da existência e a liberdade são inimigas para todo o sempre irreconciliáveis daqueles que nos governam, daqueles que nos oprimem. E são crianças, são criaturas puríssimas e luminosas que vos anunciam a verdade. Graças a elas, ela há de chegar enfim às nossas miseráveis existências, ela há de vir acalentar-nos e confortar-nos; há de libertar-nos da opressão das autoridades e de todos os que lhes venderam a alma! Creiam!— Bravo, velha! — gritou um. Outro entrou a rir. — Vamos, dispersem! — regougaram os guardas, afastando brutalmente a multidão. O agrupamento recuou, resmungando, impedindo os guardas entre a massa da gente e tolhendo-lhes os movimentos, mesmo sem querer. Sentiam-se dominados por aquela mulher de cabelos grisalhos, olhar de franqueza e modos bondosos. Indiferentes uns aos outros, isolados pela vida, confundiam-se agora em um todo, acalentados pelo ardor daquela palavra que muitos esperavam, sem dúvida, há muito tempo. Os que ficavam mais perto de Pelagueia permaneciam em silêncio. Pelagueia sentia-lhes os olhares atentos fitos sobre si e o bafo das respirações. — Sobe para o banco! — gritou-lhe um. — Vai-te daqui, velha! — Vais ser sufocada! — Que insolente! — Fala depressa, que eles aí vem! — Deixem o caminho livre! Vamos, a andar! — gritavam outros guardas, chegados neste comenos. Já em número crescido, estes desviavam a multidão com mais violência ainda; toda aquela gente molestada, agarrava-se a quem lhe ficava próximo. Parecia a Pelagueia ter na frente como que um férvido cachão e que todos estavam prontos a compreendê-la e a acreditá-la. O seu desejo era dizer ali, depressa, tudo o que sabia, todos os poderosos pensamentos que lhe subiam harmoniosamente, sem esforço, do âmago do coração; mas faltava-lhe a voz, não lhe saíam do peito mais que sons roucos, entrecortados e trémulos. — A palavra do meu filho é a palavra pura dum filho do povo, duma alma íntegra! Pela audácia se reconhecem os que são íntegros; pela verdade, quando ela o exija, sacrificam-se intrepidamente! Entre o ajuntamento, olhos juvenis fitavam-na, a um tempo com entusiasmo e terror. Recebeu uma pancada no peito, cambaleou e caiu para cima do banco. Por sobre as cabeças agitavam-se as mãos dos guardas, os quais agarravam brutalmente os circunstantes pela nuca ou pelos ombros e atiravam-nos para o lado, arrancavam das cabeças os bonés e arremessavam-nos ao longe. Pelagueia sentiu confundirem-se e vacilarem as coisas em frente dos olhos, mas dominou a fadiga e serviu-se ainda da pouca voz que lhe restava. — Povo, reúne as tuas forças em uma só força!Caiu-lhe no pescoço e sacudiu-a a mão enorme e encarniçada dum guarda. — Cala-te! Foi bater com a nuca de encontro à parede. Durante um instante, teve o coração envolvido numa névoa de ardente terror, mas este vapor logo se dissipou ao entusiasmo que a aquecia. — Anda para a frente! — disse o guarda. — ... Não há sofrimento mais amargo que o que dia a dia devora o coração e exaure o peito... O espião precipitou-se ao encontro dela e brandindo o punho em frente da cara da presa, gritou com voz aguda: — Cala-te, canalha! Os olhos de Pelagueia abriram-se desmedidamente e cintilaram; as maxilas tremiam-lhe. Firmou os pés no lajedo escorregadio e gritou: — Não se mata uma alma ressuscitada! — Cadela! Com pequeno impulso, o capitão bateu-lhe no rosto. — É bem feito para essa velha porca! — gritou uma voz. Uma coisa negra e vermelha cegou por instantes Pelagueia; encheu-lhe a boca o sabor salgado do sangue. Reanimou a uma explosão de exclamações: — Você não tem direito de bater! — Camaradas! — Que vem a ser isso? — Ah, patife! — Dá-lhe! — ... Não é com sangue que se há de sufocar a razão! Empurravam-na pelas costas, pelo pescoço, batiam-lhe na cabeça e no peito; tudo oscilava e se sumia no sombrio turbilhão dos gritos, dos lamentos e dos silvos dos apitos. Alguma coisa espessa e que a ensurdecia lhe penetrava nos ouvidos e lhe enchia a garganta até à sufocação. O solo fugia-lhe debaixo das pernas, que vergavam, o corpo tiritava-lhe sob o aguilhão dos ferimentos; trôpega e exausta, Pelagueia cambaleava. Mas continuava a distinguir em volta de si numerosos olhares onde brilhava o entusiasmo decidido que ela conhecia bem e que tão querido era ao seu coração. Levaram-na aos encontrões para uma das portas. Ela pôde desembaraçar uma das mãos e agarrou-se ao batente. — ... Nem mesmo sob um mar de sangue a verdade desaparecerá... Descarregaram-lhe logo uma pancada na mão.— Só conseguis congregar os ódios, insensatos que sois! E este ódio, este rancor, há de subverter-vos!... O guarda agarrou-a pela garganta e entrou a apertar-lha cada vez com mais violenta pressão. Num estertor, balbuciou: — Os desgraçados... Respondeu-lhe alguém com prolongado soluço. FIM Notas [1] A designação de Pequena Rússia, ou Pequena Rus, aplicava-se a uma região do império russo que corresponde a partes da atual Ucrânia. N. do E. [2] Gorki apenas regressou à Rússia em 1913, depois de o regime o ter amnistiado na sequência da celebração dos 300 anos da dinastia Romanov. N. do E. [3] Kopeck, moeda de cobre, a centésima parte do rublo. [4] Bebida em uso entre o povo da Rússia, obtida pela fermentação de um cozimento de farinha de cevada. — N. do T. [5] O staroste é o chefe dum mir, ou comuna rural autónoma. — N. do T.

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